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http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2025.1.46373
1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil.
CIVITAS
Revista de Ciências Sociais
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Ciência Política
Civitas 25: 1-12, jan.-dez. 2025
e-ISSN: 1984-7289 ISSN-L: 1519-6089
Resumo: O artigo propõe inicialmente uma caracterização dos coletivos, a m
de situá-los no campo do ativismo social e distingui-los de outras formas de
ação coletiva. Argumenta que eles se destacam por seu propósito de confron-
tar a ordem vigente e construir alternativas tangíveis para inúmeras questões e
reivindicações sociais, postando-se no horizonte global de reação aos processos
de expropriação, exploração e opressão vigentes em nossos dias. Ao considerar
retrospectivamente o contexto de emergência e disseminação dos coletivos,
conclui estarmos frente a recongurações do ativismo social, nas quais se va-
lorizam a autonomia, a experiência pessoal de engajamento e a efetividade das
ações. O trabalho fundamenta-se em revisões da literatura, análises de bases
de dados e trabalhos de campo, realizados em vários países, no âmbito de um
projeto de pesquisa internacional.
Palavras-chave: Alternativas. Ativismo. Coletivos.
Abstract: The paper presents a characterization of action collectives, seeking
to situate them in the eld of social activism and distinguish them from other
forms of collective action. It is argued that the collective’s singular trait is to
confronting the current order and building tangible alternatives to numerous
social issues and demands, which places themselves on the global horizon of
reaction to the processes of expropriation, exploitation and oppression in force
today. By retrospectively considering the context of the emergence and disse-
mination of collectives, the conclusion is that we are facing recongurations of
social activism, in which autonomy, personal experience of engagement and
eectiveness are valued. The paper is based on literature reviews, database
analysis and eldwork, carried out in several countries within the scope of an
international research project.
Keywords: Alternatives. Activism. Collectives.
Resúmen: El artículo propone inicialmente una caracterización de los colectivos,
con el n de situarlos en el campo del activismo social y distinguirlos de otras
formas de acción colectiva. Argumenta que se demarcan por su propósito de
enfrentar el orden actual y construir alternativas tangibles a numerosos proble-
mas y demandas sociales, ubicándose así en el horizonte global de reacción a
los procesos de expropiación, explotación y opresión vigentes en nuestros días.
Al considerar retrospectivamente el contexto de surgimiento y difusión de los
colectivos, la conclusión es que estamos ante reconguraciones del activismo
social, en las que se valora la autonomía, la experiencia personal de compromiso
y la efectividad de las acciones. El artículo se basa en revisiones bibliográcas,
análisis de bases de datos e investigación directa de campo, realizada en varios
países en el marco de un proyecto internacional.
Palabras clave: Alternativas. Activismo. Colectivos.
DOSSIÊ: COLETIVOS NAS AÇÕES COLETIVAS CONTEMPORÂNEAS: EMERGÊNCIA, CONTEXTO,
DEFINIÇÕES E PRÁTICAS
Emergência, características e práticas dos coletivos:
contribuições de um estudo multilocal
Emergence, characteristics and practices of collectives: contributions from a multi-site
study
Emergencia, características y prácticas de los colectivos: contribuciones de un estudio
multilocal
Luiz Gaiger1
orcid.org/0000-0003-0241-7064
luiz.gaiger@gmail.com
Recebido em: 5 jun. 2024.
Aprovado em: 11 set. 2024.
Publicado em: 02 abr. 2025.
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Introdução
Na atualidade, o termo coletivo tornou-se usual
para designar formas de ativismo direcionadas
a variadas causas, não sem chamar a atenção
das ciências sociais. Em 2020, a Revista Brasileira
de Sociologia (v. 8, n. 20) apresentou uma visão
panorâmica sobre enfoques teóricos, questões
de pesquisa e tópicos relevantes, com base na
literatura nacional e internacional. Alguns artigos
xaram linhas de continuidade com as formas
de mobilização típicas das últimas décadas,
enquanto outros ressaltaram traços próprios dos
coletivos. A eles foi dedicado um dossiê da Revista
Simbiótica no mesmo ano (v. 7, n. 3). Os artigos
publicados evidenciam como os coletivos se
multiplicaram, tendo uma plêiade de propósitos,
como pautas feministas, bissexualidade, direitos
humanos, meio ambiente, artes e comunicação.
Conclui-se que o campo de estudos sobre os
coletivos, pertinente, encontra-se em construção
e expansão (Gohn et al. 2020, 2).
A bibliograa brasileira dispõe de contribuições
signicativas de livros (Gohn 2017, 2022), artigos
(Perez e Silva Filho 2017; Gaiger 2020; Santos
2022), dissertações e teses. Conforme essa litera-
tura, um elemento saliente dos coletivos é o seu
empenho em adotar práticas de horizontalidade e
igualdade, assim como a uidez de suas relações
internas, o que os afastaria dos padrões pirami-
dais de organizações mais institucionalizadas,
como sindicatos, entidades não governamentais
e alguns movimentos sociais (Marques e Marx
2020). Outra singularidade reconhecida nos co-
letivos é a criação de ambientes de acolhimento
(Monaco 2020), de espaços menos inseguros de
convivência que favorecem processos pessoais
de reconhecimento e autoaceitação, criando
assim laços afetivos entre os participantes, en-
quanto as formas de gestão coletiva adotadas, e
seus resultados práticos, propiciariam a vivência
de modos de vida alternativos (Trindade 2021;
Marques 2022).
