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Revista Brasileira de História da Ciência, ISSN 2176-3275, v. 18, e1037, 2025
ARTIGOS
DOI: https://doi.org/10.53727/rbhc.v18i2.1037
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”:
aspectos da vida e da trajetória da astrônoma
Jocelyn Bell Burnell
“Look, Dear! You’ve Made a Discovery”: aspects of the life
and trajectory of astronomer Jocelyn Bell Burnell
Larissa do Nascimento Pires | Instituto Federal de Santa Catarina
larissa.n.pires@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2997-3119
Luiz O. Q. Peduzzi | Universidade Federal de Santa Catarina
luizpeduzzi@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1113-4704
RESUMO Os estudos de gênero e ciências apontam a omissão histórica na escrita sobre contri-
buições e trajetórias de mulheres cientistas. No âmbito da educação científica, essas narrativas
são importantes para que docentes e discentes reconheçam a identidade das/os personagens que
construíram a ciência ao longo dos tempos, além da importância da diversidade de pessoas no
empreendimento científico. O artigo, com o objetivo de contribuir com pesquisas recentes do ensino
de física e de astronomia que discorrem sobre exemplos de mulheres cientistas do século XX, apre-
senta aspectos da trajetória acadêmica da cientista britânica Jocelyn Bell Burnell, reconhecida por
sua atuação no processo de descoberta dos pulsares, um dos eventos científicos mais importantes
da história da astronomia. Para o desenvolvimento deste estudo biográfico, foram considerados
relatos elaborados pela cientista em artigos e entrevistas, bem como publicações de historiadoras/
es sobre a história dos pulsares. Com base em referenciais do campo de gênero e ciências, o artigo
destaca aspectos da carreira da astrônoma que possibilitam refletir sobre fatores que favorecem a
entrada de mulheres na ciência, bem como dificuldades estruturais encontradas por elas para sua
permanência no campo científico e acadêmico.
Palavras-chave história da ciência – mulheres na ciência – gênero e ciências – pulsares.
ABSTRACT Gender and science studies point to the historical omission in writing about the contributions
and trajectories of women scientists. In the context of science education, these narratives are important
for educators and students to recognize the identities of the characters who have shaped science over
time, as well as the importance of diversity in scientific endeavors. With the aim of contributing to recent
research into the teaching of physics and astronomy that discusses examples of 20th century women
scientists, this article presents aspects of the academic career of British scientist Jocelyn Bell Burnell,
recognized for her role in the discovery process of pulsars: one of the most important scientific events
in the history of astronomy. For the development of this biographical study, reports elaborated by the
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“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
scientist in articles and interviews are considered, as well as publications by historians on the history
of pulsars. Drawing on references from the field of gender and science, the article to highlights aspects
of the astronomer’s career that allow reflection on factors that facilitate women’s entry into science,
as well as structural difficulties encountered by them in remaining in the scientific and academic field.
Keywords history of science – women in science – gender and science – pulsars.
Introdução
O aprofundamento de investigações no campo de história e filosofia das mulheres na
ciência apresentou sua consolidação nas décadas de 1970 e 1980, num contexto de expansão
dos movimentos feministas, tendo como consequência o destaque de mulheres em posições
de poder na história e na ciência (Schiebinger, 2001). A reinvestigação da história da ciência sob
uma perspectiva de gênero possibilitou evidenciar exemplos de mulheres que contribuíram na
produção de conhecimento científico, além de se analisar o viés sexista presente nas práticas e
nos resultados da ciência. Por meio da crítica feminista inserida nos debates da história, filosofia
e sociologia da ciência, colocou-se em discussão “a ideia de uma ciência androcêntrica, ou seja,
marcadamente masculina, no protagonismo, nos discursos, nas práticas científicas, epistemo-
logicamente” (Cabral, 2020, p. 192).
No âmbito da educação científica, justifica-se a necessidade de tais discussões pela ainda
existente baixa representatividade feminina: por exemplo, “apenas cerca de 20% das gradu-
ações em física nos Estados Unidos são de mulheres, um número que estagnou durante um
tempo em que a biologia, a química, e a matemática obtiveram grandes ganhos” (Blue; Traxler;
Cochran, 2019, p. 616).1A ciência brasileira igualmente não apresenta uma considerável diver-
sidade, principalmente na ascensão na carreira acadêmica. Ainda que esforços tenham sido
empreendidos, a subrepresentatividade de mulheres ainda se apresenta no meio acadêmico
(Anteneodo et al., 2020).
