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Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos

Authors:

Abstract

a
S U M Á R I O
2 Esclad  Irau: rmah r 2008?
4 Bvi II Cl S-Amrcn d Naç: dacrts trns rs
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15 Elç  Vnzul: Chv   Fi d Aian
Rh
19 A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração,
ceüncis
ISSN 1518-1219
Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais
78
Janeiro – 2007
MERIDIANO47
Vrgi Aa
J Rr Machad N
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Rcr DS
2
Nas eleições de novembro de 2006, o Partido
Republicano sofreu revés considerável, em boa
medida por causa das dificuldades da política externa
no Oriente Médio e Afeganistão. Uma das primeiras
conseqüências seria a exoneração do Secretário de
Defesa, Donald Rumsfeld. A outra, em curso, referir-se-
ia aos lançamentos de candidaturas pré-presidenciais
do Partido Democrata – até o momento, duas.
Isto simboliza, de certo modo, o envelhecimento
precoce da segunda gestão Bush, centrada no
combate ao terror e férrea oposição a determinados
regimes ditatoriais o que no idioleto republicano
significa duas vertentes desde o final da Guerra Fria:
se aliado, autoritário; se opositor, totalitário, conforme
proposição de Jeane Kirkpatrick, Embaixadora junto
às Nações Unidas entre fevereiro de 1981 a abril de
1985.
À primeira vista, a derrota nas urnas conduziria
à reflexão de que a política externa executou um
projeto equivocado, o que demandaria a necessidade
imperiosa de revê-lo imediatamente, por implicar,
no mínimo, mais risco de morte para dezenas de
milhares de cidadãos norte-americanos muitos
dos quais recrutados em áreas rurais desassistidas
e iraquianos, além de contribuir ainda mais para
desestabilizar o Oriente Médio.
Todavia, a Casa Branca parece tê-la interpretada
como um plano correto implementado de maneira
errônea – um percalço temporário, o que justificou
a saída de Rumsfeld, não dos formuladores
neoconservadores. Assim, a sua correção contempla
intensificar o aparato militar na região, ao enviar para
o Iraque mais 21 mil e 500 efetivos e ao considerar
a hipótese de ataque à Síria ou ao Irã, conquanto o
Congresso questione os custos não econômicos
mas principalmente políticos de tais empreendidas.
Apesar da avaliação negativa, a Casa Branca
comporta-se de modo solerte, ao advertir o Senado,
por meio do Departamento de Defesa, sobre a
possibilidade de uma resolução contrária ao envio
de tropas adicionais, aprovada até o momento na
Comissão de Relações Exteriores ela solicita mais
esforços diplomáticos, insta a redistribuição do
efetivo, ao lotá-lo nas fronteiras em detrimento das
zonas urbanas, e pede mais treinamento das forças
de segurança iraquianas.
Na visão governamental, tal tipo de manifestação
auxiliaria o adversário, ainda que não seja a intenção
prevista. Contudo, muitos parlamentares do Partido
Republicano receiam conceder um apoio maior, sob
pena de desgaste perante seu eleitorado em 2008.
Por outro lado, o Executivo desafia a oposição a
apresentar um plano alternativo para o Iraque.
Nesse sentido, o governo recorre a analogias
históricas, ainda que destaque a sua imperfeição, no
caso por meio da titular do Departamento de Estado,
Condoleeza Rice. Destarte, compara-se o presente
desafio ao do tempo do início da Guerra Fria, cuja
duração estendeu-se por quase meio século até a
vitória final. No entanto, as molduras sócio-culturais
de ambas as áreas, além do distanciamento temporal,
diferenciam-se sobremodo. A região médio-oriental
não saiu de um amplo confronto a II Guerra Mundial
em que uma coligação de países da própria área o
eixo nazifascista – tivesse devastado os demais.
Registre-se que os Estados Unidos não foram
lá, desta vez, para encerrar um conflito, porém
para iniciá-lo, fato agravado pela ausência de apoio
formal da comunidade internacional. Além do mais,
conforme acima mencionado, concentram-se demais
em dois da totalidade de países do Oriente Médio,
talvez em função de uma visão marcada ainda pela
* Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília – iREL-UnB (arraes@unb.br).
Esclad  Irau: rmah r 2008?
Vrgi Aa*
3
dicotomia bipolar, incapaz, portanto, de ser aceita até
mesmo por seus aliados mais próximos, como França
e Alemanha, alcunhados, em passado recente, de
‘Velha Europa, por Donald Rumsfeld.
Os dois grandes conflitos travados durante o
período bipolar, Guerra da Coréia (1950-1953) e
Guerra do Vietnã (1965-1975), foram encerrados
por presidentes republicanos. No primeiro, Dwight
Eisenhower declarara seu fim, sem atacar diretamente
os democratas, ao reconhecer a impossibilidade de
ganhá-lo; no outro, Richard Nixon não desfrutou
do tempo suficiente para pô-lo a termo, porém não
perdeu oportunidades para criticar acerbamente seus
adversários.
Caberia a seu sucessor, Gerald Ford, passar à
história como o único dirigente a recentemente perder
uma guerra. O reflexo viria na disputa presidencial,
com a vitória de Jimmy Carter. Deste modo, ao
pressentirem a possibilidade real de perda da Casa
Branca durante o desenrolar das eleições em 2008,
os republicanos poderão deixar o fardo da ocupação
do Iraque para seus opositores.
O que é o IBRI
O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais IBRI, organização não-governamental com finalidades
culturais e sem fins lucrativos, tem a missão de ampliar o debate acerca das relações internacionais e dos
desafios da inserção do Brasil no mundo. Fundado em 1954, no Rio de Janeiro, e transferido para Brasília,
em 1993, o IBRI desempenha, desde as suas origens, importante papel na difusão dos temas atinentes às
relações internacionais e à política exterior do Brasil, incentivando a realização de estudos e pesquisas,
organizando foros de discussão, promovendo atividades de formação e atualização e mantendo programa
de publicações, em cujo âmbito edita a Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI.
Presidente de Honra: José Carlos Brandi Aleixo
Diretor Geral: José Flávio Sombra Saraiva
Diretoria: Antônio Carlos Lessa, Antônio Jorge Ramalho da Rocha, João Paulo Peixoto, Pedro Motta Pinto Coelho.
Para conhecer as atividades do IBRI, visite a homepage em http://www.ibri-rbpi.org.br
4
O presidente Evo Morales parece não ter escutado
os conselhos dos seus vizinhos para arrumar a casa
antes de sediar a II Cúpula Sul-Americana de Nações
(Casa). Talvez, a exemplo que ocorreu na Argentina
durante o regime militar em 1982, quis transferir para
a esfera externa a solução para crise política interna,
sediada em três espaços geográficos: La Paz, Sucre
e Cochabamba. Nesta altura dos acontecimentos,
La Paz, de há muito tempo, não parece ser um sítio
seguro para recepcionar mandatários estrangeiros,
nem um pouco interessados na pacificação boliviana,
mas sim, nas possibilidades de ampliação de negócios
bilaterais e, também, no retorno da velha retórica da
integração latino-americana, notadamente, sob uma
forma diferenciada da cepalina, em cartaz, desde a
década de 1950.
Desta feita, foram convidados todos os
mandatários latino-americanos, inclusive, o do
México, Felipe Calderón; da Nicarágua; os recém
eleitos Daniel Ortega e Rafael Correa, do Equador; e,
inclusive, o do Panamá, Martín Torrijos. As ausências
foram de Nestor Kirchner, da Argentina; Álvaro Uribe,
da Colômbia; Alfredo Palácio, do Equador; Felipe
Calderón, do México; Martín Torrijos, do Panamá; e
Ronald Venetiaan, do Suriname. Os destaques além
de Evo Morales, o anfitrião ficaram a cargo os
presidentes Lula, do Brasil; da presidente Bachelet, do
Chile e do bolivariano Hugo Chávez, da Venezuela. Das
participações, esperava-se, que se caracterizassem por
propostas de impactos de natureza individualizada,
fato que infelizmente não ocorreu.