Essa alternatividade, atinente a várias esferas
da vida, ganha valor à medida que os coletivos
2 Que ditos processos estejam em curso não parece mais haver dúvidas, embora seu caráter inovador dê margem a controvérsias
(Santos 2022).
se insurgem contra os efeitos deletérios do capi-
talismo global (Sassen 2016; Zubo 2020). Como
veremos adiante, além de denunciarem esse
estado de coisas, os coletivos primam pelo de-
senvolvimento de iniciativas concretas, no terreno
da vida cotidiana, e alimentam a utopia de que
é possível experimentar outras formas de viver.
Eles não atuam apenas na linha de combate, de
protesto e de reivindicação; ao lado disso, procu-
ram ocupar-se com a proteção ou reconstrução
da vida comum.
Caracterizar as formas de organização e atu-
ação dos coletivos, distinguindo-os em certos
aspectos de outras formas de ação coletiva,
constitui o foco principal desse artigo, no intuito
de assim contribuir com esse campo de estudos.
Nossos argumentos têm por base o que veio de-
lineando-se no curso de revisões bibliográcas e
trabalhos de campo sobre os coletivos, no escopo
de um projeto internacional de pesquisa, cujos
propósitos e metodologia serão apresentados
na próxima seção.
A seção subsequente diz respeito a caracterís-
ticas dos coletivos salientes nas revisões suces-
sivas da literatura e na análise de casos estuda-
dos em vários países e regiões. Eles conrmam
novidades dos coletivos quanto às formas de
organização e mobilização, reetindo processos
de reconguração do ativismo social.2 Seria então
inapropriado tratar os coletivos indistintamente
de outras modalidades de ação, o que nos levará
a propor alguns traços identicadores de suas
especicidades, úteis ao trabalho de delimitação
conceitual.
Postular um padrão ativista não desconsidera
a diversidade de organização e de propósitos dos
coletivos – temas da quarta seção do artigo. A
variedade de participantes, origens, dinâmicas e
focos de ação, indica que os coletivos reetem
uma concomitância de práticas que, por vezes, se
entrelaçam: dos núcleos formados no contexto
do sonoro movimento Occupy Wall Street, ou dos
Indignados, às discretas ecovilas protagonizadas
por jovens, de mãos dadas com velhos militan-
Luiz Gaiger
Emergência, características e práticas dos coletivos: contribuições de um estudo multilocal 3/12
tes idealistas, passando pelo veganismo, pelos
círculos de mulheres e por diversas formas de
autogestão local.
Nesse universo, ganham mais visibilidade
pública as ações de combate dos coletivos por
via de protestos e manifestações que visam
denunciar, protestar e contrapor-se ao estado
atual das coisas, reivindicando mudanças. Con-
jugada a essa lógica de confronto, identicamos
também o intuito de materializar novas visões,
desejos e compromissos, através de iniciativas
locais palpáveis e efetivas, seguindo uma lógica
de construção alternativa, igualmente tematizada
nessa seção.
A quinta seção discute a emergência e a ex-
pansão dos coletivos. Considera antecedentes e
raízes menos próximas das práticas atuais, assim
como suas emanações mais recentes nos albores
desse século, ainda que subterrâneas e pouco
visíveis. Isso permitirá uma visão retrospectiva,
sem perder de vista novidades da última década,
mais visíveis e marcantes.
O artigo se conclui tecendo considerações
sobre o pano de fundo de nossa época, no qual
os coletivos ganham sentido. A uma nova razão
de ser, a novos princípios e ensejos, correspon-
dem novos propósitos e modos de engajamento.
Assim, temos uma agenda viva de pesquisas e
desenvolvimentos teóricos.
Metodologia
Os fundamentos bibliográcos e empíricos
desse artigo provêm de um projeto investigativo
executado com equipe de trabalho e abrangên-
cia internacionais.3 Seu propósito foi identicar,
descrever e comparar os coletivos, em particular
quanto aos fatores de impulsão e dinamização
que os levam a multiplicar-se e perseverar.4
Revisões sistemáticas dos estudos sobre os
coletivos e seus entornos sociais, ao lado de
3 O projeto contou com o suporte do CNPq, via Bolsa de Produtividade e auxílios. Afora a equipe brasileira, colaboraram pesquisadores
da Universidad Central de Chile, da Université Catholique de Louvain, da Universidad de Udine e da Sophia University (Tóquio).
4 O arcabouço teórico e a hipótese principal da investigação constaram de artigo anterior (Gaiger 2020).
5 Os coletivos deixam-se repertoriar ou tomam a iniciativa de inserir-se em circuitos ativistas e em bases de informações úteis à pes-
quisa. Para ilustrar, veja-se a cartografia da Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (http://www.socioeco.
org/solutions_fr.html) ou a Arizmendi Association, de cooperativas de trabalhadores na San Francisco Bay (http://www.arizmendi.coop/).
6 A escolha dos locais dependeu ademais da presença de membros da equipe, da agenda de eventos correlacionados e de nossa
fluência nos respectivos idiomas.
explorações empíricas iniciais, permitiram xar
as características principais das iniciativas assim
designadas (por seus membros ou por terceiros).
