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O SOCIAL E O POLÍTICO EM “REFLEXÕES SOBRE LITTLE ROCK”: O QUE HANNAH ARENDT NÃO PERCEBEU

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O presente artigo analisa o ensaio Reflexões sobre Little Rock, de Hannah Arendt, escrito no qual a filósofa alemã apresenta críticas à política de dessegregação racial forçada nas escolas dos Estados Unidos, considerando a decisão da Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education. Após expor os argumentos de Hannah Arendt, são apresentadas três críticas ao seu ensaio. A primeira, elaborada por James Bohman, ressalta a real condição social e política da comunidade afro-americana, que teria sido ignorada por Arendt. A segunda, feita por Seyla Benhabib, tem por foco a supervalorização do social, em detrimento do político, na reflexão arendtiana sobre o papel das escolas públicas. A terceira tem por base a concepção de discriminação apresentada por Arendt, salientando os equívocos feitos pela autora ao equiparar a separação de negros e brancos nas escolas públicas e eventual separação entre judeus e não-judeus em clubes recreativos e hotéis. Conclui-se que, apesar das críticas, a distinção entre o social e o político no pensamento de Hannah Arendt demonstra que o poder público, por meio da legislação ou de decisões judiciais, será muitas vezes incapaz de promover mudanças em hábitos e costumes arraigados na sociedade.
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O SOCIAL E O POLÍTICO EM “REFLEXÕES SOBRE LITTLE
ROCK”: O QUE HANNAH ARENDT NÃO PERCEBEU
THE SOCIAL AND THE POLITICAL IN “REFLECTIONS ON LITTLE
ROCK”: WHAT HANNAH ARENDT DIDN’T NOTICE
Pablo Antonio LagoI
Resumo: Em seu ensaio Reflexões sobre Little Rock, Hannah Arendt
apresenta críticas à política de dessegregação racial forçada nas escolas
dos Estados Unidos, considerando a decisão da Suprema Corte no
caso Brown v. Board of Education. Neste trabalho, questiona-se se a
visão da filósofa alemã sobre o tema é a mais acertada, bem como as
críticas que lhe poderiam ser dirigidas. Adotando metodologia de
análise bibliográfica, busca-se como objetivo geral a análise crítica
do ensaio de Arendt. Especificamente, é feita a reconstrução de
seu argumento, e na sequência são desenvolvidas três críticas ao
seu pensamento. A primeira crítica, elaborada por James Bohman,
ressalta a real condição social e política da comunidade afro-
americana, que teria sido ignorada por Arendt. A segunda, feita
por Seyla Benhabib, tem por foco a supervalorização do social, em
detrimento do político, na reflexão arendtiana sobre o papel das
escolas públicas. A terceira, inédita, tem por base a concepção de
discriminação apresentada por Arendt, salientando os equívocos
feitos pela autora ao equiparar a separação de negros e brancos nas
escolas públicas e eventual separação entre judeus e não-judeus em
clubes recreativos e hotéis. Conclui-se que, apesar das críticas, a
distinção entre o social e o político no pensamento de Hannah
Arendt demonstra que o poder público, por meio da legislação
ou de decisões judiciais, será muitas vezes incapaz de promover
mudanças em hábitos e costumes arraigados na sociedade.
Palavras-chave: Hannah Arendt. Segregação racial. Educação.
Sociedade. Direito e política.
Abstract: In “Reflections on Little Rock”, Hannah Arendt
criticizes policies of forced racial desegregation in US schools,
especially the Supreme Court’s decision in Brown v. Board of
Education. Is Arendt’s view on this subject the right one? What are
the criticisms that could be directed to it? Adopting bibliographical
analysis methodology, this paper critically analyzes Arendt’s essay.
After exposing Arendt’s arguments, three criticisms to her essay are
presented. e first, elaborated by James Bohman, highlights real
social and political conditions of African-American community,
which Arendt would have ignored. e second, made by Seyla
Benhabib, focuses on the overvaluation of the social in detriment
of the political in Arend’s reflections on public schools’ role. e
third is based on Arendt’s discrimination conception, highlighting
the problematic equalization proposed in her essay between racial
DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v23i47.1025
Recebido em: 27.09.2022
Aceito em: 03.08.2023
I Universidade Positivo, São Paulo, SP,
Brasil. E-mail: pabloa.lago@gmail.com
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segregation in public schools, and the eventual separation between
Jews and non-Jews in recreational clubs and hotels. It is concluded
that, despite criticisms, Arendt’s distinction on the social and the
political spheres asserts that public power, through legislation or
judicial decisions, will often be unable to promote changes in
habits and customs rooted in the society.
Keywords: Hannah Arendt. Racial segregation. Education. Society.
Law and politics.
Considerações iniciais
Como educar crianças e adolescentes e qual o papel da escola são questões que geram
calorosos debates. O ensino de gênero e de sexualidade, o homeschooling, a educação
cívico-militar, direitos e responsabilidades dos pais e da família... Estes são apenas alguns dos
tópicos que têm aparecido regularmente em diferentes espaços políticos e sociais. Concepções
antagônicas surgem nas redes sociais, ocupam espaço em noticiários e embasam a legislação
e políticas públicas sobre a matéria. E não sem razão: ainda que os desacordos sobre “o quê”
e “como” ensinar sejam frequentes, dificilmente alguém discordaria sobre a relevância destas
questões e o impacto que distintas respostas têm sobre o modelo de sociedade que desejamos
construir.
