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Ética e Filosofia Política no Século XXI: Mudanças Climáticas, Pandemias, e Crises Globais

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Abstract

Este update de "Ética e Filosofia Política no Século XXI: Mudanças Climáticas, Pandemias, e Crises Globais" inclui uma discussão sobre a ideia do contrato social tal como ela aparece no Livro 2 da "República" de Platão. Teorias do contrato social, de modo geral, tratam do conceito de estado, mas sem referência ao conceito de nação. A discussão do argumento de Platão, assim, é seguida de um capítulo sobre o conceito de nação como objeto de proteção do estado.
MARCELO DE ARAUJO
Ética e Filosofia Política
no Século XXI
Mudanças Climáticas, Pandemias,
e Crises Globais
versão: 2025.04.12
2
© Marcelo de Araujo 2025
Todos os Direitos Reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou veiculada
em nenhum formato seja físico ou eletrônico sem o conhecimento e autorização expressa do
autor.
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Citar como:
Araujo, Marcelo de. Ética e Filosofia Política no Século XXI: Mudanças Climáticas, Pandemias, e Crises
Globais. 12 de abril de 2025. (DOI disponível na primeira capa após download).
Pesquisador Bolsista de Produtividade do CNPq (Filosofia / Ética)
Pesquisador Cientista do Nosso Estado da FAPERJ (Filosofia / Ética)
Embaixador Científico da Fundação-Alexander-von-Humboldt (2020 2026)
E-Mail: marceloaraujo@direito.ufrj.br
Web: http://marcelo-de-araujo.blogspot.com/
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2379951820482310
Versões anteriores
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câmara brasileira do livro
2024.11.03
doi 10.13140/RG.2.2.32098.54726
registro 2024.11.30
2024.09.25
doi 10.13140/RG.2.2.21815.53920
2023.09.11
doi 10.13140/RG.2.2.20863.62883
doi resolution: https://dx.doi.org/
versão: 2025.04.12
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Sumário
Prefácio 4
1. Filosoa Política e História da Filosoa Política 5
Exegese e Responsividade 5
Crise e sistemas de crise 10
2. Estado e Contrato Social 17
Encargos e benefícios 17
Contractualismo e contractarianismo 21
Tipos de estado de natureza 24
3. Contrato Social na República e no Críton de Platão 28
Gênese e essência da justiça 28
4. Estado, Nação, e Estado-Nação 39
Nação como fonte de encargos benefícios 41
5. Referências 45
6. Notas 50
Prefácio
O presente texto constitui parte do material originalmente preparado para o curso de Filosofia
Política II, oferecido no Departamento de Filosofia da UERJ (Universidade do Estado do Rio
de Janeiro) no segundo semestre de 2024. Pelas críticas e comentários a uma versão preliminar
deste texto, gostaria de prestar meus agradecimentos a Daniel de Vasconcelos Costa (UERJ) e
Marco Antonio de Agostini Lopes (mestrado, UERJ/CAPES). Gostaria de agradecer também a
Thayná Cordeiro Marques Moreira (IC/UERJ/FAPERJ) por ter aceito o convite para atuar
como monitora da turma de Filosofia Política II. Diversos aspectos das discussões de filosofia
política, examinados na turma da UERJ, foram retomados e aprofundados no curso de mestrado
e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), também no segundo semestre de 2024. Na UFRJ, o foco das discussões recaiu
sobre nos conceitos de direito e justiça climática. Na UFRJ, o curso foi oferecido em coopera-
ção com Pedro Fior (UFRJ/CNPq). À turma do curso de Pós-Graduação em Direito da UFRJ
gostaria também de prestar meus agradecimentos pelas discussões que tivemos ao longo do
semestre, especialmente por ocasião de nosso último encontro, no qual discutimos os capítulos
“Ameaças extremas” e “Ameaças não-humanas” do presente manuscrito.
Rio de Janeiro, 7 de março de 2025
1. FILOSOFIA POLÍTICA E HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
Exegese e Responsividade
Podemos entender por história da filosofia política, em primeiro lugar, uma leitura cuidadosa
e atenta de textos de filosofia política que passaram a ser reconhecidos como clássicos do pen-
samento filosófico. Para esse tipo de investigação, a pergunta que se coloca não é tanto sobre
as razões pelas quais esses textos foram recebidos, ao longo do tempo, como clássicos da filo-
sofia. Por que razão alguns textos foram integrados ao acervo dos clássicos, ao passo que outros
não passaram no teste do tempo, essa é, evidentemente, uma questão filosoficamente relevante
– e à qual retornarei brevemente no final deste capítulo –, mas esta não é a questão que costuma
ser discutida em cursos de história da filosofia política. Existe inegavelmente um acervo de
textos clássicos da filosofia política, e a pergunta que se coloca, então, é sobre como compre-
endermos a estrutura interna a cada texto, como compreendermos, com outras palavras, cada
passo dos argumentos propostos e o significado dos conceitos principais e como esses conceitos
se interrelacionam com outros conceitos e argumentos que se encontram em outras partes da
mesma obra, ou em outras obras do mesmo autor ou autora. Não acredito que seja possível nos
ocuparmos seriamente de filosofia política sem nos dedicarmos ao exercício de minuciosa lei-
tura de textos que, por razões diversas, passaram a ser reconhecidos como clássicos da filosofia.
No entanto, não será este o foco da investigação que pretendo empreender neste capítulo. A
razão para isso, como espero, logo ficará mais clara. Denominemos de perspectiva exegética
essa compreensão acerca do que significa estudar filosofia política, ou seja: estudar filosofia
política significa, segunda essa perspectiva, antes de qualquer outra coisa, se ocupar dos clás-
sicos da filosofia política.
A perspectiva exegética é, ela própria, uma perspectiva histórica, mas não se trata aqui
de compreender o texto filosófico à luz do contexto histórico e político em que ele foi produ-
zido. Para a perspectiva exegética, saber, por exemplo, que o Leviathan de Thomas Hobbes foi
escrito em Paris, enquanto a Guerra Civil se desenrolava na Inglaterra, não é a condição deter-
minante para a correta compreensão dos argumentos do autor nesta obra. Pelo contrário, al-
guém poderia mesmo alegar que o Leviathan é um clássico da filosofia política (e da filosofia
do direito) justamente porque esta obra, por assim dizer, transcende as circunstâncias históricas
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e políticas da época em que foi redigida. Que a perspectiva exegética é imprescindível para o
estudo da história da filosofia política, isso, acredito, não se pode negar. Por outro lado, não é
difícil perceber que, por mais eruditos que possam ter sido os autores ou autoras de clássicos
da filosofia política, suas respectivas obras não são elas próprias trabalhos de exegese de outros
textos filosóficos. Mesmo quando a obra, por assim dizer, dialoga com outras obras de filosofia
política, o objetivo jamais é simplesmente interpretar o que autores ou autoras anteriores afir-
maram sobre um determinado problema, mas se posicionar relativamente à verdade ou falsi-
dade do que foi afirmado. Hobbes, por exemplo, se refere algumas vezes à filosofia de Aristó-
teles no Leviathan, mas não com o objetivo de simplesmente interpretar o que encontramos nas
obras de Aristóteles, mas de apresentar argumentos para a rejeição de algumas posições defen-
didas por este autor. Evidentemente, o trabalho de exegese dos textos de Hobbes pode envolver
também um exame detido desses argumentos, relativos ao modo como um dado clássico da
filosofia política se relaciona com outro clássico, mas nem por isso este modo de abordagem
deixará de ser exegético.
Se isso é assim, se nem Hobbes nem outros autores clássicos da filosofia política esta-
vam interessados na mera exegese de textos filosóficos, no que eles poderiam estar então inte-
ressados? A reposta para esta questão é relativamente trivial: eles estavam interessados em dar
uma resposta aos problemas sociais e políticos que marcaram o contexto histórico da época em
que escreveram suas obras mais conhecidas. Compreendidos dessa forma, podemos dizer que
clássicos da filosofia política são responsivos aos seus respectivos contextos históricos e polí-
ticos. Existe, portanto, uma perspectiva histórica, no estudo da filosofia política, que não está
precipuamente interessada no exame da estrutura interna do texto, ou na estrutura mais ampla
da relação entre textos de mais de um autor, mas na responsividade do texto ao contexto histó-
rico e político de sua época. Essa tese talvez pareça trivial, mas ela é, ainda assim, suficiente-
mente diferente da perspectiva exegética para merecer uma denominação própria. Denominarei
esta perspectiva – à falta de termo melhor e para preservar o contraste com o perspectiva exe-
gética – de perspectiva da responsividade.
A perspectiva da responsividade não é inteiramente independente da perspectiva exe-
gética. Quando nos ocupamos do estudo de filosofia política, talvez não seja sequer possível, a
cada passo do estudo, traçarmos uma linha clara entre uma perspectiva e a outra. No entanto,
não é difícil compreender que podemos estar mais interessados em um modo de abordagem ou
no outro. Um indício disso é a constatação de que, na vasta literatura sobre clássicos da filosofia
política, encontramos, por um lado, trabalhos que privilegiam a perspectiva exegética, com
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referências relativamente episódicas ao contexto histórico e político da época; ou, por outro
lado, encontramos trabalhos que privilegiam a perspectiva da responsividade. A pergunta que
então se coloca, nesse caso, é sobre que aspectos do contexto histórico e político da época
explicam a discussão de tais e tais problemas numa dada obra de filosofia política. Quais são
os aspectos do contexto político, com outras palavras, que compelem o autor ou autora a rejeitar
(ou a modificar) a posição de autores anteriores?
Que textos clássicos de filosofia política mantêm um vínculo com o contexto histórico
e político em meio ao qual foram escritos, essa como disse é uma tese relativamente
trivial. Até que ponto esse vínculo é ou não indispensável para a compreensão de textos de
filosofia política, isso é passível de discussão. Neste capítulo, não é minha intenção tomar uma
posição relativamente à difícil questão metodológica sobre em que medida a análise de textos
clássicos da filosofia política exige um estudo minucioso do contexto histórico e político em
que eles foram produzidos. O que me interessa, antes, é investigar quais aspectos do contexto
histórico e político da época são mais salientes para a compreensão de uma obra de filosofia
política, pois o contexto político poderia ser concebido de modo bastante ampliado, de modo a
incluir, por exemplo, a própria biografia do autor. A hipótese que eu gostaria de examinar aqui
é a seguinte: ao examinarmos o vínculo entre, de um lado, vários textos clássicos de filosofia
política, provenientes de períodos bem diferentes entre si e, do outro, o contexto histórico e
político em que foram produzidos, percebemos que textos clássicos da filosofia política são, de
modo geral, responsivos a crises desencadeadas por guerras ou conflitos sociais de grande im-
pacto social negativo.
Não deve ser coincidência, por exemplo, que a Guerra do Peloponeso tenha suscitado
uma série de atos de violência não apenas entre as partes beligerantes (Atenas e Esparta), mas
também entre os próprios atenienses. A guerra, como Tucídides relata em sua principal obra (A
História da Guerra do Peloponeso), disparou uma crise de hostilidades mútuas no interior de
Atenas. Tucídides examina, assim, vários temas que se tornaram mais tarde recorrentes entre
os clássicos da filosofia política, tais como, por exemplo, a pergunta sobre as origens da vio-
lência entre seres humanos, a pergunta sobre a relação entre os conceitos de poder e justiça,
bem como a pergunta sobre por que razão comunidades políticas entram em guerra umas contra
as outras (Araujo 2020). Com o final da Guerra do Peloponeso, é bem provável que as hostili-
dades mútuas entre os próprios atenienses, tal como Tucídides as relata em sua obra, tenha se
encerrado, ou pelo menos diminuído, mas parece-me pouco provável que o final da guerra por
si só tenha sido suficiente para o reestabelecimento da confiança mútua, amparada em ideias
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compartilhadas acerca do que conta como certo ou errado, entre os cidadãos de Atenas. Isso
deve explicar por que razão Platão, escrevendo na mesma época em que Tucídides escreveu,
se pergunta em obras como, por exemplo, o Julgamento de Sócrates, Críton, e a República se
a justiça seria inerente à própria natureza humana, ou se ela não decorreria, antes, de uma es-
pécie de contrato social entre as pessoas. Tanto Tucídides quanto Platão participaram da Guerra
do Peloponeso, o que nos permite supor que, de uma forma ou de outra, a participação deles
nesse longo e violento conflito, aliada à amarga experiência da derrota ateniense, tenham tido
influência em suas respectivas contribuições para a filosofia política. Ou seja: suas respectivas
contribuições para a filosofia política são em larga medida responsivas à crise desencadeada
pela Guerra do Peloponeso.
Não deve ser também por acaso que as contribuições de Maquiavel para a filosofia
política (O Príncipe, 1513; Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, 1513) tenham
sido produzidas numa época de grande instabilidade social em Florença. Na época em que essas
obras foram redigidas, Florença havia perdido o status de república e se tornado um principado,
com todos os problemas de segurança interna e de segurança externa que, segundo Maquiavel,
essa transição envolvia. O próprio Maquiavel, acusado de conspiração contra o novo governo,
foi torturado e se viu forçado a escrever O Príncipe no exílio, fora de Florença, cidade da qual
fora banido. Tanto a Reforma Protestante, que teve início na mesma época em que Maquiavel
redigiu suas principais contribuições para a filosofia política, quanto a Guerra dos Trinta Anos
(1618–1648) deflagaram uma onda de crises políticas locais e internacionais no contexto da
Europa. As obras de Hugo Grotius (Sobre o Direito da Paz e da Guerra, 1625), John Locke
(Segundo Tratado de Governos, 1689), Jean-Jacques Rousseau (Do Contrato Social, 1762), ou
de Immanuel Kant (À Paz Perpétua, 1795), também podem ser compreendidas, como vários
historiadores da filosofia política perceberam, como responsivas às diversas crises da Época
Moderna (Skinner 2006; Schneewind 2001). As contribuições sem precedentes de Thomas
Hobbes para a filosofia política (Leviathan, 1651; Do Cidadão, 1642) foram redigidas no exí-
lio, em Paris, enquanto a Guerra Civil Inglesa (1623–1651) impunha uma onda de violência
sem precedentes a diferentes segmentos da população inglesa, deixando um saldo de mais de
100 mil mortes entre os não-combatentes, e de mais de 80 mil mortes entre os soldados (Hill
1987). Durante este período, a Inglaterra se tornou uma república e apenas mais tarde, ao final
da Guerra Civil, a monarquia britânica foi reestabelecida.
As obras de Karl Marx (Manifesto Comunista, 1848; O Capital, vol. I, 1867; vol. II,
1885; vol. III, 1894), Jeremy Bentham (Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação,
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1789), e John Stuart Mill (O Utilitarismo 1761; Considerações sobre o Governo Representa-
tivo, 1861), de modo análogo, podem ser compreendidas como responsivas às crises desenca-
deadas pela Revolução Francesa e pelas “lutas de classe” (no vocabulário de Marx) da época.
Enquanto alguns autores (e.g. Marx) eram favoráveis a revoluções como instrumentos para a
transformação social, outros (e.g. Bentham e Mill) eram avessos à revolução e propunham,
antes, reformas institucionais graduais. No contexto da primeira metade do século XX, algumas
obras de Hannah Arendt (em particular Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperia-
lismo, Totalitarismo, 1951) se mostraram claramente responsivas à crise global desencadeada
pela Segunda Guerra Mundial. Na segunda metade do século XX, de modo análogo, as contri-
buições de John Rawls para a filosofia política (Uma Teoria da Justiça, 1971; O Direito dos
Povos, 1999) também podem ser consideradas, como responsivas aos conflitos decorrentes das
lutas por direitos políticos e sociais nos Estados Unidos, aos debates sobre desobediência civil
durante da Guerra do Vietnã, e a conflitos bélicos no cenário internacional no final do século
XX.