De forma a problematizar essa conjuntura, consideramos a importância da divulgação da
história dessas personagens para a comunidade escolar, a fim de que docentes e discentes
reconheçam a relevância da diversidade de pessoas no empreendimento científico, uma vez que,
em sala de aula, majoritariamente, se apresenta um tratamento desproporcional entre mulheres
e homens como exemplos de cientistas (Sepúlveda; Silva, 2021), o que implica em uma “falta
de representatividade nos materiais que são acessíveis às jovens estudantes, que também pode
justificar o distanciamento dessas meninas e mulheres das carreiras científicas” (Lima, 2019, p.
36). Assim, nessas narrativas, não somente devemos elencar suas contribuições à ciência, mas
também evidenciar desafios encontrados pelas mulheres em ingressar, permanecer e ascender
na vida acadêmica (Larsen, 1995).
Nessa perspectiva, recentes pesquisas (Heerdt, 2014; Lima, 2019; Sepúlveda; Silva, 2021)
apontam que a inserção desses aspectos poderia ser desenvolvida em meio a discussões sobre
a natureza da ciência (NdC). Em seu clássico artigo, Matthews (1995, p. 191) afirma que o femi-
nismo consiste em uma das temáticas que poderia ser mais explorada em discussões na interface
do ensino de ciências e da filosofia da ciência. Explicitar essas reflexões é de suma importância,
1 As traduções dos trechos extraídos dos materiais em inglês, bem como das fontes primárias e secundárias,
foram elaboradas pelos autores.
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considerando que questões de gênero acabam por ser naturalizadas em nossa sociedade (Heerdt,
2014). Embora estudos sobre a abordagem didática da história e da filosofia da ciência se preocu-
pem em articular características de NdC considerando elementos culturais, sociais e políticos, Lima
(2019, p. 18) questiona onde estariam “os aspectos relacionados à identidade das personagens
desse empreendimento? Precisamente, nessa preocupação [da NdC] está incluída a importância de
compreender sobre a presença das mulheres no desenvolvimento da física [e das demais ciências]?”
Procurando contemplar esses questionamentos, este trabalho se alinha a uma gama de
recentes pesquisas, no âmbito do ensino de física e de astronomia, sobre trajetórias de mulhe-
res cientistas do século XX, como “protagonistas na consolidação de um campo, na criação e
padronização de uma nova técnica, na produção de evidências empíricas decisivas e de grande
impacto” (Sepúlveda; Silva, 2021, p. 94), como os de Lise Meitner (Lima, 2015), Chien Shiung
Wu (Maia Filho; Silva, 2019), Alice Ball (Santana; Pereira, 2020), Cecília Payne-Gaposchin (Vieira;
Massoni; Alves-Brito, 2021) e Maria Goeppert-Mayer (Pires; Santos; Damasio, 2021).
Dessa forma, este artigo tem por objetivo discutir aspectos da trajetória acadêmica da
astrônoma britânica Jocelyn Bell Burnell com base em referenciais do campo de gênero e
ciências. Como pesquisadora de doutorado na Universidade de Cambridge, Bell Burnell prota-
gonizou uma das mais importantes descobertas da astronomia do século XX: a identificação
dos pulsares. Assim, considerando a potencialidade da abordagem no contexto educacional de
aspectos relativos aos pulsares (Cordeiro, 2017), pretendemos responder a seguinte pergunta
de pesquisa: “que aspectos da vida e da trajetória acadêmica da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
podem contribuir para a problematização de fatores e de desafios relacionados ao ingresso,
ascensão e permanência de mulheres no meio científico e acadêmico?”
Com base em pressupostos metodológicos da análise documental (Cellard, 2012), para
a escrita deste estudo biográfico consideramos relatos publicados pela cientista em artigos
e em entrevistas (Bell Burnell, 1977; 1983; 1996; 2000; 2004a; 2004b; 2009; 2010; 2017; 2018;
2024), além de fontes secundárias que discorrem sobre a trajetória da astrônoma (Wade, 1975;
McGrayne, 1998; McNamara, 2008; Bartusiak, 2017; Merali, 2018; Combes; Durret, 2020). De
maneira a evidenciar elementos de gênero por meio do exemplo de Bell Burnell, articulamos
a discussão biográfica com referenciais do campo de gênero e ciências, a exemplo de Sharon
McGrayne (1998), Londa Schiebinger (2001) e Margaret Rossiter (1982, 1993).