Mas o fato de tais debates serem atuais não significa dizer que sejam recentes. Ao longo
dos tempos, filósofos, sociólogos, psicólogos, pedagogos e estudiosos de diferentes campos do
conhecimento se debruçaram sobre o tema da educação. Alguns avançaram ideias particularmente
polêmicas, como é o caso de Hannah Arendt. Em 1957, a pedido da revista Commentary, Arendt
escreveu Reflexões sobre Little Rock, ensaio no qual analisa os acontecimentos que se seguiram à
dessegregação racial das escolas americanas. Contudo, o escrito só foi efetivamente publicado
dois anos depois, e em outra revista, a Dissent – mas não sem um alerta editorial, reforçando que
os editores discordam das visões de Arendt e que publicam o artigo apenas por acreditarem na
liberdade de expressão.
Em apertada síntese, Arendt entende que a dessegregação racial forçada das escolas
americanas, que se seguiu a partir da decisão da Suprema Corte em Brown v. Board of Education
em 1954, foi equivocada. A partir da distinção que constrói entre o social e o político, Arendt
argumenta que a igualdade deve ser promovida no campo político, mas não deveria ser imposta
ao social – que, dada sua própria natureza, teria como regra a diferenciação entre grupos e
indivíduos. Neste contexto, a escola integraria o campo social, e a dessegregação forçaria crianças
e adolescentes a enfrentar um embate que competiria aos adultos. Eventual diferença nas
oportunidades entre negros e brancos poderia passar, primeiramente, pelo aprimoramento das
escolas frequentadas por negros.
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Neste trabalho, levantam-se as seguintes questões: a visão de Hannah Arendt sobre
a dessegregação racial é correta? Quais as possíveis críticas que poderiam ser formuladas à
concepção arendtiana? Considerando esta problemática, o objetivo geral do trabalho é analisar
criticamente o ensaio da autora. Especificamente, além da reconstrução de seus argumentos, são
apresentadas três críticas: duas desenvolvidas por alguns de seus principais intérpretes, e uma
inédita, que envolve a concepção de discriminação adotada por Arendt. O trabalho parte da
análise bibliográfica e se justifica, dentre outros motivos, por tratar de dimensão teórica útil na
reflexão de eventuais leis e políticas públicas voltadas para a educação de crianças e adolescentes
– tema profundamente atual, como mencionado acima.
Estruturalmente, o texto está dividido em duas partes. Em um primeiro momento é
apresentada a síntese da posição arendtiana sobre a política de dessegregação racial nos Estados
Unidos, pontuando as principais questões por ela levantadas em seu ensaio. Após, são analisadas
duas críticas que lhe foram formuladas, uma elaborada por James Bohman (que sustenta que
Arendt teria ignorado a real condição dos negros americanos) e outra por Seyla Benhabib (para
quem Arendt, ao focar na dimensão social, teria negligenciado a dimensão política das escolas
públicas). Ao final, é apresentada uma terceira crítica, que tem por base a concepção arendtiana de
discriminação. Demonstra-se que a analogia que ela propõe entre a separação de negros e brancos
nas escolas públicas e eventual separação entre judeus e não-judeus em clubes de recreação não
se sustenta. Afirma-se a irracionalidade da segregação, notadamente pelo fato de que eventuais
distinções raciais não são relevantes no âmbito educacional, bem como pelo caráter nitidamente
preconceituoso (e não de mera “preferência”) que a sustenta.
Hannah Arendt e a política dessegregacionista dos Estados Unidos: Reflexões
Sobre Little Rock
A política dessegregacionista nos Estados Unidos teve início em 1954 com a decisão
judicial em Brown v. Board of Education. Neste caso emblemático, a Suprema Corte americana
declarou que todas as leis que estabeleciam o ensino segregado eram inconstitucionais, impondo
a dessegregação de todas as escolas no país.
A novidade não foi bem recebida em muitos estados, notadamente os sulistas, onde
teve fortes reações. Caso emblemático ocorreu em 1957 na cidade de Little Rock, capital do
Arkansas. Um grupo de nove estudantes negros fora impedido de entrar na Little Rock Central
High School por inúmeros estudantes brancos, que contaram com o apoio da guarda nacional do
Estado – encaminhada a mando do Governador, Orval Faubus, para apoiar os segregacionistas. As
circunstâncias do caso ganharam relevo nacional, chegando ao ponto em que o então Presidente
dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, determinasse o envio de tropas federais para garantir
o acesso dos estudantes negros na escola.
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As reflexões de Hannah Arendt têm por base os eventos em Little Rock, materializados na
fotografia que exibe uma estudante negra sendo perseguida e execrada por estudantes brancos1.
A partir desta fotografia, Arendt formula três questionamentos, que compõem a primeira parte
de seu ensaio: a) o que ela faria, nessas circunstâncias, se fosse uma mãe negra? b) O que faria
se fosse uma mãe branca no sul? c) O que distingue o modo de vida sulista do modo de vida
americano em relação à questão da cor?
Para a primeira pergunta, Arendt apresenta uma resposta clara e direta: jamais exporia
seu filho a uma condição que desse a impressão de “forçar a sua entrada num grupo em que não
era desejado” (ARENDT, 2004, p. 261). Isto porque se trata de uma situação na qual o orgulho
do indivíduo está envolvido, de forma que a decisão da Suprema Corte acaba por colocar seu
filho em uma posição mais humilhante do que a anterior.
Dessa maneira, Arendt lança sua primeira conclusão: nos Estados Unidos, a igualdade
deve operar perante as leis, e não por costumes e formas de se educar as crianças:
A questão real é a igualdade perante as leis do país, e a igualdade é violada pelas leis
da segregação, isto é, por leis que impõem a segregação, e não por costumes sociais e
maneiras de educar as crianças. Se fosse apenas uma questão de educação igualmente boa
para os meus filhos, um esforço para lhes conceder igualdade de oportunidades, por que
não me pediram que lutasse pelo melhoramento das escolas para crianças negras e pelo
estabelecimento imediato de classes especiais para aquelas crianças cujo histórico escolar
as torna aceitáveis nas escolas de brancos? (ARENDT, 2004, p. 262).