Evidentemente, a perspectiva da responsividade não nos obriga a supor que bastaria
termos um conhecimento histórico minucioso sobre as crises que caracterizam o contexto his-
tórico e político no qual uma determinada obra se insere para, munidos apenas deste conheci-
mento, compreendermos os argumentos do autor ou autora na obra sob escrutínio. Além disso,
o próprio “conhecimento histórico minucioso” acerca do contexto em que uma obra se insere
pode estar subordinado à compreensão de obras de filosofia política. Na tentativa de obter, por
exemplo, um conhecimento histórico minucioso do contexto específico em que se insere O
Capital, de Marx, podemos nos perguntar se a leitura mesma da obra não seria uma condição
para se obter o conhecimento em questão. Mas isso, para os fins da nossa discussão, seria ape-
nas um argumento a mais em favor da tese segundo a qual clássicos da filosofia política são
responsivos ao contexto histórico e político em que foram produzidos. A perspectiva da res-
ponsividade também não nos obriga a supor que todos os clássicos da filosofia política sejam
responsivos aos seus respectivos contextos históricos e políticos na mesma medida. O Levia-
than e O Príncipe, nesse sentido, parecem mais claramente responsivos do que, por exemplo,
Uma Teoria da Justiça, de Rawls. É possível ainda que haja textos importantes da filosofia
política que não sejam claramente responsivos no sentido aqui em questão, ou que sejam res-
ponsivos a um contexto histórico e político que não é claramente caracterizado por uma ou
mais crises de grande impacto social negativo.
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Se é verdade, assim, que textos de filosofia política do passado são, de modo geral,
responsivos às crises de grande impacto social negativo, que marcaram o contexto histórico e
político no qual foram produzidos, surge então agora a seguinte questão: Qual seria a crise face
à qual textos de filosofia política do presente, com potencial para se tornar clássicos da filosofia
política no futuro, deveriam se posicionar responsivamente? A minha hipótese é que não existe
contemporaneamente uma crise em particular, mas, antes, sistemas de crises de grande impacto
social negativo de alcance global e intergeracional (Lawrence et al. 2024). Se isso é assim,
então a tarefa da filosofia política nos dias de hoje consiste em se mostrar responsiva, não a
crises particulares, mas a sistemas de crise.
Crise e sistemas de crise
A tentativa de se oferecer uma resposta adequada à pergunta sobre qual seria a crise, ou siste-
mas de crise, que define nosso próprio contexto histórico parece esbarrar de início em uma
dificuldade metodológica. Nós experimentamos e testemunhamos e reagimos a uma diversi-
dade de acontecimentos correntes; somos diariamente expostos, como jamais ocorreu antes, a
mais informações sobre o tempo presente do que poderíamos humanamente processar. E no
entanto, alguém poderia objetar o seguinte: sem o devido distanciamento temporal, o conheci-
mento que temos acerca do tempo presente não é ainda o conhecimento acerca de nosso próprio
contexto histórico e político, mas apenas isso: um fluxo de informações a que temos acesso e
que nos esforçamos por organizar numa narrativa coerente – uma narrativa que seja amparada
nos fatos, que seja também consistente com o que sabemos sobre o nosso passado, e que seja,
além disso, relativamente bem informada por evidências que as ciências de nossa época podem
nos proporcionar.
A dificuldade metodológica é justificada, mas não me parece que ela represente um
obstáculo instransponível à perspectiva de darmos uma resposta satisfatória à pergunta aqui em
questão, a saber: a pergunta sobre qual seria a crise face à qual a filosofia política de nosso
próprio tempo deveria se mostrar responsiva. Em primeiro lugar, porque a exigência pelo dis-
tanciamento temporal não se aplica a todos os tipos de narrativas históricas. Para a denominada
“história do tempo presente”, por exemplo, ela certamente não se aplica, ou pelo menos não
com a mesma premência com que se aplica a outros períodos históricos (Frei 2013; Schildt
2001, 320; Cornelißen and Sandkühler 2000). A principal obra de Tucídides, por exemplo, não
satisfaz a exigência de distanciamento temporal, sem contar que Tucídides, ele próprio,
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participou da Guerra do Peloponeso. Tucídides, portanto, não teve nem distanciamento tempo-
ral nem pessoal dos eventos sobre os quais ele escreveu na obra A História da Guerra do Pe-
loponeso. No entanto, parece-me pouco razoável supormos que Tucídides não tinha um conhe-
cimento adequado acerca do contexto histórico e político sobre o qual ele escreveu (Schildt
2001, 318). Em segundo lugar, a exigência de distanciamento temporal é endereçada, antes de
mais nada, a historiadores e historiadoras, e não a filósofas e filósofos da política. Ter a expec-
tativa, por exemplo, de que Hobbes tivesse se distanciado temporalmente da Guerra Civil In-
glesa para, somente mais tarde, escrever o Leviathan, seria confundir o que se espera do traba-
lho do filósofo com o ofício do historiador. A partir da perspectiva da filosofia política, por-
tanto, parece-me inteiramente lícita, ou seja, metodologicamente não problemática, a pergunta
sobre qual seria a crise de grande impacto social negativo que marca o contexto social e político
de nosso próprio tempo.
A dificuldade metodológica que temos de enfrentar aqui é de outra natureza, e diz res-
peito, antes, à pluralidade de crises para as quais a filosofia política contemporânea deve aten-
tar. O que temos hoje não são crises isoladas – crises que, para infortúnio das populações afe-
tadas, podem eventualmente ocorrer todas ao mesmo tempo em uma dada região. O que temos
são, antes, crises que formam “sistemas de crises” de alcance global (Lawrence et al. 2024).
Isso significa dizer que o impacto social negativo decorrente do sistema de crises, diferente-
mente do que ocorreu no passado com relação a crises frente às quais a filosofia política se
mostrou responsiva, não está mais circunscrito a regiões específicas. O impacto não está cir-
cunscrito sequer ao tempo presente, pois as crises que marcam nosso próprio contexto histórico
e político têm importantes implicações intergeracionais (Meyer 2023; Moellendorf 2022; Abate
2020; IPCC 2014; Jonas 2006). Em um mundo interconectado como o nosso, a crise que
emerge em uma dada região pode rapidamente deflagrar ou agravar crises já em curso em ou-
tras regiões, reverberando de volta, com impacto talvez ainda maior, sobre a região na qual se
originou. Alguns autores se referem a essa interação sistemática de crises diversas como meta-
crise (Leggewie and Welzer 2009, chap. 1) ou, mais frequentemente, policrise (Lawrence et al.
2024; Helleiner 2024; World Economic Forum 2023; Tooze 2023; Homer-Dixon 2023; Morin
and Kern 1999, 73–74). Uma crise se alimenta da outra e cada uma retroalimenta o sistema de
crises como um todo.
Seria talvez possível alegar que as denominadas policrises ou sistemas de crise não
constituem um fenômeno realmente novo e que, por isso, estaríamos aqui nos servindo de um
neologismo desnecessário para designar sobreposições de problemas que, de um modo ou de
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outro, sempre existiram – problemas como, por exemplo, grandes fluxos migratórios intrana-
cionais e transnacionais, rápido desenvolvimento de tecnologias de grande impacto social ne-
gativo sem regulação específica, campanhas de desinformação, crises econômicas, instabilida-
des políticas decorrentes de polarizações intranacionais, tensões geopolíticas, poluição ambi-
ental, crise de energia, epidemias e pandemias, pobreza, guerras, fome. Alguns críticos da ideia
de policrise, assim, sugerem que estes não são problemas inteiramente novos e que, por essa
razão, não deveríamos ficar surpresos se, ocasionalmente, alguns desses problemas emergirem
ao mesmo tempo em uma ou mais regiões. Além disso, alguns críticos alegam que o neolo-
gismo policrise seria não apenas desnecessário para designar uma eventual conjunção de pro-
blemas já bem conhecidos, mas poderia mesmo contribuir para deslocar o foco de nossa aten-
ção do gatilho
1
de crises que realmente interessa investigar, a saber: o sistema capitalista. Em
um artigo de 2024, Michael Lawrence e coautores sintetizam a crítica que tem sido feita ao
conceito de policrise:
“Alguns críticos argumentam que a ideia da policrise obscurece o funcionamento dos
interesses capitalistas que estão na raiz dos problemas do mundo; eles associam o termo
às ‘elites de Davos’ e às suas supostas falhas. Outros argumentam que a nossa situação
atual não é verdadeiramente nova; o mundo já viu crises entremeadas antes, por isso
não precisamos de um novo conceito para descrever a nossa situação hoje” (Lawrence
et al. 2024).
2
Não pretendo entrar aqui na discussão sobre qual seria o papel específico (e a ampli-
tude) do sistema capitalista como possível gatilho para crises diversas. Eu não desconsidero a
força que este gatilho, em particular, desempenha em sistemas de crise, mas não me parece,
por outro lado, que uma posição reducionista seja especialmente atrativa em termos de capaci-
dade explicativa.
Consideremos, por exemplo, a crise climática. Mudanças climáticas têm enorme poten-
cial para deflagrar – e já vem deflagrando – diversas crises de grande impacto social negativo,
tais como, por exemplo, enchentes, ondas de calor, degelo do Ártico, incerteza sobre o futuro
da economia global etc. Seria talvez tentador, para muitas pessoas, reconhecer no sistema ca-
pitalista o gatilho original para a crise climática. Isto, porém, seria a meu ver simplista demais.
As mudanças climáticas decorrem, antes de qualquer outra coisa, da emissão de gases do efeito
estufa, especialmente do dióxido de carbono (resultante da queima de combustíveis fósseis) e
o metano (produzido, por exemplo, pela população bovina). O dióxido de carbono, em
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13
particular, pode se acumular na atmosfera por vários séculos, ou mesmo milênios, até ser reab-
sorvido pela vegetação (através da fotossíntese) ou pelos oceanos. Para o sistema climático do
planeta, é indiferente se as emissões se originam em regiões em que predomina o capitalismo,
o socialismo, o comunismo, ou qualquer outro modo de produção ou sistema de governo.
Quando se trata de compreender a origem da crise climática, portanto, o foco da atenção deve
recair, antes de qualquer outra coisa, sobre a matriz energética em que se apoia o desenvolvi-
mento de um país, e não sobre o modo de produção ou sistema de governo em que se deram as
emissões. Os três países que mais contribuíram para as denominadas “emissões históricas” são,
nesta ordem, os Estados Unidos, a Rússia, e a China.
3
(A China pode ser considerada hoje a
maior emissora de gases do efeito estufa, mas como o dióxido de carbono se acumula na at-
mosfera por vários séculos, é importante fazermos uma distinção entre o volume de emissões
que um país produz atualmente e as suas “emissões históricas”, ou seja a quantidade total de
emissões que esse país produziu desde o início da Revolução Industrial).
4
Embora os Estados
Unidos figurem como exemplo paradigmático de país capitalista, o mesmo não se poderia dizer
acerca da China e da Rússia. No entanto, a despeito de todas as diferenças no que concerne aos
seus respectivos sistemas de governo ou modo de produção, tanto os Estados Unidos, de um
lado, quanto a China e Rússia, do outro, abraçaram um programa de desenvolvimento forte-
mente amparado na queima de combustíveis fósseis. Atribui-se a Vladmir Lênin, inclusive, a
frase “Comunismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país.”
5
Se a matriz ener-
gética para alavancar a eletrificação de um país forem combustíveis fósseis – como era o caso
na União Soviética – o impacto sobre o clima será o mesmo qualquer que seja modo de governo
ou sistema de produção vigente no país em questão.
6
Disso se segue outra constatação: ainda que, por hipótese, o sistema capitalista possa
ter sido o gatilho original para a crise climática no passado, a superação do capitalismo no
presente não funcionaria por si como solução para a crise climática, pelo menos não en-
quanto a matriz energética para o desenvolvimento continuar envolvendo a queima de com-
bustíveis fósseis. Por outro lado, se, por hipótese, todos os países decidissem utilizar apenas
energia solar, energia eólica, ou energia nuclear – para fins de política climática, energia nuclear
passou a ser considerada energia limpa, pois não envolve grande emissão de gases do efeito
estufa (DW 2022; Lieven 2020, 117–18; Symons 2019, 47–49) –, a crise climática poderia ser
contornada. Nesse caso, a crise climática poderia ser contornada, inclusive, se todos os países
adotassem (ou preservassem) um modo de produção capitalista. A preservação do modo de
produção capitalista numa suposta era pós-crise climática poderia, evidentemente, criar ou
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agravar outras crises de grande impacto social negativo – como por exemplo injustiças sociais
decorrentes de grandes desigualdades econômicas –, mas pelo menos a crise climática teria
sido resolvida.
Em suma: Sem o capitalismo, mas com a preservação dos combustíveis fósseis como
principal matriz energética, a crise climática tende a se agravar nas próximas décadas. Com o
capitalismo, mas sem utilização massiva de combustíveis fósseis, a crise climática poderia ser
contornada, ainda que outras crises permaneçam ou sejam agravadas. Por essa razão, não me
parece que deveríamos abrir mão do conceito de policrise e endossar, como sugerem alguns
críticos, a tese reducionista segundo a qual haveria um único gatilho para todas as crises atuais,
a saber: o sistema capitalista.
Existe ainda outra razão para evitarmos uma posição reducionista na análise das diver-
sas crises que afligem o mundo atual. Alguns autores sugerem que o capitalismo é tão ubíquo
que mal conseguimos imaginar um mundo em que ele não exista. Mark Fisher, por exemplo,
toma de emprestado uma frase de Slavoj Žižek para exprimir essa ideia no título do primeiro
capítulo do livro Realismo Capitalista: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim
do capitalismo” (Fisher 2020). A ideia aqui é que, por permear praticamente todos os âmbitos
das relações sociais, mal nos damos conta da força omnipresente do capitalismo. Por essa
razão, poderíamos ser levados levantar a seguinte objeção contra a pertinência do conceito de
policrise, a saber: este neologismo (policrise) pode parecer atrativo, mas apenas para quem,
ingenuamente, ou ainda não consegue reconhecer a presença ubíqua do capitalismo e de sua
força como gatilho de diversas crises globais, ou não tem a imaginação necessária para vislum-
brar um mundo que não seja dominado pelo sistema capitalista, como sugere Žižek.
No entanto, contra esse tipo de posição reducionista, não se poderia igualmente susten-
tar, e certamente até com melhores razões, que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o
fim do sistema de estados? Afinal, conflitos geopolíticos, com potencial para, literalmente, pre-
cipitar o fim do mundo na esteira de uma guerra nuclear, somente existem porque o sistema de
estados não é compatível com a existência de instituições supranacionais que tenham o poder
e a legitimidade para compelir os estados à eliminação de seus respectivos arsenais nucleares.