A seguir, a análise de bases de dados setoriais,
nacionais e globais sobre iniciativas ans, levou
a casos semelhantes (a despeito da semântica
variável) e à identicação de pers e tendências
mais gerais dessa forma de ativismo. Dado que
inexistem diretórios propriamente de coletivos,
mais de dez bases de dados foram consultadas,
numa lógica de acercamento gradual de iniciati-
vas com traços similares aos coletivos, por vezes
classicáveis como tais e, assim, selecionáveis
para o estudo.
5
A recorrência de casos em certos
países e regiões, somada à disponibilidade de in-
formações, documentos e bibliograa a respeito,
conduziu ao direcionamento progressivo para
determinados lugares, congurando-se, assim,
um estudo multilocal.6
A seleção de casos conduziu a análises por-
menorizadas de 120 coletivos, em doze países,
em alguns dos quais foram eleitas regiões de
perceptível densidade ativista, formando o que
designamos de ecossistemas de coletivos. Além
do Brasil (44 casos, 24 no ecossistema de Por-
to Alegre), tem-se principalmente o Chile (16
casos, 6 em Concepción e 4 em Valparaíso), a
Espanha (14 casos, 7 em Barcelona), a Bélgica
(13 casos, 11 na região da cidade universitária de
Louvain-la-Neuve), Portugal (9 casos, em Lisboa)
e os Estados Unidos (6 casos, 5 na Baía de São
Francisco, California). Somam-se ainda coletivos
da Alemanha, Argentina, França, Equador, Itália e
Japão. Ainda que esse corpus não seja estatisti-
camente representativo do universo global dos
coletivos – uma impossibilidade no estágio atual
de conhecimento e dos meios de pesquisa – ele
tem a vantagem de reunir um número signicativo
de casos, selecionados por serem ilustrativos de
tipos recorrentes, à luz da literatura e das bases
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de dados consultadas.
Em dois terços dos casos, houve visita pessoal
aos coletivos, observação direta e aplicação de
entrevistas, estruturadas segundo as característi-
cas dos coletivos e as circunstâncias de sua apli-
cação.7 Nesses e nos demais casos, a busca por
informações direcionou-se a trabalhos acadêmi-
cos, postagens telemáticas dos próprios coletivos
(via redes sociais, newsletters etc.), publicações
de autoria dos mesmos e documentação legal
correlata, quando pertinente. Algumas iniciativas
haviam sido objeto de pesquisas de membros
da equipe, ou de seus orientandos. No ecossis-
tema de Porto Alegre, visitas sucessivas e novas
observações ocorreram durante nove meses,
propiciando análises com maior profundidade
e renamentos dos resultados provenientes do
corpus empírico. Tais resultados foram alcan-
çados por meio do registro e comparação de
dados sobre os coletivos (ano de início, número
de membros, perl social, forma jurídica) e suas
práticas (ações tangíveis, foco social, sistema de
decisões, inserção em movimentos etc.).8
A execução do projeto, favorecida por espaços
de cooperação acadêmica, deu prosseguimento
a pesquisas realizadas desde os anos 1990 so-
bre ação coletiva e alternativas de organização
socioeconômica, especialmente no campo da
economia solidária. Publicações anteriores liga-
das ao projeto, em particular quanto aos modelos
de coletivos (Gaiger 2023), complementam o que
desenvolveremos aqui.
Caracterização dos coletivos
Formas de ação ans aos coletivos foram
examinadas quanto a suas características comu-
nais, de autonomia e autogestão (Zibechi 2007;
Nascimento 2019). Condutas insurrecionais ou
antiestatais também estiveram em destaque
7 Predominaram entrevistas informais, coletivas, sobre pontos essenciais ou em aberto. Seu registro deu origem a um diário de campo,
depois integrado a uma ficha descritiva e analítica (com informações de outras fontes) de cada coletivo, equiparável ao que na Antropo-
logia convencionou-se como relato etnográfico.
8 Considerando o espaço disponível, para os fins deste artigo não exporemos a demografia e as análises caso a caso desse corpus,
salvo menções especialmente ilustrativas, quando oportuno. Tampouco traremos dados de campo individualizados, como extratos das
entrevistas, o que demandaria explicações adicionais, dada a diversidade dos contextos e das formas de atuação dos coletivos, somada
ao fato de que os argumentos aqui apresentados condensam os resultados obtidos pela triangulação e comparação de várias fontes.
9 Embora não utilize o termo coletivo, parte desses autores refere-se a ações coletivas similares que, adiante, indicaremos como ca-
racterísticas próprias dessa forma de atuação.
(Zibechi 2007; Pleyers 2018; Souza 2018), dis-
cutindo-se a possibilidade de constituição de
novos blocos de poder (García Linera 2010) ou de
novos ecossistemas de riqueza compartilhada e
bem-estar (Alperovitz 2017). Outro prisma analítico
tem sido o contexto de conitos ambientais ou
das lutas pela preservação dos bens comuns,
à raiz de várias iniciativas e focos de atenção
(Martínez Alier 2010).9
Trabalhos mais recentes têm dado ênfase às
relações entre os coletivos e o estado (Marques
2022). Diante da inecácia das instituições polí-
ticas e dos agentes públicos, entre outras moti-
vações, grupos e comunidades teriam resolvido
tomar as rédeas da situação, seja rompendo o
modelo clássico de representação política, por
meio dos mandatos coletivos (Faria 2020), seja
por meio de intervenções artísticas como forma
de provocar uma abertura de consciência e dar
suporte a subjetivações e construções identitárias
(Medeiros 2020; Melo, 2021).
