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Espaço Plural • Ano IX • Nº 19 • 2º Semestre 2008 • ( ) • ISSN 1518-4196
Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidadesDossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidadesDossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
IntroduçãoIntrodução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
Quando se pensa em abordar a relação entre Brasil e Alemanha do ponto
de vista cultural, social e identitário, é impossível não pensar também no fator
lingüístico. A língua é um fato histórico que transita – embora às vezes quase
imperceptivelmente – por várias outras áreas, sendo relevante para estudos da
antropologia, da sociologia, da psicologia e da história em si.
Muitas pessoas aprendem o idioma alemão como língua estrangeira no
Brasil, por variados motivos, tanto que o alemão-padrão ocupa hoje uma posição
entre as cinco línguas estrangeiras mais aprendidas no país.1 Sem dúvida, esse é
um dado extremamente relevante para a relação atual entre o Brasil e a Alemanha
– sobretudo no que concerne as relações profissionais, comerciais e econômicas.
Entretanto, grande parte desse interesse no idioma alemão na atualidade
provém de uma ligação estreita já existente e consolidada entre os dois países há
muitos anos. Devido à grande imigração de língua alemã para o Brasil ao longo dos
séculos XIX e XX e ao grande número de descendentes de alemães, austríacos, suíços
e etc no país, o interesse pela língua e cultura germanófona é bastante grande.
Por esse motivo, ao tratar aqui da língua alemã, não pretendemos discutir a
situação atual do alemão-padrão como língua estrangeira no Brasil. Muito mais
interessa-nos abordar o processo histórico da língua alemã diária falada em ambi-
entes naturais em solo brasileiro ao longo desses anos – processo este que ainda
não acabou, uma vez que esse “alemão” ainda pode ser ouvido no dia-a-dia de
muitas localidades no sul do Brasil.
Todo o caso de emigração/imigração engloba uma integração em diferentes
níveis, e os imigrantes têm que passar por um contínuo processo de adaptação
social e lingüística para se adequarem ao novo meio. Nesse contexto, porém, os
imigrantes geralmente também desejam manter suas tradições e sua língua de
origem para que sua identidade seja mantida (não necessariamente de forma cons-
ciente; na maioria das vezes isso ocorre de forma natural e impensada. A integração
é necessária, desejada e inevitável; contudo, a ligação com a origem e o passado
também o é).2
O hunsrückisch no Brasil:
a língua como fator histórico da relação
entre Brasil e Alemanha
Karen Pupp Spinassé*
Resumo: Resumo:
Resumo: Resumo:
Resumo: Devido à grande imigração de
língua alemã para o Brasil, a relação entre
Brasil e Alemanha apresenta aspectos pe-
culiares muito interessantes. Do ponto de
vista lingüístico, a existência ainda hoje de
variedades de base germânica no dia-a-
dia de inúmeras comunidades no sul do
Brasil é um dado extremamente valioso,
que muito mostra dessa relação. Preten-
demos, com este artigo, apresentar alguns
aspectos do hunsrückisch – uma dessas
línguas de imigração –, caracterizando-a
como um fato histórico, uma herança cul-
tural dos imigrantes de língua alemã.
PP
PP
Palavras-chave: alavras-chave:
alavras-chave: alavras-chave:
alavras-chave: Contato lingüístico,
mudança lingüística, hunsrückisch
Abstract: Abstract:
Abstract: Abstract:
Abstract: Because of the great
immigration of German speakers to Brazil,
the relationship between Brazil and
Germany shows peculiar and very
interesting aspects. From the linguistic
point of view, the remnants of German
linguistic influences still present today in
many communities in south Brazil
provides extremely valuable data. In this
paper we intend to present some aspects
of the hunsrückisch – one of these
immigration languages – characterizing it
as a historical fact, a cultural heritage of
German speaking immigrants.
Keywords: Keywords:
Keywords: Keywords:
Keywords: Language contact, language
change, hunsrückisch
* Professora Adjunta da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul.
Atua no Setor de Alemão (Departa-
mento de Línguas Modernas, Ins-
tituto de Letras). E-mail:
spinasse@ufrgs.br
1 PUPP SPINASSÉ, Karen.
“Deutsch in Rio Grande do Sul:
Der Beitrag der UFRGS”. In: Info-
Arpa (Jornal da Associação
Riograndense de Professores de
Língua Alemã), ano 27, nº 2. Nova
Petrópolis, ARPA. 2007.
2 Cf. NEUMANN, Gerson Roberto.
A “Muttersprache” (língua mater-
na) na obra de Wilhelm Rotermund
e Balduíno Rambo e a construção
de uma identidade cultural híbrida
no Brasil. Rio de Janeiro, Faculda-
de de Letras. 2000.
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Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidadesDossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidadesDossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
Esse processo de adaptação lingüística de imigrantes muitas vezes deixa
rastros perceptíveis na língua falada, principalmente quando se trata de um grupo
inteiro de língua minoritária dentro de uma comunidade de fala com outra língua
como dominante. Esse contato lingüístico entre língua majoritária oficial e língua
minoritária familiar/comunitária pode desenvolver fenômenos muito especiais e
peculiares do ponto de vista lingüístico – e o contato dos dialetos alemães falados
quando da imigração com o português originou não só fenômenos de diglossia e
code-switching (termos serão esclarecidos adiante), como também resultou em
novas variedades lingüísticas: os dialetos alemães brasileiros.
Para alguns pode soar um pouco estranho falar sobre um “alemão brasilei-
ro”. Apesar de muitas pessoas conhecerem a história da formação do povo brasi-
leiro e saberem das imigrações em massa ocorridas ao longo dos séculos XIX e
XX, a idéia do Brasil como um país homogêneo e monolíngüe, propagada veemen-
temente pelas mais altas forças políticas em variados momentos da história3, faz
com que pareça estranho que no Brasil também sejam faladas outras línguas.
Todavia, além de ser possibilitado às crianças descendentes de imigrantes
de língua alemã o aprendizado do alemão-padrão como língua estrangeira em
várias escolas4, muitas delas aprendem a variedade de imigração, sobretudo no meio
rural, como uma de suas línguas maternas (ao lado do português). Com isso, junto
às tradições culturais que são mantidas nas comunidades, como as festas e as comi-
das, também a língua é mantida como um patrimônio cultural dos ancestrais.