Ao presidente brasileiro foi, inclusive, solicitado
o arbítrio para negociações entre o governo boliviano
e a oposição, liderada pelo atual governador do
Departamento de Beni, Ernesto Suárez; pelo prefeito
da capital Trinidad, Moisés Schiriqui, por Rubén
Costa, governador do departamento de Santa Cruz,
apoiados pelo ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga e
por outras lideranças dos departamentos de Pando
e Tarrija. O movimento oposicionista contou ainda
com lideranças empresariais e políticas, a exemplo do
empresário Samuel Doria Medina, forte expressão do
partido Unidade Nacional, que podetornar-se numa
nova força política contrária a Morales, dada a sua
capacidade de arregimentar os movimentos sociais
em ebulição nas áreas urbanas.
A oposição arregimentou também lideranças
sindicalistas e estudantis, unidas em defesa da
manutenção do dispositivo constitucional de 2/3
para novas forjas institucionais contrárias à decisão
governamental da simples maioria, para uma
nova Constituição. O embate, de natureza interna,
transcende a vontade dos partidos que gravitam em
torno do MAS (Movimento ao Socialismo), partido
governamental, cujas compensações são, a cada dia,
menos convincentes, não obstante o peso do governo
de 51% na Assembléia Constituinte.
O clima de incerteza tem aumentado com
novas adesões, e já compromete não somente a
governabilidade de Morales, como qualquer tentativa
de jactar a Bolívia para além do ideário imposto pelo
MAS. Assim, tornou-se um imperativo estancar quanto
antes o crescimento do movimento contestatório, sem
traumas, isto é, sem o uso da força. Entretanto, não
sendo possível atingir o desejado caminho da paz, a
Bolívia poderá retornar imediato ao ciclo de golpes,
* Doutor em História das Relações Internacionais, professor do Curso de Relações Internacionais e Coordenador Geral
do Núcleo de Estudos de Meio Ambiente e Relações Internacionais (NEMARI), da Universidade Católica de Brasília
(josem@ucb.br).
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J Rr Machad N*
5
distanciando-se não somente do seio do Mercosul,
como também da comunidade internacional das
nações político-economicamente organizadas.
A Bolívia de Morales não é a mesma de Sáchez
de Lozada (2003-2005) e nem de Carlos Mesa (2005-
2006), um antichileno sem causa, mas apaixonado
por referendos populares em questões de amplitude
nacional. Nesses instantes segue um caminho
tortuoso, de crise em crise, com constantes perdas
de expectativas externas e de apoio para a unidade
política interna. Além disso, a governabilidade está
fracionada em partes desiguais e diferenciada entre
La Paz, Sucre e Cochabamba, deixando margens para
que novos departamentos ascendam com novos
partidos políticos, novas lideranças e novas demandas
sociais, exigindo cada vez mais do poder central maior
capacidade e uma especial habilidade para negociar
os objetivos nacionais, mediante consenso.
Para Morales o primeiro presidente indígena, um
político de caracterização pessoal informal um tanto
exagerada e sem imitadores seguir com proximidade
e uma aparente lealdade os exemplos cubano e
bolivariano parecia o intento necessário e viável para
respaldar as medidas de impactos, tomadas no início de
seu governo, em março de 2006. Sob a ótica cubana,
a tentativa de uma gradual expropriação de empresas
estrangeiras sediadas em solo boliviano e responsável
pela dinamização do setor de hidrocarbonetos ecoou
como uma blitzkrieg, atirando estilhaços para outros
continentes, mas atualmente, adormecida. No que
diz respeito à vontade autóctone de Morales, falta
recursos financeiros e tecnológicos necessários para
uma possível estratificarão importadora. Da mesma
forma, falta diversificação exportadora, capacidade
de coalizão do MAS com os partidos de oposição e,
principalmente, retórica e carisma, para nivelar-se ao
vizinho Hugo Chávez, patrono e garantidor virtual de
seus arroubos antiimperialistas.
A convocação da II Cúpula Sul-Americana de
Nações (Casa) pode parecer, a principio, uma tentativa
de obtenção de prestígio do governo Morales
perante seus vizinhos. Uma espécie de ratificação de
medidas político-diplomáticas impostas recentes por
La Paz, consideradas na sua maioria peremptórias,
agressivas e com limitadas possibilidades em curto
prazo de transferência de ganhos de bem-estar
aos bolivianos. Observa-se, ainda, que a cúpula
decisória boliviana da qual, além de Morales, fazem
parte Álvaro García Línera, vice-presidente; Silvia
Lazarte, presidente da Assembléia Constituinte; os
ministros Carlos Villegas, dos hidrocarbonetos; David
Choquehuanca, do exterior; Juan Ramón Quintana,
da defesa; Wálqer San Miguel, da defesa; Hugo
Salvatiera, do desenvolvimento rural e meio ambiente;
e Alicia Munõz, do interior – ainda não estabeleceu
uma agenda político-ideológica uniforme, capaz de
neutralizar os arroubos dos movimentos sociais e os
impactos restritivos à regularidade interna, necessária
ao curso da economia boliviana.
A agenda da II Casa, apesar de amplamente
discutida alberga itens tradicionalmente desejados
pela maioria dos estados latino-americanos: i)
integração regional energética; ii) integração da
infra-estrutura regional; iii) eliminação de assimetrias
macroeconômicas; iv) reformulação das necessidades
financiamento externo; e v) a própria validade da
existência da Casa. O tema integração regional
continua como a principal controvérsia entre os
governantes. Tabaré Vasquez, do Uruguai alega
que a região não tem propostas concretas para
integração e crescimento; Alan García, do Peru,
propõe uma integração educativa para a região, com
a definição de objetivos e princípios; Hugo Chávez, da
Venezuela, sugere clareza na definição de objetivos
para a integração e que a mesma seja de natureza
energética, com investimentos bilaterais, a exemplo da
parceria Petrobrás e a PDVSA, a estatal venezuelana
do petróleo, para a instalação de uma refinaria em
Pernambuco, cujo projeto ainda não saiu do papel.
Tais clamores, por sua vez, dificultam o consenso e
comprometem os resultados esperados da Cúpula,
criando ainda, possibilidades de transformá-la apenas
num novo tour de integración, com um repetido
adiamento para a repartição de ganhos reformistas
para o patrimônio sócio-político latino-americano.
Aceitando-se como objetivos primordiais da II
Casa a integração sócio-econômica, ambiental e de
infra-estrutura e a redução das desigualdades sociais
6
Sobre Meridiano 47
O Boletim Meridiano 47 não traduz o pensamento de qualquer entidade governamental nem se filia a
organizações ou movimentos partidários. Meridiano 47 é uma publicação digital, distribuído exclusivamente
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expressas nos trabalhos aqui publicados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.
no continente, o elenco de propostas brasileiras
apresentado pode ser considerado consistente e
coerente com a realidade atual político-econômica
e social latino-americana, por agregar: i) integração
regional mediante o cumprimento de acordos firmado
até então pelos mandatários da região; ii) fundação
do Parlamento Sul-Americano; iii) coordenação de
esforços em negócios de petróleo e gás; iv) criação de
uma Comissão Permanente de Altos Funcionários, com
sede no Rio de Janeiro, como um dos mecanismos
necessários para monitorar a implementação de
compromissos assumidos em reuniões de cúpula, a
exemplo da II Casa.
A proposta brasileira, recebida sem oposição e,
até mesmo, sem críticas contundentes pela maioria
dos chefes de estados participantes da Casa, foi
de encontro à ausência de proposições realistas,
justificada pelos desacertos de idéias e objetivos.
Primeiramente, pela identidade do elenco proposto
com a própria natureza ou caracterização do
bloco, cujas expectativas de êxito podem garantir a
descaracterização da América Latina de subcontinente.
Em segundo momento, por expressar a efetiva
potencialidade do fórum com vistas à transformação
do Mercosul em mercado comum, exilando-o da
simples caracterização de união aduaneira. É evidente
que a antecipação brasileira pode gerar ainda novas
condições para um possível processo de retomada
de espaços de liderança, não obstante a elevada e
agressiva competitividade bolivariana.
Além desta caracterização primária, a proposta
brasileira pode gerar outras expectativas de ganhos
políticos recíprocos no médio prazo – além de uma
possível identidade macroeconômica necessárias
para a integração regional. Para tanto, espera-se
que os debates, críticas, réplicas e acertos de contas
atenuem a reciprocidade das assimetrias. Da mesma
forma, distanciem seus representantes do espectro
político-ideológico, fazendo-os convergir para o
conjunto de demandas econômico-sociais que
representam a expansão da fronteira latino-americana
com os megablocos econômicos. Ao estreitá-la,
poder-se-ia, num prazo hábil mantendo-se a
unidade política aumentar o grau de importância
estratégica da Cúpula. Além do mais, se mantida a
unidade, poderá sob um aggiornamento, servir de
apoio logístico permanente ao Mercosul, na qualidade
de mercado comum do Cone Sul.