Com relação à segunda pergunta (i.e., o que faria se fosse uma mãe branca no sul),
Arendt também é categórica: tentaria impedir que seu filho fosse “arrastado para uma batalha
política no pátio da escola” (ARENDT, 2004, p. 263). Seria necessário seu consentimento para
viabilizar alterações drásticas no ensino de seu filho, ressaltando-se ainda que o governo não
pode determinar com qual companhia seu filho deverá receber instrução. Em última análise,
entende ser direito dos pais decidir tais aspectos no ensino de seus filhos, direito este que só seria
contestado em regimes ditatoriais.
Quanto à última questão (i.e., o que distingue o modo de vida sulista em relação à
questão da cor), Arendt afirma que, embora a discriminação e a segregação sejam praticadas em
todo o país, elas só são legalmente impostas nos estados sulistas (ARENDT, 2004, p. 264). Disso
se segue que não seria na discriminação e na segregação social que residiria o cerne da questão,
mas na sua imposição legal, notadamente nas leis contra a miscigenação e que interferem no livre
exercício do direito de voto.
Na segunda seção do texto, Arendt analisa as circunstâncias que acarretaram a segregação
racial nos Estados Unidos. Atribui o “problema da cor” na política mundial ao colonialismo
e imperialismo europeus, “único grande crime em que os Estados Unidos jamais estiveram
1 Uma análise destes fatos, que inclusive leva em consideração o relato de Elizabeth Eckford (a estudante que aparece nas
fotos), é feita por Carlos Eduardo Gomes Nascimento no texto Invisibilidade dos negros em “Reflexões sobre Little Rock”, de
Hannah Arendt: outra história na educação (NASCIMENTO, 2019).
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envolvidos” (ARENDT, 2004, p. 266). Afirma ainda que a visibilidade e audibilidade dos negros
constituem fenômenos inalteráveis e permanentes, o que lhes atribui grande relevância política
(ARENDT, 2004, p. 267).
Partindo de Tocqueville, Arendt assevera que o modelo americano de igualdade (que
não se limita à igualdade de direitos, mas também à igualdade de oportunidades e condições)
acaba por igualar o que “por natureza e origem é diferente”, e quanto mais se igualam as pessoas
em todas as condições, mais as diferenças “provocarão ressentimentos” (ARENDT, 2004, p.
268). Tal fato permite a observação de que, muito provavelmente, a igualdade social, econômica
e educacional para o negro acarretará o recrudescimento dos problemas de cor, ao invés de
amenizá-los, como se observa no acontecido em Little Rock. Assim, o que se observa é que “a
integração forçada não é melhor do que a segregação forçada” (ARENDT, 2004, p. 270).
Para Arendt, há direitos muito mais elementares (como o de se casar com quem se
deseja) diante dos quais o direito de frequentar uma escola integrada seria um “direito
secundário”. Direitos secundários possuiriam relevância menor diante de direitos que estão
intrinsecamente relacionados com a vida, a liberdade e a busca da felicidade (ARENDT, 2004, p.
271). Dessa maneira, iniciar o processo de dessegregação pelas escolas implica em sobrecarregar
demasiadamente os jovens, que não podem ser responsabilizados por uma situação que os
adultos, até hoje, mostraram-se incapazes de resolver (ARENDT, 2004, p. 271).
Esta posição de Arendt está intimamente ligada à distinção que ela traça entre o político
e o social. Em suas palavras,
segregação é a discriminação imposta pela lei, e a dessegregação não pode fazer mais do
que abolir as leis que impõem a discriminação; não pode abolir a discriminação e forçar
a igualdade sobre a sociedade, mas pode e na verdade deve impor a igualdade dentro
do corpo político. Pois a igualdade não só tem a sua origem no corpo político; a sua
validade é claramente restrita à esfera política. Apenas nesse âmbito somos todos iguais
(ARENDT, 2004, p. 272).
Como se pode perceber, Hannah Arendt estabelece uma distinção entre o campo social
e o político, sendo que a igualdade é uma pré-condição do político e se apresenta incompatível
com o social. Isso porque o princípio que rege a sociedade é a discriminação, caracterizada pelas
diferenças que fazem as pessoas se unirem em grupos “cuja própria possibilidade de identificação
exige que elas discriminem outros grupos no mesmo âmbito” (ARENDT, 2004, p. 273). Desta
forma, o problema não está em abolir a discriminação, mas sim em mantê-la dentro do espaço
social e impedir que ela interfira na esfera política ou pessoal (ARENDT, 2004, p. 274). Arendt
afirma existir também uma terceira esfera, da privacidade, que não é regida nem pela discriminação,
nem pela igualdade, mas sim pela exclusividade. Trata-se do campo onde escolhemos com quem
desejamos passar a vida, nossos amigos e aqueles a quem amamos (ARENDT, 2004, p. 276).
Mas a distinção mais relevante para os argumentos levantados por Arendt permanece
sendo a existente entre o social e o político. Para exemplificar sua distinção, Arendt recorre aos
locais de férias “restritos” segundo origem étnica. Assim, enquanto judia, se ela deseja passar
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suas férias apenas na companhia de outros judeus, não há motivos relevantes para a impedir
de satisfazer sua vontade; algo semelhante se passa com esferas que se encontram no contexto
puramente social, como hotéis e locais de recreação, onde a discriminação possui maior validade
do que o princípio da igualdade (ARENDT, 2004, p. 275).
