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Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 292
ENTRE O FARAÓ E O ORIXÁ
A CONEXÃO EGÍPCIO-IORUBANA NO CENTENÁRIO DA
ABOLIÇÃO E NA OBRA PICTÓRICA DE ABDIAS NASCIMENTO
Gilberto da Silva Francisco
Universidade Federal de São Paulo
Há mais
De quarenta mil anos atrás
A arte negra já resplandecia
Mais tarde a Etiópia milenar
Sua cultura até o Egito estendia
Daí o legendário mundo grego
A todo negro de etíope chamou
Depois vieram reinos suntuosos
De nível cultural superior
(…)
Em toda cultura nacional
Na arte e até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande inuência
E o negro brasileiro
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas raízes.1
Este texto discute um conjunto de representações criadas no seio de
discursos sobre a identidade e ancestralidade negra que começaram
a se desenvolver no Brasil na segunda metade do século XX.
Trata-se da conexão egípcio-iorubana, proposta interpretativa que aparece
em alguns estudos de orientação panafricanista no cenário internacional,
mas que ganhou, no Brasil, um desenvolvimento próprio – a produção
artística que associou referenciais de ancestralidade iorubano (já presentes
1 Trecho do samba-enredo Ao povo com arte da G.R.A.N.E.S. Quilombo para o carnaval
do Rio de Janeiro de 1978.
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em reexões sobre a negritude brasileira desde o século XIX) e egípcio
(elemento incluído mais recentemente).
De forma mais especíca, as representações artísticas aqui
tratadas respondem ao debate caracterizado como afrocêntrico,2 cujo
grande expoente é o intelectual senegalês Cheikh Anta Diop, proponente
de uma ampla revisão da perspectiva eurocêntrica da chamada “história
universal”; e que, ao discutir o Egito antigo, apresentou três elementos
básicos: o Egito antigo era africano, negro e a base da civilização – o que é
frequentemente sintetizado por parte da bibliograa como “Egito negro”.3
Essa associação entre negritude e africanidade (em termos panafricanistas)
não era novidade. W. E. B. Du Bois, por exemplo, discutia tal questão no
início do século XX, e representações de negritude no Egito antigo já eram
2 “O Afrocentrismo é uma especíca corrente losóca contemporânea afro-ame-
ricana, cujo mentor principal é Mole Kete Asante. O seu surgimento tem que ser
colocado por volta dos anos Oitenta do século XX, quando Asante publica os livros
Afrocentricity (1980) e The Afrocentric idea (1987). Esses dois volumes podem ser
considerados como os primeiros de uma longa série que Asante dedica a esta nova
teoria, largamente inspirada aos estudos históricos do investigador senegalês Cheikh
Anta Diop. [...] O Afrocentrismo pretende edicar um novo paradigma alternativo ao
eurocêntrico dominante, relendo por completo a história das civilizações humanas e
dos seus complexos relacionamentos. A civilização africana (que Asante considera
como um todo orgânico e homogêneo) assume um papel central, uma nova subjeti-
vidade na história da humanidade. A sua primazia abrange os diferentes aspetos do
saber: losoa, ciência, religião, política, arte, comunicação. A África não é apenas,
como os próprios arqueólogos reconhecem, o ‘berço da humanidade’, mas sim o ‘berço
da civilização’, com centro no antigo Egito”. Luca Bussoti e Laura A. Nhaueleque,
“A invenção de uma tradição: as fontes históricas no debate entre afrocentristas e seus
críticos”, História, v. 37 (2018), p. 2. Cabe, ainda, destacar a variedade do afrocen-
trismo, que não é “uma doutrina monolítica, mas um rótulo que cobre um leque de
posturas e propostas”. Paulo Fernando de Moraes Farias, “Afrocentrismo: entre uma
contranarrativa histórica universalista e o relativismo cultural”, Afro-Ásia, n. 29
(2003), pp. 317-343. . Dessa forma, penso no afrocentrismo como uma perspectiva
que foi organizada conceitualmente por Asante, mas que abrange contribuições
variadas, mesmo anteriores à delimitação do conceito, por exemplo, a obra de Diop,
um afrocêntrico avant la lettre, e considerando sua variedade interna.
3 Para as principals teses sobre o “Egito negro”, ver Cheikh Anta Diop, The African
Origin of Civilization: Myth or Reality, New York: Lawrence Hill, 1974, pp. xii-xvii;
Mole Kete Asante, Afrocentricity: The Theory of Social Change, Buffalo: Amule,
1980; e Théophile Obenga, L’Egypte, la Grèce et l’École d’Alexandrie: histoire inter-
culturelle dans l’antiquité, aux sources égyptiennes de la philosophie grecque, Paris:
L’Harmattan, 2005.
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observadas de forma sutil desde o século XVIII.4 Entretanto, a abrangência
internacional desse tema só foi alcançada e consolidada a partir da atuação
de Diop; portanto, no cenário do pós-guerra e da militância política pela
descolonização de países africanos.
Um dos elementos fundamentais dessa perspectiva é a defesa da
conexão direta entre o povo negro africano e a experiência original egípcia
antiga, que teria uma base núbia; e, nesse sentido, foram apresentados
vários argumentos que sustentam tal conexão entre a experiência egípcia e
outras do continente africano, sobretudo aquelas em contexto subsaariano.
Assim, elementos da organização social, aspectos culturais variados,
incluindo a organização da variedade linguística no plano diacrônico,
foram analisados a partir dessa abordagem, ressaltando-se propostas de
conexão linguística – por vezes extrapolada para uma conexão étnica –
entre os egípcios e os grupos falantes das línguas iorubanas como um dos
elementos dessa proposta. É preciso notar que tal abordagem é bastante
polêmica e que está no centro de debates intensos.5 Ou seja, é necessário,
ainda, observar com mais clareza a consistência de tais argumentos panafri-
canistas e afrocêntricos quando mobilizados para interpretar experiências
da Antiguidade.6
4 Para uma associação entre o Egito antigo e negritude no século XVIII, ver Constantin-
François De Chasseboeuf (Comte de Volley), Voyages en Syrie et en Egypte, Paris:
Parmantier, 1787, pp. 74-77. Para uma proposta presente nos EUA no início do século
XX, ver William E. B. Du Bois, “Ethiopia and Egypt” in Du Bois, The Negro (New
York: Cosimo 1915/2007), pp. 17-26.
5 Para uma síntese do debate atual e das críticas ao afrocentrismo, ver Farias,
“Afrocentrismo”, pp. 317-343; e Bussoti e Nhaueleque, “A invenção de uma tradição”,
pp. 1-28.
6 Segundo documento da União Africana publicado em 2013, o panafricanismo pode ser
compreendido como “uma ideologia e um movimento que incentivou a solidariedade
dos africanos em todo o mundo. Ele se baseia na crença de que a unidade é vital para
o progresso econômico, social e político e tem como objetivo ‘unicar e elevar’ as
pessoas de ascendência africana. Tal ideologia arma que os destinos de todos os
povos e países africanos estão entrelaçados. Em sua essência, o panafricanismo é ‘a
crença de que os povos africanos, tanto no continente quanto na diáspora, compar-
tilham não apenas uma história comum, mas um destino comum’”. (tradução minha).
Hakim Adi, Pan-Africanism: A History. London: Bloomsbury, 2018, p. 1. Uma expli-
cação da complexidade e variedade do conceito e de suas implicações nos planos da
economia, sociedade, política e cultura foge do escopo deste texto. Para o conceito e
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Quanto à conexão egípcio-iorubana especicamente, Jock
Matthew Agai, em um texto que discute a formação dos iorubás (o grupo
linguístico e a etnia), apresenta, pelo menos, mais quatro outras teses que
já foram defendidas: a origem árabe, judaica, etrusca e local baseada na
África Ocidental,7 o que nos indica que a conexão egípcio-iorubana não
é uma explicação denitiva e tem concorrentes. Além disso, o pesqui-
sador Anderson R. Oliva, ao discorrer sobre a criação dos iorubás como
um grupo étnico entre os séculos XVIII e XIX, e discutir os caminhos do
grupo linguístico anterior em uma revisão bibliográca sobre o tema, não
faz nenhuma menção à tese das origens egípcias; ao contrário disso, a
presença islâmica na região é destacada.8
Indicada a complexidade do debate, restrinjo-me a dizer que,
aqui, o tema principal não é a consistência dos argumentos afrocêntricos
panafricanistas – o que valeria uma publicação especíca –, mas como
um de seus desdobramentos, a conexão egípcio-iorubana, foi mobilizado
em debates sobre a memória da negritude brasileira a partir do contexto
da redemocratização e, mais especicamente, da comemoração do cente-
nário da abolição, o que oferecerá um breve delineamento de questões que
foram antecipadas e aprofundadas na reexão pictórica de uma impor-
tante gura pública brasileira: o intelectual e político Abdias Nascimento.
sua historicidade, ver Adi, Pan-Africanism e Colin Legum, Pan-Africanism: A Short
Political Guide, New York: Praeger, 1965. Entretanto, no que se refere ao debate
aqui proposto, é devido dizer que o panafricanismo está na base de determinadas
formulações afrocêntricas, tais como a defesa de elementos egípcios antigos como
fundamentais para a organização de características da língua, organização social e
política, aspectos da religiosidade, entre outros, de vários povos africanos.
7 Jack M. Agai, “Samuel Johnson on the Egyptian origin of the Yoruba”, Tese
(Doutorado em Filosoa), University of KwaZulu-Natal, Pietermaritzburg, 2016,
pp. 173-204.
8 Anderson R. Oliva, “A invenção dos iorubás na África Ocidental. Reexões e aponta-
mentos acerca do papel da história e da tradição oral na construção da identidade
étnica”, Estudos Afro-Asiáticos, v. 27, n. 1-3 (2005), pp. 141-179. Para a conexão
entre os iorubás, o Islã e o culto dos orixás, ver Paulo Fernando de Moraes Farias,
“Enquanto isso, do outro lado do mar...: os Arókin e a identidade iorubá”, Afro-Ásia,
n. 17 (1996), pp. 139-55; e Murilo S. B Meihy, “Xangô vai à Meca: Islã, comércio e as
religiões tradicionais iorubás”, Exilium. Revista de Estudos da Contemporaneidade,
v. 1, n. 1 (2020), pp. 35-55.
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Ou seja, este texto não é uma defesa da tese afrocêntrica sobre a conexão
egípcio-iorubana, mas a observação de certas especicidades que ela
ganhou no Brasil.