A emergência do sistema de estados soberanos pode ter sido de crucial importância para o
“processo de pacificação” mediado por uma diversidade de instituições jurídicas no interior de
cada estado (Pinker 2017, 67–102). No âmbito do sistema de estados, compete ao soberano –
e ao soberano apenas – deter o “monopólio da coerção física legítima” em sua própria área de
jurisdição (Weber 1972, 29). Com isso, retiram-se das mãos dos indivíduos privados o poder e
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legitimidade de agressão mútua para resolução de conflitos. Por outro lado, não existe no sis-
tema de estados nenhuma instituição que, de modo análogo, detenha o monopólio da coerção
física legítima sobre os soberanos. Ou seja: é mais fácil imaginar o fim do mundo em decor-
rência de uma guerra nuclear ou de um apocalipse climático do que imaginar um mundo em
que o sistema de estados dê lugar a uma outra forma de organização política global no contexto
da qual nenhum ator – seja ele de natureza estatal ou não-estatal – tenha o poder e legitimidade
para promover os seus próprios interesses em detrimento não apenas do interesse de outros
autores, mas mesmo em detrimento da integridade de ecossistemas ou da própria existência
humana como espécie. A suposição de que as preocupações com a possibilidade de uma guerra
nuclear se tornaram menos relevantes nos dias de hoje do que eram durante a Guerra Fria é
certamente equivocada, não apenas porque agora existem mais atores detentores de armas nu-
cleares, mas também porque, como vários analistas vêm notando recentemente, os arsenais
nucleares já existentes estão correntemente em franca expansão (Bunn 2024; Moniz and Nunn
2023; Lieber and Press 2023; Narang and Sagan 2022).
E o que se aplica à ameaça de uma guerra nuclear se aplica também à ameaça de novas
pandemias. A despeito das consequências materiais e não-materiais da pandemia de COVID-
19, o estabelecimento de um Acordo Pandêmico, capaz de criar as condições para a cooperação
internacional com vistas não apenas a minimizar as chances de que uma nova pandemia possa
ocorrer, mas também para promover a cooperação internacional, caso uma nova pandemia não
possa ser evitada, tem esbarrado em uma série de barreiras decorrentes das prerrogativas dos
estados em nome de suas respectivas soberanias nacionais (Lehtimaki et al. 2024; Schwalbe et
al. 2024; Araujo 2023; Hanbali et al. 2023).
Os clássicos da filosofia política e da filosofia do direito contêm um acervo valioso e
bastante diversificado de teorias normativas sobre as instituições necessárias para lidarmos com
as ameaças decorrentes da violência (ou da possibilidade de violência) de indivíduos entre si
no interior de um mesmo estado; os clássicos também trataram de diversos tipos de ameaças
decorrentes da violência do estado contra seus próprios cidadãos, ou contra os cidadãos de
outros estados; é possível encontrar também nos clássicos da filosofia política e filosofia do
direito, ainda que bem menos frequentemente, teorias normativas sobre as ameaças decorrentes
de um estado contra outros estados. No entanto, na longa história da filosofia política e da
filosofia do direito, não encontramos teorias normativas abrangentes acerca de ameaças decor-
rentes do uso de armas nucleares, ou de crises climáticas, ou de pandemias (sejam elas aciden-
tais ou decorrentes de bioterrorismo). E no entanto, são essas as ameaças com as quais a
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humanidade terá de conviver ao longo de século XXI. As instituições políticas e jurídicas vi-
gentes são não apenas inócuas para enfrentarmos os sistemas de crises que tais ameaças podem
deflagrar. As instituições políticas e jurídicas atualmente vigentes, amparadas na doutrina nor-
mativa acerca da soberania dos estados, podem mesmo precipitar e agravar uma diversidade
de crises de enorme impacto social negativo.
No livro Vozes de Tchernóbil: A História Oral do Desastre Nuclear, a escritora bielor-
russa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015, voz às
vítimas do acidente de 1986 em Tchernóbil, hoje parte da Ucrânia. Ainda no início do livro, ela
descreve a perplexidade da população russa diante da crise desencadeada pelo acidente: “Pas-
samos a vida inteira lutando e nos preparando para a guerra, tão bem a conhecíamos, e, de
súbito! A imagem do inimigo se transformou. Surgiu diante de nós um outro inimigo” (Alek-
siévitch 2016, 34).
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O “outro inimigo” era a contaminação por radiação, um tipo de ameaça
que não podia ser contida por fronteiras nacionais ou armas de guerra. O subtítulo original da
obra de Aleksiévitch é: Uma Crônica do Futuro (Хроника будущего). No século XXI, a filoso-
fia política e a filosofia do direito poderiam muito bem ser compreendidas dessa maneira, como
uma espécie “crônica do futuro”, uma narrativa acerca de “outros inimigos” que surgiram entre
nós, mas contra os quais as instituições políticas e jurídicas atuais permanecem em larga me-
dida ineficazes.
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A perplexidade do povo russo, diante de um inimigo que não tinham se pre-
parado para enfrentar, deveria ser a nossa perplexidade também nos dias de hoje.
2. ESTADO E CONTRATO SOCIAL
Encargos e benecios
O pertencimento de um determinado indivíduo (digamos, INDIVÍDUO1) a um determinado es-
tado (digamos, ESTADO1) confere ao INDIVÍDUO1 uma série de encargos e benefícios no âmbito
político e jurídico do ESTADO1. Esses encargos e benefícios são regulados pela instituição do
direito positivo, tal como o direito positivo existe no ESTADO1. O direito positivo regula também
o próprio funcionamento do ESTADO1. O direito se endereça, assim, não apenas ao INDIVÍDUO1
(e aos concidadãos e concidadãs do INDIVÍDUO1, digamos, INDIVÍDUO2, INDIVÍDUO3 etc.), mas
também a uma diversidade de instituições que existem dentro do ESTADO1. Poderíamos mesmo
dizer que uma diversidade de instituições não apenas existem dentro do ESTADO1, mas que elas
são constitutivas do ESTADO1. Ou seja: o ESTADO1 é ele mesmo uma instituição constituída por
outras instituições.
Por instituições tenho em mente aqui não apenas, por exemplo, ministérios, parlamen-
tos, tribunais, forças armadas, secretarias de saúde etc., mas também uma diversidade de cargos
que conferem a tais e tais indivíduos poderes e responsabilidades para atuar em nome de mi-
nistérios, tribunais etc. A instituição da polícia, por exemplo, somente pode impedir que o IN-
DIVÍDUO3 agrida o INDIVÍDUO2, se houver um INDIVÍDUO1 que exerça o cargo de policial. Evi-
dentemente, um dado INDIVÍDUO4 poderia igualmente impedir a referida agressão, mas, no âm-
bito do ESTADO1, o INDIVÍDUO1 e o INDIVÍDUO4 terão poderes e responsabilidades bem diferen-
tes. Indivíduos podem ter uma série de características físicas que lhes possibilitam, em tais e
tais circunstâncias, impedir que uma dada agressão ocorra, mas o INDIVÍDUO1 somente pode ter
o status de policial por força de poderes e responsabilidades que lhe são atribuídos pelo ES-
TADO1. Ao visitar o território de outro estado (ESTADO2), o INDIVÍDUO1 pode, eventualmente,
impedir um ato de agressão de um indivíduo contra outro, mas o INDIVÍDUO1 não fará isso no
exercício do cargo de policial, pois não terá no ESTADO2 os mesmos poderes e responsabilidades
que ele tem como policial no o ESTADO1, a não ser, é claro, que o ESTADO2 lhe atribua exata-
mente os mesmos poderes e responsabilidades que o ESTADO1 lhe atribuiu. Repare que o que
vale para o status de policial vale também para o status que o INDIVÍDUO1 tem de ser cidadão
do ESTADO1. Ao visitar o ESTADO2, o INDIVÍDUO1 não terá os mesmos encargos e benefícios que
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ele tem no ESTADO1, a não ser, é claro, novamente, que o ESTADO2 lhe atribua exatamente os
mesmos encargos e benefícios que ele tem no ESTADO1. Repare que a questão que se coloca
aqui não é sobre o critério de pertencimento de um dado indivíduo a uma determinada nação,
mas de pertencimento ao estado. A relação entre indivíduo, estado, e nação será objeto de dis-
cussão em um capítulo à parte mais adiante.
A pergunta sobre os critérios que um indivíduo deve preencher para ter o status de po-
licial em um determinado país, como se pode esperar, não vai nos interessar aqui. Bem mais
interessante para a investigação filosófica é a pergunta sobre os critérios que um dado indivíduo
deve preencher para ter o status de cidadão de um dado estado. O que faz com que apenas o
INDIVÍDUO1, INDIVÍDUO2, INDIVÍDUO3 etc. façam parte do ESTADO1, ao passo que outros indiví-
duos, (digamos, o INDIVÍDUO4, INDIVÍDUO5, INDIVÍDUO6 etc.) serão vistos como externos ao ES-
TADO1, ou serão vistos, em certo sentido, como internos ao ESTADO1, mas na simples condição
de visitantes estrangeiros ou de meros residentes. O INDIVÍDUO4, o INDIVÍDUO5, e o INDIVÍDUO6,
portanto, estarão dispensados de diversos encargos (alistamento militar, por exemplo), e exclu-
ídos de diversos benefícios (direito de eleger representantes políticos, por exemplo) que con-
vêm e apenas e unicamente às cidadãs e aos cidadãos do ESTADO1.
Para uma longa tradição de investigação filosófica, à qual pretendo me referir aqui
como tradição do contato social, o que determina o pertencimento do INDIVÍDUO1, INDIVÍDUO2,
INDIVÍDUO3 etc. ao ESTADO1 é o assentimento (explícito ou implícito) que dão às instituições
políticas e jurídicas do ESTADO1. Para que o INDIVÍDUO1, INDIVÍDUO2, INDIVÍDUO3 pertençam ao
ESTADO1 é necessário então que eles possam se compreender a si mesmos como participantes
de um contrato social por meio do qual ESTADO1 é fundado e regulado. Embora alguns autores
na tradição do contrato social possam ter se comprometido com a suposição de que esse con-
trato tenha de fato ocorrido no passado, outros autores, tais como, por exemplo, Hobbes,
Rousseau, Kant, e Rawls, conceberam o contrato social em termos meramente hipotéticos.
Kant se refere ao contrato social como “uma simples idéia da razão” (“eine bloße Idee der
Vernunft”) (Kant 1793, 8:297) e Rawls, mais explicitamente, como “uma situação puramente
hipotética” (“a purely hypothetical situation”) (Rawls 1999, 10).
9
Não se trata, portanto, de
supor que houve um momento no passado em que o INDIVÍDUO1, o INDIVÍDUO2, o INDIVÍDUO3
etc. resolveram abandonar o “estado de natureza” em que viviam e fizeram entre si um contrato
para fundar e regular o ESTADO1. Trata-se apenas de se perguntar se, para esses indivíduos, seria
racional assentir às instituições políticas e jurídicas do ESTADO1. A pergunta que se coloca, mais
precisamente, é a seguinte: se o ESTADO1 ainda não existisse, o INDIVÍDUO1, o INDIVÍDUO2, o
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INDIVÍDUO3, ainda assim, teriam razões para criar o ESTADO1? Interessa às teorias do contrato
social, portanto, saber se esses indivíduos têm boas razões para endossar a autoridade que o
ESTADO1 exerce sobre eles, e não a pergunta sobre a origem histórica do ESTADO1. No debate
sobre teorias do contrato social, essa distinção entre, de um lado, a pergunta a sobre a origem
do estado e, do outro, sobre as razões para se aceitar ou rejeitar a autoridade do estado sobre
seus próprios cidadãos e cidadãs, nem sempre foi feita com clareza.
A compreensão das teorias do contrato social como teorias acerca da origem do estado
tem de enfrentar uma série de problemas já bem conhecidos, a começar pela constatação trivial
de que embora tenhamos encargos, e desfrutemos de benefícios, criados pelo estado ao qual
pertencemos – ou seja, o estado em que nos reconhecemos e somos reconhecidos por outras
pessoas como cidadãos ou cidadãs nenhum de nós jamais participou de um contrato social
real, por meio do qual algum estado tenha um dia surgido. Além disso, ainda que tivesse havido
um contrato original entre os nossos antepassados com vistas à criação, digamos, do estado
brasileiro, disso não se segue que esse contrato poderia agora legitimamente criar encargos e
benefícios para as pessoas que não participaram do contrato original. Ou seja: se, por hipótese,
um suposto contrato original tivesse ocorrido, ainda assim permaneceria a questão sobre por
que razão os descendentes dos contratantes originais deveriam estar vinculados a encargos e
benefícios que eles mesmos (os descendentes) não criaram. Para os contratantes originais a
legitimidade estaria assegurada, pois, afinal, foram eles mesmos que criaram tais e tais encar-
gos e benefícios. No entanto, não é imediatamente claro por que razão as gerações subsequentes
deveriam estar automaticamente vinculadas às decisões das gerações passadas. Ao examinar
os argumentos da tradição do contrato social eu deixarei aqui de lado, portanto, a suposição
certamente absurda – segundo a qual teria havido um contrato original. O que me interessa na
discussão sobre teorias do contrato social é a pergunta sobre as razões para a inclusão ou, con-
forme o caso, para a exclusão de um indivíduo na esfera de encargos e benefícios criada pelo
estado. Evidentemente, outras teorias de filosofia política e de filosofia do direito, diferentes
daquelas na tradição do contrato social, se ocuparam desta pergunta. O que me interessa aqui
é justamente examinar esse contraste entre concepções filosóficas opostas acerca do que signi-
fica poder se compreender como portador de encargos e benefícios criados por um estado.
A resposta que teorias do contrato oferecem à pergunta sobre o critério de pertenci-
mento do INDIVÍDUO1 à esfera de encargos e benefícios do ESTADO1, mas não à do ESTADO2,
parece trivialmente simples: para que o INDIVÍDUO1 seja considerado cidadão do ESTADO1 é
necessário que o INDIVÍDUO1 tenha dado seu livre assentimento, seja de modo explícito ou
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implícito, às instituições políticas e jurídicas do ESTADO1. Se o INDIVÍDUO1 não participou do
contrato social para fundação e regulação do ESTADO2, então o INDIVÍDUO1 estará excluído da
esfera de proteção que o ESTADO2 cria para seus próprios cidadãos e cidadãs, e apenas para seus
próprios cidadãos e cidadãs. O livre assentimento do INDIVÍDUO1 à fundação e regulação do
ESTADO1 confere legitimidade à autoridade do ESTADO1 sobre o INDIVÍDUO1 e seus concidadão.
Mas a fundação do estado, como já enfatizado anteriormente, não deve ser concebida em ter-
mos históricos, mas apenas em termos hipotéticos e com vistas à elucidação da pergunta quanto
à legitimidade do estado em questão. Kant, por exemplo, percebeu com clareza esta função
meramente heurística da ideia do contrato social em um opúsculo de 1793 intitulado Sobre a
expressão corrente: Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. O trecho rele-
vante é este abaixo. Deixei entre colchetes as expressões correlatas no texto original em ale-
mão:
“Aqui está, pois, um contrato originário [ursprünglicher Contract] sobre o qual apenas
se pode fundar uma constituição civil entre as pessoas, portanto inteiramente legítima
[rechtlich], e se edificar uma comunidade. – Mas este contrato [Vertrag] (chamado con-
tractus originarius ou pactum sociale), enquanto coligação de cada vontade privada e
particular de um povo em uma vontade pública e geral (com vistas a uma legislação
simplesmente legítima [bloß rechtlichen Gesetzgebung]), não é de modo algum neces-
sário pressupor como um fato (e nem sequer é possível pressupô-lo); como se, por as-
sim dizer, devesse ser provado primeiro a partir da história que um povo, em cujos
direitos e obrigações ingressamos enquanto descendentes, devesse ter um dia efetiva-
mente consumado um tal ato e nos tivesse legado oralmente ou por escrito uma men-
sagem segura ou um documento a seu respeito, para assim nos considerarmos vincula-
dos a uma constituição civil vigente. Trata-se aqui, antes, de uma simples ideia da
razão [eine bloße Idee der Vernunft], a qual tem todavia a sua realidade (prática) indu-
bitável: a saber, obriga cada legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem
ter emanado da vontade coletiva de um povo inteiro, e a considerar cada súdito, na
medida em que ele quer ser cidadão, como se ele também estivesse em concordância
com uma tal vontade. É esta, com efeito, a pedra de toque da legitimidade [Rech-
mäßigkeit] de toda a lei pública [öffentlichen Gesetzes](Kant 1793, 8:297).