Invenções locais ou levantes passageiros não
se equiparam a uma transformação social ampla,
profunda ou denitiva. Mas o fato é que revolu-
ções já não estão como antes no horizonte das
expectativas, valendo bem mais as realizações
concretas, orientadas à criação de novidades
reais. Dito isso, alguns traços dos coletivos vão
se tornando marcantes (Gohn 2017; Perez e Silva
Filho 2017; Trindade 2021; Marques e Marx 2020;
Santos 2022). Eles, via de regra: (a) postam-se
contra a continuidade de situações de domina-
ção, expropriação e opressão; (b) alinham-se na
defesa de bens comuns, como direitos, bem-
-estar, moradia, territórios, trabalho, cultura e
patrimônio; (c) inclinam-se a envolvimentos com
propósitos alternativos, contra a tirania do capital
e dos poderes instituídos; (d) valorizam formas
horizontais, participativas e colaborativas em
suas atividades de trabalho, gestão e direção;
Luiz Gaiger
Emergência, características e práticas dos coletivos: contribuições de um estudo multilocal 5/12
(e) prezam a individualidade e estimulam o pro-
tagonismo de seus participantes, seu ativismo
em múltiplas causas e frentes; e (f) enfatizam a
concretude, a efetividade, o fato de sua atuação
viabilizar, materializar e implantar inovações tan-
gíveis e sustentáveis.
Embora os estudos conuam nesses pontos,
ca-se por vezes sem elementos que demarquem
os coletivos de outras formas de atuação. Tanto
mais que as iniciativas designadas de coletivos,
por seus protagonistas ou por quem as estuda,
correspondem a formatos organizativos variados,
como grupos informais, comunidades, associa-
ções, cooperativas ou microempresas. Diante
disso, a literatura consultada e nosso corpus
empírico conduzem a destacar alguns traços
que, no seu conjunto, parecem indicativos de
suas singularidades:
Tomando-se os coletivos como unidades pri-
márias de atuação (a despeito das redes ou asso-
ciações de coletivos, também existentes), via de
regra eles são iniciativas de grupos de indivíduos
que se conhecem e interagem regularmente,
como pessoas e não como representantes ou
militantes que personicariam organizações ou
campos de ativismo – embora possam mani-
festar-se aludindo a esses lugares de fala. Por
conseguinte, como ilustra um levantamento de
várias iniciativas no Chile (Escobar et al. 2022),
estão espacialmente situados, sem pretender
representar categorias sociais genéricas (de clas-
se, ou outras) e suas respectivas causas, embora
se somem a elas e contribuam com suas lutas.
Os encontros presenciais, complementados
pela comunicação a distância, cumprem uma fun-
ção determinante; é no face a face que as ideias
surgem, as decisões são tomadas e as ações
empreendidas. Embora as relações cotidianas
possam ocorrer de maneira predominantemen-
te virtual – comum nas comunidades hackers,
cuja esfera de atuação é exatamente o mundo
da internet e das TICs – elas são, no entanto,
relações, compartilhamentos e ações conjuntas
de um grupo de pessoas (Blum e Ebrahimi 2007;
Burtet 2014), e não correntes de pensamento ou
de representantes institucionais.
O fato de funcionarem em boa medida como
grupos de anidade determina muitas coisas.
Atitudes de empatia e sentimentos de afeto e
amizade aoram, ensejando posturas de acolhida
e proteção aos que chegam e àquelas pessoas
que entram no foco da atuação dos coletivos
(Monaco 2020; Teixeira 2021; Trindade 2021). Ade-
mais, não é apenas por serem mais democráticos
e críticos às instituições que os ativistas optam
por práticas de democracia direta e deliberações
por consenso, preferindo redes descentralizadas,
se necessário. Isso se dá também à medida que
o porte diminuto dos coletivos favorece tais
princípios e soluções – sendo de notar que a
chegada de mais aderentes provoca a criação
de níveis de envolvimento, separando o “núcleo
duro” (Thibes et al. 2020, 58) de colaboradores e
participantes ocasionais.
Sendo grupos reais, não teóricos (no sentido
de presumidos ou desejados), nem denidos por
normas previamente instituídas (como os sindica-
tos), os coletivos centram-se em seus propósitos
e ações efetivas, valorizando para isso a condição
de manter o controle dos fatos. Como enfatizam
alguns autores, essas pessoas colocam a mão
na massa e vão às ruas para tomar parte, para
sair do papel de espectadores de suas próprias
vidas, para decidir rompendo com as regras do
jogo (Souza 2018; Melo 2021).
Os coletivos e seus membros podem ter outras
liações e participações ativas, como exempli-
ca Souza (2015) acerca de iniciativas ligadas às
pautas LGBT. Contudo, no coletivo as pessoas
encontram-se em igualdade de condições, o que
resulta mais uma vez nos princípios e práticas
de horizontalidade, independência institucional
e autonomia político-ideológica. Os ativistas, por
vezes, tomam parte em outros coletivos, o que
explica a diversidade de pautas e a multiplicidade
das questões e ações. Isto também direciona os
coletivos a agirem majoritariamente em escala
local, recorrendo às redes como forma de inter-
câmbio, articulação e colaboração em tarefas
cotidianas (Henning 2019) ou em ações de mais
envergadura.