O Egito negro e o centenário da abolição em três
movimentos
É possível identicar, entre as décadas de 1970 e 1980 no Brasil, um debate
que começava a ganhar força sobre as referências que deveriam organizar
a memória da negritude um pouco antes de uma importante efeméride: o
13 de maio de 1988, correspondente ao centenário da assinatura da Lei
Áurea, referência que ainda dominava as representações sobre a liber-
tação das pessoas negras escravizadas. Nesse sentido, a crítica intensa de
segmentos dos movimentos negros apresentava um outro referencial – a
gura de Zumbi do Palmares, o líder de um movimento de resistência,
portanto, um deslocamento do 13 de maio para o 20 de novembro, data
relacionada ao assassinato do líder de Palmares em 1695; da liberdade
como uma concessão para a ideia de uma conquista pautada na luta,
mas as referências foram ainda mais amplas. Ao mesmo tempo que esse
debate acontecia, desde a década de 1970 estabelecia-se uma referência
sólida para a militância negra no Brasil baseada nos movimentos civis
nos Estados Unidos da América;9 e foi, a partir disso, que o interesse pelo
Egito antigo passou a integrar esse conjunto de representações positivas
da ancestralidade negra por aqui.10
Se, nos EUA, o início desse debate remonta à primeira metade
do século XX e se ele foi efetivamente impulsionado em um cenário
9 Mírian C. M. Garrido, “Militantes negros nos Estados Unidos e no Brasil: King Jr.,
Malcolm X e militantes brasileiros envolvidos na atuação do Movimento Negro
Unicado, relações possíveis (1950-1980)”, Afro-Ásia, n. 56 (2017), pp. 9-40.
10 Para uma associação pictórica entre Egito antigo e negritude no Brasil no século XIX,
ver a tela Pastor egípcio (1887) de Honório Esteves. A pintura é citada em Margaret
Bakos, “Arte e decoração egípcia” in Margaret Bakos (org.) Egiptomania. O Egito no
Brasil (São Paulo: Paris Editorial, 2004), p. 89.
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do pós-guerra que oferecia condições para que vozes como a de Diop
ganhassem alcance internacional, no Brasil, o Egito antigo como
referência para a memória da negritude só passou a se instalar com maior
força a partir da década de 1980. E, nesse sentido, a conexão entre a base
iorubana (já associada com certa intensidade às representações positivas
de negritude em projetos do século XIX como o de Nina Rodrigues, e
na construção do que segmento da bibliograa especializada caracteriza
como “nagocentrismo”)11 e o referencial egípcio começou a se estabelecer.
Ou seja, é importante notar que não foi o esforço acadêmico que trouxe
esse debate para o Brasil: a Egiptologia brasileira estava restrita ao manejo
de algumas coleções como a do Museu Nacional do Rio de Janeiro, à
formação de alguns especialistas na Europa principalmente e ao interesse
mais amplo e popular no âmbito da Egiptomania.12
O Egito negro e suas associações com os iorubás estabeleceu-se
no Brasil, portanto, como um objeto da militância política, o que nos
oferece uma dupla direção para compreender sua abordagem: por um lado,
a construção de representações no nível das manifestações populares,
reexões de intelectuais negros e um diálogo bastante mediado com os
autores das teses afrocêntricas sobre o Egito Antigo; e, por outro, a quase
ausência de especialistas brasileiros sobre o tema (a ciência da Egipto-
logia) na revisão de certas propostas e na proposição de novas perspectivas
dentro delas. O tema do Egito negro e, especialmente, da conexão egípcio-
-iorubana, foi desenvolvido pela militância negra, apresentando contornos
políticos explícitos (por vezes, bastante distantes dos debates acadêmicos);
11 Julio S. Braga, Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da
Bahia, Salvador: EDUFBA, 1995, p. 44; e Lisa E. Castillo, Entre a oralidade e a
escrita: a etnograa nos candomblés da Bahia, Salvador: EDUFBA, 2010, p. 103.
12 Para a Egiptomania no Brasil, ver Margaret Bakos (org.), Egiptomania. O Egito
no Brasil, São Paulo: Paris Editorial, 2004. Para a Egiptologia no Brasil, ver Thais
Rocha da Silva, “Tropical Egypt: The Development of Egyptology in Brazil and its
Future Challenges” in Christian Langer (ed.), Global Egyptology: Negotiations in the
Production of Knowledges on Ancient Egypt in Global Contexts (London: Golden
House Publications, 2017), pp. 161-72.
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e, só recentemente, passou a receber atenção de especialistas brasileiros
da Egiptologia.13
Além disso, outro aspecto é bastante relevante na mobilização
desse tema no Brasil. No seio da militância, ele foi apropriado e desen-
volvido fundamentalmente a partir de propostas artísticas: em pinturas,
em monumentos públicos e na performance de espetáculos. Mais do que
artigos e livros acadêmicos sobre o tema, a contribuição brasileira para
esse debate é sobretudo estética. Houve, é claro, textos produzidos sobre o
tema,14 mas as novidades mais consistentes em contexto brasileiro foram
apresentadas em representações artísticas.
Observemos, por exemplo, a instalação do Monumento a Zumbi
dos Palmares (ver gura 1) na Praça Onze no Rio de Janeiro em 1986,
depois de um longo debate interno da militância negra fundamentado pela
crítica à história tradicional que situava a Princesa Isabel como aquela que
concedera a liberdade às pessoas negras escravizadas e a eleição de uma
experiência de resistência liderada por Zumbi. O debate se estendeu para a
denição do espaço na cidade do Rio de Janeiro onde o monumento seria
erigido, a negociação com o governo do Rio de Janeiro e a votação de um
13 Para uma perspectiva mais alinhada à abordagem afrocêntrica, ver Raisa Sagredo,
“Raça e etnicidade: questões em torno da (des)africanização do Egito Antigo”,
Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2017, . Para abordagens mais descritivas e críticas, ver Fábio Afonso
Frizzo de Mores Lima, “Estado, império e exploração econômica no Egito do Reino
Novo”, Tese (Doutorado em História) Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2016, pp. 145-248, ; e Thais Rocha da Silva, “Ancient Egypt in Africa: Why it
matters to Brazilian Egyptology” in Hana Navratilova; Thomas L. Gertzen; Marleen
De Meyer; Aidan Dodson; Andrew Bednarski (eds.), Addressing Diversity Inclusive
Histories of Egyptology (Münster: Zaphon, 2023), pp. 529-556. Antes do movimento
mais recente de acolhimento de debates sobre a relação entre o Egito antigo e alguns
temas relacionados (como as questões raciais envolvidas), um dos poucos egiptólogos
brasileiros que dialogaram com autores afrocêntricos foi Ciro Flamarion Cardoso. Ver,
por exemplo, Ciro Flamarion Cardoso, O Egito antigo, São Paulo: Ed. Brasiliense,
1982, pp. 8-9 e Ciro Flamarion Cardoso, Sete olhares sobre a antiguidade, Brasília:
Ed. UnB, 1994, pp. 29-31.
14 Por exemplo, os escritos de Abdias Nascimento, que serão apresentados na seção
seguinte.
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projeto de lei e a participação denidora do vice-governador e secretário
da cultura à época, Darcy Ribeiro.15
Figura 1
Monumento a Zumbi dos Palmares (1986), Praça Onze, Rio de Janeiro
Fonte: Wikimedia Commons
Como síntese desse debate, em um espaço importante para a
história do samba e da atuação da população negra no Rio de Janeiro foi
instalado um monumento que homenageia Zumbi dos Palmares a partir da
combinação de dois elementos de realeza africana escolhidos por Ribeiro:
a cabeça no topo – uma reprodução superdimensionada de bronze que
representa um governante do Ifé (região da Nigéria)16 e, abaixo, uma
15 O local escolhido foi a Praça Onze, espaço historicamente ligado à comunidade negra
do Rio de Janeiro e bastante próximo do Sambódromo, que havia sido inaugurado
em 1984. Para os debates em torno do monumento, o contexto e a proposta que foi
materializada, ver Mariza de C. Soares, “Nos atalhos da memória: Monumento a
Zumbi” in Paulo Knauss (org.), Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro
(Rio de Janeiro: 7 Letras, 1999), pp. 117-135; Roberto Conduru, Pérolas negras:
primeiros os experiências artísticas e culturais nos uxos entre África e Brasil, Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2013, pp. 88-90; e Márcia R. R. Chuva, “Entre a herança e
a presença: o patrimônio cultural de referência negra no Rio de Janeiro”, Anais do
Museu Paulista: História E Cultura Material, v. 28 (2020), pp. 9-16.
16 Museu Britânico, inventário Af1939,34.1. Trata-se de uma cabeça de bronze com 35
centímetros de altura e cerca de cinco quilogramas, que foi encontrada na Nigéria
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base piramidal que projeta a cabeça verticalmente destacando-a em um
conjunto que alcança sete metros de altura (ver gura 1).17 Ou seja, a
conexão egípcio-iorubana é claramente apresentada no monumento: a
associação, a partir de exemplos de realeza africana, entre um governante
do Ifé, região central na articulação dos iorubás, e uma explícita referência
aos monumentos funerários dos faraós e rainhas dos Egito antigo.18
No mesmo ano, era discutido pelos integrantes do Bloco Olodum,
na Bahia, o tema para o carnaval de 1987. A escolha foi “O Egito dos
faraós”. E, na preparação do espetáculo público, o compositor Luciano
Gomes criou uma das canções escolhidas para representar o bloco carna-
valesco, Faraó, divindade do Egito, cuja letra apresenta a ancestralidade
egípcia em três níveis bem denidos: a cosmogonia mítica organizada no
plano divino, o poder político dos faraós e a conexão entre o Egito antigo
e a população afrodescendente da Bahia, mais especicamente do Pelou-
rinho.19 Além disso, no desle do bloco, os ritmistas, que sustentavam a
canção em ritmo de afroreggae, estavam todos fantasiados de egípcios,
em 1939. A datação varia bastante nas publicações sobre esse artefato: no site do
Museu Britânico, o período apresentado é entre os séculos XIV e início do XV (prova-
velmente). Em um artigo que apresenta uma análise bastante completa do objeto
(Paul T. Craddock; Janet Ambers; Maickel Van Bellegem; Caroline R. Cartwright;
Julie Hudson; Susan La Niece; Michela Spataro, “The Olokun head reconsidered”,
Afrique: Archéologie & Arts, n. 9, 2013, pp. 13-42), propõe-se que a produção tenha
ocorrido muito provavelmente entre os séculos XIII e XV. Em uma obra de divul-
gação, bastante informativa e especíca sobre esse objeto, a data apresentada é entre
o século XII e XV (Edith Platte; Musa O. Hambolu, Bronze head from Ife: Object
in Focus, London: British Museum Press, 2010, p. 7). Ver site do Museu Britânico
(consultado em 16 de outubro de 2023):
17 “Com um total de sete metros de altura, o monumento tem uma base piramidal em
alvenaria, revestida em mármore branco e encimada por uma cabeça masculina
confeccionada com 800 quilos de bronze.” (Soares, “Nos atalhos da memória”, p.