Entretanto, o mesmo não ocorre quando se trata do direito de se sentar onde desejar em
um ônibus ou vagão de trem, ou de entrar em hotéis e restaurantes de lugares comerciais. Em
outras palavras, raciocínio semelhante não pode ser aplicado quando se está diante de serviços
que possuem uma natureza pública, e que são fundamentais aos indivíduos na condução de
seus negócios e orientação de suas vidas, ainda que não se encontrem estritamente na esfera do
político (ARENDT, 2004, p. 275).
Assim, a síntese da posição arendtiana com relação à dessegregação está em sua afirmação
de que “o governo não pode tomar legitimamente nenhum passo contra a discriminação social,
porque o governo só pode agir em nome da igualdade – um princípio que não existe na esfera social”
(ARENDT, 2004, p. 277).
Hannah Arendt apresenta outros argumentos, inclusive de natureza jurídica. Assevera
que a história constitucional americana implica no reconhecimento de que o poder deve ser
repartido em um sistema federado, que “o poder gera mais poder quando dividido”, e que
diante de omissão constitucional a educação pública deve ser reconhecida como competência da
legislação estadual (ARENDT, 2004, p. 278/279).
Ao final, Arendt ressalta novamente a independência dos pais de criarem seus filhos, o
que corresponde a um “direito de privacidade, pertencente ao lar e à família”. Referido direito
tem sido “desafiado e restringido” com a perspectiva da educação obrigatória, uma vez que o
corpo político também tem o direito de preparar as crianças enquanto cidadãs. Neste aspecto,
a educação privada não seria recomendada, pois iria “desprivilegiar” aqueles que não podem
cumprir com maiores encargos econômicos (ARENDT, 2004, p. 279/280). Conclui que dada
a natureza específica da educação, é questionável o fato de ter sido sensata a decisão da Suprema
Corte, que iniciou o processo de dessegregação no âmbito das escolas públicas americanas
(ARENDT, 2004, p. 281).
Críticas formuladas aos argumentos de Hannah Arendt
Não é difícil imaginar o impacto causado pelo ensaio de Hannah Arendt, bem como as
inúmeras críticas que lhe foram dirigidos. Neste sentido, Danilo Arnaldo Briskievicz apresenta
com detalhes a recepção deste ensaio nos Estados Unidos, bem como outras críticas que lhe foram
dirigidas (BRISKIEVICZ, 2019a, 2019b). Aqui, considerando o próprio recorte bibliográfico
utilizado, pretende-se analisar e desenvolver três críticas mais específicas aos argumentos de
Arendt. A primeira, diretamente relacionada com a separação entre o social e o político, tem por
alvo a real condição em que os negros se encontram, o que influencia diretamente sua chance de
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participar e propor mudanças no contexto político norte-americano. A segunda crítica refere-se à
forma com que Arendt classifica as escolas públicas, aproximando-as antes do contexto social do
que político. Por fim, uma terceira crítica pode ser formulada com base na concepção arendtiana
de “discriminação social”, asseverando-se que a segregação racial em escolas possui elementos
que impossibilitam a analogia com o resort para judeus, conforme se observa nos argumentos de
Hannah Arendt.
Embora a maioria dos autores sejam críticos à visão de Arendt em Reflexões sobre Little
Rock, vale mencionar que outros apresentaram defesas pontuais aos seus argumentos. Neste
sentido, Daniel Cole entende que a crítica feita por Arendt à dessegregação nas escolas norte-
americanas está sobretudo no uso da força, em detrimento do diálogo, o que gera impactos
na própria efetividade das políticas dessegregacionistas (COLE, 2011, p. 22). Contudo,
interpretações como esta não invalidam as críticas aqui apresentadas – o próprio Cole entende
que a linguagem da “ilegitimidade”, adotada por Arendt na intervenção governamental, deveria
ser abandonada (COLE, 2011, p. 33).
A questão da “pobreza política
A primeira crítica foi elaborada por James Bohman. Para este autor, muitos dos
argumentos apresentados por Hannah Arendt são demasiadamente restritos. Tem-se, por
exemplo, o posicionamento de Arendt sobre o papel exercido pelo Estado na dessegregação,
que não poderia ir além da abolição de leis que promovam a discriminação (BOHMAN, 1997,
p. 55). Para Bohman, se a principal preocupação de Arendt em seu artigo está em defender
a pluralidade entre cidadãos iguais, alguns elementos que lhe passaram despercebidos acabam
dificultando a coerência geral de seus argumentos. Exemplo é a noção de “pobreza política”.
Algumas considerações preliminares precisam ser feitas, tornando possível a boa compreensão do
que Bohnam quer dizer ao adotar tal expressão.
Em seu A Condição Humana, Arendt liga o político ao exercício da vita activa,
retomando conceitos propostos por filósofos gregos clássicos, notadamente Sócrates, Platão e
Aristóteles. Para a autora, o significado original do termo refere-se exclusivamente a “uma vida
dedicada aos assuntos público-políticos” (ARENDT, 2010, p. 14). É interessante ressaltar que
esta vita activa só é possível em decorrência da ação humana, que não pode ser imaginada fora
de uma sociedade entre homens (ARENDT, 2010, p. 26). Neste contexto, “ação” será, para
Arendt, “ação política”, exercida na pólis por homens livres e desvinculada da lógica que rege o
ambiente doméstico, o oikos, lógica esta que é pautada pela satisfação de necessidades humanas
básicas. Assim, a liberdade transforma-se em uma característica fundamental da vida na pólis,
encontrando-se exclusivamente na esfera política, já que no oikos os homens eram compelidos
por suas necessidades e carências e, portanto, não poderiam ser considerados livres (ARENDT,
2010, p. 36/37).
