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Idéias que mudaram o mundo

Authors:
ISSN 1518-1219
Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais
60
Julho – 2005
S U M Á R I O
02O Ressurgimento da Influência Político-Cultural Chinesa – O Interesse
para o Brasil
06As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica:
da República Velha à redemocratização
09Política externa e democracia
11 O sistema de segurança das Nações Unidas e a necessidade
proeminente de reforma do Conselho de Segurança
13 As Conseqüências do Déficit Democrático no Mercosul
15 Uma prova à capacidade negociadora brasileira: o caso dos têxteis
chineses
RESENHA
17 Idéias que mudaram o mundo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Carlos Ribeiro Santana
Rodrigo Alves Correia
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Antônio Pereira Pinto
Paulo Roberto de Almeida
Rodrigo Cintra & Mariana Ricci
2
A China é motivo de notícias diárias. Parece
haver a expectativa de que se trata de potência
emergente, destinada a projetar sua sombra por todas
as partes do mundo. Informa-se, então, sobre
diplomacia chinesa de visibilidade com a União
Européia, acordos comerciais com a América Latina,
compra de petróleo a países africanos e aquisições de
mega empresas nos Estados Unidos. Os chineses estão
na ofensiva, aparentando querer impor seu “milagre
econômico” ao resto do planeta, já na próxima
década.
A leitura deste amplo noticiário deixa a
impressão de que não há dúvida quanto a um futuro
brilhante para a China, que, em breve competiria tanto
econômica, quanto militarmente com os EUA.
Esta crescente inserção internacional chinesa
oferece desafios e oportunidades para vários países,
inclusive o Brasil. Cabe, portanto, identificar
tendências e atores deste novo cenário, em busca do
fortalecimento da interlocução com esta “grande
China emergente”.
Nesta coluna e seguintes, pretende-se efetuar
exercício de reflexão quanto a linhas gerais de um
projeto chinês de nação, para o milênio que se inicia.
Nesse esforço, examina-se o ressurgimento da
O Ressurgimento da Influência Político-Cultural
Chinesa – O Interesse para o Brasil
Paulo Antônio Pereira Pinto*
* Diplomata de carreira e já serviu por mais de dezesseis anos na região da Ásia-Pacífico, sucessivamente, em Pequim, Kuala
Lumpur, Cingapura e Manila, em missões permanentes, e Xangai e Jacarta, provisoriamente. Em setembro de 1994 foi o
coordenador da primeira missão acadêmica brasileira que visitou Cingapura, Pequim e Hong Kong. Atualmente é o Diretor do
Escritório Comercial do Brasil em Taipé, Taiwan (papinto@ms23.hinet.net). As opiniões expressas neste artigo não expressam
os pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
1 A Associação das Nações do Sudeste Asiático, em sua sigla inglesa ASEAN inclui Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas,
Indonésia, Laos, Malásia, Myamar, Tailândia e Vietnam.
2 A APEC (Foro para a Cooperação Econômica na Ásia-Pacífico) é a associação regional de maior evidência no
momento.Fundada em novembro de 1989, na Austrália, foi apresentada por seus patrocinadores como um processo em
direção a um consenso na Bacia do Pacífico, com vistas à edificação de política econômica que assegurasse o crescimento
sustentado da região. Na prática, reflete objetivos dos EUA no sentido de manter a economia da área vinculada à norte-
americana – uma espécie de versão prévia da Iniciativa das Américas que, em 1994, propôs termos semelhantes ao continente
americano.
influência político-cultural que a recente modernização
chinesa vem exercendo no Sudeste Asiático, onde
vivem grandes comunidades de “overseas Chinese”.
Serão feitas, também, considerações sobre o impacto
do recente progresso da RPC na Ásia-Pacífico.
Pretende-se examinar, apenas, os aspectos qualitativos
dessas relações intra-asiáticas, com ênfase na
dimensão cultural.
Não será parte do escopo das exposições,
portanto, a análise, em detalhes, das profundas
alterações quantitativas que o processo de
modernização da RPC vem produzindo na economia
dos países da Ásia-Pacífico. Deixa-se, assim, de fornecer
dados numéricos, facilmente diponíveis, ademais, em
inúmeras fontes estatísticas. Não serão tratadas,
tampouco, as vertentes das relações chinesas com a
Rússia, o Japão, a Península Coreana, as Ásias Central
e Subocidental e o Subcontinente Indiano.
É necessário ressaltar, também, que, quando
se fala em influência político-cultural chinesa, tem-se
em conta os efeitos dessa herança histórica na ação
da “sociedade civil”, como facilitador do processo
atual de cooperação entre a China e o Sudeste Asiático.
Não estão sendo consideradas iniciativas de “política
de Estado”.
3
Pretende-se, a propósito, em colunas seguintes,
dissertar sobre como o processo atual de negociação
entre Pequim e Taipé pode oferecer aprendizado para
gestões de caráter político e econômico com a
“Grande China”, ora dividida pelo estreito de Taiwan.
O Sonho Chinês
A premissa básica deste exercício de reflexão é
a de que existiria, no início do século XXI, condições
para a materialização de um “sonho” chinês de
unidade, independência e prosperidade. Esse projeto
nacional estava claramente presente na afirmação de
Mao Zedong, quando, em 1949, anunciou que “o
povo chinês levantou-se” – referindo-se, portanto, a
um projeto de nação mais abrangente do que uma
proposta de inserção da República Popular, que se
instalava na China, em cenário internacional,
permeado por referenciais de valores estrangeiros à
civilização chinesa. Tratava-se de uma afirmação
cultural, seguida por exortação para que se “sacudisse
o mundo”, após os últimos cem anos de dominação
estrangeira.
Verifica-se, a propósito, que a vitória de Mao
deveu-se, primordialmente, ao apoio da população
rural, que imprimiu visão impregnada de seus próprios
valores às metas de governo da República Popular,
que iniciava sua existência. Como resultado, a base
de sustentação do Partido Comunista Chinês sempre
foi muito mais ampla do que a expressa nos partidos
comunistas na Europa Oriental, incluindo a ex-União
Soviética.
A partir de 1978, quando teve início o projeto
de modernização chinês, o Partido Comunista
começou a proporcionar melhoria dos níveis de vida
na China, em oposição à estagnação econômica
vigente no antigo bloco liderado pela URSS.
Registra-se, a propósito, que noções como a
de “economia socialista de mercado”, apresentadas
como objetivo do processo de reformas da China,
iniciado na década de 1970, representa tentativa de
obter-se equilíbrio entre valores de igualdade –
socialistas – e de eficiência – mercado. Nessa
perspectiva, almejar-se-ía permitir que as pessoas
enriqueçam, tendo sempre em vista a prosperidade
comum como uma meta socialista a ser atingida, bem
como tomando precauções no sentido de evitar hiato
crescente entre setores sociais distintos.