Elementos da vida e da trajetória de Bell Burnell
Susan Jocelyn Bell
Susan Jocelyn Bell nasceu na cidade de Belfast, na Irlanda do Norte, em 15 de julho de
1943. Bell era a mais velha dentre seus irmãos, um menino e duas meninas. Seu pai, George
Philip Bell, era arquiteto, embora temporariamente, durante a Segunda Guerra Mundial tenha
trabalhado como fazendeiro. Sua mãe se chamava, quando solteira, Margaret Alison Kennedy.
Segundo a cientista, sua caminhada acadêmica começou a partir de um equívoco: aos 11
anos, Bell participou de um exame britânico chamado Eleven-Plus, uma espécie de avaliação
para direcionar estudantes para vocações específicas, que “dividia irrevogavelmente as crianças
entre aquelas com direito a uma educação secundária preparatória para a faculdade e aquelas
destinadas a vários graus de treinamento vocacional” (McGrayne, 1998, p. 358):
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se você passasse neste exame, você iria a uma escola para estudar disciplinas acadêmicas;
se você reprovasse nesse exame, iria para uma escola onde aprenderia carpintaria e serra-
lharia se fosse menino, e secretariado e culinária se fosse menina (Bell Burnell, 2000, p. 10).
A cientista relata, no entanto, que reprovou nesse exame: “comecei minha vida acadêmica
reprovando no equivalente ao Eleven-Plus na Irlanda do Norte, o que deve ter assustado muito
meus pais. Eles decidiram que eu deveria ir para um colégio interno” (Bell Burnell, 1996, p. 183).
Assim, até ingressar no internato, Jocelyn Bell estudou em uma escola de menor porte durante
dois anos. Naquela escola, entretanto, existiam aulas de “ciências domésticas”, como culinária e
costura para meninas, e os meninos, por sua vez, eram direcionados ao laboratório de ciências.
Bell Burnell (2000, p. 11) discorre sobre esse contexto:
Havia uma suposição de que todas as meninas [...] fariam ciência doméstica: culinária e
bordado [...] Enquanto os meninos fariam física, química, biologia. Suspeitei que isso estivesse
errado, então, depois de cerca de vinte minutos na primeira aula de ciências domésticas, eu
disse ao professor: “Acho que estou no lugar errado”. E o mesmo aconteceu com duas outras
meninas, e três de nós mudaram para a aula de ciências. [...] Naquele primeiro semestre
estávamos estudando astronomia e física. E no exame da época do Natal eu era a primeira
da classe, apesar de ter sido reprovada no Eleven-Plus.
Em 1956, aos 13 anos, Bell ingressou na Mount School, um internato de meninas coordenado
por quakeristas em York, Inglaterra. A pesquisadora relata que seu interesse pelas ciências, em
especial pela astronomia, fora desenvolvido por conta de seu professor de física no internato: “o
sr. Tillot, era um super professor [...] Eu poderia muito bem ter tido um professor de física que
achava que as meninas não podiam cursar física [...] mas o sr. Tillot era exatamente o contrário”
(Bell Burnell, 2010).
Durante essa época, Jocelyn também conheceu a astronomia por meio de seu pai, que traba-
lhava no Observatório Armagh: “como arquiteto do observatório, meu pai estava parcialmente
preocupado com a manutenção [...] Eu costumava ir com ele em visitas ao local com bastante
frequência, desde os 7 ou 8 anos de idade” (Bell Burnell, 2009, p. 66). Nessas visitas, “Jocelyn
[...] conheceu sua equipe, que a encorajou a se tornar uma astrônoma profissional [...] ela leu
todos os livros populares de astronomia na biblioteca de seu pai” (McGrayne, 1998, p. 361).
A cientista relata que seu pai tinha “uma assinatura da biblioteca Linen Hall em Belfast e trouxe
para casa todos os tipos de livros. Mas, os que realmente me chamaram a atenção foram dois
ou três livros sobre astronomia” (Bell Burnell, 2010), como obras de Fred Hoyle (1915-2001) e
Dennis Sciama (1926-1999), astrônomos reconhecidos na década de 1950.