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Outro elemento relevante no trato das questões políticas refere-se ao discurso. Em relação
direta com a ação, o discurso envolve a tentativa de persuadir. Desta forma, é possível afirmar que
o pensamento grego clássico via na política um meio onde os assuntos humanos são decididos
por meio de palavras e da persuasão, sendo afastadas quaisquer formas de força e violência
(ARENDT, 2010, p. 31).
Por se encontrar preocupada com os acontecimentos de seu tempo, notadamente com
o perigo da humanidade retornar aos regimes totalitários que marcaram o século XX, Hannah
Arendt adota esta concepção clássica da política para afastá-la do exercício da coação. Dessa
forma, o acesso à vida pública ocorre por meio da capacidade de cada homem em iniciar uma ação
em conjunto com outros indivíduos, em um contexto marcado pela liberdade e pelo discurso.
Bohman, atento à concepção arendtiana de política, reconhece que sem a habilidade
de iniciar uma ação os homens não teriam acesso genuíno ao mundo público, de maneira que
suas ações não teriam efetividade e suas opiniões seriam insignificantes (BOHMAN, 1997, p.
64). Ocorre que Arendt não teria percebido que esta ausência de efetividade e a insignificância
refletiriam formas de exclusão acarretadas pela segregação no campo político e derivadas da
desigualdade social. Assim, nas palavras de Bohman (1997, p. 64, tradução livre):
Sem a habilidade de iniciar a ação humana, os cidadãos não têm acesso genuíno ao
mundo público, suas ações são inefetivas e suas opiniões são insignificantes. Mas estas
inefetividade e insignificância descrevem, de maneira exata, as formas de exclusão
que permeiam o mundo político da segregação. Se Arendt temia uma igual falta de
liberdade, ela também tinha que temer uma liberdade desigual, como aquela mensurada
pela habilidade de iniciar a ação política. Podemos chamar esta desigualdade de “pobreza
política”, referente ao ponto cego nas reflexões de Arendt sobre os efeitos nocivos do
problema da pobreza econômica na vida política moderna.
Esta “pobreza política” resulta, portanto, das fortes desigualdades que marcam o mundo
político, e corresponde à incapacidade que alguns grupos apresentam para “se fazer ouvir”, de
efetivamente participar da vida política em condição de igualdade. Assim, não basta a igualdade
formal, marcada por meras oportunidades procedimentais para a participação política; diante
do contexto de desigualdade material, alguns grupos são incapazes de iniciar a deliberação, de
fazer com que seu discurso seja levado em consideração nas tomadas de decisão. O que se tem,
portanto, é uma situação na qual grupos mais fortes interpretam o “silêncio” destes grupos
marginalizados como um “consentimento tácito”. Assim, opera-se uma inclusão assimétrica
dos grupos no contexto político, por meio de uma interpretação restritiva de quem pode agir
politicamente, imposta pelos grupos que estão em melhor situação (BOHMAN, 1997, p. 64).
Para Bohman, a posição dos negros norte-americanos revela esta condição de pobreza,
que impossibilita sua plena participação na política. Dessa forma, tem-se que
Afro-americanos no Sul, antes da decisão de Brown v. Board of Education e dos eventos
em Little Rock, não tinham igual status no mundo público. Arendt está correta ao se
preocupar com o uso da força para corrigir tais desigualdades e também ao preferir
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formas alternativas de poder, gerados pela comunicação e solidariedade na esfera pública.
Mas o problema é, genuinamente, político: não repetir qualquer forma de inclusão ou
exclusão coercitivas por meio das próprias medidas corretivas. Considerada a violência
da segregação, este é um risco político que vale a pena ser tomado em nome da liberdade
e da igualdade (BOHMAN, 1997, p. 67, tradução livre).
De qualquer modo, na medida em que grupos podem agir em conjunto para excluir
outros, ou que alguns grupos são, simplesmente, ignorados, a inclusão de cada vez mais cidadãos
nas deliberações precisa ser o objetivo primário de um regime democrático. E tal inclusão, no
caso da educação pública, prepara as crianças para serem cidadãs em uma sociedade plural
(BOHMAN, 1997, p. 65).
Assim, tem-se a primeira crítica aos argumentos de Hannah Arendt, no sentido de se
reconhecer que existem efetivas desigualdades entre negros e brancos nos Estados Unidos, e
que tais desigualdades não se apresentam apenas no campo econômico, mas também político.
De fato, não é preciso ir muito longe para notar que as condições em que operavam as escolas
destinadas para negros eram inferiores às escolas para brancos. Também é claramente perceptível
a limitação fática do acesso ao poder pelos negros, pela atuação de grupos em melhor situação
política, em que pese a existência de dispositivos legais que garantissem (formalmente) um
regime de igualdade de tratamento e consideração. O acesso a um sistema não segregado de
escolas é uma das formas de se garantir, efetivamente, condições iguais ao exercício do poder
político, contribuindo para a pluralidade social.
Escolas como instituições públicas ligadas ao político
Partindo-se do reconhecimento de que escolas exercem um papel relevante no pleno
exercício da política, ao formar cidadãos aptos à ação política em um contexto de pluralidade, Seyla
Benhabib ressalta a característica intrinsecamente pública das escolas, ainda que eventualmente
financiadas de forma privada. Em sua visão, é nas escolas que encontramos os alicerces da
formação das futuras gerações em uma comunidade política (BENHABIB, 2003, p. 151).