Até meados do século XIX, quando se iniciou a
interferência européia no Extremo-Oriente, a China
desempenhou papel político dominante, bem como
foi o centro radiante de civilização no Sudeste Asiático,
em virtude de seu desenvolvimento cultural e
sofisticada capacidade de governança. Por isso, os
vizinhos ao Sul eram atraídos em diferentes graus à
esfera de influência chinesa, em busca de fonte de
inspiração e legitimidade política. O Império chinês
reciprocava, atribuindo àquelas nações vínculos
especiais.
A maioria dos países do Sudeste Asiático
compartilha, portanto, de passado que os inseriu, em
maior ou menor escala, em esfera de influência
político-cultural chinesa. Hoje, esta herança poderá
contribuir para traçar o perfil de um bloco político de
interesses recíprocos e de mega proporções, que viria
a incluir a China e países situados ao Sul de suas
fronteiras. Esse processo de cooperação vem sendo
marcado pelo ressurgimento de hábitos e normas de
comportamento antigos, que se tornam fatores de
agregação e mesmo de progresso na área, resultando
em agenda própria de preocupações.
Entre esses valores, são identificados: a
disciplina social; a ênfase na participação comunitária;
a importância do relacionamento pessoal; o caráter
prioritário da educação; a expectativa de liderança
governamental; a aversão ao individualismo; a
perspectiva de longo prazo; a propensão a evitar
conflitos legais; a preocupação constante com a
harmonia; a unidade familiar; e o sentido do dever.
Nessa perspectiva, cabe assinalar que, quando
se fala em tais referenciais, lembra-se que idéias
relativas à harmonia e preponderância do social sobre
o individual, apesar de utópicas, sempre estiveram
presentes na filosofia chinesa, através dos séculos,
como um ideário de sociedades essencialmente
agrárias.
4
Exageros e Fantasias
Cabe previnir, no entanto, quanto ao grande
fascínio que o processo de modernização chinês
desperta entre observadores ocidentais. Verifica-se que
exageros e parâmetros de comparação fantasiosos
chegam a ser criados para explicar as transformações
em curso.
Lembra-se, a propósito, que a crença de que
estaria em curso um “Milagre Econômico Asiático”,
na década de 1980 e meados da seguinte,
proporcionava a sensação de existência de
oportunidades de investimentos e crescimento
ilimitadas no Sudeste do continente.
A regionalização da produção, acreditava-se,
então, evoluía, na medida em que a interação de novas
tendências, como a redução nos custos da mobilidade
dos fatores de produção e as economias de escala
exigidas por processos produtivos crescentemente
sofisticados, proporcionaram o surgimento dos
chamados “tigres” ou “novas economias
industrializadas”. Os efeitos de tais reajustes seriam
evidentes no aparecimento de formas de
relacionamento inovadoras, que incluiriam diferentes
tipos de parcerias entre Japão, novas economias
industrializadas no Sudeste Asiático e partes da China.
A emergência de certos países e agrupamentos
regionais, sempre de acordo com esta linha de
raciocínio, não se deveria a experiências isoladas, mas
a fenômeno integrado, que projetaria sobre a área,
como um todo, os benefícios da acumulação de
capital e da experiência modernizadora resultante da
aplicação prática de novos conhecimentos científicos
e tecnológicos.
Seguiu-se, no entanto, crise financeira regional,
iniciada com o colapso do “baht” – moeda da
Tailândia, um dos “tigres” em formação – a partir de
1997. Desde então, ganharam maior importância
comentários e análises sobre os efeitos da corrupção,
incêndios florestais, tráfico de drogas e mulheres,
pirataria, SARS e mais recentemente o Tsunami, entre
outros males que estariam assolando aqueles países
asiáticos. Não existiria mais o paradigma tão claro que,
na forma descrita acima, permitiria aferir com
segurança uma análise tão favorável da área em
questão.
Passou-se a reconhecer, na região, dinâmica
própria com o fortalecimento da cidadania e agenda
de preocupações dispersa, agora não mais ordenada
pela hegemonia de questões econômicas
equacionadas a partir de modelos e raciocínios ditados
de fora do continente asiático. Cada questão surgida,
nesse contexto, obedeceria a uma lógica autônoma e
poderia envolver atores e organismos, que não
trabalhariam necessariamente em obediência à razão
de Estado.
A estabilidade e o progresso na Ásia-Pacífico
passaram a ser entendidos, por certos setores de
opinião, como dependentes cada vez mais, de
processos de cooperação que garantam a negociação
entre suas diferentes culturas. Nesse contexto,
despertaram crescente interesse os vínculos históricos
entre a China e o Sudeste Asiático.
Isto porque a maioria dos países do Sudeste
Asiático compartilha de passado que os inseriu, em
maior ou menor escala, em esfera de influência de
duas grandes civilizações: a chinesa e a indiana, que
interagiram, através dos séculos, com culturas locais.
O Budismo, o Islã, o Hinduismo e o Confucionismo
deixaram, assim, marcas profundas que continuam a
diferenciar ou aproximar pessoas.
A este mosáico de heranças culturais seculares,
somou-se, mais recentemente, o colonialismo europeu
que impôs, pela força, novos valores e normas de
organização e comportamento. A partir do término
da Segunda Grande Guerra, os Estados recém-
independentes da região foram divididos, pela
rivalidade ideológica das superpotências, entre os que
serviriam como a vitrine da economia de mercado e
os que seguiriam o sistema de planejamento
centralmente planificado.
Com a multipolaridade mundial resultante do
término da Guerra Fria, ocorreu o recuo das esferas
de domínio de Washington e Moscou. Como
consequência, no Sudeste Asiático, torna-se possível
o ressurgimento de influências político-culturais
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antigas, como a chinesa. Hoje, quando se discutem
os efeitos da presença avassaladora da cultura de
massa, resultante da globalização, os países da área
buscam, em sua própria região, marcos de referência
que permitam afirmar valores, idéias e crenças,
consolidadas através de uma história compartilhada
numa geografia determinada.
No Sudeste Asiático, nessa perspectiva, passou-
se a verificar que se encontra em gestação um novo
conjunto de mudanças que não afetam apenas a
economia, através da reorganização freqüente de suas
vantagens competitivas, transformações técnico-
industriais nas formas de produzir e alterações na
organização da sociedade. Tudo isso ocorre, no
entanto, com a preservação de valores culturais que,
passando de geração a geração, garantem uma base
de sustentação do modelo que se consolida.
Tal panorama leva alguns estudiosos a contribuir
para a tese de que existe uma base cultural para avaliar
o fenômeno do dinamismo dos países objeto deste
estudo. Isto porque, apesar de sua diversidade, em
termos de extensão geográfica, população, estágio
de desenvolvimento, sistema político e experiência
colonial, alguns países do Sudeste Asiático possuem,
em comum, conjunto de valores herdados de período
de influência cultural chinesa.