A ideia do contrato social é, portanto, o teste (ou a “pedra de toque”) da legitimidade
das ações do estado. Qualquer indivíduo, “na medida em que ele quer ser cidadão”, deve ser
capaz de se conceber a si mesmo como participante de um contrato social por meio do qual a
autoridade do estado seria estabelecida. No entanto, para poder se conceber a si mesmo como
participante de um contrato social, não é necessário que esse contrato tenha de fato ocorrido,
pois o contrato é considerado apenas em termos hipotéticos. Disso não se segue que o contrato
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seja meramente ficcional. O contrato tem “realidade (prática) indubitável”, tal como Kant su-
gere na passagem citada acima, na medida em que funciona como critério de legitimidade das
ações emanadas do estado frente a indivíduos que não se compreendem a si mesmos como
meros súditos, mas como cidadãs ou cidadãos.
Contractualismo e contractarianismo
A tradição de teorias do contrato social é bastante diversificada, estendendo-se da Antiguidade
aos dias de hoje (Boucher and Kelly 1994). Por essa razão, podemos encontrar uma ampla
diversidade de posições dentro dessa tradição, nem todas compatíveis entres si. Não examina-
remos aqui, porém, todas as teorias na tradição do contrato social. No próximo capítulo pre-
tendo examinar um pouco melhor uma versão (ou melhor, duas versões) da teoria do contrato
social que Platão discute, respectivamente, no segundo livro da República e no Críton, de Pla-
tão. Em um capítulo ulterior, pretendo examinar ainda uma terceira versão da teoria do contrato
social que Platão discute no Protágoras. Por ora, no entanto, cabe ressaltar uma distinção bá-
sica entre dois tipos de teorias do contrato social. Costuma-se fazer uma distinção entre, de um
lado, o contractualismo (do inglês contractualism) e, do outro, o contractarianismo (do inglês
contractarianism). Eu utilizarei a palavra contratualismo (sem o c mudo no meio da palavra)
quando uma distinção entre contractarianismo e contractualismo não for relevante. Nesse ca-
sos, por contratualismo entendo simplesmente teorias do contrato social de modo geral.
Quando for relevante, porém, eu serei mais específico e empregarei a palavra “contractaria-
nismo” ou, conforme o caso, “contractualismo” para me referir a uma posição específica den-
tro da tradição contratualista. Vejamos então primeiro o contractualismo.
Algumas teorias do contrato social (a de Locke, por exemplo) partem do pressuposto
de que as pessoas têm “direitos morais”, ou “direitos fundamentais”, ou “direitos humanos”,
ou (no caso de Locke) “direitos naturais” (direito à vida, direito à liberdade, e direito à propri-
edade privada). O mais importante aqui não é a nomenclatura utilizada para nos referirmos a
essas prerrogativas individuais, ainda que, em algumas discussões teóricas, seja relevante tra-
çarmos distinções conceituais mais precisas entre “direitos morais”, “direitos fundamentais”,
“direitos humanos”, ou “direitos naturais”. O mais importante é a suposição de que haveria
direitos (e obrigações correlatas) que não são derivados de um contrato social. Os indivíduos
já teriam esses direitos independentemente da existência da instituição do estado e, portanto,
independentemente de se compreenderem a si mesmos como cidadãs ou cidadãos. O problema,
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porém, é que do simples fato de se reconhecerem como sujeitos de direitos fundamentais (e
portadores de obrigações correlatas) não se segue que os indivíduos já teriam alguma garantia
de que seus direitos fundamentais não serão jamais violados por outros indivíduos, ou pelo
próprio estado a que pertencem, ou por estados de que não fazem parte. O INDIVÍDUO1 não pode
(utilizo aqui o verbo poder no sentido de estar autorizado a, e não no sentido de ter o poder
de) violar os direitos fundamentais do INDIVÍDUO2. No entanto, se a violação de fato ocorrer,
compete ao próprio INDIVÍDUO1, por assim dizer, fazer valer seus direitos fundamentais frente
ao INDIVÍDUO2. E boa sorte, então, para o INDIVÍDUO1, pois o INDIVÍDUO2 pode ser bem mais
forte do que INDIVÍDUO1. E boa sorte também para o INDIVÍDUO2, pois, no calor do momento, é
possível que o INDIVÍDUO1 se exalte e imponha ao INDIVÍDUO2 uma retaliação inteiramente des-
proporcional ao mal decorrente da violação do direito fundamental do INDIVÍDUO1. Alternati-
vamente, é possível ainda que um indivíduo não seja nem mais forte do que o outro nem perca
facilmente o autocontrole em situações de conflito. No entanto, ainda assim é possível que
ambos tenham diferentes interpretações acerca do ocorrido. Ou seja: o INDIVÍDUO1 e o INDIVÍ-
DUO2 podem divergir quanto à existência ou não de uma violação de direitos fundamentais, ou
quanto ao que poderia contar como uma reparação ou retaliação justa para violação que ocor-
reu. Segundo Locke, estes são alguns dos “inconvenientes” de vivermos numa comunidade
moral que não é ainda uma comunidade política (o estado). Nas circunstâncias que precedem
à criação de uma comunidade política – a que Locke se refere como “estado de natureza” – não
força policial para dissuadir agressões mútuas, ou para prender agressores, e não um
INDIVÍDUO3 que detenha o cargo de juíza ou juiz para arbitrar legitimamente sobre eventuais
conflitos entre o INDIVÍDUO1 e o INDIVÍDUO2. Por essa razão, segundo Locke, seria racional para
o INDIVÍDUO1, para o INDIVÍDUO2, para o INDIVÍDUO3 etc. fazer um contrato social com vistas à
criação do ESTADO1, com todas as instituições que, de modo geral, são constitutivas de um
estado: magistraturas, representantes políticos, forças de segurança etc. Para essa compreensão
do contrato social, os indivíduos já têm direitos e obrigações antes mesmo de participar de um
contrato social, mas esses direitos serão de pouca valia se os indivíduos não dispuserem de
meios efetivos para a sua proteção. A existência do ESTADO1 gera, portanto, para o INDIVÍDUO1,
INDIVÍDUO2, INDIVÍDUO3 etc. uma esfera de proteção que eles não teriam sem a existência ES-
TADO1. No entanto, essa esfera de proteção não se estende ao INDIVÍDUO4, INDIVÍDUO5, INDIVÍ-
DUO6 etc., que não participaram do contrato social para a criação do ESTADO1 e, portanto, não
são cidadãs ou cidadãos do ESTADO1. É possível, ainda, que o INDIVÍDUO4, INDIVÍDUO5,
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INDIVÍDUO6 etc. não se compreendam si mesmos como cidadãos ou cidadãs de estado algum, o
que poderia deixá-los ainda mais vulneráveis frentes às ações de outros estados.
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Um problema que essa versão da teoria do contrato social envolve é que ela, de modo
geral, não explica adequadamente por que razão deveríamos acreditar que as pessoas, em um
hipotético estado de natureza, ou seja, independentemente da existência de instituições políti-
cas ou jurídicas, já teriam direitos fundamentais. Dizer que algumas teorias do contrato social,
de modo geral, não apresentam argumentos em favor da tese segundo a qual a existência de
certos direitos fundamentais precede a existência do estado talvez não seja sequer uma recons-
trução adequada dessas teorias, pois mais frequentemente este problema não é sequer percebido
e parte-se então simplesmente do pressuposto de que seria evidente que as pessoas têm certos
direitos fundamentais (frequentemente denominados direitos naturais) cuja existência não de-
corre da existência de instituições humanas.
11
No entanto, não há nada de auto evidente com
relação à suposição de que haveria direitos fundamentais compreendidos em termos de direitos
cuja existência precede a existência de instituições humanas. Diferentes versões da teoria do
contrato social, no entanto, tomaram como ponto de partida esta suposição, ou seja: o estado
existe para proteger os direitos que as pessoas já teriam sem o estado. A esse tipo de posição
pretendo me referir como como contractualismo. É preciso agora compreender como o con-
tractualismo difere do contractarianismo.
Algumas teorias do contrato social procuram resolver o problema que o contractualismo
deixa em aberto admitindo de antemão que direitos fundamentais, no sentido acima definido,
não existem. Todos os direitos (e obrigações correlatas) são criações humanas, ainda que alguns
direitos possam ser mais fundamentais do que outros. A função do contrato social, segundo
essas teorias, consistiria, assim, em criar direitos fundamentais com base nos quais outros di-
reitos, menos fundamentais, poderão ser criados. Nos contextos em que os indivíduos se
reconhecem a si mesmos como sujeitos de direitos e obrigações em geral – esse é o contexto
em que de fato nos vemos geralmente inseridos – a função da ideia do contrato social consistiria
então em permitir que os indivíduos possam avaliar se tais direitos e obrigações são realmente
legítimos. Em um hipotético estado de natureza, portanto, as pessoas não teriam ainda direitos
fundamentais, mas apenas o interesse em ter certos direitos fundamentais. A esse tipo de posi-
ção pretendo me referir como como contractarianismo. Hobbes – pelo menos segundo muitos
intérpretes – seria um representante desse tipo de posição (Araujo 2022b; 2014; 2010; 2009;
2012a; 2012b). No entanto, nem o contractualismo nem o contractarianismo, como já mencio-
nado, se comprometem com a ideia de um contrato original de caráter histórico. Pelas mesmas
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razões, portanto, nem uma nem a outra posição se compromete com a suposição de que houve
um período histórico em que os indivíduos teriam vivido nas circunstâncias do estado de natu-
reza.
Tipos de estado de natureza
É importante notarmos agora três pontos com relação à tese segundo a qual o denominado
estado de natureza jamais tenha realmente existido em termos históricos, seja no que concerne
à posição contractualista, seja no que concerne à posição contractarianista.
Em primeiro lugar, ainda que jamais tenha havido um estado de natureza real, prece-
dente à emergência do estado, ainda assim, como Hobbes, Locke, e outros autores na tradição
do contrato social aptamente perceberam, o sistema de estado reproduz as circunstâncias do
estado de natureza. Ou seja: assim como, em um hipotético estado de natureza, um eventual
conflito entre o INDIVÍDUO1 e o INDIVÍDUO2 não pode ser resolvido por um INDIVÍDUO3, que
detenha legitimamente o cargo de árbitro para a resolução de conflitos, da mesma forma não
há no sistema de estados um árbitro para resolução de conflitos interestatais. Existem, eviden-
temente, instituições como a ONU (Organização das Nações Unida) e suas respectivas agên-
cias, capazes de mediar e mitigar conflitos entre estados (Herz and Ribeiro Hoffmann 2004).
No entanto, não há no sistema de estados nenhuma instituição que detenha o mesmo poder e
legitimidade para impedir que o ESTADO2 agrida o ESTADO1, ou para punir o ESTADO2, caso este
agrida o ESTADO1, da mesma forma como o ESTADO1 ou o ESTADO2 poderiam legitimamente
prender e punir seus respectivos cidadãs ou cidadãos nos casos de agressões individuais em
suas respectivas áreas de jurisdição. O estado de natureza entre estados é um estado de fato, e
não meramente hipotético.
O segundo ponto diz respeito à possibilidade de um colapso estatal, ou de um eventual
colapso do sistema de estados como um todo. Ainda que jamais tenha havido, no passado, um
estado de natureza anterior ao contrato social por meio do qual indivíduos teriam fundado seus
respectivos estados um tipo de fundação considerada apenas em termos hipotéticos –, um
estado de natureza real emergiria em decorrência de um hipotético colapso do estado, como
Locke aptamente percebeu no capítulo final do Segundo Tratado de Governo, ou, de modo
ainda mais dramático, e sem que Locke tenha abordado o problema, em decorrência de um
hipotético colapso do sistema de estados e das diversas instituições interestatais (Diamond
2010). O estado de natureza pode ser denominado hipotético, portanto, tanto em termos
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retrospectivos quanto em termos prospectivos. No primeiro caso em que o estado de natureza
é considerado em termos retrospectivos –, não se trata da hipótese de que possa ter havido no
passado um estado de natureza real, mas de que as relações humanas seriam como aquelas do
estado de natureza, se (por hipótese) os indivíduos vivessem sem a esfera de proteção que seus
respectivos estados lhes proporcionam. A ideia do contrato social permite aos indivíduos, as-
sim, avaliar a legitimidade dos diversos encargos e benefícios que seus respectivos estados lhe
impõem ou concedem, mesmo considerando que esses encargos e benefícios não decorrem de
um contrato originário real, que teria realmente ocorrido no passado. No segundo caso em
que o estado de natureza é considerado em termos prospectivos –, trata-se de considerar cir-
cunstâncias em que as pessoas de fato viveriam, se (por hipótese) a esfera de proteção propor-
cionada por seus respectivos estados fosse destruída. Também aqui vale dizer: a ideia do con-
trato social permite aos indivíduos avaliarem se ações de seus respectivos estados são legítimas
ou não. No entanto, não se trata aqui da legitimidade das ações relativas à imposição de encar-
gos e concessões de benefícios, mas, antes, das ações que podem comprometer a própria exis-
tência de uma esfera de proteção para os indivíduos. Teorias do contrato social se ocuparam de
modo praticamente exclusivo do estado de natureza como uma hipótese retrospectiva, pois a
ideia de um colapso global, decorrente de ações humanas, jamais chegou a ser seriamente con-
siderada. Além disso, teorias do contrato social tradicionalmente tomaram como foco da inves-
tigação a justificação para a existência de uma esfera de proteção contra um tipo particular de
ameaça, a saber: a ameaça que uns indivíduos podem representar uns para os outros no interior
de um mesmo estado. A ameaça de um estado contra outro estado também foi ocasionalmente
examinada (Araujo 2007, 151–52), ainda que instituições para a prevenção da violência entre
estados jamais tenham se mostrado inteiramente eficazes. Especialmente importante agora, no
contexto do século XXI, é a busca pela criação de uma esfera de proteção robusta e eficaz contra
as ameaças decorrentes de mudanças climáticas e pandemias. A esses tipos de ameaças pre-
tendo me referir mais adiante como ameaças não-humanas antropogênicas. Teorias do contrato
social deveriam incluir agora, portanto, a hipótese do estado de natureza em termos prospecti-
vos. Isto significa dizer: se o estado realizar ações que contribuem para fragilizar ou destruir a
esfera de proteção já existente, as ações do estado não podem ser consideradas legítimas. E o
que vale para as ações que enfraquecem a esfera de proteção vale também para as omissões.