7
Os militantes do Fórum Social Mundial
começaram a preparar o próximo conclave anual
do movimento. Esse encontro está marcado para
a capital do Quênia, Nairobi, nos dias 21 a 24 de
janeiro de 2007. As organizações participantes do
FSM – nem todas as que gostariam de ser podem sê-
lo, pois todas precisam concordar com a plataforma
antiglobalizadora da qual elas se orgulham, o que
significa que não se admitem discordâncias e desvios
do “pensamento único” que defendem elaboraram,
em 2006, um conjunto de objetivos gerais que
expressam, presumivelmente, a visão do mundo de
seus militantes, quando não sua filosofia de vida.
Pretendo, no presente texto, transcrever esses
nove objetivos gerais, tais como expressos no site do
FSM, e tecer, em seguida comentários pessoais sobre
cada um eles, agregando a cada vez argumentos
de natureza conceitual e histórica sobre o que me
parece correto e o que considero serem equívocos
dos “ideólogos” desse movimento (“ideólogos”, aqui,
no bom sentido da palavra, isto é, como produtores
de idéias). Faço-o num puro espírito de debate
intelectual, que geralmente ocorre de modo unilateral,
pois raramente tenho encontrado antiglobalizadores
que aceitem debater suas “idéias”. Não importa,
vejamos simplesmente o que eles têm a dizer.
Cito, do site e de mensagem recebida em 2
de janeiro de 2007:
“Veja a seguir a lista completa dos nove objetivos
gerais, que foram definidos a partir de consulta
realizada entre junho e agosto de 2006 sobre ações,
campanhas e lutas em que estão envolvidas as
organizações participantes do FSM:
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça,
ética e respeito pelas espiritualidades diversas;
2. Pela libertação do mundo do domínio das
multinacionais e do capital financeiro;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens
comuns da humanidade e da natureza;
4. Pela democratização do conhecimento e da
informação;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da
igualdade de gênero e eliminação de todas as formas
de discriminação;
6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais,
humanos e culturais, especialmente os direitos à
alimentação, saúde, educação, habitação, emprego
e trabalho digno;
7. Pela construção de uma ordem mundial
baseada na soberania, na autodeterminação e nos
direitos dos povos;
8. Pela construção de uma economia centrada
nos povos e na sustentabilidade;
9. Pela construção de estruturas políticas
realmente democráticas e instituições com a
participação da população nas decisões e controle
dos negócios e recursos públicos.”
Fonte: Reunião do Conselho Internacional do
FSM, em Parma, Itália, 10-12 de outubro de 2006;
link: http://www.forumsocialmundial.org.br/main.
php?id_menu=7&cd_language=1.
Comentários sobre os objetivos do FSM:
Meus comentários serão puramente de natureza
sociológica, ou econômica, uma vez que a maior parte
* Diplomata de carreira e Doutor em Ciências Sociais. As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu
autor (pralmeida@mac.com).
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8
dos objetivos dos integrantes do FSM tem a ver com
a organização social, política e econômica no plano
mundial e com as formas de serem encaminhados
alguns dos problemas com que se debate a
humanidade, em especial a pobreza, a desigualdade,
os desequilíbrios ambientais, sociais e de gênero,
com seu cortejo de injustiças a serem remediadas.
Acredito que a maior parte dos integrantes do FSM
seja formada por jovens idealistas, efetivamente
preocupados com os problemas que eles dizem
pretender combater, embora uma parte significativa
dos que poderiam ser identificados como dirigentes,
os seus “ideólogos” aqui no sentido marxista da
palavra –, ostente uma nítida postura anti-capitalista
e anti-mercado que não pode ser negligenciada.
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça,
ética e respeito pelas espiritualidades diversas
Irreprocháveis e irretocáveis os três primeiros
objetivos, embora o último, o de serem respeitadas
as “espiritualidades diversas”, se parece muito com
o chamado “relativismo cultural”, um conceito
que passou a infestar as universidades ocidentais e
as sociedades cristãs no período recente. Ou seja,
em nome do respeito ao direito dos povos serem
como eles são, pode-se acabar sendo convivente
com os piores atentados à dignidade humana que
se possa conceber. Refiro-me, concretamente, ao
tratamento da mulher e das jovens adolescentes em
determinadas sociedades africanas e asiáticas, nas
quais não apenas se pratica a ablação do clítoris como
se costuma entregá-las compulsoriamente, segundo
conveniências familiares, a homens bem mais velhos,
em casamentos arranjados (em alguns casos quando
elas ainda nem se tornaram adolescentes). Sem
mencionar a discriminação educacional e profissional,
de modo geral, que elimina as mulheres de uma série
de atividades produtivas nessas sociedades, caberia
lembrar que o que distingue o progresso humano
– ou civilizatório – é justamente o tratamento dado
à mulher.
Ora, falar em relativismo cultural representa,
em determinadas circunstâncias, preservar as piores
formas de opressão e de violação dos direitos
humanos, culturais e até religiosos (uma vez que
essas mesmas sociedades convivem com formas
condenáveis de intolerância religiosa), sem que se
possa avançar, por exemplo, a causa da universalidade
e da indivisibilidade desses mesmos direitos humanos
(individuais ou coletivos). De resto, o respeito às
“espiritualidades diversas” é bem mais praticado
nas sociedades ocidentais do que nessas sociedades
implicadas nas formas mencionadas de discriminação,
sem que se levante, contra elas, o mesmo princípio
do “relativismo cultural” (uma vez que o que as
caracteriza, justamente, é um absolutismo à toda
prova na afirmação de suas particularidades espirituais
e culturais). Em resumo, a defesa da ética pode não
combinar com o respeito de “espiritualidades” que
ofendem a dignidade humana.
2. Pela libertação do mundo do domínio das
multinacionais e do capital financeiro
Incompreensível, impraticável ou simplesmente
quimérico, para não dizer totalmente irracional, na sua
forma e na substância. O modo de produção capitalista,
que se disseminou em todo o mundo nos últimos cinco
séculos, aproximadamente, está justamente baseado
numa forma de organização social da produção que
tem nas empresas eventualmente convertidas em
grandes conglomerados o seu principal vetor de
inovação produtiva, de distribuição de produtos e
de propagação de hábitos de consumo que derivam
diretamente da atividades dessas instituições de
mercado. Ainda que as formas individuais de criação
de conhecimento e de tecnologia possam representar
uma parte significativa do engenho humano aplicado
produtivamente, ainda que as empresas cooperativas
que certamente são defendidas pelos militantes
do FSM – possam ser um tipo de empreendimento
socialmente recomendável, nenhuma pessoa de
espírito negaria o fato de que, hoje em dia, parte
significativa das inovações e dos sistemas produtivos se
dão num contexto dominado por grandes empresas,
as multinacionais aparentemente vilipendiadas pelos
militantes do FSM.
9
Não considerando o fato de que eles também
pertencem, atualmente, a um grande empreendimento
multinacional que, de certa forma, também
apresenta o seu lado financeiro (do contrário eles não
poderiam realizar seus vistosos encontros em capitais
“alternativas”) –, esses militantes parecem viver num
universo paralelo, que não tem nada a ver com o
mundo real. Para esse tipo de objetivo ser cumprido,
eu teria uma única recomendação a fazer: os
militantes do FSM precisariam parar, imediatamente,
de usar celulares, de se comunicar por internet, de
se locomover pelos meios habituais de transporte,
de ir ao cinema, de ver televisão, enfim, parar de
fazer a maior parte das coisas que eles fazem no seu
dia-a-dia, uma vez que, inevitavelmente, eles estão
“patrocinando” uma ou outra multinacional de algum
setor qualquer de atividade. Ou seja, eles deveriam se
retirar do mundo globalizado – no qual eles parecem
se inserir tão bem – e se refugiar como eremitas nas
montanhas do Afeganistão, onde a globalização
aparentemente ainda não penetrou (nem, aliás, o tal
de “capital financeiro”).