117). Para uma narrativa sobre outra réplica dessa cabeça de bronze no Brasil, que
esteve presente na coleção particular do artista plástico Carybé, ver Jérôme Souty,
Pierre Fatumbi Verger do olhar livre ao conhecimento iniciático, São Paulo: Ed.
Terceiro Nome, 2019, p. 88.
18 Para os depoimentos dos militantes Adélia Azevedo e Luiz Eduardo Oliveira
(Negrogum) sobre os debates acerca da construção do monumento, ver anexo 1 (todos
os anexos estão situados ao nal do texto).
19 João J. S. Rodrigues, Olodum. Estrada da paixão, Salvador: FCJA/Ed., 1996, p. 182;
Cheryl Sterling, African Roots, Brazilian Rites: Cultural and National Identity in
Brazil, New York: Palgrave Macmillan, 2012, pp. 94-96..
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apresentando um referencial estético de conexão entre a negritude brasi-
leira e o Egito antigo (ver gura 2). O tema foi tão marcante que foi
escolhido para o carnaval em outras ocasiões, com enfoques um pouco
diferentes.20
Figura 2
Bloco Olodum, 1987
Fonte: print do lme Eclats noirs du Samba: Zézé Motta, La femme enchantée (1987), de Ariel de
Bigault.
20 Os temas foram os seguintes: em 1989 – “Núbia, Axum, Etiópia”; 1990 – “Do deserto
do Saara ao Nordeste brasileiro”; 1993 – “Os tesouros de Tuthankamon, faraó o Egito
antigo”; 2000 – “Do Egito à Bahia, o caminho da eternidade: Ramsés II”; 2005 –
“O casal solar – Akhenaton e Nefertiti. O monoteísmo africano”; 2012 – “O vale dos
reis. As sete portas da energia”; e 2017 – “O Sol. Akhenaton: os caminhos da luz”. Ver
o anexo 2, para o depoimento do presidente do bloco, João Jorge Santos Rodrigues,
naquela época.
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Voltando ao Rio de Janeiro, em região próxima do monumento
a Zumbi dos Palmares, havia sido construído o Sambódromo, em 1984,
espaço de apresentação do espetáculo anual das escolas de samba do
Rio de Janeiro. Em 1988, enquanto as comemorações do centenário
da abolição eram desenvolvidas, três agremiações do que era chamado
naquela época “Grupo 1A” (atualmente, “Grupo Especial”) escolheram
apresentar a história da negritude no Brasil – as três primeiras colocadas
na competição. Uma delas apresentou a conexão egípcio-iorubana de
forma explícita. O G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis defendeu o seguinte
enredo: “Sou negro, do Egito à liberdade”.21 O samba enredo destaca a
situação ainda precária da população negra no Brasil cem anos depois da
abolição, e o Egito praticamente não era citado (exceto pelo título).
Entretanto, o projeto visual era bastante diferente: as fantasias e
alegorias concebidas pelo carnavalesco Joãosinho Trinta apresentavam
conexões consistentes entre o referencial iorubano e o egípcio antigo.
Várias das alegorias mesclavam orixás, deuses e faraós egípcios a partir
de elementos amplamente reconhecíveis: por exemplo, uma das alegorias,
toda em azul e prata, apresentava um ambiente aquático dominado por
uma escultura central de uma mulher negra com trajes que caracterizam
a deusa Iemanjá, mas com um elemento na cabeça claramente ligado à
deusa Ísis (o disco solar com os cornos laterais). Para raticar a relação,
em estandartes estava escrito “Ísis e Iemanjá – Divinas Mães – Axé”. E
21 Apesar de o Egito antigo ser tema recorrente nos desles das escolas de samba do Rio
de Janeiro, a abordagem panafricanista é menos presente: antes de 1988, parece ter
sido tema de enredo apenas em 1978, proposto pela G.R.A.N.E.S. Quilombo, Ao povo
em forma de arte (Ricardo P. de Almeida, “Referenciação em letras de samba-enredo:
o objeto de discurso ‘negro’ através das décadas”, Dissertação (Mestrado em Letras),
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011, , pp. 156-157 – ver
nossa epígrafe. Para o desle do centenário da abolição, ver: André L. Porro, “Esta
Kizomba é nossa constituição: o movimento negro na travessia dos desles das
escolas de samba do Rio de Janeiro” in Júlio. C. V. Ferreira (org.), Festa e memória:
perspectivas étnico-raciais (São Paulo: Pimenta Cultural, 2020), pp. 86-99. Para as
associações entre o carnaval brasileiro, nas suas variadas manifestações e temáticas
ligadas ao Egito antigo, ver Margaret Bakos; & Iris Germano, “Festas, carnaval e
Egito antigo” in Margaret Bakos (org.), Egiptomania. O Egito no Brasil (São Paulo:
Paris Editorial, 2004), pp. 101-115.
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essa forma de associação foi estabelecida ao longo do projeto do carnava-
lesco: além de Iemanjá – Ísis; Oxalá – Osíris; Xangô – Hórus; Ossanha,
Obaluaiê, Oxóssi – Anúbis; Oxum – Hator; e Ogum e Iansã – faraó Menés
(ver gura 3).22
Figura 3
Detalhes dos carros alegóricos Ísis-Iemanjá e Hórus e Xangô, desle da G.R.E.S. Beija Flor de
Nilópolis, 1988
Fonte: acervo Revista Manchete, edição 1872.
Essas são algumas construções que indicam a dinâmica da organi-
zação do discurso afrocêntrico que começava a se instalar na defesa da
conexão egípcio-iorubana instrumentalizada nos debates sobre a recon-
guração da memória da negritude brasileira a partir da abordagem
panafricanista. Do ponto de vista do debate acadêmico sobre a validade
desse argumento afrocêntrico, pouca novidade foi desenvolvida no Brasil.
Entretanto, esses três exemplos apresentam como representações artísticas
22 Ver o anexo 3 para o depoimento do carnavalesco da Beija-Flor à época, Joãsinho
Trinta, sobre o projeto do carnaval de 1988.
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organizaram certa especicidade desse tema, tal como o afrofuturismo
apresentou um conteúdo próprio da vertente estadunidense do afrocen-
trismo popular.23
Sobre a conexão egípcio-iorubana no Brasil, parece que a produção
mais consistente foi a de Abdias Nascimento, na medida em que ele discute
esse tema em escritos variados de sua militância e na produção de várias
telas ao longo de quase trinta anos. O interesse de Nascimento pelo tema
começou antes da efeméride indicada e se estendeu por décadas, o que
nos permite reetir sobre a mobilização da conexão egípcio-iorubana para
além desses projetos pontuais.
O Egito negro na obra pictória de Abdias Nascimento
Abdias Nascimento foi um intelectual, político, militante e artista cuja
biograa é bastante extensa e variada. Aqui, vou me concentrar nas infor-
mações biográcas que ajudem a compreender a sua adesão ao pensamento
afrocêntrico e a sua atuação como artista plástico – um pintor responsável
pela produção de um extenso conjunto de telas entre 1968 e 1996, nas
quais ele discutiu questões sobre a negritude afrodiaspórica cunhando um
conceito novo, próprio da experiência brasileira, o quilombismo.24
Para entender as reexões pictóricas de Nascimento e o uso
consistente da conexão egípcio-iorubana, é preciso considerar a sua
experiência nos Estados Unidos, que começou em 1968, quando ele partiu
para uma estadia de poucos meses, mas, quando o Ato Institucional n.
23 Para o afrofuturismo nos EUA, ver Philip Butler (ed.), Critical Black Futures
Speculative Theories and Explorations, New York: Palgrave Macmillan, 2021; e
Kevin M. Strait; & Kinshasha Holman Conwill (eds.), Afrofuturism. A History of
Black Futures, Washington DC: Smithsonian Books, 2023.
24 Para uma visão geral da obra pictórica de Nascimento, ver Adriano Pedrosa e Amanda
Carneiro (eds.), Abdias Nascimento: um artista panamefricano, São Paulo: MASP,
2022. Para o conceito de quilombismo, ver Abdias Nascimento, O quilombismo.
Documentos de uma militância pan-africanista, São Paulo: Ed. Perspectiva, 2019,
pp. 271-312.
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 305
5 foi promulgado, Nascimento, que era alvo de investigações políticas
do governo brasileiro, estabeleceu-se por lá em um período mais longo
do que o previsto.25 Em 1968, antes de partir para os EUA, ele já havia
pintado algumas telas, depois de ter sido incentivado pelo artista argentino
Efraim Tomás Bo e pelo pintor brasileiro Sebastião Januário;26 e, nesse
período de treze anos, logo antes de sua partida até seu retorno denitivo
ao Brasil, quase metade das obras ligadas à associação entre Egito antigo
e negritude – e, mais especicamente, à conexão egípcio-iorubana – foi
produzida (ver tabela 1, I-VI).
Tabela 1 – Obras de Abdias Nascimento com temática egípcia27
Título das obras (coleção) Ano Dimensões (cm)
I Santa Maria Egipcíaca n. 2 (Ipeafro) 1968 71 x 52
II Afro Estandarte (Ipeafro) 1969 80 x 50
III Metamorfose n. 4: Ankh, duplo machado de Xangô e a cruz
(coleção particular) 1969 102 x 153
IV Germinal n. 2: Ankh (Ipeafro) 1969 122 x 71
V Mediação n. 1: Apis, o Touro Sagrado (Ipeafro) 1973 76 x 76
VI Mediação n. 2: Apis, o Touro Sagrado (Ipeafro) 1973 63 x 63
VII Ritual de Exu (Ipeafro) 1987 100 x 81
VIII Raízes n. 1: Tributo a Aguinaldo Camargo (Ipeafro) 1987 60 x 100
IX Padê de Exu (Ipeafro) 1988 150 x 100
25 Nascimento viveu nos EUA até 1978, visitando o Brasil pontualmente e retornando
denitivamente em 1981. Para a experiência de Nascimento nos EUA, ver Tulio A.