Nesse artigo, abordaremos uma variedade de imigração de base alemã de
grande abrangência no Brasil: o “hunsrückisch”. Para tanto, nos utilizaremos de
algumas pesquisas de campo desenvolvidas durante as pesquisas do doutorado,
bem como de outros trabalhos que abordaram minuciosamente a situação lingüística
do “alemão” falado no Brasil, a saber Altenhofen (1996), Ziegler (1996) e Tornquist
(1997). Temos como objetivo principal dessa contribuição apresentar esse contex-
to lingüístico peculiar muitas vezes desconhecido por muitas pessoas, apontando
para os fenômenos decorrentes do contato lingüístico, a fim de divulgar a riqueza
cultural existente nas comunidades de fala bilíngüe hunsrückisch-português, deri-
vada da relação ancestral entre Brasil e Alemanha.
Aspectos histórico-lingüísticos da imigração alemã no BrasilAspectos histórico-lingüísticos da imigração alemã no Brasil
Aspectos histórico-lingüísticos da imigração alemã no BrasilAspectos histórico-lingüísticos da imigração alemã no Brasil
Aspectos histórico-lingüísticos da imigração alemã no Brasil
No século XIX, a Europa viveu um período extremamente instável e os
“estados alemães”5 passavam por uma grave crise. Em conseqüência de um siste-
ma feudal arcaico, no qual a nobreza detinha o poder e os privilégios, os pequenos
proprietários rurais passavam por grandes dificuldades, tendo que pagar impos-
tos exorbitantes. O mesmo acontecia nas cidades com comerciantes, autônomos
e artesãos, os quais iam a falência. Além disso, os estados de língua alemã esta-
vam atrasados no que dizia respeito ao desenvolvimento industrial, devido às
inúmeras guerras e à localização geográfica (longe do mar, por exemplo). A
superpopulação fazia o desemprego crescer constantemente, pois não havia em-
prego suficiente para todos nem no seu território e nem em outros territórios
(como colônias). Somado a isso, os constantes conflitos religiosos e políticos
também deixavam o país inseguro e a grande crise agrária contribuía para uma
pobreza generalizada. Mesmo com esse contexto, os governos não mostravam
grande interesse na situação emergencial de seu povo.6
De forma geral, essa situação levou muitas pessoas a deixar o seu país,
como sendo esta a única possibilidade de mudar de vida. Assim iniciou, nos esta-
dos de língua alemã, no período em que se buscava a unificação, uma enorme
emigração além-mar. Esses aposentados, autônomos, comerciantes, artesãos e,
principalmente, agricultores de língua alemã tinham o “Novo Mundo” como objetivo,
e emigraram, sobretudo, para os Estados Unidos, Canadá e Brasil.7
Apesar de existirem desde 1547 registros da presença alemã no Brasil, nos
atemos aqui à grande onda imigratória, a imigração em massa, com início oficial
datado de 25 de julho de 1824. No caso das presenças anteriores (pesquisadores,
3 PUPP SPINASSÉ, Karen. “O Ensi-
no de Línguas em Contextos
Multilíngües”. In: Revista Fragmen-
tos. No prelo.
4 O governo brasileiro prevê em lei
que as escolas de regiões onde hou-
ve imigração tenham o direito de
oferecer a língua de imigração como
primeira língua estrangeira nas es-
colas, e não a língua que normal-
mente está no currículo.
5 Utilizamos aqui a forma “estados
alemães” em detrimento do termo
“Alemanha”, para não confundir
com a denominação de Alemanha
que temos atualmente. Não havia
unidade nacional alemã quando do
início da grande imigração para o
Brasil, portanto, preferimos nos
referir a um território de língua ale-
mã, englobando, inclusive, territó-
rios que hoje se configuram em
outros países.
6 Cf. NEUMANN 2000, 13-20;
SCHRÖDER, Ferdinand. Die
deutsche Einwanderung nach
Südbrasilien bis zum Jahre 1859.
Berlin, Ev. Hauptverein für
Deutsche Ansiedler und
Auswanderer. 1931; ROCHE, Jean.
A colonização alemã e o Rio Gran-
de do Sul - I e II. Porto Alegre, Glo-
bo. 1969; WILLEMS, Emilio. A
Aculturação dos Alemães no Brasil.
Estudo antropológico dos imigran-
tes alemães e seus descendentes no
Brasil. 2ª ed., il., rev. e ampl. São
Paulo, Ed. Nacional. 1980
7 Cf. WILLEMS 1980, 32-40
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cientistas, soldados em missão exterior, aventureiros ou negociantes que tenta-
vam iniciar um empreendimento no novo país por conta própria8), essas pessoas
vinham sozinhas ou em pequenos grupos, não formando colônias no sentido
literal da palavra, ou seja, comunidades rurais de trabalho agrícola. Na maioria das
vezes eles ficavam pouco tempo no Brasil e retornavam à Alemanha.
Os imigrantes propriamente ditos se abarcaram principalmente na região
sul do Brasil. O governo brasileiro enviou-os primeiramente para o sul, pouco
povoado, principalmente porque com isso, entre outros motivos, as fronteiras
com os países hispânicos estariam finalmente mais bem protegidas.9 Quando os
imigrantes chegaram, eles não encontraram a estrutura pronta para o trabalho
agrícola, mas sim a floresta virgem, que tiveram que desbravar. Com isso, foram
criadas no sul do país várias pequenas comunidades que durante muito tempo
viveram isoladas.
Sob a perspectiva lingüística, os falantes de alemão formaram assim cha-
madas “ilhas lingüísticas”. No imenso país, onde uma língua oficial é difundida e
diária, havia “clareiras” – as colônias – onde uma outra língua (uma língua estran-
geira) era falada. Dentro dessas ilhas, os moradores não vinham, porém, de uma
mesma região do solo germânico. Como os estados de língua alemã ainda não
representavam uma unidade na metade do século XIX, as diferenças dialetais eram
ainda mais perceptíveis. Esses diferentes dialetos foram trazidos para o Brasil,
onde entraram em contato direto uns com os outros dentro de uma mesma comu-
nidade. Em comunidades homogêneas o dialeto corrente era também a variante da
maioria e foi mantido; nas colônias heterogêneas houve um processo inevitável,
natural e muito forte de mistura de elementos dessas variedades orais, sendo que
a variante da maioria normalmente se sobrepunha às demais.