Como esse objetivo deve ter sido inculcado
nos jovens idealistas que freqüentam os foros da
antiglobalização por velhos militantes da causa
socialista, deve-se alertar esses jovens que eles estão
embarcando numa causa perdida antecipadamente.
O mundo não será “libertado” das vis multinacionais
porque, simplesmente, não existe força humana,
sequer coletiva, capaz de realizar tal tarefa impossível.
Sugiro simplesmente borrar completamente esse
objetivo da lista do FSM.
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens
comuns da humanidade e da natureza
Simples e elogiável, dito assim, de modo generoso
e não utilitarista; ou difícil de ser realizado na prática,
se olharmos mais de perto cada um desses conceitos.
Acesso universal” significa que todas as sociedades
possam ser colocadas num mesmo patamar de
consumo e de dispêndio de energia, algo difícil de
ser realizado efetivamente, em vista das diferentes
dotações de fatores naturais e dos diferentes níveis de
produtividade do trabalho humano. O “acesso” é o
resultado de uma certa capacitação técnica que pode
ser inerente ou importada, mas aqui isso depende de
meios adequados – no atendimento das necessidades
humanas, triviais e não triviais, o que as sociedades
conhecidas ainda não conseguiram assegurar de
modo igualitário mesmo depois de cinco mil anos
– ou mais – de civilização material. Infelizmente esse
acesso é desigual, a despeito mesmo da disseminação
quase universal das técnicas mais elementares de
cultivo, de saneamento básico e de produção de
alimentos: a privação ainda é um traço muito comum
em pelo menos metade da população do planeta
em pleno segundo milênio da chamada era comum.
Esse acesso desigual não resulta, como gostariam de
acreditar alguns simplistas do pensamento socialista,
Como publicar Artigos em Meridiano 47
O Boletim Meridiano 47 resulta das contribuições de professores, pesquisadores, estudantes de s-graduação
e profissionais ligados à área, cuja produção intelectual se destine a refletir acerca de temas relevantes para
a inserção internacional do Brasil. Os arquivos com artigos para o Boletim Meridiano 47 devem conter até
90 linhas (ou 3 laudas) digitadas em Word 2000 (ou compatível), espaço 1,5, tipo 12, com extensão em
torno de 5.500 caracteres. O artigo deve ser assinado, contendo o nome completo do autor, sua titulação
e filiação institucional. Os arquivos devem ser enviados para meridiano47@gmail.com indicando na linha
Assunto “Contribuição para Meridiano 47”.
10
da exploração colonial ou da dominação imperialista,
mas sim dos diferenciais de produtividade do trabalho
humano, o que depende basicamente de educação
ou, simplesmente, de capacitação técnica.
Acesso “sustentável” significa que os sistemas
produtivos nacionais não destruam os recursos naturais,
além da capacidade de reprodução ou de manejo do
meio ambiente, o que justamente não é assegurado
nas sociedades dotadas de baixa produtividade. Trata-
se de um circulo vicioso, no qual a pobreza amplia
a destruição dos recursos existentes. A elevação dos
padrões produtivos, em geral vinculada à inovação
trazida por grandes empresas (às quais se opõem os
militantes do FSM), pode contribuir para diminuir o
grau de “insustentabilidadedos processos produtivos
“rústicos”. Desse ponto de vista, os militantes do
FSM deveriam patrocinar ativamente essa elevação
a padrões sustentáveis de produção, por quaisquer
meios disponíveis, o que implicaria, em princípio, a
aprovação da “penetração” das multinacionais nos
sistemas produtivos nacionais, algo aparentemente
inaceitável aos seus olhos.
Finalmente, o conceito de “bens comuns” está
associado a dois elementos cada vez mais presentes em
nossas vidas: por um lado, os grandes espaços naturais
(ainda) não delimitados politicamente por soberanias
exclusivas, o que inclui oceanos, atmosfera e o meio
ambiente, de modo geral, mas também o chamado
estoque acumulado de conhecimento humano, o
que inclui as descobertas, a produção científica, os
saberes e as artes, que podem constituir patrimônio
comum da humanidade; por outro lado, aumentam
progressivamente os bens culturais colocados
voluntariamente à disposição do público, conhecidos
pela sigla “cc”, os creative commons, ou “coletivos”,
no lugar dos direitos proprietários, vinculados ao
copyright. Não existe, a priori, nenhuma objeção
técnica a que essa apropriação de “bens comuns” se
faça de modo mais amplo, mas no plano prático isso
depende de meios de “delivery” ou seja, internet,
computadores e logística, de modo geral –, que
sempre apresentam custos que devem ser assumidos
por alguém (a coletividade ou instituições privadas,
que não costumam trabalhar de modo gracioso).
Talvez os militantes do FSM pudesse começar
contribuindo para essa causa colocando “em comum”
as suas discussões e foros, hoje restritos apenas aos
que concordam com suas posições e políticas.
4. Pela democratização do conhecimento e da
informação
Este objetivo tem muito a ver com o anterior e,
como ele, depende da disseminação das informações
– o que depende, mais uma vez, de meios técnicos
de acesso – e da disponibilidade dos conhecimentos.
Os conhecimentos que resultam de descobertas e da
produção científica estão praticamente livremente
disponíveis, de modo direto e imediato, nas bases de
dados abertos colocados na internet. Existe, porém,
uma outra parte do conhecimento, com aplicações
diretas no sistema produtivo que é tecnologia ou
know-how –, que exige grandes investimentos para
sua elaboração, sendo geralmente protegida por
regimes proprietários (patentes e outros títulos).
Supõe-se, portanto, que por “democratização”
os militantes do FSM queiram dizer, de modo direto, o
maior acesso possível, não necessariamente de modo
gratuito, mas eventualmente por via do mercado, a
instituição humana – não inventada – mais eficiente
que se descobriu para alocar recursos e fatores
produtivos e para distribuir bens e serviços (inclusive
informação). Pode-se propor, mais uma vez, que
os militantes do FSM comecem democratizando a
informação e o conhecimento de que dispõem,
criando escolas para formação básica em disciplinas
elementares para aquela parte da humanidade hoje
excluída dos sistemas formais de ensino.
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da
igualdade de gênero e eliminação de todas as
formas de discriminação
Nada, absolutamente nada, a objetar, a não ser
o mesmo tipo de argumento implícito ao primeiro
objetivo, que consiste na proclamação praticamente
universal de direitos e garantias individuais, sem um
mínimo de perspectiva crítica quanto à diversidade
11
“estrutural” existente no mundo. As desigualdades
remanescentes ou melhor, existentes, de fato
entre os homens (entre os gêneros, sobretudo) e
as sociedades não são apenas o produto da vontade
dos homens e das sociedades, mas resultam de
causas estruturais muito lentas a se implantarem e
ainda mais lentas a se dissolverem. Esse objetivo está
implícito a um dos grandes objetivos do milênio, tal
como definido pela conferência da ONU para sua
redução até 2015, mas ele será, provavelmente, o de
mais difícil erradicação da face da Terra, em especial
naqueles territórios e sociedades pouco afetados
pelo processo de globalização, o mais poderoso
indutor de modernização econômica e social que
se conhece na história da humanidade. Pena que
os militantes e as organizações do FSM sejam tão
acidamente contrários a este processo, em nome da
preservação, justamente, da diversidade dos povos,
esquecendo, talvez, que essa “diversidade” é muitas
vezes produtora de discriminações que têm suas
raízes em costumes ancestrais que caberia extirpar,
em nome, por exemplo, da dignidade da mulher.
6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais,
humanos e culturais, especialmente os direitos à
alimentação, saúde, educação, habitação, emprego
e trabalho digno
Mais uma vez, nada a objetar, a não ser,
igualmente, o fato de que esses “direitos” têm de
ser “produzidos” de alguma forma, o que coloca
novamente na agenda dos militantes do FSM a difícil
questão de nos explicar a origem da “cornucópia”
fantástica que vai “garantir” esses bens de modo
semi-automático. Em geral há uma tendência, nesses
meios, a considerar que basta determinar que os
Estados sejam organizados de forma a “prover”
o acesso de toda a população a esses direitos
básicos, independentemente do seu modo efetivo
de provimento, para que isso ocorra, como que por
fiat divino. É o que Marx e Engels chamavam de
“socialismo utópico”.