Dessa forma, se reconhecermos que as escolas não possuem apenas uma dimensão social,
mas também significativa influência no político, causa estranheza que os argumentos de Hannah
Arendt busquem aproximar a existência de escolas segregadas aos hotéis e resorts de férias exclusivos
para judeus. Isto porque, como visto anteriormente, Arendt entende que a discriminação social
promovida no contexto de hotéis, resorts e áreas de recreação é legítima quando visa atender
à discriminação natural que individualiza determinados grupos sociais. Entretanto, a situação
não se confunde com um “direito de se sentar onde desejar” em um ônibus ou vagão de trem,
na medida em que são serviços públicos imprescindíveis aos indivíduos na condução de seus
negócios e satisfação de seus interesses básicos. Ora, se uma escola corresponde a um serviço
público, tão ou mais fundamental do que um sistema de transporte público igualitário, o que
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sustenta a visão arendtiana de que a segregação escolar se encontra no âmbito da discriminação
social?
Logo, Benhabib ressalta a incoerência dos argumentos de Hannah Arendt:
Mas como esta distinção entre associações sociais e serviços públicos, que devem ser
acessíveis para todos, redefine a extensão dos direitos civis? À luz da concepção de Arendt
sobre um serviço público no domínio público, é difícil ver porque ela pensaria que
escolas seriam mais semelhantes aos resorts de férias, em seu status público-político,
do que ônibus, estações de trem ou cinemas. [...] Escolas não são “serviços”; elas são
cruciais para a formação da identidade. Na linguagem arendtiana, um mundo é passado
adiante para as futuras gerações não apenas por meio da família, mas também, e de
forma igualmente significativa, por meio das escolas. Como podem as escolas segregar
e discriminar certos grupos em uma comunidade política, quando esta comunidade
política sustenta princípios de igualdade política? [Escolas] têm um status híbrido
porque, enquanto organizações formais licenciadas, se tornam instituições no domínio
público, que precisam cumprir com os fundamentos constitucionais de um Estado
democrático liberal (BENHABIB, 2003, p. 151, tradução livre).
Para Benhabib resta claro que a segregação racial não poderia ser mantida no sistema
educacional americano. Não havia justificativas plausíveis para sustentá-la. Se não bastasse,
mesmo a concepção de um resort exclusivo para judeus tem suas complicações, e Benhabib
sugere que uma diferenciação entre “práticas sociais informais” e “instituições formais” poderia
ajudar Arendt em seu intento de, ao menos, justificar este tipo de discriminação. Isto porque
discriminações no âmbito de práticas informais, modos e hábitos de pensamento, sentimento
e associação sem dúvida continuarão existindo entre todas as formas de agrupamento social.
Entretanto, na medida em que determinadas instituições formais se estabelecem por meio de
licenças públicas, eventuais desigualdades civis e políticas em tais instituições, decorrentes de
discriminação, são altamente contestáveis (BENHABIB, 2003, p. 152). Em síntese,
Sua fórmula, de que a “discriminação é tão indispensável enquanto direito social
quanto a igualdade como direito político”, é inerentemente instável. Não somente
certa quantidade de igualdade social e econômica é indispensável para o exercício da
igualdade política – como o acesso à serviços básicos, de modo a ter uma existência
humana decente, como formulado acima –, mas certas formas de discriminação social,
na medida em que formalizam a exclusão pública de certos grupos de seres humanos,
com base na sua identidade, são incompatíveis com a igualdade política (BENHABIB,
2003, p. 152, tradução livre).
Deve-se ressaltar que esta é apenas uma das críticas desenvolvidas por Benhabib. Outras
podem ser mencionadas, como a má compreensão de Arendt sobre as origens e circunstâncias
que proporcionaram a discriminação contra negros e o regime segregacionista. Neste sentido,
Benhabib aponta o fato de que Arendt analisa a experiência das relações raciais negros-brancos
nos Estados Unidos por meio de óculos cujas lentes foram feitas em outro contexto – o do
antissemitismo europeu (BENHABIB, 2003, p. 149).
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Fica claro como ambas as críticas tomam por base a separação arendtiana entre o político
e o social. Isto porque escolas se encontram em profunda conexão tanto com o âmbito social,
quanto com o político. Em outras palavras, quando vistos na prática, os contornos que delimitam
tais contextos são mais fluídos do que aparentam ser. Por certo, tal fato não nega à Hannah
Arendt os méritos de, retraduzindo Sócrates, Platão e Aristóteles, tentar excluir a violência da
política; mas isso só ocorre por meio de estruturas conceituais problemáticas, que não encontram
firme amparo na realidade.
Discriminação e preconceito
Uma terceira crítica pode ser formulada, tendo por alvo um ponto muito específico
do Reflexões sobre Little Rock. Trata-se da concepção de discriminação adotada por Arendt e a
impossibilidade, no âmbito da filosofia moral e da ética, de igualar a discriminação das escolas
segregadas e a discriminação levada a cabo, por exemplo, em um resort exclusivo de judeus.
As “discriminações” em questão são essencialmente diferentes. Isto ocorre porque o que
motivaria a discriminação em hotéis, resorts e áreas de recreação é, como Arendt sugeriu, o
“sentimento” de pertencimento a um grupo dotado de singularidades e a necessidade de se
estabelecer a discriminação como forma de garantir estas mesmas singularidades. Em outras
palavras, o “discriminar” de Arendt implica um diferenciar, representando ainda a atitude
de afastar o diferente em ocasiões específicas – como a vontade de passar as férias apenas em
companhia daqueles que fazem parte do mesmo grupo.