Como a maioria dos imigrantes originava-se da região de língua alemã mais
pobre naquela época10 – a região do Hunsrück –, e sua língua diária era o dialeto
francônio-renano/francônio-moselano, essa variedade contribuiu inegavelmente mais
para a formação de uma língua híbrida no Brasil.
Em uma primeira fase do processo de imigração, as colônias vivenciaram
de forma especial a característica de “ilha”. A vida em um tipo de comunidade
fechada contribuiu para que a língua alemã se desenvolvesse forte e presente –
embora para a grande maioria não houvesse mais nenhum contato com a Alema-
nha. Como o governo brasileiro praticamente não lhes deu auxílio para as ques-
tões diárias, eles tiveram que construir sua própria estrutura comunitária (escola,
igreja, clube...). Com isso, a escola não ensinava português, mas sim alemão, a
única língua que o professor sabia. Da mesma forma, os cultos aconteciam em
alemão, já que o pastor era, muitas vezes, um dos imigrantes. Assim, existia uma
pequena “Alemanha” durante alguns anos dentro de um espaço lingüístico do
português.
Não estamos afirmando aqui que não havia contato com o “mundo exteri-
or”. Este, contudo, não era muito intenso e nem para todas as pessoas. Existiam
alguns colonos que, representando a comunidade, faziam comércio, saíam para
vender produtos e até se engajavam politicamente. Entretanto, muitos, principal-
mente as mulheres, ficavam apenas na colônia. Com isso, aprender o português
não era algo necessário para muitos dos imigrantes, que naturalmente passavam
a língua mais fácil para eles (o alemão) como língua materna para seus filhos. O
português era visto como uma língua muito difícil e não era essencial para a vida;
mais um fator de status. Devido ao comércio (de brasileiros e italianos) que mais
tarde começou a vir até a colônia, os alemães aprendiam o português, mas não
formalmente. Como falavam com sotaque e sem muita proficiência no que dizia
respeito à sintaxe e ao léxico, preferiam evitar a língua da nova pátria em detrimen-
to da língua da pátria abandonada.
Aqueles que aprendiam o português não substituíam o seu alemão por essa
língua. A língua da família era e continuou sendo o alemão. Uma combinação de
muitos fatores pode ser citada para a caracterização de “Língua Materna”, e o
“alemão” correspondia a essas características de várias maneiras. Por isso, ela era
8 Cf. BOSSMANN, Reinhold. “Zur
deutsch-brasilianischen
Mischsprache”. In: Letras 1.
Curitiba 1953. 96-114. Em relação
às principais personalidades de
origem germânica que estiveram no
Brasil antes de 1824, vide Schröder
1931, 26-27.
9 Cf. BRUNN, Gerhard. “Die
Bedeutung von Einwanderung und
Kolonisation im brasilianischen
Kaiserreich (1818-1889)”. In:
Jahrbuch für Geschichte von Staat,
Wirtschaft und Gesellschaft
Lateinamerikas 9. Köln/Wien,
Böhlau. 1972. 287-317
10 KOCH, Walter. “Neuere
Untersuchungen über die deutsche
Sprache in Rio Grande do Sul”. In:
IV. Lateinamerikanischer
Germanistenkongress. São Paulo,
USP. 1974. 143-161.
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Dossiê Brasil/Alemanha: cultura e identidades
passada para as crianças. Tratava-se da língua da mãe, a língua do pai, a língua das
outros membros da família, a língua do meio e da comunidade; a primeira língua
aprendida; língua com a qual se tinha uma relação afetiva; a língua do dia-a-dia;
língua a qual o indivíduo dominava de forma melhor; com a qual ele se sentia
bem... Todos esses são aspectos determinantes para a definição do status de
“Língua Materna”.11
Apesar de aprenderem o português (independente da circunstância), havia
a prática mais constante do alemão, considerada por eles a língua mais fácil (com
a qual eles estavam mais familiarizados). Havia a consciência, porém, de que
aprender português era importante. Obviamente, o fator “status social” contava
bastante, pois o português era não só a língua dominante socialmente, mas tam-
bém a língua com melhor status. Havia também a vontade de se integrar mais nas
questões sociais do país. Contudo, o alemão era a língua da colônia.12 A prática do
português nos lares dos imigrantes e descendentes foi, durante muito tempo,
pequena. No censo de 1940, por exemplo, apurou-se que no Rio Grande do Sul
747.859 pessoas não falavam o português em casa: 393.934 dessas pessoas
falavam alemão e 295.995, italiano. Contudo, mais de 95% dessas pessoas eram
nascidas no Brasil.13
Vivendo nessa diáspora entre língua majoritária oficial e língua minoritária
do lar, os elementos das duas línguas dominadas começaram a se misturar: o uso
de lexemas de diferentes códigos lingüísticos em uma mesma construção frasal
(code-mixing) e o uso alternante de diferentes códigos lingüísticos no discurso
durante uma mesma conversa (code-switching) tornou-se uma prática usual.
A prática (consciente ou não) da manutenção da língua alemã entre os
imigrantes e seus descendentes ainda era muito forte em 1937, quando Getúlio
Vargas outorgou a nacionalização no Brasil. Era destacada a importância de se
caracterizar uma nacionalidade brasileira, uma identidade nacional de brasileiro, e
qualquer manifestação em língua estrangeira era proibida. O português tornou-
se, mais do que nunca, obrigatório nas escolas primárias, e a estrutura tradicional
de isolamento foi duramente combatida. A nacionalização significou uma quebra
na estrutura e na tradição escolar que havia sido desenvolvida e cultivada por um
século. Além disso, significava para os alunos uma verdadeira quebra no aprendi-
zado: eles haviam sido alfabetizados em alemão; até passarem para o ginásio,
quando teriam que saber português o suficiente, já teriam se passado quatro
anos. Como conseqüência do nacionalismo, essas crianças acabaram por não
aprender nem o alemão-padrão nem o português.14
A isso se soma ainda a Segunda Guerra Mundial, na qual o Brasil se colo-
cou ao lado dos aliados – contra a Alemanha. Todo esse contexto assinalou “avan-
ços” no processo de mudança lingüística, pois o alemão foi severamente proibido
no Brasil. Isso contribuiu para que mais elementos do português entrassem no
alemão falado nas colônias: alguns indivíduos evitavam o alemão, trazendo mais o
português para dentro das comunidades. Além disso, com a proibição do alemão-
padrão, com a abolição de sua prática e de seu ensino, as variedades orais famili-
ares/comunitárias assumiram ainda mais o status de língua da colônia, desenvol-
vendo-se talevez mais do que outrora.