Um tipo de situação concreta em que o estado pode enfraquecer, ou mesmo contribuir
para a destruição da esfera de proteção que ele cria para seus cidadãos e cidadãs – mesmo para
cidadãos e cidadãs que ainda não existem, mas existirão no futuro diz respeito a políticas
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climáticas. Dependendo de políticas climáticas que são implementadas hoje, cenários climáti-
cos catastróficos podem vir a se materializar no futuro (Araujo and Fior 2024). Do ponto de
vista de cidadãos e cidadãs mais jovens, que raciocinam sobre esse problema, inclusive, a partir
da perspectiva dos filhos e filhas que ainda não têm, mas pretendem ter no futuro, tais políticas
não podem ser consideradas legítimas. A emergência, nos últimos anos, dos denominados lití-
gios climáticos sugere que a legitimidade de ações e omissões dos estados em suas respectivas
políticas climáticas começa a ser amplamente questionada do ponto de vista jurídico, com
diferentes graus de sucesso, (Abate 2020). Parece não haver ainda, no entanto, um movimento
análogo, igualmente difundido, e ao qual pudéssemos nos referir como litígios pandêmicos
(Sterett 2023). Litígios pandêmicos diriam respeito, assim, à contestação jurídica seja em
âmbito doméstico ou internacional – das ações e omissões do estado que podem contribuir para
enfraquecer ou mesmo destruir a esfera de proteção que o estado oferece para seus respectivos
cidadãos e cidadãs, especialmente na área da saúde.
O terceiro ponto diz respeito à metodologia da investigação em filosofia política e filo-
sofia do direito. Embora o estado de natureza seja apenas uma hipótese, essa hipótese não pode
ser uma simples ficção. A hipótese do estado de natureza, seja ela considerada em termos re-
trospectivos ou prospectivos, somente pode fornecer um teste confiável para a legitimidade
das ações e omissões estatais, se a hipótese em questão for compatível com as melhores evi-
dências dadas pela ciência de nosso próprio tempo. Considerada de modo prospectivo, a hipó-
tese do estado de natureza tem de ser compatível com cenários futuros plausíveis. O conceito
de cenários futuros desempenha um papel crucial, por exemplo, nos relatórios do IPPC (Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Um relatório de 2018 define tal conceito nos
seguintes termos:
“Cenário. Uma descrição plausível de como o futuro pode evoluir com base num con-
junto coerente, e internamente consistente, de pressupostos sobre as principais forças
motrizes (por exemplo, taxa de mudança tecnológica, preços) e relacionamentos. Ob-
serve que os cenários não são predições nem previsões, mas são usados para fornecer
uma visão das implicações dos desenvolvimentos e ações” (IPCC 2018, 557).
Compete aos estados, portanto, implementar políticas climáticas e políticas pandêmicas
que, tanto quanto possível, impedirão a materialização de cenários futuros que fragilizem a
esfera de proteções que o estado deve promover para benefícios de seus próprios cidadãos e
cidadãs.
12
O fato de os cidadãos e cidadãs ainda não existirem no presente, como Sidgwick e
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Ralws notaram, não deveria ser relevante para o exame da legitimidade das ações estatais.
13
E
o que vale para o estado de natureza como uma hipótese prospectiva vale também para o estado
de natureza como uma hipótese retrospectiva. A caracterização do estado de natureza como
“uma simples ideia da razão” – para utilizar aqui novamente a formulação proposta por Kant –
deve ser compatível com o que sabemos sobre nossa história evolutiva, nossa constituição ge-
nética, e o que de modo geral sabemos sobre psicologia moral, e sobre o sistema climático do
planeta que habitamos. Caso contrário, a hipótese será apenas uma ficção conveniente, utili-
zada para simplesmente reforçar, em lugar de justificar, as ideias normativas que as pessoas,
de modo geral, já endossariam sem a teoria do contrato social (Araujo 2022b).
No próximo capítulo (Capítulo 3), como anunciado, eu gostaria de reconstruir os
argumentos da teoria do contrato social que Platão discute no segundo livro da República. É
importante desde já enfatizar que embora Platão discuta a posição contratualista, ele próprio é,
em larga medida, um crítico da versão da teoria do contrato social que aparece no início do
segundo livro da República. No Críton, porém, Platão parece mais propenso a aceitar a plausi-
bilidade de uma versão alternativa da teoria do contrato social.
Retomaremos a discussão sobre se, ou em que medida, teorias do contrato social ofere-
cem uma boa resposta à pergunta sobre o critério de pertencimento do INDIVÍDUO1 à esfera de
encargos e benefícios do ESTADO1, mas não à do ESTADO2 no Capítulo 4. Eu sugeri anterior-
mente que teorias do contrato social parecem dar uma resposta trivialmente simples a essa
questão. No entanto, alguém poderia alegar que, igualmente trivial é a constatação de que per-
tencemos ou deixamos de pertencer a um estado, não por força de nosso assentimento (seja
implícito ou explícito) a um hipotético contrato social, mas por força de nosso nascimento no
seio de uma determinada cultura. Para uma tradição que começa a se consolidar no século XIX,
e que tem se tornado novamente atrativa nos dias hoje, a fonte de nossos encargos e benefícios
na qualidade de cidadãs e cidadãos não é um hipotético contrato social, mas a nação à qual
pertencemos.
3. CONTRATO SOCIAL NA REPÚBLICA E NO CRÍTON DE PLATÃO
Gênese e essência da jusça
Não se sabe ao certo quando o conceito de acordo ou contrato ) passou a
ser usado, no contexto da filosofia antiga, para explicar natureza das leis e da justiça. Presume-
se que suas primeiras ocorrências datem do século V (Hansen 2019; Schröder 2001, 962; Kahn
1981, 92; Guthrie 1971; Kaerst 1909). Nesse período, a ideia segundo a qual a justiça, as leis,
e a sociedade de modo geral poderiam ser pensadas como resultado de uma espécie de acordo
ou contrato entre indivíduos auto interessados era comumente apresentada como um tipo de
posição a ser criticada. Por outro lado, a própria existência de uma crítica à ideia do contrato
social é um indício de que essa posição também tinha seus defensores. A julgar por uma
passagem do segundo livro da República, de Platão, o sofista Trasímaco era um dos principais
representantes – mas certamente não o único, como veremos nos próximos capítulos – da ideia
do contrato social na Antiguidade.
No início do segundo livro da República, Platão apresenta um diálogo entre Glauco e
Sócrates no qual se discute a “a origem e a essência da justiça” (γένεσίν τε καὶ οὐσίαν
δικαιοσύνης). A posição apresentada por Glauco é atribuída a Trasímaco. Na verdade, Glauco,
ele próprio, parece não estar muito convencido da plausibilidade da posição que o sofista de-
fende. Glauco apresenta a Sócrates a concepção sofista de justiça na expectativa de saber o que
Sócrates pensa a respeito: “vou fazer todos os esforços por exaltar a vida injusta; depois mos-
trar-te-ei de que maneira quero, por minha vez, ouvir-te censurar a injustiça, e louvar a jus-
tiça.”
14
É importante enfatizar esse ponto ao citar a passagem abaixo para que não fique a im-
pressão de que Platão endossa a teoria do contrato social atribuída a Trasímaco. A passagem
em questão é a seguinte:
“Dizem que uma injustiça é, por natureza um bem, e sofrê-la, um mal, mas que ser
vítima de uma injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira
que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de
ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra,
chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas.
Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de
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legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a gênese e a essência da justiça, que se
situa a meio caminho entre o maior bem – não pagar a pena das injustiças – e o maior
mal – ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre estes
dois extremos, deve, não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibi-
lidade de praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e fosse verdadei-
ramente um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem sofrer injustiças,
pois seria loucura. Aqui tens, ó Sócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua ori-
gem, segundo é voz corrente.” (358e-359b)
[...]
“E disto se poderá afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo por sua
vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si, individu-
almente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças,
comete-as. Efetivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa,
individualmente, a injustiça do que a justiça” (360d).
A ideia básica aqui é que a justiça não existe em si mesma, seja na natureza humana ou
sob a forma de algum princípio apodítico. A justiça, segundo a concepção do sofista, seria um
mero construto social resultante do interesse fundamental que cada indivíduo teria na promoção
de sua própria segurança, mesmo que a promoção da própria segurança possa representar uma
ameaça para outros indivíduos. Essa ideia, como Glauco sugere, era “a voz corrente” no perí-
odo em que Sócrates, Platão, Trasímaco e outros pensadores se ocuparam dos fundamentos
filosóficos do estado (ou cidade-estado). Como cada indivíduo, antes de qualquer outra coisa,
está preocupado com a preservação de sua própria segurança e como, além disso, eles já pas-
saram tanto por situações vantajosas quanto por situações desvantajosas no curso de suas inte-
rações uns com os outros – “e provam de ambas” segundo a passagem acima –, seria racional
para cada indivíduo, mesmo sem ter de antemão qualquer interesse especial pela segurança dos
demais, criar uma instituição para coibir, tanto quanto possível, agressões mútuas. A existência
de uma tal instituição beneficiaria todos os indivíduos, mas a motivação de cada indivíduo para
a criação dessa instituição não é a expectativa de que todos sairão ganhando, mas a expectativa
de que eu (cada indivíduo particular) sairei ganhando.
É possível, como sugeri no primeiro capítulo, que essa concepção de justiça tenha se
tornado “a voz corrente” na Antiguidade em decorrência da derrota de Atenas na Guerra do
Peloponeso. Escrevendo retrospectivamente sobre o conflito, Tucídides relata diversas situa-
ções em que a violência a que se viram expostos os cidadãos e cidadãs de Atenas não dizia
apenas respeito aos inimigos externos, mas também às agressões que os cidadãos e cidadãs de
Atenas passaram a perpetrar uns contra os outros. A violência interna foi agravada pela epide-
mia que assolou a cidade durante a guerra. Para se proteger do inimigo externo, os habitantes
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de Atenas cercaram a cidade e, assim, se viram forçados a conviver em regime de confina-
mento. Isso, como se sabe hoje, contribui de modo decisivo para a proliferação de doenças
infectocontagiosas, muito embora não se saiba ao certo até hoje qual teria sido a doença. Os
conflitos internos em meio à epidemia, e sob a pressão de uma guerra, parecem ter levado os
habitantes de Atenas a sucumbirem ao tipo de situação que, em algumas versões da teoria do
contrato social, caracteriza o denominado estado de natureza. E mais especificamente: o tipo
de estado de natureza a que me referi no capítulo anterior como uma situação concreta e que
pode se instaurar em decorrência do colapso do estado. Há duas passagens do texto de Tucídi-
des em torno desse tema que eu gostaria de citar integralmente a seguir:
“53. De um modo geral a peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia total.
Ousava-se com a maior naturalidade e abertamente aquilo que antes só se fazia oculta-
mente, vendo-se quão rapidamente mudava a sorte, tanto a dos homens ricos subita-
mente mortos quanto a daqueles que antes nada tinham e num momento se tornavam
donos dos bens alheios. [...] o temor dos deuses e as leis dos homens já não detinham
ninguém, pois vendo que todos estavam morrendo da mesma forma, as pessoas passa-
ram a pensar que impiedade e piedade eram a mesma coisa; além disto, ninguém espe-
rava estar vivo para ser chamado a prestar contas e responder por seus atos; ao contrá-
rio, todos acreditavam que o castigo já decretado contra cada um deles e pendente sobre
suas cabeças, era pesado demais, e que seria justo, portanto, gozar os prazeres da vida
antes de sua consumação(Tucídides 2001, 117–18).
“82. Na paz e prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores sentimentos, por-
que não são forçados a enfrentar dificuldades extremas; a guerra, ao contrário, que priva
os homens da satisfação até de suas necessidades cotidianas, é uma mestra violenta e
desperta na maioria das pessoas paixões em consonância com as circunstâncias do mo-
mento. Assim as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções, e as que são atin-
gidas por estas mais tarde, conhecendo os acontecimentos anteriores, chegam a extra-
vagâncias ainda maiores em iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias
nunca antes imaginadas. A significação normal das palavras em relação aos atos muda
segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade
corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente se torna covardia dissimulada; a
moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente
equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril,
mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível sempre
merece confiança, e seu oposto se torna suspeito. O conspirador bem-sucedido é inte-
ligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses procedimentos
é tido como traidor do partido e um covarde diante dos adversários. Em suma, ser o
primeiro nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo
de elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos que os de partido,
no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda de tempo,
pois tais associações não se constituem para o bem público respeitando as leis
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existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor da ambição. Os compro-
missos tiram a sua validade menos de sua força de lei divina que da ilegalidade perpe-
trada em comum. Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes preva-
lecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa
é mais apreciado que não haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm
valor no momento em que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face
a uma emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo
um adversário desprevenido, é o primeiro a se atrever, acha sua vingança mais agradá-
vel por causa do compromisso rompido do que se atacasse abertamente, levando em
conta não somente a segurança de tal procedimento, mas também a circunstância de,
por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a elogios por sua astúcia. De um modo
geral os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos que tolos
honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro” (Tucídides
2001, 198–99).
É no contexto da crise desencadeada pela guerra e pela epidemia que surge a questão,
entre alguns autores da Antiguidade, acerca da fundamentação filosófica para a existência do
estado (ou cidade estado), com todas as instituições políticas e jurídicas constitutivas da insti-
tuição do estado. Nesse contexto, parece atrativa a suposição de que a principal razão para a
existência do estado seria impedir que as pessoas se agridam mutuamente, sem que haja um
mecanismo institucional para coibir a violência entre eles. E uma vez que um ESTADO1 tenha
sido constituído, outra razão para a proteção e preservação da instituição do estado do ESTADO1
seria impedir que um ESTADO2 represente uma ameaça para a segurança dos cidadãos e cidadãs
do ESTADO1. Disso não se segue, porém, que “a voz corrente” tenha parecido igualmente atra-
tiva para todos os autores da Antiguidade. Pelo contrário, muito do que sabemos hoje sobre a
“voz corrente” nós sabemos em função das críticas que aparecem em alguns clássicos da época.
O que deve nos interessar neste capítulo, no entanto, não é a pergunta histórica sobre as razões
para a emergência da “voz corrente”, mas apenas as razões que Platão apresentou em favor de
sua atratividade bem como algumas críticas que ele mobilizou para a sua rejeição.
Cometer uma injustiça, afirma Glauco na supracitada, é um bem, pois isso gera algum
tipo de vantagem para quem comete a injustiça. A palavra “bem” (ἀγαθόν) tem nesse contexto
um sentido moralmente neutro. Dizer que algo é um bem ou, conforme o caso, um mal (κακόν)
para um determinado indivíduo significa dizer que isso representa, para esse indivíduo especí-
fico, algum tipo de vantagem ou, conforme o caso, algum tipo de desvantagem (Tugendhat
1984, 43–45).
Não é difícil de perceber que as palavras bom” e “bem” (ou seus equivalentes em
outras línguas) são frequentemente empregadas em um sentido moralmente neutro. Isso ocorre
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quando dizemos, por exemplo, que um determinado objeto, digamos, uma faca, é boa porque
ela corta bem. A faca é boa porque tem essa qualidade que caracteriza o ser-bom de uma faca,
a saber: cumprir a sua finalidade própria. Ou seja: o ser-bom da faca consiste em realizar ple-
namente o fim próprio de uma faca. A expressão ser-bom, evidentemente, soa aqui artificial e
desnecessária para simplesmente dizermos que a faca é boa. No entanto, havia no vocabulário
grego da Antiguidade uma palavra para designar esta ideia de um ser-bom próprio de cada
objeto, inclusive de pessoas, a saber: areté (ἀρετή), geralmente traduzida como virtude. A pa-
lavra areté é um substantivo correlato ao adjetivo bom (ἀγαθός). Essa correlação entre subs-
tantivo e adjetivo existe em português: de um objeto duro podemos dizer que ele tem a quali-
dade da dureza; de um objeto claro podemos dizer que ele tem a propriedade da clareza; e de
um objeto belo podemos igualmente dizer que ele tem beleza. Soaria, porém, estranho em por-
tuguês – e isso vale para outras línguas também – dizermos de uma faca que ela tem a qualidade
bondade. A palavra “bondade” (e termos correlatos em outras línguas modernas) tem uma
conotação moral que a palavra “bom” não tem necessariamente. No entanto, era perfeitamente
inteligível, no contexto da língua utilizada por Platão, Aristóteles e outro filósofos da Antigui-
dade utilizar as palavras bom e bem (ἀγαθός) e a palavra areté (ἀρετή) em um sentido moral-
mente neutro (Stemmer 1998). O que nos interessa neste capítulo é precisamente essa utilização
das palavras “bem” e “bom”, tal como elas ocorrem no trecho do segundo livro da República
citado acima em se : “Dizem que uma injustiça é, por natureza um bem.” O que isso pode
significar?