Esta coluna preocupa-se, conforme já foi dito,
não com os aspectos econômicos do processo de
integração regional na Ásia-Pacífico, mas, sim, com
o novo perfil político-cultural das formas de
cooperação na área objeto de estudo. Nesta
perspectiva, verifica-se que, não apenas pela remoção
de barreiras tarifárias na fronteira são formados
agrupamentos regionais. Trata-se, principalmente, de
movimentos que tendem à cooperação entre
sociedades, com a harmonização de regras como base
de reorganização produtiva e, eventualmente, social.
Os textos a serem apresentados a seguir
tratarão do projeto chinês para o novo milênio, da
agenda própria de preocupações da Ásia-Pacífico, da
importância para o Brasil e dos apredizados oferecidos
pelo processo de negociação através do estreito de
Taiwan, entre Pequim e Taipé, para gestões de caráter
político e econômico com a “Grande China”.
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As relações bilaterais entre o Brasil e os Estados
Unidos no século XX passaram por diferentes
situações, da aproximação à indiferença, da
desconfiança à aliança militar, da cooperação à
competição, nas diversas fases de desenvolvimento
de um relacionamento que remonta ao período
anterior à independência do Brasil. Os Estados Unidos
– como primeira potência hemisférica em todo o
período, e principal potência planetária desde o final
da Segunda Guerra Mundial – estiveram presentes em
todos os lances importantes da diplomacia brasileira
no século XX, assim como ocuparam grande parte
da interface externa do Brasil no campo econômico,
científico, cultural e tecnológico no último meio
século. As relações foram (ainda são) marcadas por
uma evidente assimetria nos planos econômico,
tecnológico e militar, ainda que o Brasil tenha buscado
introduzir, no plano diplomático, maior equilíbrio
político, com base na reciprocidade e na igualdade de
tratamento.
A República brasileira introduziu princípios
alternativos de política externa, como o pan-
americanismo, área na qual o Império tinha mantido
relativo isolamento das repúblicas do hemisfério. Nos
episódios iniciais de afirmação da República, o
relacionamento começa sob bons auspícios: por
ocasião das intervenções estrangeiras durante a
revolta da Armada, os EUA vêm em auxílio do novo
regime, contra as inclinações monarquistas de
algumas potências européias. Os desníveis de
desenvolvimento entre os dois países já eram evidentes
entre o final do século XIX – quando se assistiu a uma
primeira tentativa de integração comercial hemisférica
As relações entre o Brasil e os Estados Unidos
em perspectiva histórica:
da República Velha à redemocratização
Paulo Roberto de Almeida*
patrocinada pelos EUA – e o início do século XX. A
partir de 1902, o barão do Rio Branco, armado de
uma concepção diplomática baseada no equilíbrio de
poderes (competição com a Argentina pela
hegemonia regional), opera uma política de
aproximação com os EUA. O Presidente Theodore
Roosevelt proclama, logo em seguida, o seu corolário
à doutrina Monroe, com o objetivo de justificar o papel
de polícia que os EUA pretendiam impor, mediante
intervenções armadas, a seu entorno geográfico
imediato (Caribe e América Central).
Nos próximos anos e décadas, o Brasil e a
Argentina passam a competir entre si para estabelecer
com os EUA uma “relação especial” que sempre se
revelou ilusória, esperando igualmente corresponder,
na América do Sul, a um “padrão de civilização” que
os EUA e as potências européias pretendiam ostentar
com exclusividade. Pelo resto da República velha, as
relações bilaterais serão distantes, operando-se,
contudo, a gradual substituição de hegemonias na
esfera financeira e dos investimentos, a partir do
momento em que os EUA se convertem em
exportadores de capitais, inclusive para o Brasil, que
passa do domínio da libra ao do dólar.
A República dos “bacharéis” busca inserir o
Brasil no “concerto das nações”, mediante o
envolvimento na Guerra e na ulterior experiência da
Liga das Nações, motivo de uma das grandes
frustrações na história da diplomacia brasileira. Os
EUA, que tinham patrocinado o surgimento da Liga,
mantêm-se fora dela, tendo o Brasil abandonado o
órgão em 1926. Tanto por parte das grandes potências
européias, como no caso dos EUA, o Brasil se vê
* Diplomata de carreira e Doutor em Ciências Sociais. As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu
autor (pralmeida@mac.com).
7
confrontado a posturas externas que vão do desprezo
e da soberbia ao que mais tarde se chamaria de benign
neglect. O período de Roosevelt – que coincide com
a era Vargas – modificará a postura isolacionista de
seus predecessores, buscando uma nova relação com
os vizinhos da América Latina, mas ele também
coincide com a crise econômica, o fechamento dos
mercados e a ruptura dos equilíbrios internacionais.
Os EUA emergem como a potência militar
incontrastável do pós-Segunda Guerra e o Brasil fará
as apostas corretas ao se aliar aos esforços de guerra
e consolidar seu alinhamento ideológico desde o início
da Guerra Fria.
O Brasil participa, desde a conferência de
Bretton Woods (1944), da construção da nova ordem
econômica mundial dominada pelos princípios do
liberalismo de tipo americano. A opção americana da
era da bipolaridade não impede a emergência de uma
diplomacia do desenvolvimento no Brasil. Não
obstante a doutrina da segurança nacional, o pan-
americanismo justifica os esforços da diplomacia para
a exploração da carta da cooperação com a principal
potência hemisférica e ocidental. É nesse quadro de
barganhas políticas e de interesse econômico bem
direcionado que o Brasil empreenderá sua primeira
iniciativa multilateral regional, a Operação Pan-
Americana, proposta pelo Governo Kubitschek em
1958 e da qual resultará o Banco Interamericano de
Desenvolvimento e, mais adiante, a Aliança para o
Progresso.
A prática da política externa independente, nos
conturbados anos Jânio Quadros-João Goulart,
representa uma espécie de parênteses inovador num
continuum diplomático dominado pelo conflito Leste-
Oeste. O impacto da revolução cubana e o processo
de descolonização tinham trazido o neutralismo e o
não-alinhamento ao primeiro plano do cenário
internacional, ao lado da competição cada vez mais
acirrada entre as duas superpotências pela
preeminência tecnológica e pela influência política
junto às jovens nações independentes. Não
surpreende, assim, que a diplomacia brasileira comece
a repensar seus fundamentos e a revisar suas linhas
de atuação, em especial no que se refere ao tradicional
apoio emprestado ao colonialismo português na
África e a recusa do relacionamento econômico-
comercial com os países socialistas. A aliança
preferencial com os Estados Unidos é pensada mais
em termos de vantagens econômicas a serem
negociadas do que em função do xadrez geopolítico
da Guerra Fria.