A língua e a discussão lingüísticaA língua e a discussão lingüística
A língua e a discussão lingüísticaA língua e a discussão lingüística
A língua e a discussão lingüística
Como resultado de todo esse processo, nasceu uma nova variedade
lingüística, que apesar de carregar elementos dos dois idiomas, não deve ser
caracterizado nem como alemão e nem como português. Do contato lingüístico
entre ambos os idiomas se desenvolveu uma terceira variedade – tanto que Ziegler
a define em suas pesquisas como “Misturado”: “... Variedade que se define (…)
através de fortes interferências do português em todos os níveis lingüísticos, [e que]
pode ser observada nos descendentes de alemães bilíngües no Rio Grande do Sul.”15
Essa denominação, contudo, é questionável, uma vez que, em se chaman-
do a variedade de “Misturado”, a mesma é reduzida apenas a um resultado de
11 Cf. ALTENHOFEN, Cléo Vilson:
“O Conceito de Língua Materna e
suas implicações para o estudo do
Bilingüismo (Alemão-Português)”.
In: Jahrbuch 49. São Paulo, Institut
Martius-Staden. 2001. 141-161 e
SCHMID, Gerhard Friedrich.
“Deutsch als Mutter- Zweit- und
Fremdsprache in Rio Grande do
Sul”. In: II Congresso Brasileiro de
Professores de Alemão. São
Leopoldo, ABRAPA. 1991. 95-96.
12 Vide RAMBO, Arthur Blásio. A
Escola Comunitária Teuto-Brasilei-
ra Católica. São Leopoldo,
UNISINOS. 1994, 141 e
SCHADEN Egon. “Aspectos histó-
ricos e sociológicos da escola ru-
ral teuto-brasileira”. In: I Colóquio
de Estudos Teuto-Brasileiros. Porto
Alegre, Faculdade de Filosofia da
UFRGS. 1963. 65-77.
13 Vide KOCH, Walter.
“Gegenwärtiger Stand der
deutschen Sprache im
brasilianischen Gliedstaat Rio Gran-
de do Sul”. In: Arbeitstelle für
Mehrsprachigkeit am Institut für
deutsche Sprache, 1. Mannheim,
Institut für Deutsche Sprache. 1979.
79-117.
14 Cf. RAMBO 1994, 77-84
15 ZIEGLER, Arne. Deutsche Sprache
in Brasilien - Untersuchungen zum
Sprachwandel und zum
Sprachgebrauch der
deutschstämmigen Brasilianer in Rio
Grande do Sul. Essen, Die blaue
Eule. 1996, 73 – “... Varietät, die
sich (..) durch starke portugiesische
Interferenzen auf allen sprachlichen
Ebenen definiert, [und die] bei den
zweisprachigen Deutschstämmigen
in Rio Grande do Sul zu beobachten
[ist].”
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uma mistura – o que não é o caso. Para ser hunsrückisch não basta misturar
elementos do alemão com o português. Pensando assim, ignora-se toda a regula-
ridade existente na gramática dessa língua. A mistura é apenas um aspecto – e
talvez nem tão amplo assim – dentro da variedade de imigração. Além disso,
empréstimos e estrangeirismos ocorrem em todas as línguas. O contato lingüístico
é sem dúvida um fenômeno muito perceptível no hunsrückisch. Entretanto, como
qualquer língua viva, essa variedade também passou por outros fenômenos
intralinguais, por exemplo, que também determinaram seu estado atual.
Por esse motivo, Altenhofen (1996) procurou dar uma definição menos
redutiva, formada a partir da nomenclatura ouvida em localidades de fala da vari-
edade, denominando-a “riograndenser hunsrückisch” (ou hunsrückisch
riograndense).16 O termo “riograndense”, na nossa opinião, não se faz necessá-
rio, contudo, por dois motivos: 1) não existe um hunsrückisch alemão, uma vez
que o dialeto da região, na verdade, chama-se francônio-renano/francônio-moselano,
não havendo a necessidade dessa especificação; 2) também se fala hunsrückisch
em algumas localidades de Santa Catarina e do Paraná. Mesmo sabendo que essas
colônias certamente foram fundadas por descendentes de teuto-gaúchos que leva-
ram consigo seu falar alemão riograndense, achamos que o adjetivo reduz o objeto
que, na realidade, tem dimensões muito maiores.
Não está se querendo dizer aqui que haja apenas uma forma de hunsrückisch
em todas as localidades dos três estados onde a mesma é encontrada (sem falar
de uma cidade no Espírito Santo que também seria de fala do hunsrückisch). Não
queremos incorrer no mesmo erro que a denominação “Brasildeutsch” comete,
nivelando, despropositadamente, todas as variedades de base germânica em uma
única categoria. Sendo “Brasildeutsch” uma língua de base germânica falada no
Brasil, acaba-se por classificar o vestfaliano, o pomerano, o hunsrückisch entre
outros como uma coisa só. Enxergamos as diferenças entre essas diferentes vari-
edades e nos é consciente as diferenças internas encontradas no próprio
hunsrückisch de um ponto para o outro. O hunsrückisch seria originado de uma
espécie de coiné, ou seja, do resultado da interseção de diferenças dos dialetos
alemães confrontados em solo brasileiro – no caso com a imposição do dialeto
francônio-renano como da maioria –, somada a variações inter e intralinguais,
servindo de conceito guarda-chuva para o vários socioletos/familioletos estreita-
mente ligados entre si através de estruturas básicas, mas com determinadas dife-
renças sutis na fonologia e no léxico, por exemplo.
O contato entre os diferentes dialetos alemães, com o alemão-padrão, bem
como com o português e também com outras línguas de imigração, como o
italiano, assim como antigos empréstimos do francês e a estrutura do alto-alemão
médio formaram essa variedade oral.