Trata-se de uma carência lamentável na “economia
política” desses movimentos, uma vez que eles estão
sempre invocando o slogan mágico de que “um outro
mundo é possível”, sem jamais, porém, avançar os
rudimentos, que seja, desse mundo alternativo. Dele
não se conhecem seus contornos arquitetônicos,
sua localização no tempo ou no espaço e, mais
importante, suas engrenagens essenciais, ou seja,
seu modo de funcionamento interno. A não ser que
ele funcione por moto perpétuo, como no velho
sonho dos reformistas utópicos, não existe nenhuma
maneira factível (conhecida dos economistas, em todo
caso) que seja capaz de assegurar o livre provimento
desses bens de maneira ampla e indiscriminada, a
não ser distribuindo os custos e as penas do processo
produtivo por toda a sociedade. Como o Estado,
em si, não produz absolutamente nada – a não ser,
obviamente, déficit público – e como tudo o que ele
recolhe sob forma de recursos teve de ser previamente
produzido pelos agentes econômicos (que são os
trabalhadores e seus patrões), supõe-se que os
militantes do FSM tenham pensado em modos
alternativos de “dar” ao Estado o poder mágico de
dispensar favores sem custo para a sociedade.
Curiosamente, pelo que se conhece da experiência
histórica – dos últimos 150 anos, pelo menos –, as
sociedades menos aptas a prover seus cidadãos de
quantidades ilimitadas desses bens materiais (e alguns
“espirituais”, como a cultura ou a liberdade) são
justamente aquelas mais dominadas pela presença
econômica do Estado enquanto agente ativo do
processo produtivo. Ao contrário, as sociedades
mais produtivas e as que desfrutam de maior
liberdade, também foram e são aquelas cujos
princípios organizadores dão menos ênfase ao papel
do Estado e maior à própria sociedade civil, no seu
sentido estritamente produtivo. A objeção de que as
sociedades mais avançadas do mundo, no plano do
IDH por exemplo, são as escandinavas ou nórdicas,
nas quais o Estado desempenha um preeminente
papel redistributivo, não pode ser considerada como
uma denegação dessa tese, uma vez que o direito
à propriedade privada, em sua expressão plena,
e a capacidade de iniciativa individual estão nelas
totalmente asseguradas. O próprio Estado está nelas
integralmente controlado pelas forças vivas da nação,
12
como sabem reconhecer todos os que conhecem o
modo de funcionamento das sociedades nórdicas.
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada
na soberania, na autodeterminação e nos direitos
dos povos
No plano jurídico, tampouco haveria algo
a objetar a esse objetivo inatacável do ponto de
vista democrático, praticamente kantiano em sua
inspiração. Ocorre, porém, que a ordem mundial
não está baseada na representação dos povos, mas
sim na organização dos Estados, e aqui começa todo
o problema. Como sabem aqueles que leram a
Carta da ONU, ela começa invocando no preâmbulo
os “povos das Nações Unidas” que são aqueles
que derrotaram as “potências do mal”, no caso, a
Alemanha e o Japão – mas todos os seus enunciados
ulteriores referem-se, o a “povos”, mas aos “Estados
membros”. O Estado nacional é a forma política até
aqui insuperável que a humanidade encontrou para
organizar esse arremedo de “ordem mundial” que
temos hoje.
Em outros termos, a soberania que temos hoje
é a westfaliana, baseada no velho princípio da não-
subordinação de um Estado a um outro (em teoria,
pelo menos). Da mesma forma, a autodeterminação
tem mais a ver com o direito dos governos a
decidirem em toda legitimidade a ordem interna em
suas respectivas jurisdições do que com os direitos
dos povos em exercer, diretamente esse direito, do
contrário a ONU não poderia aceitar em seu seio
governos não-democráticos (ou ditaduras execráveis),
o que sabemos que tampouco é o caso. Os “direitos
dos povos”, por fim, poderiam estar consubstanciados
na Declaração de 1948, mas ela se refere aos direitos
do homem, tão facilmente negados em certos regimes
que integram, de pleno direito, a ordem mundial
regida pela ONU.
A soberania nacional tem sido justamente
invocada como um biombo muito cômodo para a
violação dos mais elementares “direitos dos povos”, a
começar pela segurança e pela liberdade. Os militantes
do FSM dariam um grande passo adiante, na defesa
dos “direitos dos povos”, se eles se decidissem a
lutar, justamente, pelo fim da soberania absoluta
dos Estados como próxima fronteira na construção
do direito internacional, colocando como princípios
organizadores dessa “ordem mundial dos povos” o
respeito à democracia política e a defesa absoluta dos
direitos do homem (e do cidadão) como critérios de
“inclusividade” na nova ordem onusiana. Movimentos
que não pretendem representar os Estados, mas
os cidadãos, precisamente, deveriam pensar nesse
tipo de progresso conceitual no terreno do direito
internacional. (Eles não precisam me agradecer pela
idéia, basta usar, sem qualquer tipo de copyright.)
8. Pela construção de uma economia centrada nos
povos e na sustentabilidade
Pelo que eu conheço dos princípios econômicos
elementares, toda e qualquer economia é baseada
nos povos e na sustentabilidade, do contrário ela já
teria desaparecido da face da Terra. Em outros termos,
esse objetivo geral não quer dizer absolutamente
nada, a não ser que os velhos “ideólogos” do FSM
– não os seus jovens idealistas, entre os quais podem
estar alguns que estudaram o seu manual de
economia, o famoso text-book Economics 101 –,
queiram significar com isso que a economia não pode
se sustentar nos mercados, nas trocas mercantis e
na busca desenfreada de lucro, o que é muito mais
provável, se eu conheço a fauna do FSM.
Não é segredo para ninguém que as organizações
que militam no FSM abrigam um número considerável
preponderante mesmo, eu diria de pessoas
que rejeitam, quase como um anátema, a peste
em pessoa, o capitalismo, os mercados, o lucro,
enfim, tudo aquilo que se assemelhe, de perto ou de
longe, a formas de apropriação privada dos meios de
produção e a formas mercantis de distribuição de bens
e serviços. Seu ideal seria um mundo que funcionaria
sem mercados, sem dinheiro, sem capitalismo e
sobretudo sem capitalistas, o que seria o máximo de
genialidade possível. Infelizmente para os órfãos do
socialismo estatal e para os viúvos do planejamento
centralizado, o embate entre modos de produção já
13
se deu nos bastidores da história e, pelo que eu sei, o
capital venceu. Tudo isso pode o ser muito agradável
para os idealistas de sempre (e para alguns rancorosos
irredentistas), mas a história tem dessas coisas que, de
vez em quando, resultam no soterramento definitivo
de paquidermes pouco adaptados às novas condições
ambientais. Pode-se até chorar uma lágrima pelo
desaparecimento desses monstros simpáticos do
passado, mas não se pode pretender sua sobrevivência
em contradição com os novos dados da história (ou
até da “geologia” econômica).
Quero crer que os que redigiram este objetivo
geral estejam entre a dor pungente de terem perdido
um ente querido e a confusão mental de não terem
absolutamente nada para colocar em seu lugar, do
contrário não teriam formulado um objetivo tão
“sem nem cabeça” como esse. Eu proponho
simplesmente que os militantes do FSM retirem
esse objetivo da sua lista, refaçam o dever de casa e
voltem depois com algo melhor, isto é, algum objetivo
que tenha consistência econômica ou pelo menos
sustentabilidade lógica.
9. Pela construção de estruturas políticas realmente
democráticas e instituições com a participação da
população nas decisões e controle dos negócios e
recursos públicos.”
Nenhuma objeção, no terreno dos princípios.
Ocorre porém uma pequena dificuldade que esse
princípio, plenamente assegurado em polities
relativamente diminutas, como aquelas que se
reuniam na ágora grega dos tempos de Péricles – ou,
ainda hoje, em algumas aldeias de cantões recuados
da Suíça moderna –, é um pouco mais complicado
de ser assegurado em alguns países de dimensão
continental: experimente reunir a população da China,
ou que seja da cidade do México, para uma discussão
“democrática” sobre o uso dos recursos públicos.
Complicado, não é mesmo?