S. Custódio, “Construindo o (auto)exílio: trajetória de Abdias do Nascimento nos
Estados Unidos, 1968-1981” Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2012, ; Nascimento, Abdias Nascimento, p. 26; Kimberly
Cleveland, “Abdias Nascimento: Afro-Brazilian Painting Connections Across the
Diaspora” in Kendahl Radcliffe; Jennifer Scott; Anja Werner (eds.), Anywhere but
Here: Black Intellectuals in the Atlantic World and Beyond (Jackson: University Press
of Mississipi, 2014), pp. 167-186; Dária Jaremtchuki, “Abdias do Nascimento nos
Estados Unidos: um ‘pintor de arte negra’”, Estudos Avançados, v. 32, n. 93 (2018),
pp. 263-282, .
26 Elisa L. Nascimento, Abdias Nascimento. Grandes vultos que honraram o Senado,
Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014, p. 165.
27 Todas as pinturas indicadas foram produzidas com a técnica de acrílico sobre tela.
Para mais informações, ver Pedrosa e Carneiro (eds.), Abdias Nascimento. Todas
as imagens das pinturas de Nascimento apresentadas neste texto foram extraídas de
Pedrosa e Carneiro (eds.), Abdias Nascimento, exceto a da obra Obatalá Apis Vee (g.
6 d), cuja fonte é o acervo digital do Museu de Arte Negra/Ipeafro
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Tabela 1 – Obras de Abdias Nascimento com temática egípcia27
Título das obras (coleção) Ano Dimensões (cm)
X Máscara Ancestral (Ipeafro) 1988 80 x 100
XI Raízes n. 2: Tributo a Aguinaldo Camargo (Ipeafro) 1988 100 x 150
XII Olho egípcio com bandeirinhas (Ipeafro) 1988 60 x 100
XIII Obatalá Apis Vee (coleção particular) 1993 40 x 50
XIV Afro estandarte n. 2 (Ipeafro) 1996 150 x 100
XV Ancestralidade (Coleção Ricardo Motta) 1996 80 x 50
É importante notar que, nos EUA, Nascimento participou como
artista, ativista e professor universitário de um ambiente bastante consis-
tente de debates e militância sobre negritude, ancestralidade, direitos civis
e, muito possivelmente, a inspiração para a conexão egípcio-iorubana na
sua obra pictórica tenha sido desenvolvida naquele contexto, em que ele
teve contato com intelectuais afro-americanos como Mole Kete Asante,
Anani Dzidzienyo e Maulana Karenga,28 e que começou a se engajar de
forma mais profunda no debate proposto por Cheikh Anta Diop, uma das
principais referências na sua obra.29
Mas, antes disso, Nascimento já havia iniciado, no conjunto de
sua obra pictórica, a desenvolver reexões que associavam negritude,
africanidades e egipcianidade, o que também pode ser identicado em
28 Mole Kete Asante, “In Memoriam for Abdias do Nascimento 1914-2011”, The
Journal of Pan African Studies, v. 4, n. 5 (2011), p. 2; Mole Kete Asante, “The
Remarkable Curvature of the Mind of Abdias do Nascimento”, Journal of Black
Studies, v. 52, n. 6 (2021), p. 579.
29 Diop foi constantemente citado nos escritos de Nascimento. Até onde pude identi-
car, o texto mais antigo que apresenta um diálogo panafricanista explícito com o
intelectual senegalês é de 1974 – Revolução cultural e futuro do pan-africanismo
(Nascimento, O quilombismo, pp. 61-106); entretanto, a conexão egípcio-iorubana
parece ter sido desenvolvida com mais solidez a partir de 1980: ver, por exemplo,
Abdias Nascimento, “Quilombismo: An Afro-Brazilian Political Alternative”,
Journal of Black Studies, v. 11 (1980), pp. 141-178 e Nascimento, O quilombismo,
pp. 273-312. Ainda, é importante notar que, por sua atuação no Teatro Experimental
do Negro (TEN), Nascimento era conhecedor da revista Présence Africaine desde a
década de 1950, periódico que havia publicado as primeiras contribuições de Diop
(Wilson Rogério Penteado Jr.; Tailane Santana Nunes, “Um legado de ação antirra-
cista: Abdias Nascimento e o Teatro Experimental do Negro”, Latitude, v. 14, n. 2
(2020), p. 173; e Kimberly L. Cleveland, Black Art in Brazil Expressions of Identity,
Gainesville: University Press of Florida, 2013, p. 46).
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seus escritos. Antes de sua ida aos EUA, Nascimento já havia registrado
pontualmente a relação entre a negritude e o Egito antigo, mas no âmbito
do teatro, argumentado pela anterioridade do teatro no Egito e mobili-
zando a narrativa presente n’As Suplicantes de Ésquilo.30 Entretanto,
parece que esse tema foi aprofundado na sua obra, enquanto ele se tornava
um defensor das teses afrocêntricas sobre a negritude dos egípcios antigos
e dialogava com algumas questões especícas da negritude brasileira, por
exemplo, a valorização do patrimônio religioso iorubano e egípcio antigo
seguindo a lógica panafricanista.31
As associações entre o repertório iorubano e egípcio na obra
pictórica de Nascimento foram notadas por vários especialistas que se
dedicaram a esse tema. Por exemplo, na obra Os deuses vivos da África,
além da própria reexão especíca de Nascimento sobre o tema,32 outros
autores que comentam esse conjunto de pinturas33 também explicitam a
conexão egípcio iorubana. Muniz Sodré chega a cunhar o termo “gnosti-
cismo pictórico” para sintetizar esse aspecto da obra de Nascimento:
Na pintura de Abdias, entretanto, a pluralidade apresenta-se como o
momento de uma unidade que se entrevê no estuário mitológico da
civilização egípcia. Os orixás, os boduns, os inquires reencontram-se
30 Abdias Nascimento, Dramas para negros e prólogo para brancos. Antologia de teatro
negro-brasileiro, Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro, 1961, pp. 11 e 23.
31 Para as reexões afrocêntricas de Nascimento, sobretudo sobre a importância
do Egito antigo na construção da memória dos afro-brasileiro, ver Nascimento,
O quilombismo, pp. 273-278 (especialmente, p. 278, para a conexão egípcio-iorubana,
pp. 291-295; 307-311). Para os diálogos de Nascimento com autores afrocêntricos
africanos e dos EUA, ver Tshombe Miles, “Abdias Nascimento e a tradição intelectual
afrodiaspórica: no combate ao racismo”, Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2
(2017), pp. 124-126. Para a criação do periódico Thoth. Escriba dos deuses, ligado à
divulgação de estudos sobre a cultura africana, ver Nascimento, Abdias Nascimento,
pp. 267-268.
32 Abdias Nascimento, “Os afro-brasileiros e os orixás” in Abdias Nascimento,
Os deuses vivos da África (Rio de Janeiro: Ipeafro, 1995), p. 53.
33 Na obra Os deuses vivos da África, há contribuições de alguns autores que identicam
e comentam a presença de elementos egípcios e sua aproximação com elementos
iorubanos. Asante, “Apresentação”, p. 23; Elisa Larkin Nascimento, “Prefácio”, p. 31;
Lélia Gonzalez, “Griot e guerreiro”, p. 82; Muniz Sodré, “O gnosticismo pictórico
de Abdias do Nascimento”, pp. 105-107. Clóvis Brigagão, “Abdias do Nascimento:
obra, idéias e personalidade”, p. 116.
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nos quadros com a simbologia de Osíris, Ísis, Ra. Desenha-se por trás
da armadura de cores e representações uma perspectiva agnóstica, no
sentido de um saber atravessado por mistérios e sempre em busca de
uma unidade fundadora – mas sem o dualismo homem/mundo. No
gnosticismo pictórico de Abdias, os deuses, sejam nagôs ou egípcios,
perpassam e são perpassados pelo mundo.34
Do grupo de pinturas aqui selecionado (ver tabela 1), todas
associam egipcianidade e africanidade. Na maior parte delas, é incluída
a noção de negritude; e, em um grupo expressivo, é percebida a conexão
egípcio-iorubana.35 No âmbito da leitura afrocêntrica, uma das primeiras
obras pictóricas de Nascimento foi Santa Maria Egipcíaca, de 1968
(ver tabela 1, I e gura 4 a), na qual ele associa explicitamente o Egito à
negritude. Se o tema é bastante tradicional – a narrativa situada no século
IV EC sobre uma mulher que teria sido prostituta, mas que se despojara
de tudo para viver uma experiência de ascetismo em meio ao cristianismo
de tradição copta – a perspectiva afrocêntrica a distância da sua caracte-
rização como uma mulher branca ou de pele clara, mas escurecida pelo
sol do deserto, em ícones ortodoxos ou nas pinturas a óleo de Jusepe de
Ribera no século XVII.36
Na tela de Nascimento, ela é uma mulher negra, está nua e,
diferente da pessoa envelhecida e devota, a temática é deslocada para a
sua conversão e batismo que teria ocorrido no Rio Jordão. Nascimento
cria um ambiente aquático do rio com peixes e uma canoa – que também
cumpre o papel da aura amendoada (mandorla) comum na hagiograa
bizantina – conduzida por um canoeiro. A conexão com o mundo celeste
é indicada pelas aves na parte alta da tela (uma delas, uma fênix simbo-
lizando a renovação), e a memória da vida pecaminosa é sugerida pela
34 Sodré, “O gnosticismo pictórico de Abdias do Nascimento”.
35 Do repertório geral composto pelas quinze obras que identiquei, há dois grupos
temáticos: um deles baseado na conexão entre o Egito antigo e a negritude de maneira
geral (ver tabela 1, I, V, VI, X e XII) e o outro, na conexão entre elementos egípcios e
iorubanos (ver tabela 1, II, III, VII-IX, XI, XIII, XIV e XV).
36 Sonia Velázquez, Promiscuous Grace: Imagining Beauty and Holiness with Saint
Mary of Egypt, Chicago: University of Chicago Press, 2023.
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serpente que contorna a cabeça de Maria repousando sua cabeça entre as
mamas da santa.37
Como síntese, é observada uma mescla de informações sobre o
cristianismo, a negritude e o Egito antigo, o que ele mobilizou, ao menos
parcialmente, em outra tela: Metamorfose n. 4: Ankh, machado de Xangô
e a cruz de 1969 (ver tabela 1, III e gura 4 c), na qual a associação entre o
Egito antigo e o cristianismo também é colocada em paralelo à referência
de negritude: o atributo de uma divindade iorubana. Há, assim, um inter-
câmbio religioso como na Santa Maria Egipcíaca, mas de forma mais
abstrata e integrando explicitamente o elemento iorubano.