A situação de relativa ambigüidade nas relações
diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos muda
em 1964, quando se opera uma volta ao alinhamento
político. Entretanto, o reenquadramento do Brasil no
“conflito ideológico global” representa mais uma
espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado pelos
Estados Unidos no momento do golpe militar contra
o regime populista do que propriamente uma
operação de reconversão ideológica da diplomacia
brasileira. Em todo caso, observa-se um curto período
de alinhamento diplomático, durante o qual o Brasil
adere estritamente aos cânones oficiais do pan-
americanismo, tal como definidos em Washington.
Ocorre, numa seqüência de poucos meses, a ruptura
de relações diplomáticas com Cuba e com a maior
parte dos países socialistas, assim como a participação
na força de intervenção por ocasião da crise da
República Dominicana. A política multilateral, de modo
geral, passa por uma “reversão de expectativas”, para
frustração da nova geração de diplomatas que tinha
sido educada nos anos da política externa independente.
No plano econômico, a volta à ortodoxia na
gestão da política econômica permite um tratamento
mais benigno da questão da dívida externa, seja no
plano bilateral, seja nos foros multilaterais do Clube
de Paris ou nas instituições financeiras internacionais,
como o FMI. É sintomático que a única assembléia
conjunta das organizações de Bretton Woods a
realizar-se no Brasil, tenha tido por cenário o Rio de
Janeiro da primeira era militar, em 1967, quando se
negocia a instituição de uma nova liquidez para o
sistema financeiro internacional, o Direito Especial de
Saque do FMI.
Tem início, a partir de 1967, uma fase de “revisão
ideológica” e de busca de autonomia tecnológica. A
8
atitude “contemplativa” em relação aos EUA cede
lugar a uma diplomacia profissionalizada, preocupada
com a adaptação dos instrumentos de ação a um
mundo em mutação, e instrumentalizada para o
atingimento dos objetivos nacionais de crescimento
econômico. Praticou-se uma “diplomacia do
desenvolvimento”, consubstanciada na busca da
autonomia tecnológica, inclusive nuclear, com a
afirmação marcada da ação do Estado no plano
interno e externo, mesmo à custa de conflitos com
os EUA (denúncia, em 1977, do acordo militar de
1952, por motivo de interferência nos “assuntos
internos” do País, de fato na questão dos direitos
humanos).
Observa-se no período a confirmação da
fragilidade econômica do País, ao não terem sido
eliminados os constrangimentos de balança de
pagamentos que marcaram historicamente o processo
de desenvolvimento brasileiro. No seguimento das
crises do petróleo, em 1973 e 1979, e da dívida
externa, em 1982, o Brasil e os EUA aprofundam seus
desacordos políticos, tendo em vista a postura da
diplomacia brasileira percebida como excessivamente
“terceiro-mundista” pelos EUA (intensificação das
relações comerciais com países árabes considerados
radicais como Líbia e Iraque, voto “anti-sionista” na
ONU, coordenação com outros devedores para um
tratamento político da questão da dívida etc.), ademais
da busca continuada de autonomia tecnológica,
sobretudo na área nuclear e missilística.
Os elementos mais significativos da postura
internacional do Brasil na fase da redemocratização
são caracterizados pelos processos de autonomia
internacional e afirmação da vocação regional, com
o início da integração sub-regional no Mercosul e de
construção de um espaço econômico na América do
Sul. Faz-se também, nos anos 1990, a opção por uma
maior inserção internacional e a aceitação consciente
da interdependência – em contraste com a experiência
anterior de busca da autonomia nacional –, com a
continuidade da abertura econômica e da liberalização
comercial, no quadro de processos de reconversão
produtiva e de adaptação aos desafios da globalização.
A “carta americana” ainda é importante, mas já não
é essencial nesse período e a diplomacia passa a
apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente
a de tipo bilateral tradicional: são elas a regional, a
multilateral (principalmente no âmbito da OMC) e a
presidencial.
Paulo Roberto de Almeida
Sociólogo, diplomata.
pralmeida@mac.com www.pralmeida.org
Nota: O presente texto apresenta argumentos e opiniões pessoais do
autor e não tem qualquer pretensão de refletir ou representar posições
oficiais do Governo brasileiro, nem expressar ou defender políticas
ou declarações do Ministério das Relações Exteriores do Brasil no
que se refere às relações bilaterais com os Estados Unidos.
9
Uma realidade característica da nossa época é
o aumento sem precedentes da interação entre
políticas domésticas e contexto internacional que
tende a possibilitar, cada vez mais, o desenvolvimento
de um processo sui generis, pelo qual, diversas
questões internacionais tendem a distribuir custos
internos que conduzem à mobilização dos atores
domésticos, geralmente daqueles negativamente
afetados, deslocando assim para a esfera pública a
discussão da política internacional que até então era
considerada como prerrogativa exclusiva do poder
executivo por meio da sua burocracia especializada.
Na verdade, a formulação da política externa
passou a sofrer permanentemente interpenetrações
de outras esferas alocadas tanto no âmbito do Estado,
como, por exemplo, o poder legislativo, como fora
dele. O que torna sua eficácia estratégica dependente
da capacidade de se estabelecer canais de comunicação
entre seus formuladores e os atores que deverão
usufruir delas. Ou seja, urge a necessidade da existência
de uma interligação virtuosa entre os policymakers
no âmbito das estruturas estatais, o poder legislativo
e os atores da sociedade civil em busca da maximização
de possíveis oportunidades para satisfazer as
necessidades do país tanto num contexto democrático
quanto no mercado simultaneamente globalizado e
regionalizado.
Contudo, nessa nova realidade interativa está
contido riscos bem como um grande paradoxo. Pois,
pode, por um lado, proporcionar aos policymakers os
subsídios necessários ao mapeamento e à identificação
dos genuínos interesses nacionais que devem representar
na comunidade internacional, e, a partir daí, adequar
as estratégias de política externa do país transformando
nossas necessidades internas em possibilidades externas,
como afirma Celso Lafer. Ou, simultaneamente, em
um contexto de insulamento burocrático pode, por
outro lado, tornar os policymakers brasileiros vulneráveis
as contingências conjunturais bem como às injunções
de grupos econômicos e sociais que possuem a
capacidade de fazer valer seus interesses setoriais acima
dos genuínos interesses nacionais do país.
Logo, a concentração de poder na burocracia
especializada considerada como fundamental para
uma boa condução da política externa no passado
pode ou contribuir para a apropriação do Estado pelos
grupos de interesses mais poderosos ou para tornar a
sociedade refém do “ditador benevolente” que,
supostamente, conhece e, por isso, tem a capacidade
de representar os verdadeiros interesses nacionais na
sociedade internacional contemporânea.
Posta assim, parece que a questão de fundo a
ser equacionada é a seguinte: qual o melhor contexto
para elaboração da política externa, em particular, a
brasileira? O democrático? Ou o insulamento
burocrático clássico?