Por outro lado, isso não se passou com as escolas segregadas. Não é a mera “sensação” de
pertencimento a um determinado grupo, e a vontade de mantê-lo coeso, que levou à separação
entre negros e brancos no sistema educacional americano. A discriminação, aqui, é “qualificada”,
e seria mais bem entendida como a manifestação de efetivo preconceito. O que motivou a
segregação era o sentimento de que o outro não é apenas diferente em razão de sua cor, mas sim
a ideia de que se trata de uma “raça inferior”, cuja presença no mesmo ambiente é, de alguma
forma, “prejudicial”. O espírito que motivou a segregação não ocorreu apenas em situações
específicas, mas sim em todas as situações em que poderia ocorrer alguma forma de contato entre
raças distintas. Dessa forma, a segregação não se limitou às escolas, mas incluiu até meios de
transporte e leis contrárias à miscigenação, que proibiam o casamento interracial. Tal fato não se
apresenta no caso puro e simples de “discriminação” em um resort só para judeus, pois o judeu, a
princípio, não veria problemas em dividir um ônibus com não-judeus ao retornar de suas férias.
Há, portanto, uma diferença relevante do ponto de vista subjetivo daquele que promove
a discriminação: se em um caso o que está em jogo é a mera preferência por estar apenas entre
os membros de seu próprio grupo, em determinados contextos, no outro caso o que se percebe
é o sentimento de que o outro indivíduo corresponde a um ser cuja companhia seria perniciosa.
Dessa maneira, é possível afirmar que muitos brancos não queriam estudar com negros porque
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os consideravam “más companhias”, entendendo qualquer tipo de contato ou miscigenação
como prejudicial. Enquanto um judeu talvez nem se incomode ao perceber que há um não
judeu em seu resort, um branco preconceituoso sente-se ofendido ao ter que dividir seu espaço
com um negro.
Neste contexto, se a segregação racial foi promovida tendo em vista a separação total
entre indivíduos os quais (em razão de cor de pele e compleição física) são diferentes, manter
tal sistema corresponderia, em última análise, à eliminação da própria pluralidade social. Isto
porque o indivíduo segregacionista, pela forma como vê o outro, busca a separação total com
o diferente, não estando limitado às salas de aula, mas a todos os aspectos da vida – privados,
sociais e políticos. Nessa medida, a constatação de que a discriminação racial possui fundamentos
preconceituosos, distintos de outros casos de mera “diferenciação”, faz com que a posição geral
de Hannah Arendt (para quem é tão importante a pluralidade na política) seja paradoxal.
Se não bastasse, também causa perplexidade a afirmação categórica de que “o governo
não pode tomar legitimamente nenhum passo contra a discriminação social, porque o governo
só pode agir em nome da igualdade” (ARENDT, 2004, p. 277). Isso ocorre porque se percebe
que o preconceito de natureza racial é algo irracional, não sendo possível afirmar que o mero
reconhecimento da diferença justifique a segregação. O fato é que o preconceito implica na
impossibilidade de acesso, por parte dos negros, a uma educação de qualidade análoga à dos
brancos, tomando por base uma característica meramente física, biológica. Dessa forma, a
irracionalidade reside na impossibilidade cabal de se formular argumentos que justifiquem,
efetivamente, a segregação.
O fato é que, diante de uma situação que esconde inúmeras desigualdades sociais, sequer
faria sentido aos indivíduos de raças diferentes se “associarem” na formação de um Estado. Isto
porque o espírito da segregação é separar indivíduos diferentes em todos os aspectos da vida
comum. Neste contexto, seria até mesmo possível a criação de um Estado para brancos e outro
para negros, já que o Estado originário teria perdido completamente sua legitimidade ao deixar
de tratar seus cidadãos com igualdade de respeito e consideração2.
Novamente, ganha vulto a crítica formulada por Bohman, considerando a situação de
“pobreza política” dos negros. Na prática, eles estão distantes dos meios de exercício da política,
sendo tratados com indiferença pelos grupos dominantes. Para resolver esta injustiça, o primeiro
passo está no combate à segregação e à discriminação social ilegítima, independentemente de
onde elas forem encontradas. Assim, a decisão da Suprema Corte americana não poderia ser
2 São particularmente interessantes as reflexões de Ronald Dworkin sobre tais questões. Em seu artigo Lord Devlin and the
Enforcement of Morals, Dworkin (1966) ressalta que posições morais coerentes, notadamente as que embasam tomadas de
decisão jurídicas e políticas, não podem levar em consideração fatores irracionais (como preconceito, reações emocionais,
considerações de fato falsas, ou meras repetições da opinião alheia). Quanto ao dever estatal de tratar a todos com igual
consideração e respeito, Dworkin associa esta ideia a sua concepção liberal de igualdade, argumentando pela impossibilidade
de se restringir a liberdade individual ou acesso a diferentes recursos sob o fundamento de que certos grupos ou indivíduos
são menos nobres ou inferiores. Trata-se de ideia que permeia a filosofia moral, política e jurídica de Ronald Dworkin,
elaborada, notadamente, no texto What Rights Do We Have? (DWORKIN, 1978, p. 265-278).
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diferente, uma vez que as escolas são um meio, por excelência, de formação de cidadãos aptos à
vida política em uma sociedade plural.
Considerações finais
Como visto, há boas razões para entender que a visão de Arendt sobre a dessegregação
racial nos Estados Unidos e a decisão da Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education
se baseia em alguns equívocos. Isso fica evidente quando analisamos as diferentes críticas que
podem ser feitas aos seus argumentos. As duas primeiras, propostas por James Bohman e por
Seyla Benhabib, demonstram algumas das dificuldades teóricas que Hannah Arendt deixou em
aberto ao tentar separar o político do social. Percebeu-se que a escola é um ambiente híbrido,
que ultrapassa o social e que influencia diretamente na construção do político. Dentro desde
contexto, os argumentos de Arendt perdem muito de sua força, uma vez que não é possível
explicar e justificar a segregação dentro de uma sociedade pluralista.