Cometer uma injustiça é, para aquele que a comete, um bem e, para a vítima da injus-
tiça, um mal. Denominemos o bem que em cometer uma injustiça de bem1. Se a injustiça
do INDIVÍDUO2 sobre o INDIVÍDUO1 é um bem para o primeiro, e um mal para o segundo, é
razoável supor então que, para o INDIVÍDUO1, evitar sobre si uma injustiça perpetrada pelo IN-
DIVÍDUO2 é também um bem. Denominemos este segundo bem de bem2. O que a passagem da
República citada acima propõe é uma comparação entre o bem1 e bem2: “ser vítima de uma
injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la”. Ou seja: cometer uma injustiça
pode ser vantajoso, mas mais vantajoso ainda seria evitar sobre si mesmo uma injustiça (Stem-
mer 1988, 555). Poderíamos redescrever essa tese da seguinte forma:
bem2 > bem1
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Dizer que bem2 é maior do que bem1 significa simplesmente dizer que prezamos bem2
mais do que prezamos bem1, ou seja, consideramos mais vantajosa a realização de bem2 do que
a realização de bem1. Essa tese é especialmente intuitiva quando o que está questão consiste,
por exemplo, em lesar uma pessoa com objetivo de se apoderar de algo que ela possui. Para o
INDIVÍDUO2, assim, seria vantajoso agredir o INDIVÍDUO1 com vistas, por exemplo, a se apossar
de sua comida. No entanto, mais vantajoso ainda para o INDIVÍDUO2 seria impedir o INDIVÍDUO1
de fazer o mesmo com o INDIVÍDUO2. Segundo o relato acerca da origem e essência da justiça
feito por Platão através da fala de Glauco, relato esse atribuído ao sofista Trasímaco, para evitar
a maior desvantagem (ser vítima de uma injustiça), o indivíduo INDIVÍDUO1, INDIVÍDUO2, INDI-
VÍDUO3 etc., teriam feito então um acordo ou contrato através do qual a violência mútua é coi-
bida. Essa é a instituição da lei e da justiça. A lei e a justiça têm como objetivo impedir, tanto
quanto possível, que os indivíduos sofram injustiças uns dos outros, e isso significa dizer: im-
pedir a violência recíproca. As leis e justiça, portanto, visam primariamente à promoção do
bem2. Para que a instituição das leis e da justiça cumpra o seu fim é, evidentemente, necessário
que cada indivíduo renuncie à violência sobre qualquer outro indivíduo. Os indivíduos, dessa
forma, devem renunciar ao bem1. A “origem e essência da justiça”, segundo o relato de Glauco
acerca da posição defendida pelo sofista, consistiriam precisamente nesse contrato que garante
a precedência de o bem2 sobre o bem1. Afinal, ainda que isso não seja explicitamente afirmado
na passagem citada, a vantagem que havia em tentar promover para si mesmo o bem1 deixa de
existir, ou pelo menos se torna bem menos atrativa, diante da perspectiva de ser punido por
agredido outra pessoa. Enquanto a instituição da lei e da justiça estiver funcionando como deve
funcionar, a única maneira de ser evitar esse mal (a punição), que cada indivíduo concordou
em criar, consiste em agir em conformidade com o que é exigido por uma questão de lei e de
justiça.
Alguém poderia agora talvez alegar que há um problema com a reconstrução que Platão
faz do argumento de Trasímaco. Se não havia justiça antes do estabelecimento do contrato,
então também não poderia haver injustiça. Somente faz sentido falarmos de injustiça em con-
textos em que faz sentido falarmos de justiça. O próprio ponto de partida do argumento, por-
tanto, parece problemático. No entanto, a meu ver, esse não é um problema que realmente
comprometa a atratividade do argumento sofista. É como se considerássemos o argumento de
Trasímaco retrospectivamente: nós já vivemos sob as exigências da lei e da justiça, concebidas
como resultado de um contrato entre indivíduos auto interessados. Poderíamos então nos referir
retrospectivamente ao que ocorria antes do contrato como atos de injustiça ou transgressões da
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lei. Uma vez que tenhamos adquirido familiaridade com o vocabulário da justiça e injustiça,
poderíamos nos referir espontaneamente a qualquer ato de agressão como um de injustiça.
Após a instituição das leis e da justiça, como se pode esperar, a justiça passa a ser um
bem. A justiça constitui um bem na medida em que, ao agirmos em conformidade com o que é
exigido pelas leis e pela justiça, evitamos as punições a que estaríamos submetidos, caso não
agíssemos em conformidade com as exigências do contrato. Chamemos o bem que há em agir
em conformidade com o que foi estabelecido pelo contrato de bem3. É correto, portanto, assu-
mirmos o seguinte:
bem3 > bem1
Para um indivíduo que tenha participado do contrato, praticar atos de justiça é mais
vantajoso do que praticar atos de injustiça, pois, ao cometer uma injustiça ele terá de contar
com a desvantagem que há em ser punido. Surge então a pergunta sobre a relação entre bem3 e
bem2. Qual será o bem maior: praticar a justiça (bem3) ou evitar sobre si uma injustiça (bem2)?
Segundo a exposição feita por Glauco, temos de admitir que bem2 > bem3. Para um dado indi-
víduo que tenha participado do contrato, é mais importante evitar ser vítima de uma injustiça
do que praticar a justiça. Isto se segue da própria concepção acerca da “origem e essência” da
justiça em questão: a justiça é criada com o objetivo primário de garantir que cada indivíduo,
considerando o que ele toma como mais vantajoso para si mesmo, não será vítima de injustiça,
ou seja de agressões perpetradas por outrem. O indivíduo considera igualmente vantajoso evitar
ser punido. A justiça, portanto, é um bem apenas na medida que ela assegura a cada indivíduo
um bem ainda maior: o interesse em não ser vítima de agressões. Portanto, poderíamos afirmar
agora o seguinte:
bem2 > bem3 > bem1
A justiça, compreendida dessa foram, não seria um bem supremo, mas um bem inter-
mediário. Disso não segue, como já enfatizei anteriormente, que Platão defenda essa posição.
Um dos principais objetivos de Platão na República consiste em mostrar que esta hierarquia de
bens proposta pelo sofista é equivocada. Para Platão bem3 > bem2. Platão sustenta que é melhor
sermos objetos de uma injustiça do que cometermos uma injustiça (Schütrumpf 1997; Willi-
ams 1997; Kraut 1992). Uma implicação da tese defendida por Platão é que a precedência da
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justiça sobre a segurança individual poderia exigir que o indivíduo aceite o mal que há em ser
punido mesmo nas ocasiões em que poderia, em princípio, fugir da punição. Afinal, fugir da
punição é uma maneira de promover bem2 (Kerferd 1993, 120; Guthrie 1971, 88).
O primeiro problema para o qual Platão chama atenção na teoria do contrato social do
sofista diz respeito à premissa implícita relativa à distribuição de poder no estado de natureza,
ou seja, antes da realização do contrato. A teoria do contrato social atribuída ao sofista pressu-
põe uma distribuição relativamente igual de poder, mas isso raramente ocorre. Se um dos par-
ticipantes do contrato tiver mais poder, ou vier a adquirir mais poder do que os demais, então
ele terá menos razão para aderir aos termos do contrato. Suponhamos, por exemplo, que o
INDIVÍDUO2 seja – ou tenha se tornado – mais poderoso do que o INDIVÍDUO1, tão poderoso que
poderia cometer injustiças contra o INDIVÍDUO1 sem correr o risco de ser punido. Nessas cir-
cunstâncias, por que o INDIVÍDUO2 deveria abrir mão de cometer uma injustiça contra o INDIVÍ-
DUO1? Se nossa obrigação de não agredirmos outras pessoas, mesmo quando elas não repre-
sentam uma ameaça para nós, dependesse unicamente do medo de ser punido em decorrência
das injustiças que cometemos, então, a rigor, não teríamos a obrigação de agir em consonância
com os termos do contrato nos contextos em que, agindo em segredo, sabemos que não seremos
punidos. Através do contrato, a instituição da lei e justiça é criada, mas disso não se segue que,
após a realização do contrato, os indivíduos tenham se tornado pessoas justas, ou seja: o con-
trato social, por si só, não faz dos indivíduo pessoas autenticamente movidas pela virtude da
justiça. A pessoa autenticamente movida pela virtude da justiça a pessoa justa agirá em
conformidade com as leis e a justiça independentemente de considerações sobre a possibilidade
de ser punida. Com isso, vemos a primeira dificuldade que contratualismo, compreendido como
uma teoria sobre o conceito de justiça, tem de enfrentar. Platão chama atenção para esse pro-
blema na discussão do mito de Gyges, na sequência da passagem da República citada anterior-
mente. Segundo a narrativa, Gyges possuía um anel que o tornava invisível. A invisibilidade
permitia a Gyges, ou a qualquer usuário do anel, se tornar imune às sanções das leis.
“Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o homem justo pusesse um, e o injusto
outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no cami-
nho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar,
sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a
quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo
o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta ma-
neira, os seus atos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo
caminho. E disto se poderá afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo
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por sua vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si,
individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injus-
tiças, comete-as. Efetivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais van-
tajosa, individualmente, a injustiça do que a justiça. E pensam a verdade, como dirá o
defensor desta argumentação. Uma vez que, se alguém que se assenhoreasse de tal po-
der não quisesse jamais cometer injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, parece-
ria aos que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Contudo, haviam de elogiá-
lo em presença uns dos outros, enganando-se reciprocamente, com receio de serem
vítimas de alguma injustiça. Assim são, pois, estes fatos” (360b-e).
A passagem acima é precedida de uma narrativa bem curta acerca das circunstâncias
em que Gyges teria encontrado o seu anel, a saber: no corpo de uma pessoa morta e que tinha
ao seu redor um vasto tesouro. Isso parece sugerir que o indivíduo que comete uma injustiça
em segredo, e consegue e evitar as desvantagens da punição, ainda assim não estará realmente
em condições de usufruir as vantagens que vier a obter como fruto de seus atos de injustiça. A
pergunta que tem de ser respondida, portanto, é sobre por que razão a vida da pessoa justa seria
melhor do que a da pessoa injusta. Afinal, como mencionado no início do presente capítulo, o
que interessa a Glauco é ouvir Sócrates “censurar a injustiça, e louvar a justiça.”
Ao criticar a teoria do contrato social atribuída ao sofista Trasímaco, Platão não rejeita
inteiramente a ideia do contrato social enquanto tal. Platão parece admitir a plausibilidade da
posição contratualista, rejeitando, porém, a premissa a partir da qual o argumento se desen-
rola.
15
Na versão do contrato social atribuída ao sofista, a decisão sobre participar ou não de
um esquema cooperativo do qual todos saem ganhando decorre da suposição de que cada indi-
víduo representa uma ameaça para os demais indivíduos. Para cada indivíduo seria racional,
portanto, abrir mão da violência contra os demais indivíduos, contato, é claro, que os demais
indivíduos também façam isso. A única razão que os indivíduos terão para renunciar à agressão
mútua, porém, é a existência de um uma instituição, criada por meio do contrato, que seja capaz
de restringir, tanto quanto possível, a violência mútua. Repare que esse é um esquema coope-
rativo em que a única coisa que cada indivíduo tem a oferecer é a sua própria renúncia à vio-
lência contra os demais. Compreendida dessa forma, a teoria do contrato social do sofista não
constitui propriamente uma teoria de filosofia política, mas uma teoria moral contractarianista.
Sobre o estado, a teoria do sofista, pelo menos tal como ela é apresentada no segundo livro da
República, não tem realmente nada a dizer, pois poderíamos ter a expectativa de que o estado
deva proporcionar aos cidadãos e cidadãs mais do que a segurança contra a possibilidade de
agressão. Platão, diferentemente do sofista, sugere que o estado, como um tipo de
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empreendimento cooperativo, deve proporcionar aos seus cidadãos e cidadãs mais do que se-
gurança, mas uma série de bens que as pessoas consideram relevantes para viverem uma boa
vida. Essa ideia é introduzida com a seguinte fala de Sócrates:
“– Ora disse eu uma cidade [πόλις] tem a sua origem, segundo creio, no fato de
cada um de nós não ser autossuficiente [αὐτάρκης], mas sim necessitado de muita coisa.
Ou pensas que uma cidade se funda [πόλιν οἰκίζειν] por qualquer outra razão?
– Por nenhuma outra – respondeu.
– Assim, portanto, um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda para
outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem numa habitação companheiros e
ajudantes. A essa associação pusemos o nome de cidade. Não é assim?
– Absolutamente.
– Mas se uma pessoa participa numa sociedade com outra, se dá ou recebe algo, é na
convicção de que isso é melhor para ela?
– Certamente.
– Ora vamos lá! – disse eu –. Fundemos em imaginação uma cidade [τῷ λόγῳ ξ ρχς
ποιῶμεν πόλιν].
16
Serão, ao que parece, as nossas necessidades [χρεία] que hão-de
fundá-la.
– Como não?
Mas por certo que a primeira e a maior de todas as necessidades é a obtenção de
alimentos, em ordem a existirmos e a vivermos.
– Inteiramente.
– A segunda é a habitação; a terceira, o vestuário, e coisas no gênero” (369 b-e).
A renúncia à violência, para Platão, não é o tipo de necessidade que levaria as pessoas
a fundar o estado (polis). A cooperação para fundação de um estado envolve mais do que a
mera promoção da segurança contra a violência mútua. Ela envolve, antes, a satisfação de ne-
cessidades como alimentação, habitação, vestuário etc. Nenhum indivíduo poderia produzir
sozinho todos esses itens, pelo menos não da mesma forma como esses bens são produzidos
através da cooperação social. Uma vez que uma comunidade política tenha sido estabelecida
e, com isso, a satisfação de certas necessidades básicas tenha sido assegurada, surge a perspec-
tiva de se viver em paz. Poderíamos mesmo supor, muito embora Platão não afirme isso expli-
citamente, que a renúncia à violência mútua é uma necessidade que emerge apenas após a fun-
dação do estado, pois ela é indispensável para a preservação da ordem interna. A renúncia à
violência mútua, portanto, considerada dessa maneira, não seria o ponto de partida do argu-
mento para a fundação do estado, mas o seu ponto de chegada. A cooperação social, aliada à
manutenção da ordem interna por meio da lei, proporciona às pessoas a satisfação de algumas
necessidades. No entanto, disso se segue agora um problema, a saber: e se as
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se o estado buscar a aquisição de mais riqueza do que aquela que é necessária para
suprir as “necessidades naturais”, ele certamente entrará em conflito com outros estados, dando
início, assim, a guerras (373e).