Na nossa opinião nem um nem outro contexto
em suas formas puras. Mas sim, um modelo a ser
construído que estabeleça novos padrões de
relacionamentos entre os poderes do Estado e suas
estruturas burocráticas, aumentando o papel de
vigilância do poder legislativo em assuntos internacionais
bem como pela criação de instituições domésticas
democráticas, tais como fóruns de debates com
participação aberta aos atores nacionais interessados
nesse tema, visando a busca de um ponto de equilíbrio
que possibilite que haja interação virtuosa entre
policynakers, legisladores e grupos de interesses
imprimindo elevado grau de transparência no processo
de formulação global da política externa do país sem
romper a prerrogativa do poder executivo na condução
das relações internacionais do Estado.
Política externa e democracia
Marcelo Fernandes de Oliveira*
* Doutorando em Ciência Política pela USP e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – CEDEC e do
Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais – IEEI (marfern@terra.com.b)
10
O que poderia conduzir a uma realidade pela
qual o poder executivo em um contexto democrático
antes de formular e implementar sua política externa
teria que buscar respaldo na sociedade civil e no
Parlamento para o seu sucesso, como ocorre com
qualquer outra política pública nacional. Este padrão
parece ser obedecido nos Estados Unidos onde o
Parlamento tem a prerrogativa de permitir ou não que
o Executivo estabeleça acordos internacionais através
do atualmente denominado TPA. E a sociedade civil
possui no USTR um canal institucional de
encaminhamento das suas demandas.
Ambas possibilidades ainda ausentes ou, na
melhor das hipóteses, sendo posta em prática na
formulação e implementação da política externa
brasileira, porém de maneira paulatina e controlada
pelo Ministério das Relações Exteriores. Na atualidade,
as questões internacionais brasileiras continuam a
mercê da burocracia do poder Executivo, muito bem
preparada, entretanto, vulnerável, como vimos, a todo
tipo de pressão de grupos de interesses com acesso
aos corredores do Palácio do Planalto onde a existência
de freios e contrapesos é praticamente ausente. Isso
indica a necessidade da elaboração de mecanismos e
instrumentos institucionais por parte do poder
Legislativo que tenha como função retomar seu papel
de freios e contrapesos ao Executivo, aperfeiçoando
o presidencialismo brasileiro, assim como também
servir de fonte geradora de credibilidade internacional
para o país.
Na nossa opinião a aprovação no Brasil do
projeto de lei 189/2003 de autoria do senador Eduardo
Suplicy/PT/SP que objetiva a criação de instrumentos
e mecanismos institucionais similares ao da TPA nos
Estados Unidos é bem vinda e será fundamental para
a participação do Brasil nas negociações comerciais
internacionais que já estão em andamento. Porque,
simultaneamente, tanto proporciona ao Parlamento
cumprir sua função em matéria de política externa
exercendo o papel de checks and balances aprimorando
o presidencialismo brasileiro e tornado-o junto com
suas burocracias mais representativo e responsivo na
formulação da política externa, o que de certo modo
já ocorre em outras políticas públicas, quanto
funcionará de fonte legitimadora do negociador
brasileiro vis-à-vis seus parceiros internacionais ao
demonstrar que as decisões e os interesses em jogo
durante os acordos emergem à luz do dia, longe do
jogo intra-burocrático que gera instabilidade
institucional, em um contexto informacional de plena
transparência caracterizado pela estabilidade
doméstica geradora de credibilidade internacional ao
garantir segurança ao mundo de que o que vier a ser
acordo será rigorosamente cumprido pelo país.
O que é o IBRI
O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais – IBRI, organização não-governamental com finalidades
culturais e sem fins lucrativos, tem a missão de ampliar o debate acerca das relações internacionais e
dos desafios da inserção do Brasil no mundo. Fundado em 1954, no Rio de Janeiro, e transferido para
Brasília, em 1993, o IBRI desempenha, desde as suas origens, importante papel na difusão dos temas
atinentes às relações internacionais e à política exterior do Brasil, incentivando a realização de estudos
e pesquisas, organizando foros de discussão, promovendo atividades de formação e atualização e
mantendo programa de publicações, em cujo âmbito edita a Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI.
Presidente de Honra: José Carlos Brandi Aleixo
Diretor Geral: José Flávio Sombra Saraiva
Diretoria: Antônio Carlos Lessa, Antônio Jorge Ramalho da Rocha, João Paulo Peixoto, Pedro Motta
Pinto Coelho.
Para conhecer as atividades do IBRI, visite a homepage em http://www.ibri-rbpi.org.br
11
O sistema de segurança das Nações Unidas
e a necessidade proeminente de reforma
do Conselho de Segurança
Carlos Ribeiro Santana*
O fracasso da Liga das Nações em conter os
conflitos durante os vintes anos que sucederam à
Primeira Guerra e aos desdobramentos da Segunda
Guerra Mundial levaram os líderes das grandes nações
a repensar os rumos das relações internacionais e a
propor uma instituição sólida, capaz de manter a paz e
a segurança internacionais. A malfadada experiência
da Liga das Nações e o nível traumático de destruição
e violência produzido pela Segunda Guerra Mundial
foram determinantes para que, no encontro de
Dumbarton Oaks, fosse elaborado sistema internacional
mais eficiente no desestímulo e no combate a atos de
agressão. O tema da segurança coletiva dominou os
debates entre os chefes das delegações dos EUA, Reino
Unido e URSS, que negociaram o texto básico e
mostraram-no, em seguida, aos chineses. O texto
transformar-se-ia no projeto da Carta da ONU,
examinado pelos participantes da Conferência de São
Francisco, em abril de 1945. Nesse encontro, cinqüenta
e um países, reunidos em São Francisco, aprovaram a
Carta das Nações Unidas, a qual continha as bases e os
princípios da nova organização internacional. O
documento norteou as relações internacionais durante
a Guerra Fria e buscou conciliar, com certo êxito,
princípios como o da soberania com a construção de
uma ordem jurídica internacional.
Órgão de maior poder decisório das Nações
Unidas, o Conselho de Segurança é o responsável
primário pela manutenção da paz e da segurança
internacionais, sendo sua existência vital tanto para a
Organização quanto para o mundo. É constituído
por quinze membros, sendo cinco permanentes –
Estados Unidos, Inglaterra, China, Rússia e França – e
dez membros não-permanentes, eleitos pela
Assembléia por um período de dois anos. Ao Conselho
é atribuída a responsabilidade de manutenção da paz,
sendo função precípua deste órgão definir e executar
sanções econômicas e militares contra Estados, em
casos de ameaça contra à paz, ruptura da paz ou ato
de agressão. A atual composição do Conselho foi
definida em 1965, quando houve aumento de seus
quadros, passando de onze para quinze membros.
Segundo a prática das Nações Unidas, dos dez
assentos rotativos dois cabem ao Grupo da América
Latina e Caribe; três ao Grupo Africano; dois ao Grupo
Asiático; dois ao Grupo da Europa Ocidental e outros;
e um ao Grupo do Leste Europeu.