Muitos lingüistas vêem o hunsrückisch como um novo sistema lingüístico
e não necessariamente como um dialeto direto do alemão-padrão atual. Altenhofen
coloca desta forma: “Se o termo ‘dialeto’ tivesse que ser usado, então o hunsrückisch
seria uma variedade ‘sem teto’”17, uma vez que não existe mais uma língua-padrão
à qual esteja diretamente subordinada. Por questões também puramente
terminológicas, evita-se chamar a variedade misturada do Rio Grande do Sul de
língua, embora seja comum. O conceito mais apropriado seria “socioleto” ou
“familioleto”18, já que representa um código lingüístico para comunidades especí-
ficas e mesmo famílias específicas. Como já dissemos, porém, essa é uma ques-
tão terminológica e a forma como a variedade é classificada por um ou por outro
autor não muda a sua essência. O importante é assinalar que se trata, como
Fausel já salientava, de uma “variedade oral de base francônia”19 – em comparação
com outras variedades dialetais misturadas que tiveram outro dialeto como base
mais forte, como o vestfaliano, o pomerano etc. Entretanto, nenhum deles é
exatamente como era no tempo da imigração20: quando falamos de vestfaliano ou
hunsrückisch, referimo-nos não às formas atuais alemães, mas sim às variedades
brasileiras que tiveram os dialetos desses locais como base.
16 ALTENHOFEN, Cléo Vilson.
Hunsrückisch in Rio Grande do
Sul. Ein Beitrag zur Beschreibung
einer deutschbrasilianischen
Dialektvarietät im Kontakt mit dem
Portugiesischen. Stuttgart, Steiner.
1996.
17 ALTENHOFEN 1996, 71
18 Essas são formações a partir do
conceito “idioleto” (“variedade oral
individual, a qual se percebe em
cada falante da menor e mais
segregada comunidade especifica-
mente” – WANDRUSZKA, Mario.
Die Mehrsprachigkeit des
Menschen. München, Piper. 1979,
38), que, por sua vez, deriva do
termo “dialeto”. “Socioleto” seria,
segundo WANDRUSZKA 1979,
27, a linguagem diária de um de-
terminado grupo. O conceito
“Familioleto” foi utilizado pela pri-
meira vez por Clyne 1968, 84 e
descreve uma forma de fala especí-
fica e característica para uma famí-
lia (apud TORNQUIST, Ingrid
Margareta. “Das hon ich von
meiner Mama” – zu Sprache und
ethischen Konzepten unter
Deutschstämmigen in Rio Grande
do Sul. Uppsala, Umeå. 1997, 35.
19 FAUSEL, Erich. Die
deutschbrasilianische
Sprachmischung. Berlin, Erich
Schmidt. 1959, 9.
20 Cf. BOSSMANN 1953, 97
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O corpus do hunsrückisch é bastante germânico, apesar de todos os em-
préstimos do português, lembrando muito a língua de origem; seu status, contu-
do, é brasileiro, devido, principalmente, ao contexto onde foi desenvolvido. O
hunsrückisch é uma das línguas brasileiras, sendo considerada, junto de outras
línguas de imigração e indígenas, patrimônio cultural imaterial do país.21
Segundo Weinreich duas (ou mais) línguas estão em contato quando elas
são utilizadas alternadamente pelo mesmo falante.22 Elas se misturam em diferen-
tes áreas lingüísticas e essas transferências causam as mudanças nas línguas: elas
se concretizam e são mantidas em sua estrutura. Isso conduz à mudança lingüística.
O termo “mudança lingüística” é definido segundo o Lexikon der
Sprachwissenschaft (Léxico da Lingüística) como um “processo de modificação de
elementos e sistemas lingüísticos com o tempo”.23 Toda língua moderna está, sob
a perspectiva da lingüística, em constante processo de modificação, uma vez que
é viva. Em caso de contato lingüístico, esse processo vai ainda mais adiante, pois
a mudança não ocorre apenas dentro da língua, mas como conseqüência de uma
troca entre duas línguas e das interferências que resultam reciprocamente disso.
Esse é o caso no sul do Brasil em quase todos os contextos: o contato entre as
línguas causou mistura, e através disso, mudança.
No dialeto francônio-renano/francônio-moselano ocorrem fenômenos que
também aparecem no hunsrückisch, pois foram mantidos. A seguir, daremos
alguns exemplos.
Os fones do alto-alemão médio (doravante mhd.) [û] e [i] não ditongaram,
respectivamente, para [au] e [ai] como no alemão-padrão atual (nhd). A palavra do
mhd. “uf” (nhd. auf) permaneceu “uf” (com [u] curto, como “uff”), assim como o
verbo do mhd. “sin” (nhd. sein) foi mantida na forma antiga (com [i] curto: “sinn”).
Embora se tratando de um fenômeno não presente em todas as localidades
de hunsrückisch no Brasil, em boa parte delas o ditongo do alto-alemão velho
(ahd.) [ai] (mhd. <ei> / [ai]) monotongou para um longo “e” ([e:]): “Bein” passou
a [Be:n] (<been>) e “klein” a [kle:n] (<kleen>).
Mais ditongações e outros fenômenos fonéticos vocálicos também são acha-
dos no hunsrückisch, seguindo um padrão muito lógico e interessante. Também
no nível das consoantes houve fenômenos. A título de ilustração, citamos a forte
pronúncia das oclusivas sonoras ([b], [d], [g]), que passam a soar como as res-
pectivas surdas ([p], [t], [k]), como em PruderPruder
PruderPruder
Pruder (Bruder), TT
TT
Torschtorscht
orschtorscht
orscht (Durst) e KaulKaul
KaulKaul
Kaul
(Gaul). O caminho contrário, ou seja, a suavisação de consoantes surdas também
é encontrada em alguns casos: de [p] para [b] ocorre mais raramente, sendo
notado apenas em casos específicos. O fenômeno ocorre mais com as outras e
sobretudo em meio ou fim de palavra: o [t] passa para [d], por exemplo, em
SonndachSonndach
SonndachSonndach
Sonndach (Sonntag) e BlädderBlädder
BlädderBlädder
Blädder (Blätter). No fim de palavra também o [k] é
sonorisado para [g], como observado em tangtang
tangtang
tang (dank) e ich tengeich tenge
ich tengeich tenge
ich tenge (ich denke). A
frase a seguir, coletada em uma localidade do sul do Brasil, mostra bastante essa
inverção recíproca:
- De kk
kk
kude, aldd
dd
de Mann ist mit de KK
KK
Kaul dois Eis gepp
pp
proch unn ins kk
kk
kaldd
dd
da Waser
gefall24 (nhd. Der gute, alte Mann ist mit dem Gaul durch das Eis gebrochen und ins
kalte Wasser gefallen / port. O velho bom homem com o cavalo quebrou o gelo e
caiu na água fria)
O interessante é que tais fenômenos também aparecem com palavras do
português que estejam sendo usadas no lugar das correspondentes alemãs:
nhd. der Kater / port. o gg
gg
gato / hrs. der KK
KK
Kato
nhd. der Kleiderbügel / port. o cc
cc
cabide / hrs. der GG
GG
Gabide
nhd. die Kartoffel / port. a bb
bb
batata / hrs. die PP
PP
Patata
nhd. die Schenke / port. a bb
bb
bodd
dd
dega / hrs. die PP
PP
Putt
tt
tega
nhd. die Seife / port. o sabonett
tt
te / hrs. der Sabonedd
dd
d25
Também a apócope (queda de um ou mais fones nas extremidades da pala-
vra) é um fenômeno corrente do dialeto original alemão que também ocorre no
hunsrückisch, como vemos nos exemplos de Altenhofen (1996):
21 Na seguinte página encontra-se
um texto de OLIVEIRA, Gilvan
Müller de. sobre política
patrimonial e o processo corrente
de registro das línguas brasileiras:
http://www.revista.iphan.gov.br/
materia.php?id=211 – último aces-
so em 17 de dezembro de 2008.