Os coletivos são levados à frente por pessoas
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pouco ou nada integradas às engrenagens do
sistema, por serem neótas, não terem esse
propósito, terem sido excluídas ou, ainda, por
dissenção voluntária. Tanto quanto seus partici-
pantes, os coletivos muitas vezes não dependem
nem procuram car na dependência de estruturas
institucionais, ao contrário de entidades sindicais,
fóruns, conselhos cidadãos, ONGs ou associa-
ções. Uma desvantagem, dada a consequente
renúncia a certos canais de força, mas também
algo que confere liberdade aos coletivos, como
se observou em editoras independentes no Chile
(Lacroix 2021), no jornalismo impresso alternativo
na Bélgica (Leeckwyck 2019) ou em coletivos
universitários (Lima 2018; Trindade 2021).
Por m, os coletivos aoraram em um momen-
to histórico de descrédito nas grandes ideologias
que marcaram as lutas sociais e os embates
político-partidários do século 20. Inexistem vi-
sões englobantes e propositivas em seu lugar,
não há caminhos claros e conuentes a seguir.
Sobrepõe-se a isso uma crise aparentemente ir-
reversível do sistema democrático representativo
e da política de um modo geral, o que afasta os
ativistas dessas esferas de atuação e secciona
os os que poderiam conduzi-los a esses enga-
jamentos. Com frequência, a sua opção política
é colocar em segundo plano, se tanto, a política
institucional, por meio de uma lógica destituinte
(Comitê Invisível 2018), atitude mais comum entre
coletivos de jovens, como indicam casos pes-
quisados na Bélgica e na França. Não obstante,
as relações com o mundo político e institucional
são complexas e contraditórias. Pode não haver
alinhamento, mas dicilmente independência.
Os coletivos precisam de recursos, senão de
alguma legalidade jurídica, o que implica nego-
ciações e concessões perante órgãos públicos,
como Perez e Silva Filho (2017, 288) indicam em
sua revisão de literatura no tocante a coletivos
juvenis de cultura.
Conceitualmente, nem todos os agrupamen-
tos formados nos últimos anos seriam coletivos,
apenas por serem novos ou serem designados
desse modo por seus integrantes. Há iniciativas
que não se intitulam assim, embora coincidam
com a caracterização acima; outras, que assim
se denominam, desde os anos 1980 ou mesmo
antes. Afora o uso comum do termo, portanto,
devem existir correspondências entre a estrutura
e a dinâmica dos coletivos, formando uma uni-
dade coerente que justique seu enquadramen
-
to conceitual, segundo o constructo proposto.
Espera-se, então, que esse conjunto de traços,
tipicando os coletivos, tenha essa serventia.
Diversidade e lógicas de atuação
A diversidade de áreas de atuação dos cole-
tivos deriva, em boa medida, dos traços antes
referidos, pois favorecem processos de mútuo
reconhecimento, alianças e formação de redes,
sem comprometer o primado da autonomia.
Sendo múltiplos, os focos de atuação se inter-
seccionam. Estão ligados a questões de fundo
como a justiça, a equidade, a democracia, a paz
e, no compasso dos tempos atuais, à transição
ecológica. Além de incidirem sobre incontáveis
questões, eles reetem uma mudança de ares:
uma vez que o capitalismo avançado converteu
tudo em commodities, restaria combater pela
vida em todas as suas dimensões e facetas, sem
disjunções (Gaiger 2020, 2021).
Não obstante, convém distinguir lógicas estru-
turantes, decorrentes dos propósitos de ação. A
base bibliográca e empírica da pesquisa aponta
em duas direções. Sem serem exclusivas, elas,
em boa medida, conferem identidade e um tônus
próprio ao ativismo dos coletivos.
De um lado, há coletivos dedicados ao pro-
testo e a reivindicações diante do estado, das
instituições políticas e dos agentes econômicos.
Reivindicam novas políticas públicas (ou o devido
acionamento das existentes), contestam, denun-
ciam e propagam ideias. Seguem uma lógica de
confronto. Com atuação contínua ou por meio de
mobilizações momentâneas, em nome de outra
forma de fazer política, lutam por mudanças nas
formas de participação e nos mecanismos da
Luiz Gaiger
Emergência, características e práticas dos coletivos: contribuições de um estudo multilocal 7/12
agenda pública.
10
Podem agir no intuito de apoiar
candidaturas político-partidárias alternativas aos
formatos tradicionais (Faria 2020), chamar a aten-
ção com atos de desobediência civil (Boutillon
e Prévaut 2012) ou, ainda, incidir em frentes de
disputa institucional em escala global, como as
questões ambientais, dos direitos humanos, do
anticolonialismo ou da paz.