Esse democratismo de base é muito fácil de
ser proclamado, mas muito complicado de ser
implementado nos modernos regimes democráticos,
que organizam povos disseminados por um vasto
território. Foi, aliás, por isso mesmo que se inventou
a instituição da representação política, plenamente
assegurada na maior parte das democracias modernas.
Justamente, as organizações que militam no FSM são
as menos propensas a pregar esse tipo de controle
democrático sobre as decisões e quanto ao uso dos
recursos, uma vez que, elas mesmas, raramente
se submetem ao princípio que pregam: estruturas
democráticas pressupõem voto aberto, respeito aos
direitos da minoria e equilíbrio de poderes, com
controle independente das decisões adotadas e
escrutínio externo quanto ao uso de recursos (tribunais
constitucionais e cortes de contas, segundo as regras
dos checks and balances). No Brasil, sobretudo,
onde grande parte das ONGs vivem de recursos
públicos segundo pesquisas confiáveis –, a chamada
accountability dos movimentos ditos “sociais” é algo
ainda mais difícil de ser assegurado.
Proponho, então, que os militantes do FSM
refinem esse último conceito, consultem o seu
Norberto Bobbio em algum fim de semana mais
folgado depois do próximo encontro, talvez e
voltem a se reunir em Parma para redigir um novo
objetivo geral que seja menos “democratista” em seus
princípios básicos e mais realista em suas aplicações
práticas.
De modo geral, comparando-se o mínimo de
estruturação conceitual que se registra hoje em
alguns dos textos dos militantes do FSM com a grande
confusão mental que reinava em seus primeiros
encontros da fase de Porto Alegre –, percebe-se que
os chamados altermundialistas (que eu prefiro chamar
de antiglobalizadores) estão fazendo um grande
esforço para afinar as suas idéias, tanto quanto se
percebe, e tentam, honestamente, se ouso dizer,
fazê-las encontrar-se com a realidade do mundo.
Mas, eles ainda estão bem longe da “realidade efetiva
das coisas”, como diria um outro filósofo italiano
(totalmente globalizado, cabe registrar).
Atualmente, em todo caso, em lugar dos
jamborees anuais, nos quais o maior esforço de
transpiração consistia em xingar o imperialismo, em
lugar de uma saudável inspiração mental, nota-se o
sincero desejo de oferecer algumas respostas mais
14
ou menos estruturadas aos problemas complexos
com que se defrontam os povos (que eles dizem
representar). Mais algum esforço e um pouco mais de
organização porque globalizados eles já estão, talvez
até mais do que os seus odiados “primos” capitalistas
de Davos –, os altermundialistas justificarão finalmente
o nome pelo qual pretendem ser chamados: eles ainda
precisam oferecer uma forma alternativa, mas factível,
de organização social da produção que não seja
inerentemente injusta e desigual como atualmente
o é a capitalista. Eu pessoalmente desconfio que,
antes disso, muitos desses militantes se converterão
em sisudos capitalistas alternativos, mas isso faz parte
do processo.
Em todo caso, eu desejo a todos um bom
encontro em Nairobi. Continuem sonhando!
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15
A intenção deste artigo é ressaltar o enigma do
modelo democrático na Venezuela; compreender
o dilema da emergência da oposição venezuelana;
decifrar parcialmente a atuação internacional do
governo Hugo Chavez por meio de sua política
exterior; e apontar para a sobreposição de dois
projetos, um nacional e outro pessoal, de condução
do futuro venezuelano que se aprofunda com a
continuidade de Chavez no poder.
Balanço das Eleições: modelo democrático e
oposição
O balanço das eleições de 3 de dezembro de
2006 na Venezuela apresenta dois encaminhamentos
marcantes para a história recente do país: por um lado,
o aprofundamento de um projeto governamental com
base nos ideais (ideologia, simbologia e práticas)
revolucionários de Simon Bolívar que desafia os
cânones democráticos e por outro, a emergência
de uma nova (velha) oposição que se “atreveu” a
enfrentar a supremacia política de Chavez.
Como esperado, o processo eleitoral venezuelano
foi criticado pelo excessivo intervencionismo estatal
em prol da reeleição de Chavez, o que não deixou
de garantir que as bases para a construção de
um movimento político plural fossem lançadas. A
vitória nas urnas foi indubitável: dos 27 milhões
de venezuelanos, 16 milhões estavam registrados
para votar e Chávez ganhou as eleições com 7,2
milhões de votos, contra os 4,2 milhões do social
democrata Manuel Rosales. Contudo, os 63% dos
votos validos não contabilizaram os tão esperados 10
milhões de votantes. Persiste, de fato, uma parcela
considerável da população venezuelana (quase
metade) que não está disposta a aceitar os avanços
de um projeto tido como autoritário, autocrático e
militarista. A classe média representa cerca de 16%
da população, mas não parece ter capacidade ou
interesse em se mobilizar contra o governo. Outro
fato relevante é a emergência de uma burguesia
bolivariana, uma nova classe média que se aproveita
do revigoramento do modelo de Estado petrolífero
(petrolstate) e que, se supõe, criará um novo vinculo
entre governo e sociedade, com base em lealdades
assumidas, ao invés da submissão estabelecida pelas
relações patrimonialistas e clientelistas desde o pacto
de Punto Fijo em 1958.
Em suma, está claro que a Venezuela permanece
política e ideologicamente fragmentada em porções
desiguais e que a luta em ambos os lados não é
em favor ou contra uma pessoa em particular, mas
por ideologias e sistemas de vidas distintos. Logo,
desenham-se duas conclusões parciais. Primeiro, que a
própria natureza do regime democrático venezuelano
é atípico e controverso, sobretudo, no que se refere a
concebê-lo segundo osnones norte-americanos ou
europeus. Segundo, que a oposição encara um dilema
entre restauração do poder, perpetuando o modelo
tradicionalista e renovação do poder, produzindo a
* Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR e Mestre em História das Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (thiago.gehre@gmail.com).
Elç  Vnzul: Chv   Fi d Aian
iag Gr Gã*
“la América es ingobernable, el que sirve una revolución ara el mar, este país caerá sin
remedio en manos de la multitud desenfrenada para después pasar a tiranuelos casi
imperceptibles de todos los colores e razas...”
Gabriel Garcia Marquez, citando Simon Bolivar
16
própria legitimidade democrática do governo recém
eleito.
A oposição, centralizada na figura de Manuel
Rosales, apresentou um conjunto de propostas de
reformas constitucionais, como o fim da “doble volta”
na eleição presidencial, redução do período do mandato
para quatro anos, garantia do respeito à propriedade
privada, garantia de liberdades de ensino, expressão,
culto, estabelecimento de normas para garantir a
transparência na administração pública e uma proposta
de redistribuição da riqueza petroleira diretamente
ao povo venezuelano. Todas elas estão direcionadas
para atrair a parcela da população insatisfeita com
as políticas pontuais de Chavez, os indecisos que se
abstiveram no pleito do dia 3 de dezembro ou aqueles
que ideologicamente não se identificam com o projeto
chavista. Ainda que de difícil consecução, tais medidas
representam o despertar da oposição em um ambiente
esterilizado politicamente pelas reconduções ao poder
de Chavez, desde 1998. Como lembra Teodoro Petkoff,
parece ter chegado o momento“..de comenzar a
construir uma nueva mayoria”.
Tal movimentação parece confundir os analistas
conjunturais, que apressados, determinam o
ressurgimento de uma vigorosa oposição, o ocaso
do regime chavista e a transição para um modelo
democrático liberal. Entretanto, uma análise mais
parcimoniosa leva a repensar a própria noção de
democracia na América Latina, com base em sua
história turbulenta. Ao mesmo tempo, trata-se
de compreender que o modelo venezuelano foi
construído por um conjunto de práticas que escapam
as descrições de estudiosos contemporâneos e
de pensadores clássicos. Tal confusão conceitual,
aliado ao histórico militarista latino-americano e
venezuelano, projeta um quadro de identidade do
governo Chavez com padrões de regimes autoritários
e até fascistas, o que rendeu, por exemplo, um
pedido formal do senado colombiano para que a
OEA, por meio da Carta Democrática Interamericana,
sancionasse a Venezuela. Faz-se necessário, contudo,
uma análise profunda das premissas teóricas do
modelo democrático venezuelano em sua prática,
para solução deste enigma.