22 WEINREICH, Uriel. Languages in
Contact: Finding and Problems.
London, Mouton & Co. 1967, 1.
23 BUßMANN, Hadumod. Lexikon
der Sprachwissenschaft. Stuttgart,
Kröner. 2002, 638-639. Do origi-
nal: “Prozess der Veränderung von
Sprachelementen und
Sprachsystemen in der Zeit”.
24 As expressões em hunsrückisch
serão aqui transliteradas, e não trans-
critas foneticamente, a fim de serem
passíveis de visualização também
por pessoas de outras áreas.
25 Como se pode perceber no par
“Seife / sabonete”, a palavra em-
prestada do português muitas ve-
zes traz o artigo do português con-
sigo. Mais um exemplo seria: nhd.
der Unterricht / port. a aula / hrs.
die Unterrichtdie Unterricht
die Unterrichtdie Unterricht
die Unterricht
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- Em início: cai o [e] da palavra portuguesa “Estrela”, que passa a StrelaStrela
StrelaStrela
Strela
(nome de cidade).
- Em fim: cai o [e] da palavra portuguesa “canivete” e vira ganivetganivet
ganivetganivet
ganivet (ap.
Taschenmesser)
- Em início e fim simultaneamente: caem as vogais [e] e [a] da palavra
portuguesa espoleta, que passa a spoletspolet
spoletspolet
spolet (ap. Zünder)
Assim como no alto-alemão médio, o prefixo <ge-> no particípio II de alguns
verbos fortes cai, por exemplo mitkriechtmitkriecht
mitkriechtmitkriecht
mitkriecht (nhd. mitgekriegt) e kommkomm
kommkomm
komm (nhd.
gekommen).26 Vale ressaltar também que formas de particípio II de alguns verbos
mistos sofreram modificação por analogia. Enquanto “bringen”” faz o particípio com
gebrunggebrung
gebrunggebrung
gebrung, “gedacht” e “gekannt” passam, respectivamente, a gedenktgedenkt
gedenktgedenkt
gedenkt e gekenntgekennt
gekenntgekennt
gekennt:
- Häst’en gekenntgekennt
gekenntgekennt
gekennt! Dann wär’s anasta kommkomm
kommkomm
komm, unn es tät besser um’en
stehn. (Hättest du ihn gekannt! Dann wäre es anders gekommen, und es täte besser
um ihn stehen). (Se você o tivesse conhecido! Tudo teria sido diferente e as coisas
estariam melhor para ele).
Assim como em outros dialetos alemães, a formulação com “tun” ou “an”
+ infinitivo também é utilizada no hunsrückisch, como em Was tust’e da haitWas tust’e da hait
Was tust’e da haitWas tust’e da hait
Was tust’e da hait
kochekoche
kochekoche
koche? (Was kochst du heute? / O que você está cozinhando hoje?) e Er iss an
spiele (Er spielt gerade / Ele está brincando).27
O genitivo não aparece no hunsrückisch. Uma relação de posse é formulada
através de um acusativo possessivo nominal28 + o pronome possessivo “sein”: de(n)de(n)
de(n)de(n)
de(n)
Marcos sein klein GabrielMarcos sein klein Gabriel
Marcos sein klein GabrielMarcos sein klein Gabriel
Marcos sein klein Gabriel substitui a forma “Marcos’ klein Gabriel” ou “der kleine
Gabriel von Marcos”. Mesmo para as mulheres é usado o pronome “sein”, como em
“die Karen sein sein
sein sein
sein Vovo” (Karens Großmutter / Die Großmutter von Karen):
- Jo, die Mãe hat gesoot, dass die [pl.] bei die Angela sein Eltredie Angela sein Eltre
die Angela sein Eltredie Angela sein Eltre
die Angela sein Eltre gewanet
sinn. (Ja, Mutter hat gesagt, dass sie [pl.] zu Angelas Eltern gewandert [umgezogen]
sind / Sim, a mãe falou que eles se mudaram para a casa dos pais da Angela).
- Wie die Katia sein Pdie Katia sein P
die Katia sein Pdie Katia sein P
die Katia sein Papaapa
apaapa
apa domols gestorb ist. (Als Katias Vater damals
gestorben ist / Naquela vez, quando morreu o pai da Katia)
- Diese Sache mit die Karen sein Vmit die Karen sein V
mit die Karen sein Vmit die Karen sein V
mit die Karen sein Vovoovo
ovoovo
ovo. (Diese Sache mit Karens
Großmutter / Essa coisa da avó da Karen).
O hunsrückisch do Brasil traz características de alemão antigo, pois a rela-
ção com o país de origem foi cessada e o contato com o alemão-padrão atual é
praticamente nulo. Com isso, muitos aspectos do alto-alemão médio foram man-
tidos. Todavia, alguns significados mudaram, ou seja, alguns dos antigos vocábu-
los ainda são utilizados, mas com outra assepsia. A palavra “Luftschiff”, que deno-
minada um objeto voador existente na época da imigração, o Zeppelin, ainda é
usada pelos falantes, mas para designar “avião”. A palavra do alto-alemão atual
para tal objeto (Flugzeug) não lhes é conhecida. Também a palavra do mhd. “smer”
é utilizada, como schmierschmier
schmierschmier
schmier. Contudo, não para denominar a gordura que se passa
no pão, mas a geléia (que também é passada no pão). Trata-se de um processo
metonímico, que resultou em uma palavra que entrou para o vocabulário brasilei-
ro como sendo influência alemã – mas que não existe na Alemanha.29
Em alguns poucos casos foram criadas palavras completamente novas.