Em sentido amplo, de incidência sobre as rela-
ções de poder, os coletivos não se esquivam do
confronto. De outro lado, contudo, há coletivos
mais voltados para sua atuação local em questões
do cotidiano. São coletivos de contraposição, de
reorganização de aspectos da vida comum por
meio de uma lógica de construção alternativa.11
Retrospectivamente, eles estão ligados a co-
munidades assentes em territórios de uso comum
e a organizações associativas e cooperativas,
além de variados grupos de inspiração anarquista
ou autonomista, cuja inuência jamais se dissipou
(Santos 2022). A isso, acrescentou-se nas últimas
duas décadas uma panóplia de comunidades in-
tencionais, vincadas em projetos idealizados por
grupos de pessoas, a exemplo das ecovilas e das
comunidades hackers, das quais encontramos
exemplos no Brasil, Chile, Equador, US e França.
Esses coletivos assumem, de outro modo,
o provimento da vida no dia a dia. Mais do que
combater, empreendem; no lugar de interven-
ções-relâmpago, ou de projetos transitórios,
buscam viabilizar-se a longo prazo. O envolvi-
mento em questões globais articula-se e sus-
tenta-se no engajamento em problemas locais e
na construção de soluções efetivas, culminando
na transformação virtuosa do próprio ativista: as
mudanças devem vir de baixo, iniciando por ele,
a partir de transformações nas maneiras de viver.
Atribui-se, então, grande valor a novas formas
de sociabilidade, à criação de vínculos sociais
genuínos. Busca-se criar espaços autônomos de
experimentação e participação criativa.
Essas experiências possuem antecedentes e
10 Não há espaço aqui para adentrar questões atinentes à agenda pública e às interações entre os coletivos e o estado (de vários países,
nesse caso), com o qual podem estar em conflito, mas também em colaboração crítica (Perez e Silva Filho 2017). Sobre esses temas,
conferir Marques (2022, 2023) e Tatagiba et al. (2022).
11 Essas duas lógicas são afins à via da razão e à via da subjetividade, na tipologia de Pleyers (2018).
12 Acontecimentos similares repetiram-se posteriormente, como o estallido social no Chile, em 2019.
raízes anteriores à generalização do termo co-
letivo. Alterações gerais em nossas sociedades,
estimulando novas sensibilidades e novas formas
de se situar e tomar posição diante do mundo, é
o que explica sua profusão atual, como veremos
a seguir.
Emergência e disseminação dos
coletivos
Recuando no tempo, é comum a menção à
Revolta Zapatista de 1994 como episódio inau-
gural de um novo ciclo ativista. Retrocedendo um
pouco mais, encontram-se princípios e práticas
autonomistas, de horizontalidade e de crítica
ao sistema, nos movimentos dos anos 1960,
estudantil e feminista. Em escala mais curta, os
coletivos de confronto ganharam proeminência no
contexto dos movimentos contra a globalização,
gurando nos grandes eventos dos anos 2000.
Na crise de 2008 e nas grandes mobilizações
subsequentes, ao Sul e ao Norte, seu protago-
nismo cou mais destacado, especialmente na
ocupação das praças, como o 15M na Espanha.
Nessa escala de tempo, as Jornadas de 2013
no Brasil são vistas como um divisor de águas,
a partir do qual os coletivos se disseminaram,
intensicando suas ações (Gohn 2018; Faria 2020;
Thibes et al. 2020),12 no que foram secundadas
em 2016 pelas Ocupações de Escolas, propul-
soras do uso do termo e de sua forma peculiar
de atuação. Elas constituíram pontos de inexão
nos motivos e no modo como se luta. Sinalizaram
uma saturação com o papel de expectadores da
política a que foram relegados os cidadãos, ou
com a teatralidade dissimulada das autoridades,
ocultando os interesses em jogo. A questão de
fundo, exibida em cartazes e faixas, era a parti-
cipação efetiva, a democracia.
Esse ânimo se renovou nas mobilizações de
2000 e 2010, com os protestos e ocupações
altermundialistas, a Primavera Árabe, os Indigna-
dos, os levantes estudantis, as grandes marchas
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de mulheres, indígenas, campesinos e exclu-
ídos. Com suas variantes, essas mobilizações
não apenas contestavam, mas almejavam uma
tomada de espaço, de exercício de poder, de
liberdade e criação. Denotaram a existência de
uma “insurreição perpétua, subterrânea, que
pulsa incessantemente” (Souza 2018, 5).
Também os coletivos de construção alterna-
tiva, cujos antecedentes datam dos anos 1980,
receberam novo impulso após a efervescência
das grandes manifestações do início da última
década. Percebendo os limites do repertório de
ação – de caminhadas, ocupações, acampa-
mentos e declarações públicas – vários ativistas
mudaram de foco e estratégia, de certo modo
“desistindo das ruas”, fato patente em Barcelona,
um dos epicentros das manifestações na Espa-
nha. Voltando aos bairros, a lugares primários
de atuação, buscaram valorizar a convivência
comunitária por meio da revitalização de espaços
comuns, da construção de jardins ou hortas e
mesmo de festas, como formas de reorganizar
pessoas, ncar posição e criar sentidos para uma
vida urbana afetada pela despersonalização, a
segmentação social e a insegurança (Asara e
Giorgos 2022).
13
Ocinas de conserto e renovação
de roupas, em um coletivo estudantil devotado
ao anticonsumismo e à ecossustentabilidade,
ou de mecânica de bicicletas, em outro com
foco em alternativas de mobilidade urbana, são
demonstrações dessa busca de caminhos e da
criatividade de muitos coletivos.