37 Nascimento também conectou a serpente amarela ao pecado original na tela
A tentação no paraíso, de 1968, na qual Eva, representada como uma mulher negra,
aparece deitada ao lado da serpente (Pablo L. De La Barra e Raphael Fonseca, Abdias
Nascimento: um espírito libertador. Exposição de 14 de abril a 18 de agosto de 2019,
Niterói: Niterói Livros, 2019, p. 6).
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Figura 4
a. Santa Maria Egipcíaca n. 2 (abaixo, esquerda); b. Germinal n. 2: Ankh (acima, direita); c.
Metamorfose n. 4: Ankh, duplo machado de Xangô e a cruz (abaixo).
Essas duas obras, ainda, indicam uma importante informação sobre
o cristianismo e o continente africano, a partir de antigas práticas dessa
religião, como a tradição egípcia copta, o que pode ser observado tanto
no caso da santa citada, mas também no uso do ankh (bastante estilizado
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e quase irreconhecível se não fosse o título da obra) que, colocado ao
lado da cruz, apresenta uma referência clara à instrumentalização desse
símbolo em contexto cristão de tradição copta no norte da África.38 Ou
seja, o cristianismo é apresentado não como a religião do colonizador, mas
recontextualizado na lógica da ancestralidade africana.39
Um ankh estilizado domina o espaço na tela Germinal n. 2: ankh
de 1969 (ver tabela 1, IV e gura 4 b), mas a lógica parece diferente,
distante de seu signicado cristão: a estilização do hieróglifo, nesse caso,
teria duas implicações – o seu conteúdo linguístico (a palavra “vida”)40
e, sua parte baixa, compõe uma gura que sugere uxo de água – um
ambiente aquático ligado à vida –, o que é raticado pela presença de uma
gura feminina com pele rosada, cauda de peixe (uma sereia) e região
do ventre destacada: a representação de um parto da deusa Iemanjá que
porta, em uma das mãos, um pássaro.41 A vida, assim, discutida a partir do
38 Otto F. A. Meinardus, Two Thousand Years of Coptic Christianity, Cairo; New York:
The American University in Cairo Press, 2002, p. 104; Judith Couchman, The Mystery
of the Cross Bringing. Ancient Christian Images to Life, Downers Grove: IVP Books,
2010, pp. 26-27.
39 É importante notar que os elementos cristãos associados ao ambiente africano antigo,
sobretudo o egípcio, foram praticamente abandonados por Nascimento na sua obra
pictórica. Diferente disso, ele mobilizou, em algumas de suas obras, elementos
cristãos, mas conectados à movimentação civil nos EUA e certas facetas do cristia-
nismo entre as comunidades negras do EUA, por exemplo, nas telas Cristo negro
(1968); Xangô crucicado ou o martírio de Malcolm X (1969) e Baía de sangue,
Luanda (1996) – ver Pedrosa e Carneiro (eds.), Abdias Nascimento, p. 158, n. 65;
p. 172, n. 77 e p. 272, n. 163.
40 O ankh (☥), na lista de hieróglifos da obra de Alan H. Gardiner (S 34), apresenta três
signicados na língua egípcia antiga: “tira de sandália”, “espelho” e “vida” – neste
caso, “o ankh” (Alan H. Gardiner, Egyptian Grammar: Being an Introduction to the
Study of Hieroglyphs, Oxford: Grifth Institute, 1927/1957, p. 508). A associação
entre conteúdos linguísticos divergentes, a tira de sandália e a vida, por exemplo,
teria se dado, segundo algumas hipóteses, pela apresentação fonética (similaridade
de base consonantal) entre as duas palavras (James P. Allen, Middle Egyptian: An
Introduction to the Language and Culture of Hieroglyphs, Cambridge: Cambridge
University Press, 2010, pp. 29-30).
41 A deusa Iemanjá aparece em outras obras de Nascimento como uma sereia: Yemanjá,
mãe das águas e de todos orixás (1968); Composição n. 2 (1971); Teogonia afro-bra-
sileira n. 2: Iansã, Obatalá, Oxum, Oxóssi, Yemanjá, Ogum, Ossain, Xangô, Exu
(1972) – ver Pedrosa; Carneiro (eds.), Abdias Nascimento, p. 157, n. 64; p. 214, n.
113; p. 218, n. 115 e p. 242, n. 138.
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elemento egípcio e da narrativa própria da deusa iorubana que é também
chamada de “mãe de todos os deuses”.
No mesmo ano, Nascimento produziu outra tela que apresenta
a conexão egípcio-iorubana com conteúdos mais generalistas: trata-se
da obra Afro Estandarte de 1969 (ver tabela 1, II e gura 5 a), na qual
são combinados, nas partes alta e baixa, elementos do registro religioso
iorubano (o machado biaxial de Xangô e uma borboleta possivelmente
ligada a Ossain);42 e, no centro, um udyat (o olho de Hórus)43 em destaque
dentro de um círculo amarelo. Essa reexão imagética e associativa entre a
religiosidade iorubana e egípcia recebe um título generalista, e se conecta
diretamente à noção de símbolo tal como uma bandeira ou um brasão,
sintetizando elementos da identidade de um grupo. É interessante notar
que, em 1996, a tela foi reelaborada em dimensões maiores (ver tabela
1, XIV e gura 5 b), mas com pouquíssima variação dos elementos, que
foram mantidos, havendo apenas alguma mudança nas cores.
Nos anos de 1970, o artista propôs uma conexão entre elementos
brasileiros relacionados ao meio rural e o Egito antigo: nas obras
Meditação n. 1: Ápis, o Touro Sagrado e Meditação n. 2: Ápis, o Touro
Sagrado, ambas de 1973 (ver tabela 1, V e VI e gura 6 a e b), bastante
similares (duas máscaras com a face do animal compostas por elementos
geométricos). Apesar de a conexão não ser explícita, o bovino egípcio
indicado pelo título da obra foi associado ao “Bumba meu boi” por Nasci-
mento, não apenas pelo tema geral – ele acreditava que o próprio festejo
brasileiro remontasse ao Egito antigo e não à Europa.44
42 Na obra pictórica de Nascimento, a borboleta é bastante presente e especialmente
associada a Oxum e Oxumaré. De forma isolada, ela parece se referir a Ossain (ver,
por exemplo, os atributos de nove orixás na tela Teogonia afro-brasileira n. 2, Pedrosa
e Carneiro (eds.), Abdias Nascimento, pp. 218-219, g. 115).
43 O udyat (☥), na lista de Gardiner (D 10), é descrito como “olho humano com a marca de
uma cabeça de falcão”; “o olho udyat”; e “o bom olho de Hórus” (Gardiner, Egyptian
Grammar, p. 451; Allen, Middle Egyptian, p. 428).
44 Kimberly Cleveland, “Abdias Nascimento: intervenções artísticas nos Estados
Unidos, 1968-1981” in Pedrosa e Carneiro (eds.), Abdias Nascimento, p. 105.
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 313
Figura 5
a. Afro Estandarte (esquerda); b. Afro estandarte n. 2 (direita)
Essa associação entre o meio rural e referências egípcias só foi
retomada em 1988, quando ele produziu a tela Olho egípcio com bandei-
rinhas (ver tabela 1, XII e gura 6 c). Nascimento já havia situado
referências explícitas a alguns orixás em ambiente povoado por bandei-
rolas parecidas com algumas pinturas de Volpi na tela Quarteto ritual
n. 6 em 1971;45 mas, na tela de 1988, ele apresentava um destacado e
isolado olho egípcio (udyat) diante delas. Nos dois casos, o ambiente rural
representado pelas bandeirolas é associado a símbolos de negritude, os
atributos dos deuses iorubanos e o elemento religioso egípcio. Assim, se o
meio rural fora a paisagem estruturada em grande medida pela produção
agrícola baseada em mão de obra negra escravizada, e as representações de
45 Pedrosa e Carneiro (eds.), Abdias Nascimento, p. 65; pp. 210-211.
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 314
negritude nesse meio explorassem esse elemento,46 Nascimento apresenta
novos habitantes a essa paisagem: os ancestrais sagrados da negritude.
Já o tema do touro Ápis só reapareceu em 1993 (ver tabela 1,
XIII e gura 6 d), em uma tela na qual Nascimento ampliou a referência
para mais uma cultura africana: além da informação egípcia e iorubana,
que compuseram, como visto, consistentemente o conjunto de pinturas
do artista, ele também inseriu uma referência ao vodu haitiano: o veve,
desenhos feitos no chão com giz, cujo objetivo é estabelecer uma conexão
com divindades voduns.47
46 Rero-me a obras desde o século XIX, como Crioula de Diamantina (s/d) e Engenho
de mandioca (1892) de Modesto Brocos, até algumas telas como Mestiço e O lavrador
(ambas de 1934) de Cândido Portinari.
47 Kimberly Cleveland, “Abdias Nascimento: Afro-Brazilian Painting Connections
Across the Diaspora” in Kendahl Radcliffe; Jennifer Scott; Anja Werner (eds.),
Anywhere but Here: Black Intellectuals in the Atlantic World and Beyond (Jackson:
University Press of Mississippi, 2014), pp. 180-181.
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 315
Figura 6
a. Mediação n. 1: Apis, o Touro Sagrado (acima, esquerda); b. Mediação n. 2: Apis, o Touro
Sagrado (acima, direita); c. Olho egípcio com bandeirinhas (abaixo, esquerda); d. Obatalá Apis
Vee (abaixo, direita).
Depois de seu retorno ao Brasil em 1981, Nascimento só retomou
o tema nas suas pinturas em 1987, e a observação das obras desse período
indicam novos desenvolvimentos. Um conjunto de três máscaras produ-
zidas entre 1987 e 1988 explicita uma associação já amadurecida quanto
ao tratamento da conexão egípcio-iorubana. Na tela Ritual de Exu de
1987 (ver tabela 1, VII e gura 7 a), a máscara é organizada na inter-
seção de atributos do deus (dois tridentes curvados que criam um campo
amendoado) e sua face apresenta olhos e boca compostos a partir de
elementos egípcios – dois olhos de Hórus (udyat) e um ankh invertido
como uma boca aberta. Levando em conta o título da obra, o esquema
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 316
circular externo parece representar um cesto onde foram dispostos búzios,
cuja borda é decorada com guras de tridentes.