De acordo com o embaixador Patriota1, que
analisa a atuação do Conselho de Segurança após a
Guerra Fria, com o fim desta, intensificou-se processo
experimental, não sistemático, e pouco transparente
de articulação de um novo paradigma de segurança
coletiva. A partir desse período, o Capítulo VII da Carta
das Nações Unidas foi invocado em número de vezes
superior àquele dos quarenta e cinco anos anteriores,
em um processo de experimentação virtualmente
contínuo, que ensejou reinterpretações da Carta, tanto
no que se refere aos objetivos de segurança coletiva
como no tocante aos meios para garanti-la. Com
relação à segurança coletiva, tem-se o problema do
alargamento do campo de aplicação do Capítulo VII
para incluir situações de emergência humanitária e
violações maciças de direitos humanos ou para o
combate ao terrorismo, à subversão da ordem
* Diplomata, mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (carlosribeirosantana@gmail.com). O
presente artigo reflete apenas as opiniões pessoais do autor e não busca representar as posições oficiais do governo brasileiro.
1 PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: A Articulação de um Novo Paradigma
de Segurança Coletiva. Brasília: FUNAG/IRBR/CEE, 1998.
12
democrática e à proliferação de armas de destruição
em massa. Em relação aos meios, podem ser
agrupadas as diferentes modalidades de “enforcement”
que vêm sendo praticadas, como as de atribuição de
mandatos coercitivos a operações de paz ou do
emprego de forças multinacionais ou alianças militares
defensivas para a imposição de decisões do Conselho
de Segurança. O sentimento de que se estão
redefinindo, no Conselho de Segurança, os fins e os
meios para a aplicação da segurança coletiva explica,
em boa medida, porque se acirrou a disputa entre os
Estados membros para participar de seus trabalhos.
Nesse novo contexto, os países em
desenvolvimento, por verem com natural reserva a
ampliação da capacidade intervencionista da ONU,
optaram, em certa medida, no debate na Assembléia
Geral, por formulações cautelosas de apoio genérico à
nova atuação das Nações Unidas. Os países em
desenvolvimento defendem o respeito aos princípios
da Carta, a preservação e a ampliação das prerrogativas
da Assembléia Geral, a renúncia a métodos
hegemônicos e discricionários de exercício do poder
mundial e a democratização do processo decisório e
dos mecanismos de representação vigentes nas Nações
Unidas e, especificamente, no Conselho de Segurança.
Atualmente, fala-se muito na reforma da ONU,
em contexto no qual é patente a obsolescência de
sua estrutura, concebida em cenário mundial
completamente diverso do atual, que reflete um
arranjo entre os vencedores de um conflito terminado
há quase 60 anos. A reforma tem três vertentes
principais: estrutural, financeira e operacional. A
reforma do Conselho de Segurança está precipuamente
englobada no viés estrutural – aumento do número
de membros permanentes e não-permanentes – e
operacional: a alteração dos dispositivos que autorizam
e regulam sua atuação.
O Conselho não representa mais a realidade da
Organização, menos ainda, o cenário mundial e o
contexto globalizado. A expansão das atribuições do
órgão é necessária, bem como a revisão dos
desequilíbrios em sua representatividade, a fim de
evitar-se o agravamento de questionamentos a seu
respeito e o comprometimento da eficácia de suas
ações. É preciso mais transparência de modo a sanar
os déficits de representatividade, legitimidade e eficácia
do órgão.
A reforma do Conselho tornaria o órgão mais
democrático e representativo, possibilitando maior
credibilidade no exercício de suas responsabilidades.
Assim sendo, a ampliação deve ocorrer em ambas as
categorias de membros, isto é, membros permanentes
e rotativos. Além disso, deve cuidar-se para incluir
países em desenvolvimento e desenvolvidos em ambas
categorias, com evidentes benefícios para o fortalecimento
da natureza democrática, da transparência, da
atuação e da responsabilidade do Conselho.
A eventual reforma do Conselho de Segurança
angaria fortes simpatias do atual Secretário-Geral da
Instituição, Koffi Annan, o qual acredita que a reforma
das Nações Unidas não estaria completa sem a
reforma do Conselho. Para Annan, o Conselho deve
estar disposto de tal maneira que represente a nova
realidade geopolítica do mundo atual. Em março de
2005, Annan apresentou dois modelos para a reforma
das Nações Unidas a ser votada antes de setembro
do mesmo ano. O primeiro modelo propõe a entrada
de seis novos membros permanentes sem direito a
veto e a criação de três novos assentos rotativos. O
segundo não prevê a entrada de novos membros
permanentes; entretanto, propõe a criação de nova
categoria de membros rotativos com mandato
renovável de quatro anos. De acordo com esse
modelo, seriam criados oito assentos rotativos para a
nova categoria e um para a já existente categoria de
membro não-permanente e não-renovável, eleito para
mandato de dois anos.
Por fim, a reforma da ONU, que adquiriu
crescente importância após o fim da Guerra Fria, visa
a acrescentar maior legitimidade ao Conselho de
Segurança, com a inclusão de mais países em
desenvolvimento. O Brasil apóia a reforma e sente-se
preparado para colaborar. Possui histórico de tradição
pacífica e de destaque em processos multilaterais,
sendo, na expressão de Celso Lafer, um formador de
consensos.
13
Antes da crise atual, o Mercosul já enfrentava
dificuldades. Entre os problemas principais para sua
consolidação estavam a paridade entre o peso
argentino e o dólar (o que com a desvalorização do
Real em 1999 causou um grande desequilíbrio na
balança comercial), e a insistência Argentina numa
espécie de relação privilegiada com os EUA. A crise
Argentina lhes mostrou que eles não podiam contar
com os americanos como pensavam, desse modo,
simultaneamente à desvalorização do peso em 2001,
a “aliança” com os EUA também ruiu.
A crise Argentina era suficiente por si só para
justificar a diminuição acentuada no volume do
comércio entre nossos países, mas o Mercosul entrou
em crise sob vários ângulos neste período. Esta crise
afetou profundamente o orgulho argentino e os levou
a um “fechamento” para a idéia de abertura de
mercado de tipo liberal. Se sob Menem a Argentina
foi um dos bastiões do neoliberalismo no mundo em
desenvolvimento, hoje a idéia de abrir o mercado
encontra profundas resistências, ainda no calor do
sofrimento causado pela espetacular catástrofe
causada pela adoção da política ortodoxa receitada
pelo FMI e outras instituições internacionais.
Neste contexto o presidente Néstor Kirchner,
da Argentina tem encontrado eco em sua política de
enfrentamento a estas instituições e também às
multinacionais, como foi recentemente o caso da
Shell, que se viu acuada por um boicote convocado
pelo próprio presidente argentino contra seus
produtos, sendo então forçada a reduzir preços.