Além de acontecimentos altissonantes, ocor-
reram transformações progressivas no cenário e
nas formas de ação, preparando o ambiente para
a entrada em cena dos coletivos. Na virada do
século 20, Zibechi (2007) identica uma transição
de ações reivindicativas (greves, paralisações
etc.) em direção a esforços concentrados na
continuidade ou na viabilização de atividades
alternativas, a partir da auto-organização; pas-
sou-se de estruturas amplas, complexas, por
vezes piramidais e burocratizadas, a organizações
13 Coincidindo com relatos de coletivos de Madrid e Valência, colhidos durante a pesquisa de campo.
14 A ESS é pródiga em coletivos, embora essa designação seja pouco utilizada nesse âmbito. Em contrapartida, há coletivos que se
declaram alinhados e comprometidos com os princípios da ESS, como aponta Silva (2016).
locais, vincadas na participação direta; ganhou
força o enraizamento territorial e local das inicia-
tivas, bem como as formas de engajamento com
sentido prático, voltadas às questões do dia a dia.
Ao mesmo tempo, o estilo de mobilização ba-
seado em disputas frontais, barganhas e acordos
a partir da negociação de interesses, típico do
sindicalismo, passou a dividir lugar com lógicas
de ação próprias do universo familiar e vicinal, de
índole comunitária e comunal. Nesses espaços
relativamente autônomos e protegidos, procu-
rou-se dar curso à existência, se desenvolveu
uma produção de sentidos vitais, mesmo na
ausência de algum tipo de coordenação cons-
ciente e voluntária (Zibechi 2007). De sua parte,
as iniciativas de auto-organização da vida comum
multiplicaram-se nos mais diversos quadrantes
(Gibson-Graham, Cameron e Healy 2013). Em
boa parte, contavam com experiências desen-
volvidas em campos sociais já mais conhecidos
e institucionalizados, como a Economia Social e
Solidária (ESS) e segmentos do campo associa-
tivo (proeminente na França) ou cooperativo (a
exemplo da Espanha).14
As raízes mais longínquas dos coletivos não
retiram o fato de serem uma forma de ativismo
marcante dos últimos 15 anos. Caberia introdu-
zir aqui a noção de ciclos (Souza 2018), ligados
a gerações de ativistas cujos ns e estilos de
atuação respondem a determinados problemas,
urgências, desaos e possibilidades. Como assi-
nala Souza (2018, 6), é a partir das confrontações
com gerações anteriores que cada uma delas vai
forjando seu entendimento, sua forma de agir, e
vai se relacionando com as experiências que a
precederam.
O correr dos anos 1970 e 1980 teria alimenta-
do um novo ciclo ativista, extrapolando a pauta
econômica (salários e condições de trabalho)
dos movimentos clássicos, à época do fordismo
e do pleno emprego. Direitos civis para negros,
igualdade para mulheres, liberdade para novos
estilos de vida e novas formas de enquadramento
Luiz Gaiger
Emergência, características e práticas dos coletivos: contribuições de um estudo multilocal 9/12
social, ambientalismo e pacismo estiveram entre
os pontos da agenda dos novos movimentos so-
ciais (no sentido europeu, consagrado por Alain
Touraine), cuja disseminação se fez notar nas dé-
cadas seguintes também no Brasil (Perez e Silva
Filho 2017, 258-59). Seguindo Pleyers (2018), em
meados dos anos 1990 congurou-se um ciclo
dos movimentos altermundialistas, materializado
em particular nas grandes conuências do Fórum
Social Mundial, em conferências multilaterais,
em ONGs com escala de atuação global e, ain-
da, em segmentos sociais que se destacaram
nessas mobilizações, como jovens, mulheres,
comunidades LGBT (atualmente, LGBTQQICA-
APF2K+), indígenas e camponeses, a exemplo
da Via Campesina.
No ciclo ativista mais recente, esses movimen-
tos passaram a conviver com inúmeros coletivos,
por vezes em contraposição a formas pregressas
de mobilização. Em certa medida, os coletivos
surgiram de uma decepção com a supremacia
dos movimentos já existentes, por sua estrutura
pesada de processos decisórios, sua força inercial
sobre as pautas de mobilização e, também, sobre
os estilos de militância. Em outra boa medida,
eles emergiram graças à germinação de novas
formas de atuação e ao valor assumido pelo
pensamento autonomista (Gohn 2018), como
pontuado até aqui.
À medida que alguns traços peculiares dos
novos ativismos se acentuem, poderá expan-
dir-se um estilo mais extremado, am ao que
Pleyers (2018, 16-18) denomina de alterativismo.
Nesse caso, características como o engajamento
personalizado, o valor da experiência e a efeti-
vação prática dos valores e ideais defendidos,
ganham centralidade, especialmente entre jovens
(Pleyers 2016; Derreumaux 2018). Os momentos
de marchas e protestos, dos quais participam,
constituem uma ponta do iceberg, posto que o
propósito é viver de outro modo, mesmo nesse
mundo, sem a ilusão ou a paciência de aguardar
sua transformação. In extremis, sua estratégia
coincide com o prognóstico de Holloway (2010)
de mudar o mundo sem tomar o poder.