Figura 7
a. Ritual de Exu (acima, esquerda); b. Padê de Exu (acima, direita); c. Ancestralidade (abaixo,
esquerda); d. Máscara Ancestral (abaixo, direita).
Nesse caso, não se trata da disposição de elementos egípcios e
iorubanos em parealelo, mas da organização de uma imagem composta
por eles, que ganham novos signicados. Os tridentes, junto aos udyats e
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 317
ao ankh, passam a ser parte da constituição física da manifestação do deus
iorubano. E, na obra Padê de Exu de 1988 (ver tabela 1, IX e gura 7 b),
a constituição é bastante parecida; entretanto, a julgar pelo título, em vez
do cesto dos búzios, o esquema circular pode representar a vista superior
de um alguidar onde a comida do deus é disposta e onde ele próprio se
apresenta em forma de máscara constituída a partir dos mesmos elementos
mobilizados no Ritual de Exu.
A outra máscara, também produzida em 1988, aparece na tela
Máscara ancestral (ver tabela 1, X e gura 7 d) e destaca uma divindade
egípcia: observa-se, no centro, uma grande máscara de cor marrom escura
(uma possível alusão à negritude ou à característica feição amadeirada de
máscaras de culturas africanas que foram amplamente apresentadas em
estudos etnográcos) associada a elementos de divindades egípcias (Ra,
Hator ou Ísis) – o disco solar ladeado por uma serpente de cabeça dupla
e o conjunto é ladeado por dois ramos de papiro. Há, nessa obra, dois
conjuntos de referências cuja identicação é clara (a máscara de culturas
negras subsaarianas e os atributos divinos egípcios) compondo uma
entidade panafricana. Entretanto, nesse caso, o título não auxilia a inter-
pretação do conteúdo imagético: enquanto as máscaras de Exu aparecem
em telas explicitamente nomeadas com referências do nome do deus e
de seu contexto, no caso dos elementos egípcios, o conteúdo depende de
seu conhecimento prévio para a interpretação. Talvez, ali, Nascimento
tenha preferido a interpretação menos especíca, o que indica algo do
tratamento que ele dava aos elementos iorubanos e egípcios na sua obra
em geral – os primeiros são mais variados, numerosos e detalhados, ao
contrário dos segundos, que são mais generalistas.
O tema das máscaras com elementos egípcios foi retomado apenas
em 1996 na tela Ancestralidade (ver tabela 1, XV e gura 7 c), na qual
há uma face negra isolada (aparentemente, uma máscara) com uma coroa
formada por elementos geométricos e uma gura de sol associada. Seus
olhos são delineados em verde compondo os olhos de Hórus e, em torno
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 318
dela, uma guia com miçangas vermelhas, laranjas e amarelas e, como
pingente, um patuá com a gura de um ankh.
Essa tela, junto a duas outras, marcam um momento nal e pouco
profícuo de obras que apresentam a conexão egípcio-iorubana nas telas
de Nascimento. Além disso, as três são claras reelaborações de temas já
tratados anteriormente por ele: o tema da máscara, como visto, a retomada
do boi Ápis (Obatalá Ápis Vee) e o Afro estandarte n. 2, recuperando, em
dimensões maiores, a obra quase idêntica da década de 1960. Diferente
disso, a década de 1980 parece ter sido a mais profícua, especicamente,
o biênio 1987 e 1988. Além desse desenvolvimento explícito da conexão
egípcio-iorubana antes apresentada para algumas soluções estéticas
mais aprofundadas no caso das máscaras, é o período de produção mais
numerosa: das quinze obras identicadas, seis foram produzidas nesses
dois anos. São também desse período duas telas quase idênticas (ver tabela
1, VIII e XI e gura 8 a e b), que apresentam a maior complexidade de
associação dos elementos egípcios e iorubanos.
Figura 8
a. Raízes n. 1: Tributo a Aguinaldo Camargo (esquerda); b. Raízes n. 2: Tributo a Aguinaldo
Camargo (direita)
De início, é importante notar que o título se refere a um impor-
tante companheiro de Nascimento, o militante Aguinaldo Camargo, cuja
trajetória bastante destacada incluiu a colaboração na criação do Teatro
Experimental do Negro (TEN) em 1944. Camargo, que falecera em 1952,
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foi homenageado postumamente nessas telas que o conectam às noções de
ancestralidade (“raízes”). Nelas, há, como gura central, um totem que é
composto de elementos de várias divindades: na primeira delas produzida
em 1987 (ver gura 8 a), o machado biaxial de Xangô como parte dos
braços, o tridente de Exu como cabeça, e, nas mãos, estrelas entre círculos
associadas muito possivelmente a Ossain. Ainda, na lateral direita, aparece
um opachorô de Oxalá.
Esses elementos foram reorganizados na tela de 1988 (ver gura
8 b), e parece que Nascimento reetiu sobre as soluções estéticas que
organizavam o totem: além da signicativa mudança das cores, ele operou
em alguns deslocamentos considerando a primeira proposta – a cabeça foi
substituída pela estrela contornada por um círculo, mais próxima da forma
circular da cabeça humana; e, no lugar das mãos, aparecem dois tridentes
que compõem o antebraço ou são portados pelas mãos em um esquema
abstrato. O opachorô que, na solução anterior, aparecia em uma lateral, é
replicado nas duas laterais
Os componentes egípcios também mudam de uma proposta para
a outra. O elemento xo é um esquema oral representando hastes de
papiro que ladeiam o conjunto à direita e à esquerda. Em campos laterais
internos, na primeira solução, à direita, contrastando com o opachorô
que aparece na lateral esquerda, há um cartucho com inscrições hieroglí-
cas, o que desaparece na segunda proposta. O totem, nos dois casos, é
posicionado sobre um semicírculo que apresenta, na parte interna de sua
borda, elementos egípcios associados: na primeira, um escaravelho central
ladeado por dois olhos de Hórus; na segunda, a gura central muda para
um ankh.
* * *
No conjunto de telas produzidas por Abdias Nascimento entre
1968 e 1996, a conexão entre referências egípcias à negritude e a
conexão egípcio-iorubana especicamente parece ter uma representati-
vidade pequena. O pintor preferiu lidar com a apresentação de elementos
iorubanos associando-os a contextos variados: a brasilidade, o espaço
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 320
rural e a militância civil nos EUA, por exemplo. Os elementos egípcios
compõem um grupo pequeno, praticamente uma sub-temática submetida,
muito frequentemente, aos referenciais iorubanos.
Outro elemento que indica o tratamento diferente das duas
referências na obra de Nascimento é a forma como seus elementos são
indicados nos títulos e os próprios elementos mobilizados. Enquanto as
divindades associadas ao patrimônio iorubano são nomeadas explicita-
mente em alguns casos (Xangô, Exú e Obatalá), exceto a Santa Maria
Egipcíaca e o Ápis, todos os outros elementos egípcios mencionados
nos títulos são mais generalistas (ankh e Olho de Hórus). Quantos aos
elementos imagéticos apresentados, enquanto, no campo iorubano são
apresentados aqueles ligados a Xangô, Exú, Oxalá/Obatalá, Ossain e
Iemanjá, no campo egípcio, observamos sobretudo inserções do ankh e do
udyat. Ainda, observando a própria organização dos elementos apresen-
tados e sua proporção nas telas onde são dispostos elementos egípcios e
iorubanos, as referências àqueles são menos importantes.
Tendo como referência o amplo levantamento da obra pictórica
de Nascimento apresentado no catálogo da exposição recente no Museu
de Arte de São Paulo (MASP) – que ocorreu entre 25 de fevereiro e 5
de junho de 2022 –, que compreende o período acima indicado, das 102
obras expostas, apenas 14 eram compostas por manifestações explícitas ao
Egito antigo.48 Entretanto, mesmo que a quantidade seja pequena (cerca de
14%), a sua manutenção ao longo do período entre 1968 e 1996 (especí-
camente nos períodos de 1968-1969; 1973; 1987-1988; 1993 e 1996)
parece signicativa: ou seja, o tema não foi abandonado; ao contrário, ele
foi desenvolvido esteticamente, ampliado em alguns poucos casos e reela-
borado em revisões propostas pelo pintor.
48 Cito, aqui, o catálogo da exposição do MASP (Pedrosa e Carneiro (eds.), Abdias
Nascimento), já que se trata de um amplo levantamento das obras de Nascimento,
a maioria delas do acervo do Ipeafro; entretanto, não se trata de um levantamento
completo. Do grupo de pinturas aqui citado (ver tabela 1), apenas uma obra não consta
no catálogo acima referido (ver tabela 1, XIII). Para outros levantamentos, ver Abdias
Nascimento, Orixás: os deuses vivos da África, Rio de Janeiro: Ipeafro, 1995; e De La
Barra e Fonseca, Abdias Nascimento.
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Ainda, é interessante observar que Nascimento não destacou
referências especícas ao centenário da abolição na conexão egípcio-io-
rubana. Entretanto, como visto, o biênio 1987-1988 foi o mais profícuo
da sua produção sobre o tema (seis das quatorze obras foram produ-
zidas nesse ínterim). Assim, parece que o amplo debate que acontecia no
Brasil, com certa concentração no Rio de Janeiro, pode ter inuenciado
o interesse ampliado pela temática que transbordava em representações
populares como aquelas acima citadas.
Considerações Finais
A conexão egípcio-iorubana foi desenvolvida no Brasil a partir de um
debate panafricanista anterior, presente em reexões de intelectuais
africanos como o senegalês Cheikh Anta Diop e o nigeriano Jonathan
Olumide Lucas,49 e que ganharam, nos EUA, algum interesse. No Brasil,
a associação entre referenciais iorubanos e egípcios foi desenvolvida de
forma mais consistente em formulações artísticas ligadas à militância
negra. Os debates em torno da identidade dos negros brasileiros no contexto
do centenário da abolição da escravatura apresentaram um contexto
importante para que a conexão egípcio-iorubana fosse apresentada em
produções variadas e pontuais. Diferente disso, nos textos da militância de
Abdias Nascimento, e sobretudo na sua obra pictórica, o tema foi discutido
da década de 1960 até a de 1990. Apesar de essas iniciativas serem
distintas (criações pontuais como resposta a uma efeméride e reexões
desenvolvidas ao longo de décadas), é possível notar alguns pontos de
referência recorrentes: o debate panafricanista ligado a uma abordagem
afrocêntrica e a inuência de Diop, seja nos seus escritos especícos, seja
49 Cito, aqui, a principal obra do autor diretamente ligada ao tema da conexão egípcio-
-iorubana: Jonathan Olumide Lucas, The religion of the Yorubas, Lagos: C.M.S.