Além disso, é possível inferir sobre a existência de
um limite gnosiológico dos grupos que fazem oposição
ao governo. Todos eles continuam vinculando suas
agendas políticas à cultura tradicionalista herdada
de Punto Fijo, o que naturalmente restringe o pensar
diferente e o propor algo realmente novo para a
política nacional. É inegável a turbulência política por
que vem passando o país desde o início da década de
1990, desde as recentes tentativas de golpe (1989,
1992, 2002), as insurgências populares (Caracazo de
1989, Paro petrolero de 2003, greve geral em 2004),
até o impeachment e destituição de um presidente
(Carlos Andrés Peres em 1993); como pano de fundo
a deterioração dos termos de troca petrolíferos,
a corrupção generalizada em diferentes níveis de
governo e um quadro constante de crise econômica
e social, produziram um rechaço nacional contra o
neoliberalismo e contra o grupo político-partidário
vigente, que abriu espaço para a emergência de Hugo
Chavez. Para Petkof, os partidos que governaram
viraram máquinas eleitorais egocêntricas e não
mais perceberam o horrível empobrecimento da
população.
Assim, instala-se um vórtice paradoxal no qual
mergulha a oposição venezuelana no século 21,
preenchido por idéias de diferentes densidades: a)
continuidade do tradicionalismo político dos projetos
da Ação Democrática e do COPEI, b) ânsia por retomar
o poder e estirpar o movimento bolivariano da história
do país; c) domínio sobre as bases econômicas e
produtivas do petróleo; d) assumir o papel de oposição
em um país em que as regras do jogo democrático
não são muito transparentes; e) repensar as bases
políticas e ideológicas oposicionistas para fazer frente
ao governo Chavez. Assim se caracteriza o “dilema
da oposição” na Venezuela: reerguer a oposição
venezuelana para modificar o status quo significa
também legitimar o próprio governo instalado,
fornecendo subsídios ideológicos e práticos para a
escaramuça democrática de Chavez.
A formação de um projeto nacional
Incólume aos gritos da oposição e seguro de
seu sucesso nas urnas, Chavez avança neste segundo
mandato com o objetivo de transformar de fato a
realidade venezuelana e para tanto definiu um plano
17
nacional de desenvolvimento, cuja missão principal
seria a de superar o caráter disfuncional do estado
venezuelano e sua vocação micro-regionalista.
Para tanto, os objetivos traçados se referem
à educação (com a expectativa de politização e
ideologização do ensino), redução da pobreza (com
um conjunto de medidas assistencialistas), a chamada
sembra petrolera (controle total sobre o setor do
petróleo e ampliação dos investimentos), política
externa ativa (globalização e formação de parcerias
estratégicas); fortalecimento energético (interiorização
energética e ampliação da capacidade instalada de
termoelétricas e hidroelétricas); desenvolvimento
econômico e maior controle sobre a economia (fim
da autonomia do Banco Central).
A formação do projeto nacional, além de confiar
sobremaneira no setor petrolífero, avança sobre as
nacionalizações de setores tidos como estratégicos.
Assim, o projeto neo-socialista de Chávez prevê a
nacionalização de empresas que foram privatizadas
no início da última década do século 20 e de outras
que, sendo privadas em sua origem, controlam setores
que Chávez consideraestratégicos” para a soberania
e a segurança do país, como a principal companhia
de telecomunicações, a Compañia Anônima Nacional
Teléfonos de Venezuela (CANTV), que tem a americana
Verizon e a espanhola Telefônica como acionistas, e a
empresa Electricidad de Caracas, que é propriedade
de uma corporação baseada na Virginia (Estados
Unidos). Ademais, a intenção do governo venezuelano
é garantir a nacionalização dos projetos de petróleo
administrados por empresas estrangeiras na região do
rio Orinoco, onde está localizada a principal reserva
petroleira venezuelana, até então administrados
pelas empresas British Petroleum (BP), Exxon Mobil,
Chevron, Conoco Philips, Total e Statoil.
Ademais, o governo vem legitimando sua
atuação com base em índices que mostram a melhoria
da condição geral da sociedade. Segundo informe da
CEPAL sobre o panorama social da América Latina em
2006, de 39,8% a 38,5% da população da América
Latina está em situação de pobreza, enquanto entre
15,4% e 14,7% em situação de extrema pobreza
(caracterizando-se como indigência). Além disso,
alerta-se para o fato de que a região demorou 25
anos para reduzir a incidência da pobreza. Dentro
deste quadro geral, a Venezuela de Hugo Chavez
vem se destacando, uma vez que conseguiu reduzir
o quadro de pobreza e indigência de patamares de
49,4% e 21,7%, respectivamente, em 1999, para
37,1% e 15,9% em 2005. E pelas projeções, os índices
deverão melhorar para o ano de 2007.
Sem dúvida, um dos pilares do projeto nacional
do governo Chavez se traduz em sua política externa.
No plano da política internacional, destaque para
a globalização da política externa venezuelana
e promoção de uma nova ordem internacional.
Primeiro, define como prioridade a conformação da
ALBA, mas não descarta seu movimento estratégico
de adesão ao Mercosul, ressaltando a importância
de se construir uma visão estratégica comum sul-
americana. Por um lado, intensifica os contatos com
os regimes de Fidel e Morales, por outro ratifica o
compromisso com o Mercosul, para que este seja
a ponte para a afirmação de uma confederação
de países da América do Sul. Segundo, utiliza a
diplomacia presidencial, e sua chancelaria, com vistas
a consolidar e diversificar as relações internacionais
do país, robustecendo a cooperação sul-sul e
fortalecendo a posição venezuelana na economia
internacional. Terceiro, num espectro mais ideológico,
luta para quebrar a dependência aos organismos
financeiros internacionais e fortalecer a soberania
nacional, produzindo com isso uma integração
mais justa e eqüitativa em uma ordem internacional
multipolar.
O desenho de um projeto pessoal
Não obstante ter forjado um projeto nacional
com objetivos determinantes para o desenvolvimento
do país, é cada vez mais claro o personalismo que o
mandatário venezuelano vem imprimindo à prática
política. Neste caso, o projeto nacional está sendo
eclipsado por um projeto pessoal de continuidade e
perpetuação no poder.
Para tanto, Chávez deverá promover uma nova
reforma para que o chefe de Estado possa exercer
18
mais que dois mandatos consecutivos, como dita a
atual lei venezuelana. Como um comunicador nato,
tem utilizado todos os meios a seu dispor como radio,
televisão e internet, além de encontros políticos e
reuniões com autoridades estrangeiras para exortar
sua mensagem libertadora, com base na herança
de Simon Bolívar. Apropriou-se dos instrumentos
democráticos, como o referendo e a constituição,
para legitimação de seu projeto pessoal de poder.
Por exemplo, obteve da Assembléia Nacional da
Venezuela a aprovação da chamada “Lei Habilitante”,
que outorgará poderes especiais com os quais poderá
ditar leis por decreto durante 18 meses.
Por um lado, valoriza em seus discursos as
instituições nacionais, por outro as ignora, estabelecendo
um contato direto entre o governante e as massas e
fazendo dos venezuelanos não mais unidades de
um sistema clientelista, que criava lealdades em
uma estrutura societária piramidal, de baixo para
cima, mas transformando os chavistas em “filhos da
pátria” que se vinculam diretamente ao presidente,
em um sistema paternalista, devendo-lhe lealdade e
vinculando-os por laços imaginados. Cria-se um culto
à personalidade, característica histórica na América
Latina, com Juan Domingo Perón e Fidel Castro, que
só fortalece seu projeto pessoal de poder.
Conclusão
Ariadne na mitologia grega é conhecida como
senhora dos labirintos personagem que ajudou
Teseu a matar o Minotauro no labirinto em Creta
e sair de com vida. O fio de Ariadne representa,
dentre outras coisas, o caminho à consciência, à
segurança, à verdade. Com a reeleição de Hugo
Chavez na Venezuela, percebe-se que um novo estado
de consciência coletiva começa a tomar conta de
uma população cujo mandatário apresenta-se como
figura representativa de um projeto revolucionário.
Bolívar, grande inspirador de Chavez, em seus últimos
momentos de vida visionava o dramático futuro da
nação que forjara a fogo e sangue, talvez enxergando
o que o aguardava, e a todos os venezuelanos, no
fim de seu labirinto.