Segundo Oberacker Jr. (1957), o NägelsbaumNägelsbaum
NägelsbaumNägelsbaum
Nägelsbaum (Port. cinamomo) foi assim deno-
minado devido à forma de suas flores; o tatu (nhd. Gürteltier) foi denominado de
SchuppenschweinSchuppenschwein
SchuppenschweinSchuppenschwein
Schuppenschwein; a denominação “ElfuhrblumeElfuhrblume
ElfuhrblumeElfuhrblume
Elfuhrblume” seria uma tradução literal
do nome da língua portuguesa “onze-horas”; a expressão traduzida do português
“es hates hat
es hates hat
es hat” substitui a forma alemã “es gibt”.30
Na maioria dos casos, porém, palavras do português eram pegas empres-
tado quando a correspondente em alemão não era conhecida. Isso acontecia prin-
cipalmente com a denominação de objetos que não existiam quando da imigração,
ou que especificamente na Alemanha não existiam. Um exemplo para o primeiro
caso é a palavra “televisão”. Nos tempos da imigração desses falantes de alemão
para o Brasil, a televisão ainda não havia sido criada. Por isso, eles usam para tal
objeto a palavra do português “televisão”, desconhecendo o termo Fernseher do
alemão-padrão.
26 Como já citamos, a terminação
<-en> caiu por apócope
27 Destacamos que o caso dativo
não é usado nessa variedade e por
isso a forma “an spiele” ao invés
da “am spielen”, utilizada normal-
mente nos outros dialetos alemães.
Além disso, o <n> do infinitivo já
caiu através de apócope.
28 Na verdade, essa forma de rela-
ção de posse também é usada ain-
da hoje em dialetos alemães, po-
rém com o dativo e o pronome
possessivo. Como não há dativo
no hunsrückisch, ele é substituído
pelo acusativo, mas a forma de ex-
pressão é mantida.
29 ZIEGLER 1996, 54
30 Vide OBERACKER Jr., Karl
Heinrich. “Neuschöpfungen der
deutschen Sprache in Brasilien”. In:
Staden-Jahrbuch: Beiträge zur
Brasilkunde, 5. São Paulo, Instituto
Hans Staden. 1957. 175-184.
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Um exemplo para o segundo caso de estrangeirismo é o termo “gaúcho”
(nativo do estado do Rio Grande do Sul). Como uma denominação para esse
grupo de pessoas só se tornara conhecida e necessária no Brasil, não existindo
uma palavra alemã para tanto, os colonos tiveram que se utilizar da palavra portu-
guesa, acrescentando-a a seu léxico.
As construções híbridas no hunsrückisch são também constantes. Em ale-
mão é muito normal formar palavras de dois lexemas, o que no português não é
usual. O fenômeno alemão ocorre no hunsrückisch, porém, com elementos das
duas línguas simultaneamente. Mais é uma palavra alemã não utilizada no
hunsrückisch, sendo substituída pela sua correspondente do português “milho”.
Conseqüentemente, a farinha de milho, que no alemão-padrão é Maismehl, é cha-
mada no hunsrückisch de MilhomehlMilhomehl
MilhomehlMilhomehl
Milhomehl.
As formas flexionais do alemão também foram usadas no processo de
mudança. No Rio Grande do Sul, os adultos chamam a criança do sexo masculino
de “guri”. O plural do vocábulo é feito com o -s (a única forma de plural existente
no português). No hunsrückisch se usa, contudo, a flexão -e pertencente ao
paradigma alemão. “Guris” é então substituído por Guriee
ee
e.
Essas formações também são encontradas com a flexão verbal. O verbo
alemão “sich bekleiden” é substituído no hunsrückisch por sua correspondente
no português, cujo infinitivo é “arrumar-se”. No hunsrückisch no Brasil, o infinitivo
passa a sich arrumierenieren
ierenieren
ieren, ou seja, é usado o radical português com a terminação
alemã – seguindo esta conjugção.
Obviamente, o maior número de empréstimos não está no âmbito fonológico
ou morfológico, mas sim no âmbito lexical. O sociólogo Emilio Willems listou 693
palavras emprestadas do português, que foram germanizadas e pertencem ao dia-a-
dia dos colonos, contendo, por exemplo, muitos elementos agrários.31 Citamos algu-
mas delas na seguinte ordem: hunsrückischhunsrückisch
hunsrückischhunsrückisch
hunsrückisch, português e (alemão-padrão atual):
Análise sócio-lingüísticaAnálise sócio-lingüística
Análise sócio-lingüísticaAnálise sócio-lingüística
Análise sócio-lingüística
O contato lingüístico e o contexto histórico da imigração alemã no Brasil
possibilitaram essa nova variedade. O que iniciou com um simples contato de
códigos resultou, ao longo dos anos e da integração lingüística, em interferências,
das quais se originou a mudança lingüística dos dialetos trazidos para o Brasil.
“Diglossia” é um outro termo para o caso no sul do Brasil e marca a
evolução lingüística do hunsrückisch. A situação diglóssica no Brasil foi marcada
historicamente. Através do multilinguismo, ou seja, da capacidade de se comuni-
car tanto em português quanto em alemão, cada uma dessas línguas ganhou uma
função específica – e esta se dá realmente de acordo com a situação de uso, não
sendo uma classificação hierárquica. Nas pesquisas existentes não há, contudo,
um consenso claro sobre a melhor classificação do hunsrückisch: alguns autores
o vêem como uma low-variety (variedade baixa) em relação ao alemão-padrão
(high-variety – variedade alta) em uma situação diglóssica; Tornquist (1997), no
entanto, a vê como uma low-variety em relação ao portugûes; Ziegler (1996) fala
de uma diglossia com bilingüismo; Damke (1997) menciona, por outro lado, que
não se trata nem de um caso de diglossia nem de um caso de bilingüismo.32
Como as pessoas dessas regiões possuem competência lingüística nessa
língua e geralmente a adquirem como língua materna e, além disso, possuem
também habilidades na língua portuguesa, eles são vistos como bilíngües. Exis-
31 WILLEMS 1980, 198-214.
32 DAMKE, Ciro. Sprachgebrauch
und Sprachkontakt in der deutschen
Sprachinsel in Südbrasilien. Frank-
furt/M., Peter Lang. 1997.