Bookshop, 1948.
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na apresentação geral do tema no texto que ele escreveu para o segundo
volume da obra História Geral da África.50
Outro elemento presente na conguração desse debate no Brasil
é a distância entre as propostas artísticas que observamos e diálogos com
pesquisadores especialistas sobre o tema, especialmente sobre o Egito
antigo, reproduzindo, no Brasil, aspectos menos desenvolvidos da situação
desse debate nos EUA: o Egito negro é tema dos Estudos Africanos e não
da Egiptologia. Entretanto, é preciso notar que, se nos EUA a Egiptologia
tradicional já era bem estruturada quando tais debates começaram a se
estabelecer, no Brasil, a Egiptologia é um campo em construção e poderia
ser disputado internamente por uma abordagem afrorreferenciada crítica.
De qualquer forma, é importante notar que, apesar de uma sosticada
construção artística da conexão egípcio-iorubana no Brasil, do ponto de
vista acadêmico, ela ainda é bastante frágil.
Quanto ao desenvolvimento cientíco desse tema (uma abordagem
que, partindo da questão colocada, lidasse com sua testabilidade),51 no
Brasil, a conexão egípcio-iorubana não foi efetivamente aprofundada. Ao
contrário, como visto, a base do debate ainda são algumas obras propostas
por intelectuais africanos e dos EUA, que foram apropriadas em ambiente
50 Cheikh A. Diop, “A origem dos antigos egípcios” in Gamal Mokhtar (ed.), História
Geral da África, vol. II - África Antiga, 2.ed. (Brasília: Unesco, 2010), pp. 1-36;
(Brasília: UNESCO, 2010), pp. 1-36.
51 Rero-me, aqui, à proposta de Karl Popper (A lógica da pesquisa cientíca, São Paulo:
Ed. Cultrix, 2007) sobre a testabilidade na construção de pressupostos cientícos.
Para ampliações e críticas à proposta de Popper, ver Gunnar Andersson, Criticism and
the History of Science Kuhn’s, Lakatos’s, and Feyerabend’s. Criticisms of Critical
Rationalism, Leiden; New York; Köln: Brill, 1994; e Joseph Agassi, Popper and his
Popular Critics Thomas Kuhn, Paul Feyerabend and Imre Lakatos, Cham; New York:
Springer, 2014. No campo especíco das polêmicas afrocêntricas, já há algumas
iniciativas nesse sentido (ver nota 5 acima). Vale, ainda, indicar as críticas teóricas e
metodológicas de Mary R. Lefkowitz, Not out of Africa. How Afrocentrism became an
excuse to teach myth as history, New York: Basic Books, 1996; e Mary R. Lefkowitz;
Guy M. Rogers (eds.), Black Athena Revisited, Chapel Hill; London: The University of
North Carolina Press, 1996. Entretanto, nesse caso, apesar de reconhecer importantes
críticas aos pressupostos afrocêntricos, falta, na minha opinião, uma visão mais crítica
da própria noção de “civilização” e “ocidente”. Para uma crítica contextualizada na
história dos EUA, ver Clarence E. Walker, We can’t go home again: an argument
about Afrocentrism, New York: Oxford University Press, 2001.
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brasileiro e desenvolvidas artisticamente por segmentos da militância
negra. Ou seja, a polêmica sobre o tema segue, mas apoiada por manifes-
tações estéticas que dão certa materialidade ao debate, como recursos
sintéticos de fácil compreensão. Assim, a conexão egípcio-iorubana
segue aliada a outras formulações polêmicas que ainda carecem de uma
abordagem cientíca mais desenvolvida, como algumas teses de conexões
entre povos africanos – incluindo os egípcios antigos – e as populações
ameríndias antes do contato com os europeus.52
A conexão egípcio-iorubana, dessa forma, mais do que uma expli-
cação do processo histórico baseado na ideia de causa e consequência (a
leitura panafricanista que situa o Egito antigo como promotor de vários
elementos especícos que organizaram as sociedades africanas posterior-
mente), poderia ser observada, por exemplo, a partir de abordagens que
associam experiências históricas distintas e não necessariamente conec-
tadas, como a proposta arquetípica junguiana (elementos que organizam o
inconsciente coletivo a partir de certos padrões “universais”) ou o compa-
rativismo histórico.53 Nos dois casos, a partir de pressupostos teóricos
diferentes, processos históricos especícos podem ser aproximados
tendo-se como base elementos semelhantes que não foram organizadas
52 Ver, por exemplo, Leo Wiener, Africa and the discovery of America, Philadelphia:
Innes & Sons, 1920; e Ivan Van Sertima, They Came Before Columbus: The African
Presence in Ancient America, New York: Random House, 1977, que defendiam
contatos entre africanos e ameríndios a partir da navegação regular entre América e
África bastante antes da chegada dos europeus no continente americano.
53 Para a apresentação da História Comparada e sua trajetória, ver Marc Bloch, “Pour
une histoire comparée des sociétés européenes”, Revue de Synthèse Historique, v; 6
(1928), pp. 15-50; José d’Assunção Barros, “História Comparada: da contribuição
de Marc Bloch à constituição de um campo historiográco”, História Social, n. 13
(2007), pp. 7-21, ; e José d’Assunção Barros, “Origens da História Comparada.
As experiências com o comparativismo histórico entre o século XVIII e a primeira
metade do século XX”, Anos 90, v. 14, n. 25 (2007), pp. 141-173, . Para a noção de
arquétipo no inconsciente coletivo e sua mobilização na interpretação histórica, ver
Carl Gustav Jung, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Petrópolis: Vozes, 2016;
e Klaus Berger, Identity and experience in the New Testament, Minneapolis: Fortress
Press, 2003, pp. 23-24.
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 324
pelo contato.54 Mas, esse debate também pode apresentar, indiretamente,
algumas pistas interessantes – elementos que não foram efetivamente
desenvolvidos e que poderiam abrir novas perspectivas para reexões
sobre aspectos religiosos ancestrais, tais como o papel do cristianismo na
Antiguidade africana.
No grupo das primeiras telas de Nascimento, observamos um
interesse pela integração do cristianismo ao grupo de referências religiosas
africanas, tema que foi praticamente abandonado por ele. As telas Santa
Maria Egipcíaca n. 2 e Metamorfose n. 4: Ankh, duplo machado de Xangô
e a cruz (tabela 1, I e III) indicam algo desse interesse original do artista –
a explícita indicação de que o cristianismo também compunha o grupo de
manifestações religiosas africanas desde seus primeiros séculos. Mais que
isso, dada sua pluralidade nesse contexto inicial, foram criadas versões
especícas em continente africano, como o cristianismo de tradição copta
e determinados debates losócos neoplatônicos.55 Nesse ambiente, a
presença de elementos egípcios integrados à simbologia cristã foi ampla-
mente desenvolvida – como observado no caso da ressignicação cristã
54 Podemos encontrar iniciativas nesse sentido, por exemplo, na interpretação da religio-
sidade grega e iorubana, como no caso de algumas comparações arquetípicas ou
comparativas entre os deuses Hermes e Exu. Jefferson Machado de Assunção, “Exu e
Hermes: um xirê intercultural?”, Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2016, , Seropédica, 2016; Carlos
Augusto Baldi, “Decolonizing Greek Theatre: Black experimental Theatre” in Elisa
Rizo e Madeleine M. Henry (eds.), Receptions of the Classics in the African Diaspora
of the Hispanophone and Lusophone Worlds Atlantis Otherwise (Lanham: Lexington
Books, 2016), p. 48; e Igor Fagundes, “Mediações do sagrado no corpo: Hermes,
Jesus, Exu”, Esferas, n. 8 (2016), pp. 127-138.
55 Laurence P. Kirwan, “The birth of Christian Nubia: some archaeological problems”,
Rivista degli studi orientali, v. 58, fasc. 1/4 (1984), pp. 119-134; Sergio Donadoni,
“O Egito sob dominação romana” in Gamal Mokhtar (ed.), História Geral da
África, vol. II - África Antiga (Brasília: UNESCO, 2010), pp. 205-212; Kazimierz
Michalowski, “A cristianização da Núbia” in Gamal Mokhtar (ed.), História Geral da
África, vol. II - África Antiga (Brasília: UNESCO, 2010), pp. 333-50; Tekle Tsadik
Mekouria, “Axum cristão” in Gamal Mokhtar (ed.), História Geral da África, vol. II
- África Antiga (Brasília: UNESCO, 2010), pp. 425-450; Gawdat Gabra; Hany Takla,
Christianity and Monasticism in Aswan and Nubia, Cairo, New York: The American
University in Cairo Press, 2013; e Eduardo Cardoso Daon, “Outra ascensão do
cristianismo: o processo de cristianização do reino de Axum (séculos IV-VIII)”,
Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em História da África e da Diáspora
Atlântica), Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, 2023.
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 325
do ankh – fenômeno que não se restringiu ao Egito, alcançando outras
regiões do norte da África antiga, como a Líbia, mas também, em contexto
subsaariano, os reinos da Núbia e de Axum, situadas nas regiões dos atuais
Sudão e Etiópia respectivamente.56
Considerando que boa parte da atual população negra brasileira
é ligada diretamente ao cristianismo em suas facetas variadas (principal-
mente o catolicismo e as vertentes do protestantismo mais tradicionais e
neopentecostais),57 seria interessante rediscutir o cristianismo para além da
perspectiva imperialista europeia (a religião do colonizador que, inclusive,
justicou a escravização de pessoas negras africanas), ressaltando suas
manifestações africanas desde Antiguidade; e indicando suas especi-
cidades, conexões com outras comunidades cristãs do Mediterrâneo
antigo e as contribuições africanas para a estruturação de vertentes dessa
religião. Sobre essa manifestação religiosa, que era também composta
por referências egípcias e exemplos que podemos situar seguramente no
campo da negritude, há um conjunto de vestígios bastante seguros e, mais
56 O cristianismo copta foi criado no século I EC e, logo depois, já se espraiava na
região da antiga Núbia, entre os séculos I-II EC, e o reino de Axum no século IV
EC (Sarah Emily Duff, Childhood and youth in African History, Cham: Palgrave
Macmillan, 2022, p. 21). De maneira geral, esse movimento proporcionou, na região
da Núbia, o abandono das práticas politeístas e a adoção do cristianismo de tradição
copta no século VI EC; e, no século seguinte, o cristianismo tornou-se religião ocial
do Estado (Asafa Jalata, “The process of state information in the Horn of Africa
in comparative perspective” in Asafa Jalata (ed.), State Crises, Globalisation, and
National Movements in North-east Africa (London; New York: Routledge, 2004),
pp. 9-10; e Steven D. Cone; Robert F. Rea, A Global Church History. The Great
Tradition Through Cultures, Continents and Centuries, London; New York:
Bloomsbury Publishing, 2019, p. 133).