Considerações finais
Alterações nas formas de ativismo, como as
apontadas aqui, já foram detectadas há mais
tempo (Dubet 1993). No que lhe diz respeito, o
estilo ativista dos coletivos dá sinais de conti-
nuidade e adesão crescente. Anal, as diversas
formas de reação que se sucederam diante das
crises sociais produzidas pelos movimentos da
economia e da política global têm mantido vivo
o movimento de resistência social iniciado no
século 19 (Polanyi 2000), pari passu com a disse-
minação das relações capitalistas. Na atualidade,
tem-se um movimento difuso, mas persistente,
de rejeição à ordem, cuja tônica é a criação de
alternativas de vida, locais e efetivas, como já
apontado. Reações individuais e coletivas, mesmo
efêmeras, vinculam-se a intentos práticos e utópi-
cos de romper com a lógica imperante, por meio
de experiências signicativas de engajamento.
Mais e antes do que criar outro mundo, trata-se
de lograr outra maneira de viver no mundo, o que
requer em certa medida uma lógica de afasta-
mento e secessão, e uma aposta de que novas
vivências, mesmo singulares, possam conduzir
à humanização.
A depender dos problemas, desaos e possibi-
lidades de ação que alimentam o ativismo, seria
cabível falar de um novo ciclo, especialmente no
caso de supremacia do alterativismo, até o mo-
mento uma variante das formas de atuação dos
coletivos. De fato, os alterativistas (Pleyers 2018)
talvez sejam os que melhor incarnem esse novo
espírito, dado o seu propósito de criar condições
para (eles e outros) viverem fora do sistema. Daí
sua preocupação com a criação de espaços de
autonomia, protegidos da lógica mercantil e
dos hábitos reinantes, em vista da gestação de
experiências coerentes com aqueles ideais e
princípios. Daí o valor concedido à experiência,
como algo vivido e como terreno de inovação e
experimentação, cujo andar e resultados, mesmo
incertos, constituem a própria mudança.
Menos duvidoso é que os coletivos não sur-
gem exatamente pelas mesmas razões e motivos
de tantos e variados movimentos sociais, como
também não se propõem ns e modos de fun-
10/12 Civitas 25: 1-12, jan.-dez. 2025 | e-46373
cionamento idênticos. Décadas atrás, as lutas por
questões salariais e de cunho econômico, tipica-
mente de classe, deram paulatinamente lugar a
novas questões, ligadas a uma multiplicidade de
demandas. Disputas na esfera da produção foram
sendo compartilhados com embates na esfera
da reprodução, como se usava dizer na época. O
que os coletivos não desejam, não se propõem a
fazer, é sobreviver em ambas as esferas no modo
de sempre, nas condições subalternas e servis
cada vez mais cruas a nós impostas. Tampouco
acreditam na via do êxito individual, na rota do
consumismo compulsório e compulsivo, ou na-
quela do empreendedorismo triunfante.
Dada a natureza atual das questões, dada a
tendência – ou a intenção – de articular lutas
no plano macro e micro, os coletivos situam-se
como agentes de uma militância global, não por
disporem ou almejarem dotar-se de grandes es-
truturas de organização e conexão, mas graças
à sua capacidade de lograr ressonância plane-
tária, calcada na intersubjetividade dos ativistas.
Como vimos e ouvimos na pesquisa de campo,
agem com frequência sem precisarem sentir-
-se representados no mundo dos dominantes,
dispensando-se de participar de suas arenas e
jogos de poder. No lugar de interpretar seu lo-
calismo como signo de fraqueza, eles apostam
nas virtudes da sua dispersão e atomização, sua
instabilidade e imprevisibilidade, às vezes, sua
não institucionalização.
Essa linha argumentativa é passível de emen-
das e correções, conforme avancem as pesquisas
empíricas e desenvolvimentos teóricos, que cer-
tamente têm lugar. Quanto à questão diametral
do sentido histórico desses ativismos, conviria
nesse momento ter em vista que a compreen-
são das ações coletivas, em particular, quando
de envergadura ou com poder de irradiação,
requer uma perspectiva mais longa, pois essa é
a escala de tempo das mutações profundas que
poderiam causar.
No curto e médio prazo, lembremos, o efeito
político do paradigmático Maio de 1968 foi o for-
talecimento do governo do Marechal De Gaulle,
contra o qual estudantes e trabalhadores se ha-
viam rebelado. Não teria havido uma revolução
nos costumes, seguida de mudanças legais e
institucionais progressivas nos anos 1970 em
diante, sem a experiência e os efeitos vivenciais,
subjetivos, desencadeados pelos movimentos
de massa precedentes, ainda que, como tais,
passageiros. Essa pode ser, então, uma via de
pesquisa sobre a sua relevância em nossos tem-
pos: pressionar por mudanças e experimentar
inovações relacionadas a questões dilemáticas de
nossa época, criando com isso um novo estilo de
ativismo, um novo ethos movimentalista (Doimo
1995), em que a autonomia do ativista e de suas
organizações ganha centralidade (Svampa 2008).
Antes de concluir por declínio ou debilitamento,
conviria considerar mutações nos padrões de
ação cujos resultados se materializam apenas
com o passar do tempo, entre eles o resgate dos
princípios democráticos e dos compromissos
com o bem comum, constitutivos da cidadania.
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Luiz Inácio Gaiger
Doutor e mestre em sociologia pela Universidade
Católica de Louvain, Bélgica. Foi professor titular do
programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em
São Leopoldo, RS, Brasil e colaborador voluntário de
pesquisa.
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