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tem diferentes definições para bilingüismo33; os falantes de hunsrückisch no sul
do Brasil, todavia, se encaixam em todas as definições e podem, portanto, ser
considerados bilíngües.
Como Weinreich (1967) afirma, muitos empréstimos e interferências de-
correntes de contato lingüístico só podem ser esclarecidos quando fatores extra-
lingüísticos também são levados em consideração.34 Muitas construções híbridas,
bem como muitos estrangeirismos eram, na verdade, dispensáveis, pois ou 1)
havia uma palavra alemã para o objeto, ou 2) a palavra do português poderia ter
sido facilmente traduzida e ter-se-ia criado uma palavra nova segundo moldes
germânicos.35 Entretanto, o status do português desempenhava papel fundamen-
tal para a escolha de novos elementos do lingüísticos para o uso. Já foi menciona-
do que a nacionalização acabou por fazer que o uso da língua alemã diminuísse e,
através disso, o português se consolidou mais como possível língua de uso diário
– principalmente nas cidades, onde o acesso ao português era mais constante. O
desejo de falar português, porém, já sempre foi grande – por motivos sociais,
culturais e étnicos. O domínio da língua oficial do país traria vantagens.36 Também
em termos de comércio e política, ter o português como língua de trânsito era, no
mínimo, desejável, e desses meios entravam várias palavras no vocabulário da
colônia.
Com isso, não só aspectos lingüísticos desempenharam um papel no contato
lingüístico, mas também os sociais. Mais do que integração lingüística, todo esse
processo significava, desde seu início, uma grande adequação cultural ao novo
meio em diferentes áreas: moradia, vestuário, alimentação, trabalho, meios de
transporte, lazer etc.37
Willems (1940) comenta dois exemplos da “aculturação” dos imigrantes e
descendentes através da mudança lingüística. Primeiramente, ele discorre sobre
as tradições dos gaúchos: eles usam vestimentas características, andavam a cava-
lo, comiam churrasco e tomavam chimarrão em cuias. Os teuto-brasileiros não só
importaram essas denominações características (em forma de empréstimo ou
estrangeirismo), mas também os hábitos dos gaúchos.
O outro exemplo são as palavras para membros da família, que parcial-
mente são usadas em português: pai (Vater), mãe (Mutter), primo (Cousin), cunha-
do (Schwager), sobrinho (Neffe), vovô (Großvater), dentre outras – com suas res-
pectivas formas femininas. Willems afirma que os termos do português foram
importados porque as relações familiares teriam ficado mais estreitas no Brasil, e
essas palavras combinariam melhor com suas vidas na comunidade.38
Willems achou uma explicação de cunho social plausível. Do ponto de vista
puramente lingüístico, analisar-se-ia o processo da seguinte maneira: quando os
estrangeirismos e os empréstimos entraram na língua, ainda ocorria um processo
de code-mixing, onde se dizia o que viesse primeiro à cabeça.39 Assim, a frase
“Heute habe ich meinen primo gesehen” (Hoje eu vi o meu primo) era formada,
sem que se pensasse em qualquer tipo de mudança. A variação lingüística se dá de
forma inconsciente.40 O code-mixing e code-switching levam à adoção de determi-
nados termos na língua, o que é responsável pelas mudanças. Essas variações
tornam-se constantes, se consolidam e se fixam. Esse é o último passo para a
mudança. No caso do Rio Grande do Sul havia, a partir de um determinado mo-
mento, duas línguas à disposição: o português para conversas com pessoas de
fora da colônia e o hunsrückisch já modificado e sistematicamente estruturado
para o uso nas localidades de língua alemã.
A questão étnica é muito importante para a caracterização do hunsrückisch,
pois essa língua “mista” revela uma situação de identidade dos teuto-brasileiros.
Interessantemente, há no vocabulário dos falantes de hunsrückisch diferentes ter-
mos para cada tipo de brasileiro: os “schwarzen” (afro-descendentes), os “índi-
os”, os “portuguêses” ou até mesmo os “brasileiros” (que possuem origem por-
tuguesa ou são mestiços), os “deutschen” (descendentes de alemães), os “pola-
cos” (origem polonesa) e os “gringos” (de origem italiana). Todos pertencem,
porém, ao grande grupo de brasileiros.
33 Vide PUPP SPINASSÉ (no pre-
lo)
34 WEINREICH 1967, 3
35 Cf. OBERACKER Jr. 1957, 175 e
WILLEMS 1980, 221-223
36 Cf. ALTENHOFEN 1996, 73
37 NEUMANN 2000, 35
38 WILLEMS, Emilio. Assimilação
e populações marginais no Brasil:
estudo sociológico dos imigran-
tes germânicos e seus descenden-
tes.
São Paulo, Companhia Edi-
tora Nacional. 1940.
39 Cf. TORNQUIST 1997
40 Cf. NEUMANN 2000, 48
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ConclusõesConclusões
ConclusõesConclusões
Conclusões
Independente da nomenclatura é importante que o hunsrückisch seja reco-
nhecido e respeitado como uma variedade autônoma. Muitos cientistas (principal-
mente professores) que ainda tomam o hunsrückisch como um processo diglóssico
do primeiro tipo (hunsrückisch como low-variety e alemão-padrão como high-
variety), tentam, constantemente, melhorar e corrigir essa variedade, como se ela
tivesse que se aproximar do alemão-padrão. No entanto, o português interfere cada
vez mais no hunsrückisch e ele não é mais aprendido pela nova geração como era
antigamente. Aí está uma língua que se originou de um processo natural de variação
lingüística e que também de forma natural continuará a se desenvolver.
A utilização do hunsrückisch pela geração atual não é mais tão marcada
culturalmente, tendo mais um peso individual. A língua materna caracteriza o
indivíduo e é estreitamente ligada com a sua identidade e sua família. Os jovens
das colônias de língua alemã sabem que sua língua materna está em um patamar
emotivo/familiar. Ela os liga com o “lar” (a colônia, os pais) e ainda caracteriza
identidade – pessoal, não “nacional”.
O hunsrückisch não é apenas um sinal sociolingüístico de que as comuni-
dades se integraram, mas também um exemplo de um processo de variação
lingüística valioso que pode contribuir muito com a teoria.
Artigo recebido em 05.08.2008 e aprovado em 12.12.2008.
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