Da mesma forma, tem-se que a analogia entre as escolas segregadas e o resort para judeus
é imprópria. A concepção de Arendt sobre “discriminação social” não leva em consideração
relevantes critérios subjetivos, notadamente a natureza preconceituosa que fundamenta a
discriminação segregacionista. A vontade de segregar implica na consideração de que o outro
indivíduo não é uma “boa companhia”, e tal vontade se alastra por todos os caminhos da
vida comum. Ao contrário, eventual discriminação em alguns hotéis e clubes, ainda que de
discutível racionalidade, não se reveste deste sentimento de preconceito – ela é desejada apenas
em circunstâncias específicas, quando desejamos permanecer entre os “nossos iguais”.
Entretanto, para além das inúmeras críticas que possam ser formuladas aos seus
argumentos, pode-se afirmar que Hannah Arendt foi sensata ao perceber que a distinção entre
o social e o político, no caso das políticas dessegregacionistas, leva à constatação de que o poder
público é, muitas vezes, incapaz de promover mudanças nos hábitos e costumes sociais. Dito
de outra forma, o que se percebe é que muitas circunstâncias se encontram “além” do poder
político, sendo que decisões judiciais ou administrativas são ineficazes como instrumentos de
efetiva transformação da sociedade. Assim, a decisão da Suprema Corte pode ter acabado com a
segregação nas escolas, mas não foi capaz de eliminar o preconceito, nem de interferir diretamente
na distribuição de poder político entre grupos sociais. As mudanças passam, necessariamente,
pelas mãos dos indivíduos – que devem ser iguais em sua capacidade de agir politicamente, mas
que são distintos na medida em que, pelo mero fato de nascer, poderão impor sua singularidade
no curso da História. Como ressaltou Arendt (2010, p. 9/10),
A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do
comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do
mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível
quanto a natureza ou essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da
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ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém
jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá.
Portanto, Hannah Arendt não estava incorreta em algumas de suas premissas: a tarefa de
eliminar desigualdades e discriminações injustas não é apenas uma missão das instituições, sejam
elas sociais ou políticas. Na medida em que temos o poder de agir politicamente, transformando
o meio em que vivemos e acrescentando elementos de nossa própria individualidade, cada um
de nós é responsável pela busca de um mundo mais justo e igualitário.
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Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 176-196, jan/jul,
2019.
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RESUMO: O objetivo deste artigo foi narrar, após 60 anos, o caso de dessegregação racial educacional acontecido na capital do Arkansas, Little Rock, nos Estados Unidos da América, em 4 de setembro de 1957. Para iluminar o contexto social e político das discussões sobre o polêmico caso, retomamos o controverso ensaio de Hannah Arendt publicado em 1959, intitulado Reflexões sobre Little Rock. Contamos a luta dos movimentos sociais norte-americanos ligados à questão negra até o caso Little Rock. Apresentamos variadas relações entre o caso Little Rock e algumas categorias do pensamento arendtiano como mundo comum e ação. Evidenciamos que duas mulheres foram escolhidas para narrar Little Rock: Elizabeth Eckford e Hannah Arendt.
Article
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Resumo Investigam-se neste texto os conflitos educacionais e políticos entre a escola e a questão negra norte-americana, presentificados na dessegregação de Little Rock, uma escola do Arkansas, no ano de 1957. O ensaio “Reflexões sobre Little Rock”, publicado em 1959, de autoria da filósofa Hannah Arendt, é analisado passo a passo, por conta de suas elucidações consideradas à época polêmicas e pouco avançadas para o contexto. Após 60 anos do evento que marca a dessegregação das escolas norte-americanas, avaliam-se o ensaio de Arendt e suas propostas para pensar a educação em tempos de crise. Usa-se a metodologia de pesquisa bibliográfica em fontes primárias da autora e fontes secundárias de comentadores do pensamento arendtiano, relacionadas à política e à educação. O resultado esperado é uma versão dos fatos que auxilie a pensar o papel da escola nos dias atuais.
Article
In this paper, I will attempt a defense of Hannah Arendt's usage of the social/political distinction in her "Reflections on Little Rock," demonstrating that not only is it tenable but also helpful. After distinguishing between her (in)famous distinction between the social and political spheres, I will use the notions of "power," which is compatible with political freedom, and "force," which is not, to analyze the strategy of governmentally enforced integration. What I hope to show is that although schools are of the utmost political importance, governmental force cannot solve social prejudice, and it cannot legitimately be used outside of the sphere of establishing and protecting legal equality. I will further elucidate Arendt's illustrative passage on how an integration effort might politically engage problems of exclusion and inequality in schools without having to resort to force to solve social problems and without reducing politics to instrumental administration.
Article
No doubt most Americans and Englishmen think that homosexuality, prostitution, and the publication of pornography are immoral. What part should this fact play in the decision whether to make them criminal? This is a tangled question, full of issues with roots in philosophical and sociological controversy. It is a question lawyers must face, however, and two recent and controversial events-publication of the Wolfenden Report in England, followed by a public debate on prostitution and homosexuality, and a trio of obscenity decisions in the United States Supreme Court-press it upon us.
Tradução de Roberto Raposo
  • Hannah Arendt
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Einchenbergl
  • Hannah Arendt
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Einchenbergl. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
The reluctant modernism of Hannah Arendt
  • Seyla Benhabib
BENHABIB, Seyla. The reluctant modernism of Hannah Arendt. New York: Rowman & Littlefield Publishers, 2003.
Reflexões sobre Little Rock", de Hannah Arendt: outra história na educação. Cadernos Cenpec -Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária
  • Carlos Eduardo Nascimento
  • Gomes
NASCIMENTO, Carlos Eduardo Gomes. Invisibilidade dos negros em "Reflexões sobre Little Rock", de Hannah Arendt: outra história na educação. Cadernos Cenpec -Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária. São Paulo, v. 9, n. 1, p. 176-196, jan/jul, 2019.