4. ESTADO, NAÇÃO, E ESTADO-NAÇÃO
Alguém poderia alegar, contra a teoria do contrato social, que não basta que o INDIVÍDUO1
seu assentimento às instituições políticas e jurídicas do ESTADO1 para que ele possa ser incluído
esfera de encargos e benefícios criada pelo ESTADO1. Com efeito, se isso fosse assim, qualquer
indivíduo que desse seu assentimento às instituições políticas e jurídicas do ESTADO1 se tornaria
automaticamente um cidadão do ESTADO1. Eu poderia, por exemplo, me dirigir aos cidadãos
do ESTADO1 (digamos, os Estados Unidos) e declarar o seguinte, em inglês, ao desembarcar no
aeroporto de Nova York:
“Por meio desta frase, que ora profiro em alto e bom som na presença de todos vocês,
caros cidadãos e autoridades dos Estados Unidos, eu dou meu assentimento pleno e
irrestrito às instituições políticas e jurídicas deste país. Daqui para frente, podem contar
comigo para o que der vier. Comprometo-me a aceitar todos os encargos, na expectativa
também de ter todos os benefícios, atribuídos às cidadãs e cidadãos norte-americanos.”
Será que esse proferimento, por si só, faria de mim um cidadão americano? É óbvio que
não? É digno de nota, porém, que nem Hobbes, nem Locke, nem Rousseau nem outros autores
e autoras na tradição de teorias do contrato social, que escreveram da Antiguidade até o final
da Época Moderna, parecem ter se ocupado desse problema. Contanto que um indivíduo
livremente seu assentimento, seja de modo explícito ou implícito, às instituições políticas e
jurídicas do estado, que razões poderia haver para excluí-lo dos encargos e benefícios criados
pelo estado? O que parece óbvio para nós, porém, pode não ter sido tão óbvio para autores e
autoras que escreveram na da Antiguidade até o início da Época Moderna. Por que razão, então,
parece tão óbvio agora que ninguém possa se tornar cidadão ou cidadã de um estado unica-
mente nos termos propostos por teorias do contrato social?
É possível que, ao desembarcar em Nova York, as pessoas me olhem com estranheza
porque eu falo a língua delas com um sotaque diferente; ou porque não gostam das roupas que
visto; ou porque professam em sua maioria uma religião diferente da minha; ou porque minha
epiderme têm tonalidades diferentes da do restante da população. Essas marcas, porém, deve-
riam ter alguma relevância para que um indivíduo pudesse ser incluído na esfera de encargos e
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benefícios de um estado? Afinal de contas, o contrato social diz respeito ao livre assentimento
às instituições políticas e jurídicas do estado, e não ao sotaque, ou às vestimentas, ou à religião,
ou à corda da pele das partes contratantes.
Alguém poderia talvez alegar que estou distorcendo as teorias do contrato social, pois
essas teorias, tal como propostas por Hobbes, Locke, ou Rousseau, ainda que diferentes entre
si em diversos aspectos relevantes, têm em comum a suposição de que os participantes do
contrato social podem se compreender as si mesmos como cofundadores do estado a que per-
tencem, ainda que um contrato original jamais tenha ocorrido. Para se compreender a si mes-
mos como cofundadores, tudo que importa é saber se eles dariam assentimento à fundação do
estado a que de fato pertencem, com todos os encargos e benefícios já existentes e aos quais já
estão vinculados, caso esse estado ainda não existisse. Com relação ao exemplo que eu sugeri
acima, por outro lado, alguém poderia talvez alegar que eu não posso me compreender a mim
mesmo como cofundador do ESTADO1 porque ele já estava lá quando eu desembarquei em Nova
York e que os encargos e benefícios existentes no ESTADO1 não são vinculantes para mim.
No entanto, por que isso deveria ser relevante?
Seria talvez possível alegar o seguinte: os cidadãos do ESTADO1, por já terem fundado
o ESTADO1 sem a minha participação, são livres para não me considerar elegível como um de
seus concidadãos. Essa alegação, no entanto, me parece inconsistente com o cerne mesmo da
proposta contratualista, pois os cidadãos e cidadãs de ESTADO1, assim como eu, também não
participaram de nenhum contrato originário por meio do qual o ESTADO1 teria sido fundado.
Tudo que eles fazem é endossar periodicamente, seja de modo explícito ou implícito, as insti-
tuições políticas e jurídicas de ESTADO1. Se isso é assim, contanto que eu declare solenemente
meu endosso às instituições políticas e jurídica de ESTADO1, dando sinais relativamente genuí-
nos e confiáveis de que me comprometo a seguir as normas que regem a vida social no ESTADO1,
seria irracional, para os habitantes de ESTADO1, rejeitar minha participação com base em crité-
rios arbitrários como, por exemplo, pertencimento a uma religião específica, ser falante nativo
de um dado idioma, usar certas roupas, ou ter essa ou aquela cor de pele. (A suposição de que
o local de meu nascimento ou minha ascendência familiar seriam critérios menos arbitrários
me parece também problemática, mas por outras razões, que precisam ser examinadas separa-
damente). A teoria do contrato social, tal como formulada na Época Moderna por grandes no-
mes da filosofia política e da filosofia do direito, consiste numa tentativa de compreender o
corpo político que o estado como um corpo racional, ou seja, como uma entidade que existe
por força de razões, e não por conta de características inteiramente arbitrárias. Se devemos
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rejeitar que uma pessoa pode legitimamente exercer o cargo de soberano de um estado por
conta de um suposto mandato divino, tal como propuseram Hobbes, Locke e outros autores
modernos, não deveríamos então, pelas mesmas razões, rejeitar a suposição de que as pessoas
se tornam cidadãos ou cidadãs de um dado estado por força da religião que professam, ou da
língua que falam, ou das roupas que vestem, ou da tonalidade da pele que têm?
Nação como fonte de encargos benecios
Uma ideia que começa a tomar corpo no século XIX é a suposição de que a cada estado deve
corresponder também a uma nação – e preferencialmente uma única nação. O estado, compre-
endido dessa maneira, não seria constituído por um conjunto de regras e instituições passíveis
de serem pensadas como resultantes de um contrato. O estado deveria ser constituído primari-
amente, por uma nação. A primeira dificuldade, porém, consiste em termos uma compreensão
clara acerca do conceito de nação. Com efeito, poderíamos aceitar que a fonte dos encargos e
benefícios que convém aos cidadãos e cidadãs de um dado estado é seu pertencimento a uma
dada nação, mas ainda assim poderíamos permanecer reticentes quanto ao critério a ser adotado
na hora de decidirmos se um dado indivíduo pertence ou não a uma dada nação. Pode haver,
com outras palavras, profundas divergências, e até mesmo sérios conflitos, acerca do que torna
o estado um estado nacional. Uma diversidade de critérios poderia ser listada aqui: o estado é
um estado nacional porque nele existe uma religião comum a todos os cidadãos; ou uma única
língua que todos falam e entendem; uma etnia à qual a maioria se sente afiliado; um senso de
história compartilhada etc. Qualquer que seja o critério de pertencimento de um dado indivíduo
a uma dada nação, não é difícil perceber que nação e estado sejam entidades distintas, pois
estados e nações podem se relacionar de muitas maneiras diferentes. Considere, por exemplo,
as seguintes combinações de estado e nação:
Um estado, quatro nações (a Suíça).
Uma nação, nenhum estado (a Palestina durante muito tempo).
Um estado, nenhuma nação (o Vaticano nos dias de hoje. Muitas pessoas podem ser
reconhecer a si mesmas como católicas, mas não como membros da grande nação va-
ticana).
Uma nação, dois estados (Alemanha, logo após a Segunda Guerra, ou seja: Alemanha
Ocidental e Alemanha Oriental. Isso também se pode dizer da Coréia a partir de 1953,
ou seja: Coréia do Norte e Coréia do Sul).
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Um estado, duas nações (Alemanha imediatamente após a reunificação em 1989. Se a
Coréia do Norte e a Coréia do Sul fossem reunificadas hoje, é bastante provável que
seus habitantes tivessem a nítida impressão de que esse novo estado compreende duas
nações diferentes).
Diferentes nações espalhadas por mais de um estado, mas sem que essas nações for-
mem um estado próprio (situação dos curdos, dispersos entre a Síria, a Turquia, o Irã,
e o Iraque. O Curdistão, convém lembrar, não é um estado independente. Isso se pode
dizer também do “país Basco”, que a rigor não é realmente um país (no sentido de
estado), mas uma região que compreende partes da Espanha e da França).
Nações que nunca se compreenderam como Estados e que foram colonizadas por Eu-
ropeus e, mais tarde, adquiriram independência, transforando-se assim em um Estado
independente no interior do qual passaram conviver diferentes nações. Exemplos claros
de configurações desse tipo são a África do Sul e Ruanda.
Uma nação que não é um estado nem aspira se tornar um estado (Porto Rico, que é na
verdade um protetorado dos Estados Unidos).
Uma nação que poderia, em princípio, se tornar um estado independente, mas que re-
nuncia a tal direito (região do Quebec no Canadá após o plebiscito de 2013. Algo pa-
recido ocorreu com a região do Sarre (ou Saarland em alemão) que pertencia à França.
Em 1955 a região do Sarre renunciou ao direito de se tornar um estado independente e,
no ano seguinte, se tornou parte da Alemanha Ocidental).
Uma nação que ergue a pretensão de se tornar um Estado independente, mas à qual essa
pretensão é negada pelo Estado do qual ela pretende se emancipar (a região da Catalu-
nha na Espanha).
Uma minoria nacional que não aspira se tornar parte de um estado no qual seus habi-
tantes deixariam de ser vistos como minoria nacional, e menos ainda aspira se tornar
um estado independente. Exemplos disso são a minoria nacional dinamarquesa no norte
da Alemanha, onde o dinamarquês é reconhecido como língua oficial; ou a região do
Tirol, na Itália, na qual se fala alemão.
Uma nação que existe como exclave em outro estado. Exemplo disso é a comarca es-
panhola de Llívia, dentro do território francês, por exemplo. Isso se pode dizer também
da região de Oé-Cusse Ambeno, que é um exclave do Timor-Leste dentro do território
da Indonésia. Nesses casos, a expressão “minoria nacional” não seria muito adequada,
pois as populações que vivem nesses exclaves não são necessariamente minorias naci-
onais no estado de que são cidadãos e cidadãs.
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Essa não é de modo algum uma lista exaustiva de possíveis relações entre, de um lado,
uma ou mais nações e, do outro, um ou mais estados (Miller 1995, 19–21). A relação entre
nações e estados pode ser relativamente pacífica quando, por exemplo, se concede às unidades
nacionais um grau de autonomia política; ou quando se lhes concede um território próprio
(como ocorre, por exemplo, com a região de Raposa Terra do Sol em Roraima, que abriga
diferentes grupos indígenas); ou quando conflitos são resolvidos por meio de plebiscitos. No
entanto, talvez seja desnecessário enfatizar que a relação entre nação e estado nem sempre é
pacífica e que. Pelo contrário, muitas guerras e catástrofes humanitárias, especialmente entre a
segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, tiveram início em decorrência
de conflitos entre estados e unidades nacionais.
Para autores na tradição do contrato social, a mera constatação de que os cidadãos e
cidadãs de um dado estado costumam compartilhar um idioma que todos entendem, ou uma
confissão religiosa que todos professam, ou pertencimento a uma dada etnia, não conta como
critério para incluir ou excluir um dado indivíduo na esfera de proteções que um estado pro-
porcional a seus cidadãos e cidadãs. O que importa para a filosofia política e filosofia do direito
na tradição do contrato social é apresentar razões para a existência e manutenção do estado,
independentemente do modo como os estados tenham de fato surgido, e sem qualquer referên-
cia ao pertencimento dos indivíduos a grupos de caráter religioso, linguístico, ou racial. Para
autores na tradição do contrato social, o que importa – o que conta como razão – são as deman-
das individuais para a criação e manutenção de instituições com vistas à proteção da segurança
individual (tal como Hobbes propôs no Leviathan), ou para a criação de instituições com vistas
à proteção dos direitos naturais (tal como Locke propôs no Segundo Tratado de Governo).
No entanto, este modo de compreensão das razões que podemos alegar em prol da au-
toridade do estado sobre a vida dos indivíduos assume novos contornos no século XIX, pois é
nesse período que o conceito de estado-nação adquire o tipo de preeminência que ainda hoje
podemos perceber – um tipo de preeminência, aliás, que parece ter se intensificado nos últimos.
Com efeito, é no século XIX que o conceito de nação começa a figurar nas discussões de filo-
sofia política. Ao invés de ser compreendido como um espaço para proteção de demandas in-
dividuais, justificadas com base na ideia de um contrato social, o estado começa a ser compre-
endido como um espaço para proteção, não de indivíduos enquanto indivíduos, mas de comu-
nidades nacionais. Para teorias do contrato social, é indiferente que os indivíduos professem
esta ou aquela religião, ou falem este ou aquele idioma, ou que se compreendam a si mesmos
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como membros desta ou daquela etnia ou tradição histórica. O que importa, para a tradição do
contrato social, é a capacidade que os indivíduos teriam para
Não é meu objetivo aqui, porém, propor uma reconstrução histórica acerca da emergên-
cia e consolidação do conceito de estado-nação no século XIX, pois sobre esse tema já há uma
ampla literatura (Sands 2019; Bethencourt 2018; Benner 2012; Breuilly 2011; Anderson 2011;
Hobsbawm 1991; Plessner 1959). O que me interessa é contrapor a posição contratualista ao
tipo de posição que emerge no século XIX e que coloca o conceito de nação no centro da aten-
ção. Dois filósofos serão de especial importância para a nossa discussão sobre o conceito de
nação, a saber: Gottlieb Fichte e John Stuart Mill.
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6. NOTAS
1
Utilizarei com frequência o termo mais vago “gatilho” em lugar de “causa” para me referir a tipos de interações
em que não podemos estabelecer com clareza um nexo causal específico. A pessoa cujo sistema imunológico
está severamente comprometido pode facilmente ser acometida de infecções. Poderíamos dizer, assim, que a ex-
posição da pessoa a tal e tal microrganismo foi o gatilho para uma pneumonia. Evidentemente, seria igualmente
correto dizer que a exposição foi a causa, mas isso pode obscurecer o fato de que foi o sistema imunológico
debilitado da pessoa apenas criou as condições para a emergência da infecção. Alternativamente, poderíamos dizer
que o sistema imunológico debilitado é ele próprio a causa do adoecimento, pois a mera exposição não teria
permitido a emergência da doença se o sistema imunológico não estivesse severamente comprometido. Para
uma dada narrativa, a causa da doença é atribuída à exposição a tal e tal microrganismo; para outra narrativa, a
causa deve ser buscada na ação de microrganismos; para outra, ainda, a causa é debilidade do sistema imunoló-
gico. Não me parece que, de antemão, uma narrativa deva ter predomínio epistêmico sobre a outra. Nesses casos,
utilizarei deliberadamente o termos mais vago “gatilho” em lugar de “causa”, e o verbo mais vago deflagar em
lugar de causar. É desnecessário dizer, porém, que nem o termo “gatilho” nem o verbo “deflagrar” resolvem a
questão sobre a atribuição de causalidade em casos como esse. Pelo contrário, esses termos (por paradoxal que
possa parecer) deixam clara a falta de clareza. Atribuição de causalidade é um fenômeno complexo e diferentes
pessoas podem ter, relativamente a um mesmo evento que envolve ações humanas, diferentes percepções sobre
nexos causais, sem que de antemão disponhamos, porém, de critérios não controversos para nos decidirmos qual
seria a percepção (ou narrativa) correta acerca dos nexos causais (Icard, Kominsky, and Knobe 2017; Knobe and
Fraser 2008).