Os labirintos tanto podem ser locais de esperanças
e sonhos de uma vida, como portais que aprisionam
o tempo e facilitam estados alterados de consciência.
Desde 1999, Hugo Chaves está engajado em uma
luta constante pela persuasão das massas e diversos
grupos sociais: de convencer pelo espírito (ideologia
e nacionalismo) e agradar pelo coração (políticas
assistencialistas). Em seu labirinto, o desafio a ser
vencido é o de romper com o tempo histórico
venezuelano tradicional, que tem obstaculizado o
influxo modernizador tanto de dentro para fora como
de fora para dentro. É a questão de evitar com que o
projeto “socialismo do século 21” gere a obsolescência
do estado nacional diante de idéias planificadoras e
centralizadoras como as de seu governo. Em suma,
o poder em si mesmo parece estar substituindo o
romantismo dos ideais bolivarianos como ideologia
que sustenta a retórica chavista. Em um país em que
governo e oposição não dialogam, o autoritarismo
parece ser o caminho mais curto para governar. Cabe
ao coronel não se perder em seu próprio labirinto e
com ele levar uma nação inteira!
19
Livro-chave para a compreensão da economia
internacional – e em particular do sistema financeiro
internacional – a obra compõe-se de uma coletânea
organizada pelo professor François Chesnais. Ela
seguimento ao pensamento do autor, cujas obras
lançadas no Brasil foram: A mundialização financeira
– gênese, custos e riscos, pela Xamã, e Tobin or not
Tobin? Uma taxa internacional sobre o capital, pela
Universidade Estadual de São Paulo.
O livro conta com o prefácio do professor
Luiz Gonzaga Belluzzo que expõe a face real da
globalização neoliberal: uma intrincada rede de
interesses construída pelos mercados financeiros
internacionais, sob a necessidade voraz de reprodução
do capital que gera ilusões de riqueza. Outrossim,
ele expõe o contraponto na economia brasileira, em
decorrência das remessas de lucros por empresas
de serviços públicos como telefonia, eletricidade,
etc., as quais agora necessitam de investimentos
governamentais, ou seja, dos contribuintes para
atender as chamadas áreas “não rentáveis”.
Chesnais, na versão brasileira da obra, escreveu
uma apresentação específica, na qual argumenta que
o Brasil faz parte do grupo de países que apresenta
um aumento de suas reservas cambiais o para
o pagamento da dívida externa, mas para seguir o
conjunto de elementos que desenham concretamente
a capacidade efetiva do capital para assegurar sua
reprodução.
Doze autores estudam as conseqüências
impostas pelos poderes do mercado financeiro e
dissecam as relações entre ele e a hegemonia dos
Estados Unidos, tanto no campo militar, quanto no
política, no mercado de câmbio etc., bem como os
riscos da combinação entre a dependência externa da
superpotência e uma doutrina de segurança.
No primeiro capítulo, o próprio Chesnais discorre
sobre a mundialização do mercado financeiro e do
capital portador de juros, bem como a natureza e os
efeitos de sua interpenetração no capital industrial.
Ele disserta sobre as etapas da acumulação financeira
e o ritmo acelerado sobre o desempenho da economia
mundial e questiona o que ele mesmo chama de
“insaciabilidade” das finanças. Mais adiante, Brunhoff,
conectada com o texto anterior, analisa as causas da
instabilidade monetária internacional que se manifesta
com as flutuações nos mercados de câmbio.
Duménil e Lévy estudam a configuração das
relações econômicas e financeiras internacionais com
a hegemonia americana. Dela, os autores comparam
as taxas de lucros e o lucro retido das empresas e suas
respectivas taxas de investimento entre os Estados
Unidos e a Europa. Sauviat concentra-se nos fundos
de pensão e nos fundos coletivos (mutual funds)
americanos e discorre sobre como esses investimentos
que, por sua natureza deveriam ser socialmente
responsáveis, são ambíguos nos direitos de seus
cotistas, ou seja, passam para o mercado financeiro
* Resenha de CHESNAIS, François (Org.). A nança mundializada: raízes sociais e políticas, conguração, conseqüências.
São Paulo: Boitempo, 2005, 255p. ISBN: 85 7559 069 3.
** Mestre em economia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRR e em Administração pela Universidade
de Brasília – UnB e Professor do Departamento de Economia e Administração da Universidade Católica de Brasília – UCB
(ricardos@unb.br).
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20
Meridiano 47
Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais
ISSN 1518-1219
Editor: Antônio Carlos Lessa
Editor-adjunto: Virgílio Arraes
Editor-assistente: Rogério de Souza Farias
Conselho Editorial:
Amado Luiz Cervo, Antônio Jorge Ramalho da Rocha, Argemiro Procópio Filho,
Estevão R. Martins, Francisco Doratioto, José Flávio S. Saraiva, João Paulo Peixoto, Tânia Pechir Manzur.
Projeto Gráfico: Samuel Tabosa de Castro – samuel.tabosa@gmail.com
os recursos e a responsabilidade das aposentadorias
dos trabalhadores.
Plihon, no capitulo seguinte, debruça-se
sobre as conseqüências das empresas francesas
em aceitar investidores institucionais, ao mostrar
que a estagnação econômica e a elevada taxa de
desemprego durante os anos de 2002 e 2003 são
vulnerabilidades abertas por investidores do mercado
financeiro tanto na França como nos demais países
industrializados.
Jeffers, por sua vez, apresenta a argumentação
da disputa político-econômica mundial, sendo que
a Europa representa também uma “alternativa” e
um ponto de apoio para o capital financeiro nos
investimentos na própria região, na América Latina e
na Europa Oriental. Uma disputa não de modelo, mas
apenas de concorrência entre as praças financeiras
de Frankfurt, Paris e Londres. Não se pode esquecer
de que a mundialização financeira teve inicio com o
eurodólar emanado da City londrina e posteriormente
seguindo a trajetória das demais praças financeiras
da Europa continental.
Em seguida, o estudo sobre como a
liberalização financeira em 1990 no Japão resultou na
amplitude do colapso do preço dos ativos bursáteis
e imobiliários. Além do mais, a demora do governo
em intervir conduziu a um acúmulo particularmente
elevado de dívida e de crédito irrecuperáveis por
bancos e sociedades seguradoras do país, a qual não
deve ser confundida com a crise mais profunda do
modelo japonês, atingindo em cheio por problemas
estruturais como coloca Rubinstein.
Em sua oitava parte, mostra-se como o capital
financeiro é insaciável em sua busca de super-lucros
e de vantagens na concorrência com outros setores
e proporciona-se a relação estreita entre ele e o
capital industrial. Camara e Salama propõem uma
análise diferenciada da inserção dos países em
desenvolvimento na globalização, assim como dos
efeitos contraditórios ou “paradoxais” dessa inserção,
principalmente por meio do investimento direto
estrangeiro (IDE).
No último capítulo, Mampey e Serfati examinam
as perspectivas sombrias do entrelaçamento entre
mercado financeiro e o complexo militar-industrial
nos Estados Unidos, ao ofertar ainda a evolução das
relações entre as tecnologias militares e as civis – em
particular, as de informação e de comunicação – e
o comprometimento entre as instituições políticas
sobretudo as que compõem o Executivo e os
grupos financeiros do complexo industrial-militar,
particularmente depois da eleição de George W.
Bush e do atentado terrorista de 11 de Setembro
de 2001.
21
Os autores se perguntam se os mercados
financeiros não estariam em vias de colocar a
inevitabilidade de novas guerras e de novas operações
militares em seu horizonte de cálculos. Chamam eles
a atenção para a seguinte reflexão: se os rendimentos
do mercado financeiro não estariam fundados sobre
a frágil base da especulação, mas sim sobre o cálculo
de que somente a supremacia militar pode permitir
aos Estados Unidos se protegerem dos contragolpes
sociais e políticos que um modo de produção e de
consumo “insustentável” gera para o planeta.
Por fim, a leitura do livro é uma tarefa encorajadora
e prazerosa, pois se trata de uma coletânea com a
qual se depara com uma quantidade de informações
e análises instigantes, o que faz que a reflexão sobre
o capital financeiro constitua-se em uma condição
essencial para quem deseja entender a economia
internacional do alvorecer do século XXI. Para o
organizador do presente trabalho, não há respostas
fáceis, nem respostas únicas válidas para entender a
finança mundializada.
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