Esta tática tem sido importante para recuperar
a auto-estima do povo argentino, que além de
maltratado por uma crise econômica de magnitudes
calamitosas passou pela humilhação sem precedentes
As Conseqüências do Déficit Democrático
no Mercosul
Rodrigo Alves Correia*
em sua história de ter sido incapaz de honrar seus
compromissos financeiros assumidos e entrado em
“default”. Kirchner, no entanto, tem feito uso desta
estratégia com finalidades que dizem respeito a seus
próprios interesses pessoais – eleitorais seria o termo
mais correto.
Com a fragilidade econômica Argentina, as
relações comerciais com o Brasil primeiro esfriaram,
depois estremeceram. O Brasil também passou a ser
visto por alguns setores no país vizinho como um
“inimigo”, causador de males sem fim à economia
local, pois na medida em que a desarticulada e menos
competitiva economia Argentina ainda sofre os efeitos
da escassez de recursos para financiamento em
função da impossibilidade de obter empréstimos no
exterior, a concorrência com os produtos brasileiros é
uma fonte adicional de preocupação para os
produtores locais. É evidente a impossibilidade de se
estabelecer uma concorrência direta entre as
economias de Brasil e Argentina neste momento, e é
urgente que se estabeleça uma política compensatória
ou um mecanismo que corrija esta distorção, sob
pena de se desarticular ainda mais os sofridos
produtores argentinos.
O cerne da crise enfrentada pelo Mercosul está
exatamente na dificuldade em se chegar a um
consenso em relação a esta questão.
O governo brasileiro vem se comportando
como um paladino do neoliberalismo em relação à
Argentina, recusando-se sistematicamente a
estabelecer tal mecanismo, insistindo na necessidade
de se estabelecer a livre concorrência pura e
simplesmente. Paradoxalmente, no entanto, a forma
de proceder do governo Kirchner não tem colaborado
muito para solucionar o impasse. O mesmo tom e
* Cientista Político, Mestrando Em Ciências Sociais pela UNESP – Universidade Estadual de São Paulo, Campus de Marília.
(alcartur@pop.com.br).
14
Assine a Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI
e adquira os livros publicados pelo IBRI
Na Loja do IBRI é possível adquirir os livros editados pelo Instituto,
assinar a Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI e
inscrever-se em eventos promovidos pela Instituição. Visite o novo
site do IBRI em http://www.ibri-rbpi.org.br .
linguajar adotado por Kirchner no embate com o FMI
tem sido aplicado ao Brasil, até o momento sem obter
resultados. A falta de diplomacia deste governo em
relação ao Brasil é de chamar a atenção, dado o grau
de proximidade atingido até o momento na relação
entre os dois países em função do processo de
integração regional, e a atitude insensível do Brasil
também causa-nos estranheza. Deveríamos estar
atentos às causas de tal comportamento.
Como kirchner obteve bons dividendos no
embate com o FMI e as multinacionais, aparentemente
resolveu adotar a estratégia de também “falar grosso”
com o Brasil, porém, a inabilidade com que esta
estratégia tem sido conduzida, afastou os dois países
da solução do problema. O endurecimento da posição
argentina em relação ao Brasil visa muito mais a
elevação da popularidade de Kirchner em seu próprio
país do que a obtenção de um mecanismo compensatório
no Mercosul. Esse efeito é potencializado pela
exaltação dos ânimos daqueles que se sentiram
prejudicados pela concorrência brasileira em inúmeros
setores. Os fabricantes de calçados, por exemplo,
promoveram várias demonstrações públicas de
repúdio à concorrência brasileira.
Desse modo, o estagio atual das negociações
do Mercosul não reflete os interesses das nações, mas
tão somente interesses particularistas de setores
econômicos muito distintos dos dois países, ou dos
presidentes.
A falta de enraizamento institucional do
Mercosul leva a que a atitude de poucos possa travar
completamente um projeto que é de interesse do
conjunto das populações envolvidas. Evidentemente
há um déficit democrático no processo decisório deste
bloco, que não era tão relevante anteriormente porque
no processo de constituição do Mercosul, este expediente
permitiu um rápido avanço nas negociações. Hoje,
no entanto, a única saída para resolver o impasse é
ampliar o espaço da discussão e o número de atores
envolvidos. Além disso, o alcance da integração, que
a rigor não precisaria se restringir apenas à área
econômica, poderia permitir que o foco do debate
seja ampliado. Não é novidade a idéia de que a solução
dos problemas do Mercosul é mais Mercosul.
15
A invasão de produtos chineses no mercado
mundial tem prejudicado diversos países, e que agora
ameaçam impor barreiras protecionistas caso o
volume de exportações não se modifique. Esse é o
caso do Brasil, que deve regulamentar nos próximos
dias a imposição de salvaguardas para os produtos
chineses que ameaçam a indústria nacional.
Em reunião entre os membros da Camex e Lula
em maio, ficou decidido que o presidente assinaria
dois decretos, um regulamentando as salva-guardas
para produtos em geral (com duração até 2013) e
outro exclusivo para têxteis (com duração até 2008).
Dia 23 de junho uma audiência pública na
Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
do Senado tinha como pauta a proposta da FIESP em
discutir o reconhecimento da China como uma
economia de mercado. A falta de quorum por conta
da reunião CPI dos Correios fez com que a reunião
fosse adiada para o início do próximo semestre.
Mesmo com esse adiamento, o contencioso
vem ganhando destaque na iniciativa privada e no
governo. O objetivo da FIESP e dos senadores com
essa audiência era discutir as reais conseqüências que
as exportações chinesas apresentam, tanto para a
produção nacional quanto para as exportações
brasileiras.
Os possíveis impactos desse contencioso
podem ser mais graves do que uma simples batalha
comercial. A ameaça de impor barreiras não vem
apenas do Brasil, sendo vista também nos EUA e
Europa. A China, por sua vez, rebate com o
endurecimento de sua posição para a liberalização dos
produtos agrícolas, principalmente nos fóruns
multilaterais de comércio, como ocorre na OMC.
Caso a China confirme esse posicionamento
mais duro, as negociações do G-20 serão bastante
comprometidas. Sendo um importante membro do
bloco, ao adotar um posicionamento contrário ao que
vinha sendo defendido mostrará um enfraquecimento
da posição do grupo nas negociações internacionais.
Para o Brasil, líder do bloco, esta retaliação
enfraqueceria todo o esforço diplomático que tem
sido aplicado na Rodada Doha com bastante sucesso.
Porém o ponto mais sensível das relações
comerciais entre China e Brasil está no fornecimento
de soja, hoje a principal commodity de exportação do
agronegócio brasileiro. A relação de dependência entre
os dois países no que concerne à compra e venda de
soja permite que a China tenha em suas importações
uma moeda de troca para negociações comerciais,
econômicas e políticas. De todo o volume de soja
exportado pelo Brasil, 30% tem a China como destino.