57 Uma pesquisa realizada pelo Datafolha (Anna V. Balloussier, “Cara típica do
evangélico brasileiro é feminina e negra, aponta Datafolha”, Folha de São Paulo,
13 jan. 2020) mostra que a distribuição dos cristãos brasileiros entre católicos e
evangélicos aponta uma expressiva composição negra dos cristianismos brasileiros
(catolicismo e protestantismo reunidos somam cerca de 81% dos eis brasileiros).
Associando aqueles identicados como pretos e pardos, soma-se, para o grupo de
evangélicos, 59% dos eis (em contraste com 30% identicados como brancos) dos
entrevistados; e, para os católicos, 55% de pretos e pardos em contraste com 36%
de brancos. Para a contextualização das vertentes do cristianismo no Brasil e as
populações negras, ver Vagner Gonçalves da Silva, “Religião e identidade cultural
negra: afro-brasileiros, católicos e evangélicos”, Afro-Ásia, n. 56 (2017), pp. 83-128.
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que isso, há debates acadêmicos em curso que poderiam ser observados
em uma perspectiva afrorreferenciada brasileira.58
58 Indico, por exemplo, os estudos sobre a conversão do rei Ezana de Axum (século IV
EC), que foi registrada em uma estela trilíngue – o texto aparece em grego, geez e
sabeu – ver Stuart C. Munro-Hay, “A tyranny of sources: the history of Aksum from
its coinage”, Northeast African Studies, v. 3, n. 3 (1981-1982), pp. 1-16; Siegbert
Uhlig, “Eine trilinguale ‘Ezana-Inschrift’”, Aethiopica, v. 4 (2001), pp. 7-31; Regare
Rukuni, “Negus Ezana: Revisiting the Christianisation of Aksum”, Verbum Eccles,
v. 42, n. 1 (2021), pp. 2-11.
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Anexo 1
Excertos transcritos de entrevista concedida por Luiz Eduardo Oliveira
(Negrogum), Presidente do Conselho Estadual de Direito dos Negro
(Cedine) e Adelia Azevedo, Especialista em História da África ao canal
“Cultura Rio” no documentário Homenagem a Zumbi dos Palmares
(2020):59
Luiz Eduardo Oliveira: O deputado José Miguel, em 1984, faz um
projeto que tramita na ALERJ [Assembleia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro], que é o projeto de criação do monumento a Zumbi
dos Palmares. E houve, num primeiro momento, o lançamento de uma
pedra fundamental ali no Largo da Carioca, onde seria, na discussão
do monumento negro, instalado o monumento e a grande discussão
era: ‘como seria esse monumento?’ Entrou ano, saiu ano, porque não
havia o menor consenso. Darcy Ribeiro, que numa de suas viagens à
Europa, no museu em Londres, foi levado a uma área do museu que não
tinha visitação naquela época, uma reserva técnica, e quando ele entra
naquele espaço dá de cara com a escultura de um negro imponente,
com um capacete, um bronze, uma coisa fenomenal. Uma surpresa
para ele. […] Chegando aqui, ele, como vice-governador, começou a
fazer algumas articulações e marcou uma reunião. […] No meio da
discussão, o Darcy Ribeiro fez um discurso muito eloquente, […] [ele
mostrou] uma maquete do que é hoje o monumento a Zumbi. Todo
mundo cou olhando aquilo sem entender absolutamente nada, e ele
disse: ‘apresento a vocês o Monumento a Zumbi. Aqui está o Zumbi
dos Palmares.’
Adélia Azevedo: O rosto, a imagem, não é de Zumbi dos Palmares, mas
de um rei do Ifé, um rei africano.
Luiz Eduardo Oliveira: Na cabeça dele [do Darcy Ribeiro], ele achava
que aquele era Zumbi. Não o Zumbi dos Palmares, mas o Zumbi que
todos nós somos.
59 Transcrição a partir do vídeo consultado em 12 de maio de 2023, .
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 328
Adélia Azevedo: Isso, durante um período, foi motivo de discussões,
alguns gostaram, outros não, mas a gente chegou à conclusão de que
o mais importante é a simbologia. Lá, tem um busto, gostem ou não,
queiram ou não, é o busto em homenagem a Zumbi dos Palmares.
Luiz Eduardo Oliveira: Mas, por que aquela pirâmide? Ele [Darcy
Ribeiro] disse: ‘os dois símbolos maiores – esse Zumbi, que representa
todas e todos nós, ativo, […] e a pirâmide, símbolo maior da cultura
negra no mundo. […] Mas, vai pôr onde no Largo da Carioca? [Darcy
Ribeiro disse:] ‘Isso não vai car no Largo da Carioca, mas na Praça
Onze.’
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Anexo 2
Excertos de entrevista de João Jorge Santos Rodrigues, presidente do
Bloco Olodum em 1986-1987.60
A música Faraó de Luciano Gomes é uma música que surgiu no
Olodum a partir de 1986. Ela trata do tema do carnaval de 1987, que
foi “Egito dos faraós”. Ela é uma novidade, um marco na cultura dos
blocos afros. Mais especicamente no Olodum, ela combinou a forma-
tação do samba reggae, criado a partir de 1983, pelo mestre Neguinho
do Samba. Com a banda do Olodum, com músicas anteriores, com um
tema muito especíco da história africana, da mitologia africana, e da
história de um país espetacular para o continente africano que é o Egito
dos faraós. […] Os arquétipos do Egito antigo, do mundo africano, da
civilização africana, da religião africana vêm para a Bahia através dessa
música de 1987, que interrompeu um ciclo da lamentação, da queixa,
da problemática do negro na sociedade brasileira e baiana, apenas pelo
olhar do sofrimento.
[…] Um marco inicial da atual cultura Olodum, uma cultura panafrica-
nista, uma cultura baseada na Etiópia, no Egito, na antiga Núbia. […]
A música é um tratado sobre as ideias de Cheikh Anta Diop, Abdias
Nascimento e Lélia Gonzalez acerca do Egito antigo, da inuência do
Egito na África atual. […] A música “Faraó” sintetizou isso a partir de
um pequeno livro chamado Egito dos faraós da Editora Emus, que era
vendido na livraria de Salvador. […] Nós zemos o “Egito dos faraós”
baseados nas ideias de Diop, e mais e melhor. Nós apresentamos
isso com músicas: além da música de Luciano Gomes, teve também
Inuência egípcia de Ademário, Reggae dos faraós de Adailton Poesia,
[…] e os cantores se encarregaram de dar um formato popular a essas
músicas. […] [Na música “Faraó”], toda a trajetória da letra é originada
de uma apostila que nós entregamos a Luciano Gomes, e essa apostila
permitiu que, tanto ele como Ademário, Adailton e os outros criassem
músicas fantásticas para o Olodum no carnaval.
60 Transcrição a partir do vídeo consultado em 12 de maio de 2023, .
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Anexo 3
Trecho de declaração do carnavalesco Joãosinho Trinta em entrevista no
programa da TV Cultura, Roda Viva, 1990:61
No ano retrasado, quando eu z aquele enredo ‘Do Egito à Liberdade’,
eu tive, lá no barracão da Beija-Flor, grupos de negros americanos,
grupos do Egito… Porque eu lancei um tema que comprovava…
porque isso estava baseado em livros publicados pela UNESCO, ‘A
História da África’, onde estava comprovado que a civilização egípcia,
que Hollywood se encarregou de mostrar com todo aquele glamour
da Elizabeth Taylor, e onde ninguém nunca cogitou que ela fosse
realmente uma civilização negra! Através desses estudos da UNESCO,
nós lançamos o enredo, no ano da libertação dos negros no Brasil,
tratando desse assunto, que é de uma beleza muito grande. Porque, de
repente, nós vamos encontrar, aqui na nossa presença negra, todos os
princípios, todos os fundamentos de uma civilização egípcia, e é por
esse caminho que se forma a identidade de um país. É no encontro
dessas suas raízes. Nós acreditamos que as nossas coisas só começam
no Descobrimento... Não!
Recebido em 23 jan. 2024
Aprovado em 04 set. 2024
doi: 10.9771/aa.v0i70.58814
61 Transcrição a partir do vídeo consultado em 12 de maio de 2023, .
Afro-Ásia, n. 70 (2024), pp. 292-331 | 331
Este texto discute a associação entre elementos egípcios e iorubanos, o que chamo
de “conexão egípcio-iorubana”, nos discursos sobre a identidade dos afro-brasi-
leiros, observada em duas situações especícas: a primeira é a comemoração do
centenário da abolição da escravatura em 1988 em espetáculos públicos no Rio
de Janeiro e na Bahia; a segunda é a apresentação desse tema na obra pictórica do
intelectual, político e artista plástico brasileiro Abdias Nascimento. Essas situações,
fortemente baseadas no panafricanismo, permitem-nos pensar na especicidade da
leitura brasileira das teses afrocêntricas e como a visão brasileira sobre a conexão
egípcio-iorubana está distante da Egiptologia propriamente dita (enquanto domínio
cientíco) e mais próxima das expressões artísticas e da militância política.
Egito antigo | Iorubás | Afrocentrismo | Panafricanismo
BETWEEN THE PHARAOH AND THE ORISHA: THE EGYPT YORUBA
CONNECTION IN THE CENTENARY OF ABOLITION AND IN THE VISUAL ART
OF ABDIAS NASCIMENTO
This paper discusses the association between Egyptian and Yoruban elements, what
I call the “Egypt-Yoruba connection”, in discourses on Afro-Brazilian identity in two
specic contexts. One is the 1988 celebrations surrounding the centenary of Brazil’s
abolition of slavery, with public performances in Rio de Janeiro and Bahia. The
second is the representation of this topic in the visual art of Brazilian intellectual,
politician and artist Abdias Nascimento. Strongly inuenced by Pan-Africanism,
his work allows us to reect over the specicity of Brazilian readings of Afrocentric
ideas. Indeed, Brazilian ideas about an Egyptian-Yoruba connection appear to be
far from Egyptology (as a scientic domain) and closer to artistic expressions and
political activism.
Ancient Egypt | Yorubas | Afrocentrism | Pan-Africanism