2
Cf. e.g. Michael Lawrence et al.: “Some critics argue that the polycrisis idea obscures the operation of capitalist
interests that are at the root of the world’s woes (Sial, 2023) [sc. Sial, F. (2023, January 27). ‘Whose polycrisis?’];
they associate the term with ‘Davos elites’ and their supposed faults. Others argue that our present predicament is
not truly novel; the world has seen intersecting crises before, so we do not need a new concept to describe our
situation today (Kluth, 2023) [sc. Kluth, A., ‘So we’re in a polycrisis. Is that even a thing? The Washington Post,
2023, January 21,]” (Lawrence et al. 2024, 2).
3
Cf. Statista, “Cumulative carbon dioxide (CO₂) emissions from fossil fuel combustion worldwide from 1750 to
2022, by major country”: https://www.statista.com/statistics/1007454/cumulative-co2-emissions-worldwide-by-
country/ (acessado em 2024, setembro 21); e Our World in Data, “Who has contributed most to global CO2
emissions?”: https://ourworldindata.org/contributed-most-global-co2 (acessado em 2024, setembro 21).
4
O conceito de “emissões históricas” tem implicações importantes não apenas para a discussão filosófica sobre
justiça climática (Moss and Kath 2019; Meyer and Sanklecha 2017; Baer 2011, 327–31), mas também para as
negociações diplomáticas em torno da atribuição de responsabilidades (e demanda por reparações) pela crise cli-
mática. Há um acordo relativamente amplo de que a responsabilidade pela crise climática é proporcional ao vo-
lume das emissões de cada país. No entanto, o acordo é menos amplo no que concerne ao papel das “emissões
históricas”. Alguns países alegam que não podem ser responsabilizados pelas emissões que ocorreram desde o
início da Revolução Industrial, mas apenas a partir de um marco temporal mais recente. Uma razão das razões
para a exclusão das emissões históricas das negociações climpáticas é que, durante muito tempo, as emissões
foram feitas sem que os países emissores tivessem conhecimento acerca das consequência das emissões de gases
do efeito estufa para o sistema climático do planeta. Se o desconhecimento sobre as consequências de uma ação
é uma razão para eximirmos uma pessoa ou instituição da responsabilidade pela realização da ação, isso é questi-
onável (Gardiner 2011, 415–19). Mas ainda que a exclusão das emissões históricas fosse justificável, surge logo
em seguida a questão sobre qual seria o marco temporal a ser adotado. Algumas pessoas sugerem que este deveria
ser o ano de 1992, quando ocorreu, na cidade do Rio de Janeiro, a primeira conferência internacional para tratar
das emissões de gases do efeito estufa. Exclusão das emissões históricas, por razões óbvias, seria favorável aos
interesses dos países mais ricos. Ela seria especialmente desvantajosa para os países mais pobres porque é justa-
mente a partir da segunda metade do século XX, em parte graças ao gradual processo de descolonização, que os
países mais pobres começaram a se desenvolver, e isso tradicionalmente significou: começaram a emitir gases do
efeito estufa para alavancar a industrialização e desenvolvimento. No entanto, não é meu objetivo neste capítulo
de entrar na discussão específica sobre a relação entre emissões históricas e atribuição de responsabilidades pelas
mudanças climáticas.
5
Cf. Seventeen Moments in Soviet History: https://soviethistory.msu.edu/1921-2/electrification-campaign/com-
munism-is-soviet-power-electrification-of-the-whole-country/ (acessado em 2024, setembro 21).
versão: 2025.04.12
51
6
Cf. The Burning Earth: A History (2024), de Sunil Amrith: “Whether it came ultimately from petroleum or from
nuclear power stations, American and Soviet visions of the good life both demanded substantial energy” (Amrith
2024, 240).
7
No texto original se lê: “Всю жизнь мы воевали или готовились к войне, столько о ней знаем и вдруг!
Образ врага изменился. У нас появился другой враг.” (Чернобыльская молитва: Хроника будущего. Mos-
cow: Vremya, p. 34, originalmente publicado em 1997).
8
Para uma comparação entre a pandemia de COVID o acidente de 1986 em Tchernóbil, consultar “Césio-137,
Coronavírus, e a perspectiva das vítimas: Uma comparação sistemática entre duas crises que abalaram o sistema
de saúde pública no Brasil (1987 e 2020)” (Araujo 2022a).
9
Cf. também (Stemmer 2002, 13–17).
10
Não se compreender a si mesmo como cidadão ou cidadã de um estado, evidentemente, não significa não se
compreender a si mesmo como membro de uma comunidade à qual a pessoa se sente vinculada por outros laços
que não os da cidadania. É bem pouco provável que os povos originários do Brasil, por exemplo, tenham se
compreendido como cidadãos e cidadãs de um estado cuja soberania, pelo menos em princípio, os estados inva-
sores deveriam respeitar. O processo de colonização envolveu não apenas a força do estado do invasor, mas a
suposição, compartilhada entre os estados invasores, segundo a qual o respeito aos povos originários era desne-
cessário porque indígenas, a rigor, “ainda” não constituíam sequer um estado soberano. Esse é um ponto impor-
tante e ao qual eu pretendo retornar mais adiante.
11
Cf. e.g. verbete “direito natural” na Enciclopédia organizada por Denis Diderot: “Direito Natural. O uso desta
palavra é tão familiar que praticamente não há pessoa alguma que não esteja convencida no interior de si própria
que a coisa lhe seja evidentemente conhecida. Este sentimento interior é comum tanto ao filósofo quanto ao ho-
mem que não refletiu de modo algum; com esta diferença apenas que, à questão o que é o direito?, este último,
não tendo nem os termos nem ideias, lhe remete ao tribunal da consciência e permanece calado; ao passo que o
primeiro só é reduzido ao silêncio e às reflexões mais profundas após ter se voltado para um círculo vicioso que
o remete ao ponto mesmo de onde partiu, ou o lança em uma outra questão não menos difícil de resolver que
aquela da qual ele se julgava desembaraçado pela sua definição.(Diderot 1751).
12
A discussão sobre cenários futuros não se limita aos relatórios do IPCC. Ela constitui uma disciplina à parte,
relativamente recente e com metodologia própria. A esse tipo de investigação se costuma dar o nome de “scenario
writing” ou “scenario method” em inglês. David Staley afirma por exemplo o seguinte: “Rather than writing
predictions, however, historians might employ scenario writing, a method for thinking about the future that relies
on many of the same techniques historians use when writing about the past” (Staley 2002, 73). Ver também
(Schoemaker 2020; Bradfield, Derbyshire, and Wright 2016; Staley 2010, 9–11; 2002).
13
Cf. Henry Sidgwick: “...the time at which a man exists cannot affect the value of his happiness from a universal
point of view; and that the interests of posterity must concern a Utilitarian as much as those of his contemporaries,
except in so far as the effect of his actions on posterity – and even the existence of human beings to be affected –
must necessarily be more uncertain” (Sidgwick 1981, 414). John Rawls: “The mere difference of location in time,
of something’s being earlier or later, is not a rational ground for having more or less regard for it” (Rawls 1971,
293) (Rawls 1971, 293).
14
A fala completa de Glauco com relação a esse ponto é a seguinte: “Presta atenção a mim também, a ver se ainda
chegas a ter a mesma opinião. Afigura-se-me, na verdade, que Trasímaco ficou fascinado por ti, mais cedo do que
devia, como se fosse uma serpente. Quanto a mim, a argumentação de um e de outro lado não me satisfez. Desejo
ouvir o que é cada uma delas, e que faculdade possui por si, quando existe na alma, sem ligar importância a
salários nem a consequências. Farei, pois, da seguinte maneira, e se também achares bem: retomarei o argumento
de Trasímaco, e, em primeiro lugar, direi o que se afirma ser a justiça, e qual a sua origem; seguidamente, que
todos os que a praticam, o fazem contra vontade, como coisa necessária, mas não como boa; em terceiro lugar,
que é natural que procedam assim, porquanto, afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor do que a do justo,
no dizer deles. Porque a mim, ó Sócrates, não me parece que seja desse modo. Contudo, sinto-me perturbado, com
os ouvidos azoratados de ouvir Trasímaco e milhares de outros; ao passo que falar a favor da justiça, como sendo
superior à injustiça, ainda não o ouvi a ninguém, como é meu desejo – pois desejava ouvir elogiá-la em si e por
si. Contigo, sobretudo, espero aprender esse elogio. Por isso, vou fazer todos os esforços por exaltar a vida injusta;
depois mostrar-te-ei de que maneira quero, por minha vez, ouvir-te censurar a injustiça, e louvar a justiça. Mas
se te apraz a minha proposta.” (358b-e).
15
Peter Stemmer afirma com relação a esse ponto o seguinte: “Welches Leben ist eher zu wählen, das gerechte
oder das ungerechte? Der Begriff, im Blick auf den letzlich nur reine Antwort gegeben werden kann, ist der des
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Wohls, des Glückes des einzelnen. Platon akzeptiert den motivationstheoretischen Grundsatz der Sophisten: man
hat nur Gründe, das zu tun, was letzlich für einen selbst gut ist. Er begegnet den Sophisten auf gleichen Boden”
(Stemmer 1988, 541). Stemmer, porém, assim como Irwin (Irwin 1995, . 250-261), nega que Platão defenda uma
concepção contratualista de moral na República.
16
Outras traduções desse trecho: “Let’s construct a hypothetical city, from the beginning” (Plato 2000, 51); “let
us create a city from the beginning, in our theory” (Plato 1937, 615; 1937, 149,151); “let us create a city from
the beginning, in our discussion(Plato 1974, 40).
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Full-text available
Multiple global crises – including the pandemic, climate change, and Russia's war on Ukraine – have recently linked together in ways that are significant in scope, devastating in effect, but poorly understood. A growing number of scholars and policymakers characterize the situation as a ‘polycrisis’. Yet this neologism remains poorly defined. We provide the concept with a substantive definition, highlight its value-added in comparison to related concepts, and develop a theoretical framework to explain the causal mechanisms currently entangling many of the world's crises. In this framework, a global crisis arises when one or more fast-moving trigger events combine with slow-moving stresses to push a global system out of its established equilibrium and into a volatile and harmful state of disequilibrium. We then identify three causal pathways – common stresses, domino effects, and inter-systemic feedbacks – that can connect multiple global systems to produce synchronized crises. Drawing on current examples, we show that the polycrisis concept is a valuable tool for understanding ongoing crises, generating actionable insights, and opening avenues for future research. Non-technical summary The term ‘polycrisis’ appears with growing frequently to capture the interconnections between global crises, but the word lacks substantive content. In this article, we convert it from an empty buzzword into a conceptual framework and research program that enables us to better understand the causal linkages between contemporary crises. We draw upon the intersection of climate change, the covid-19 pandemic, and Russia's war in Ukraine to illustrate these causal interconnections and explore key features of the world's present polycrisis. Technical summary Multiple global crises – including the pandemic, climate change, and Russia's war on Ukraine – have recently linked together in ways that are significant in scope, devastating in effect, but poorly understood. A growing number of scholars and policymakers characterize the situation as a ‘polycrisis’. Yet this neologism remains poorly defined. We provide the concept with a substantive definition, highlight its value-added in comparison to related concepts, and develop a theoretical framework to explain the causal mechanisms currently entangling many of the world's crises. In this framework, a global crisis arises when one or more fast-moving trigger events combines with slow-moving stresses to push a global system out of its established equilibrium and into a volatile and harmful state of disequilibrium. We then identify three causal pathways – common stresses, domino effects, and inter-systemic feedbacks – that can connect multiple global systems to produce synchronized crises. Drawing on current examples, we show that the polycrisis concept is a valuable tool for understanding ongoing crises, generating actionable insights, and opening avenues for future research. Social media summary No longer a mere buzzword, the ‘polycrisis’ concept highlights causal interactions among crises to help navigate a tumultuous future.
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Negotiations are underway at the WHO for a legally binding instrument for pandemic prevention, preparedness and response. As seen in the International Health Regulations, however, countries signing up to an agreement is no guarantee of its effective implementation. We, therefore, investigated the potential design features of an accountability framework for the proposed pandemic agreement that could promote countries’ compliance with it. We reviewed the governance of a number of international institutions and conducted over 40 interviews with stakeholders and experts to investigate how the pandemic agreement could be governed. We found that enforcement mechanisms are a key feature for promoting the compliance of countries with the obligations they sign up for under international agreements but that they are inconsistently applied. It is difficult to design enforcement mechanisms that successfully avoid inflicting unintended harm and, so, we found that enforcement mechanisms generally rely on soft political levers rather than hard legal ones to promote compliance. Identifying reliable information on states’ behaviour with regard to their legal obligations requires using a diverse range of information, including civil society and intergovernmental organisations, and maintaining legal, financial, and political independence. We, therefore, propose that there should be an independent mechanism to monitor states’ compliance with and reporting on the pandemic agreement. It would mainly triangulate a diverse range of pre-existing information and have the authority to receive confidential reports and seek further information from states. It would report to a high-level political body to promote compliance with the pandemic agreement.
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Historians and scenario planners both examine societal developments over time, but from opposite vantage points. One group looks backward, the other forward. This paper argues that a deeper understanding of the methods and approaches of historical analysis can help scenario planners to develop better insights into the world ahead. The study of history stretches back millennia, while disciplined scenario planning has been around for half a century. By comparing historical analysis with scenario planning, the paper extracts lessons to improve narratives about possible futures, with linkages to the emerging field of counterfactual history. The practical challenges are examined using a 1992 scenario project about South Africa's future post‐apartheid. Reviewing the four scenarios developed then, with the benefit of hindsight now, shows how and why historical thinking can sharpen scenario‐oriented studies of the future.
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Dark clouds loom on the nuclear horizon, with threats from all directions: Russia’s nuclear bombast in its war on Ukraine, China’s construction of hundreds of nuclear missile silos, North Korea’s missile testing, India and Pakistan’s ongoing nuclear competition, and Iran’s push toward nuclear weapons capability. In response, US policy-makers are discussing whether a further American nuclear arms buildup is needed. At the same time, evolving technologies, from hypersonic missiles to artificial intelligence, are straining military balances and may be making them more unstable. The risk of nuclear war has not been so high since the Cuban Missile Crisis.
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A climate crisis and other pressures on planetary ecology are causing profound anxieties. Climate change threatens to trap hundreds of millions of people in dire poverty and to separate further an already deeply divided world. However, a new generation of activists is offering inspiration, serving as a hope-maker. This book offers an accessible and empirically informed philosophical discussion of climate change, global poverty, justice, and the importance of political responses, both internationally and domestically, that offer hope. There are reasons enough to worry that the era of pervasive human planetary impact, the Anthropocene, could produce terrible global injustices and massive environmental destruction. But that need not be so. Since the Industrial Revolution, growth in productive capacity and the struggles to share its benefits widely and in an egalitarian way have made another world possible. We still have reason to hope for a world in which international cooperation to manage Earth systems sustainably prevails, in which the natural treasures of the Earth are valued, in which a vision of prosperity is realized and the scourges of disease, ignorance, and poverty are overcome, in which powerful lobbies defending private interests that threaten sustainability are minimized and contained, and in which democratic politics responding to the values of an educated public prevail. The work of bringing about such a world is the work of mobilizing hope.
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Cambridge Core - Environmental Law - Climate Change and the Voiceless - by Randall S. Abate