É importante considerar os possíveis impactos
para a sojicultura que resultarão da imposição de
salvaguardas às importações de produtos chineses,
especialmente os têxteis. A importância desta
commodity para a balança comercial brasileira impede
que a sua comercialização seja colocada em risco, ou
negociada como moeda de troca; a manutenção da
política econômica atual também depende da
permanência ou crescimento das exportações do grão.
A diminuição dos carregamentos de soja
brasileira para a China, fruto das super-safras
americana e argentina, pode se agravar com a
* Diretor da Focus R.I. – Assessoria & Consultoria em Relações Internacionais e Vice-Presidente da Câmara de Comércio
Argentino-Brasileira de São Paulo (ulhoacintra@gmail.com).
** Consultora da Focus R. I. – Assessoria & Consultoria em Relações Internacionais (www.focusri.com.br).
Uma prova à capacidade negociadora
brasileira: o caso dos têxteis chineses
Rodrigo Cintra*
Mariana Ricci**
16
imposição das salvaguardas. A grande oferta do
mercado possibilitará à China negociar em posição
favorável com o Brasil, tanto em aspectos comercias
quanto políticos. Basta saber em qual deles o país está
mais disposto a ceder.
A imposição da barreira será cautelosa. O Brasil
procura sinalizar para a China que a salvaguarda
Sobre Meridiano 47
O Boletim Meridiano 47 não traduz o pensamento de qualquer entidade governamental nem se filia a
organizações ou movimentos partidários. Meridiano 47 é uma publicação digital, distribuído
exclusivamente em RelNet – Rede Brasileira de Relações Internacionais (www.relnet.com.br), iniciativa
da qual o IBRI foi o primeiro parceiro de conteúdo. Para ler o formato digital, distribuído em formato
PDF (Portable Document Format) e que pode ser livremente reproduzido, é necessário ter instalado em
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expressas nos trabalhos aqui publicados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
efetivamente só será adotada em último caso e após
negociações. Com isso o governo procura acalmar
os setores da economia prejudicados pelas
exportações chinesas, e aqueles que poderão ser
afetados com possíveis retaliações do país, a exemplo
máximo da soja.
17
* FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe. Idéias que mudaram o mundo (São Paulo: Editora Arx, 2004, 400 p.)
** Diplomata de carreira e Doutor em Ciências Sociais (pralmeida@mac.com). As opiniões expressas no presente texto são
exclusivamente as de seu autor.
A evolução, nas sociedades humanas, libertou-
se dos constrangimentos do mundo natural e tornou-
se essencialmente cultural ou mesmo, nos tempos
atuais, basicamente tecnológica. Os seres humanos,
eles mesmos, estão sendo mudados pelas técnicas
de intervenção cromossômica e de manipulação
genética (ou pelo menos existe capacidade potencial
de fazê-lo). A despeito disso tudo, a humanidade
continua a ser movida por sentimentos ancestrais,
como o desejo sexual, o amor, o ódio, a vontade de
poder e outros tantos impulsos mais ou menos nobres
ou simplesmente mesquinhos.
Este livro, do conhecido historiador e professor
na Universidade de Londres, identifica e explica quase
duas centenas de idéias que influenciaram o destino
da humanidade, desde 30 mil anos antes de nossa
era até a atual era da incerteza. Atento em não parecer
“ocidentalocêntrico”, o autor buscou em civilizações
orientais conceitos e princípios que também se
tornaram universais, mas ele reconhece que
predominam as idéias ocidentais, pois são aquelas que
moldaram o mundo tal como o conhecemos hoje.
Também aceita que a maior parte das mudanças
ocorridas no mundo tem origem intelectual e que as
idéias são poderosos agentes transformadores. As
idéias estão cronologicamente organizadas em sete
partes, desigualmente distribuídas: o primeiro capítulo
cobre vinte mil anos, na era dos caçadores primitivos,
ao passo que os últimos dois séculos merecem um
capítulo cada. Ainda assim, não devemos achar que
só as idéias modernas são relevantes, pois a maior
parte daquelas tidas hoje como importantes têm
origens antiqüíssimas. Como ele diz na introdução,
“é humilhante para o homem moderno admitir que
uma parcela tão grande de seu pensamento foi
antecipada há muito tempo e que a modernidade
antecipou pouquíssimo a nosso equipamento
intelectual básico”.
A organização do livro permite uma leitura não-
linear e cada página dupla que explora um conceito
particular remete a outras idéias a ele vinculadas, assim
como dá sugestões de leituras adicionais, geralmente
de autores famosos. Verdade que nem todas são
idéias, no entendimento habitual do termo, pois
comparecem hábitos ancestrais, como o canibalismo,
ou práticas de governos que depois foram
formalizadas por “filósofos morais”, como o
mercantilismo. Ainda assim, o livro mapeia um
conjunto impressionante de princípios norteadores de
nossa época, tirados de todas as épocas e várias
sociedades. Para os que crêem, por exemplo, que o
capitalismo é uma noção tipicamente ocidental,
desenvolvida nos últimos cinco séculos, vale conferir
a defesa que o filósofo indiano fundador do jainismo,
Mahavira, do século VI a.C., fez da criação de riqueza,
estimando que o rico trabalha “para que muitos
desfrutem dos seus ganhos”. Esse verbete remete
tanto a Karl Marx, como a Milton Friedman e a Max
Weber, cuja tese sobre “afinidades eletivas” entre
capitalismo e protestantismo é considerada como
“desacreditada”.
O livro começa por desmistificar a idéia de que
“mentes primitivas” não possam ter idéias brilhantes,
relativizando, portanto, a noção de progresso. Ele
Resenha
Idéias que mudaram o mundo*
Paulo Roberto de Almeida**
18
ISSN 1518-1219
Editor: Antônio Carlos Lessa
Editor-adjunto: Virgílio Arraes
Editor-assistente: Rogério de Souza Farias
Conselho Editorial:
Amado Luiz Cervo, Antônio Jorge Ramalho da Rocha, Argemiro Procópio Filho,
Estevão R. Martins, Francisco Doratioto, José Flávio S. Saraiva, João Paulo Peixoto, Tânia Pechir Manzur.
Projeto Gráfico:
Samuel Tabosa de Castro – samueltabosa@ig.com.br
Meridiano 47
Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais
termina pela noção de aldeia global, ou seja, a idéia
do pluralismo cultural, remetendo aqui ao pensador
Isaiah Berlin, para quem existe uma “pluralidade de
valores”, que são inúmeros mas não infinitos, o que
difere do relativismo cultural. Os antiglobalizadores
que lutam contra a dominação mundial do capital são
contra o “pensamento único”, o que provavelmente
é inexeqüível nos próprios quadros da sociedade
capitalista, tendencialmente abrangente e, portanto,
multiforme. Esta é a mensagem final do livro: “o
pluralismo é obviamente o único futuro prático para
um mundo multiforme. Talvez seja o único interesse
uniforme que todos têm em comum”. Esta é a
sociedade humana: unidade na diversidade.
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