É possível refletir que Jocelyn Bell estava inserida em um contexto político que favoreceu
a entrada de mulheres na ciência. Schiebinger (2001) argumenta a existência de um grande
incentivo público para o ingresso das futuras gerações na ciência em pleno contexto histórico
vinculado à corrida espacial. Sobre esse ponto, Bell Burnell (2010) escreve que
o lançamento do satélite Sputnik foi um verdadeiro choque na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos, porque tanto a Grã-Bretanha quanto os Estados Unidos acreditavam estar tecnicamente
à frente dos soviéticos e então os soviéticos lançaram um satélite, o que não podíamos fazer.
[...] Como consequência, de repente houve uma grande ênfase na ciência. A ciência era muito
bem vista e qualquer criança [...] era encorajada a fazer ciência. E eu fiz parte desse movimento.
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Atuação em Cambridge
Após concluir o ensino médio, Bell se candidatou a algumas universidades, como Glasgow,
Manchester e Liverpool (Bell Burnell, 2000). Ingressou no curso de física na Universidade de
Glasgow, na Escócia, em 1961. Nesse espaço, vivenciou alguns desafios relacionados à sua
permanência na graduação, como o fato de que “no final do primeiro ano, ela era a única
mulher em sua classe de física” (McGrayne, 1998, p. 362). Por conta disso, de acordo com a
própria cientista, experienciou situações as quais a colocavam em uma posição de isolamento
perante os demais estudantes:
Havia uma tradição naquela universidade de que sempre que uma mulher entrava em uma
sala de aula, todos os rapazes da sala batiam [...] em suas carteiras, assobiavam e gritavam.
Toda vez. Portanto, [...] tive que enfrentar isso sempre que entrava em uma sala de aula. As
mulheres do meu dormitório disseram: ‘Jocelyn, por que você não muda de curso?’ Então
eu tive que parar e pensar: ‘Será que eu realmente quero tanto fazer física para viver com
isso?’ (Bell Burnell, 2000, p. 29).
Após obter o diploma de bacharelado em física – com honras – Bell realizou algumas inscri-
ções em determinadas instituições para o doutorado, como na Universidade de Manchester, com
o objetivo de atuar no Observatório Jodrell Bank; também, se inscreveu em um departamento
na Austrália – possivelmente, na Universidade de Sydney – além de se inscrever no doutorado
na Universidade de Cambridge (McGrayne, 1998). Segundo a cientista, “minhas opções eram
Jodrell Bank ou Cambridge e eu não achava que entraria em Cambridge” (Bell Burnell, 2000, p.
37). Mas obteve sua aprovação em Cambridge e iniciou o doutorado sob orientação do radio-
astrônomo Antony Hewish (1924-2021).
Durante o doutorado, iniciado em 1965, Bell atuou no Grupo de Radioastronomia de
Cambridge, no Mullard Radio Astronomy Observatory (MRAO). Segundo a cientista, os objetivos
do grupo estavam relacionados com estudos sobre “objetos distantes, porque eles [os pesqui-
sadores do grupo] estavam interessados em geral na evolução do universo e, portanto, [...] [em]
ver as coisas nos primeiros estágios do universo” (Bell Burnell, 2010). Assim, os membros do
grupo de pesquisa pretendiam desenvolver observações de fontes de rádio celestes de forma
a contribuir com pesquisas no campo da cosmologia. De fato, o interesse da cientista era a
radioastronomia. Segundo ela, era um ramo que “aplicava muito da física, a teoria eletromag-
nética que aprendi na graduação e fui ficando cada vez mais convencida de que era isso que
eu queria fazer” (Bell Burnell, 2000, p. 34).
Para tanto, até 1967, a pesquisadora (Figura 1) contribuiu na construção do radiotelescópio
Interplanetary Scintillation Array, projetado por seu orientador. Pelo fato de as ondas de rádio
cósmicas serem fracas, “os radioastrônomos precisam construir receptores gigantes com antenas
enormes e amplificadores sofisticados para coletar e aumentar as ondas” (McGrayne, 1998, p. 364).
Os dados eram registrados em longos gráficos de papel, que, segundo a cientista, eram levados
do observatório do telescópio em Cambridge para o Laboratório Cavendish [...] Tive de
examinar esses gráficos centímetro a centímetro, procurando quasares cintilantes. Também
tive que identificar interferências e tivemos problemas com estações de rádio piratas (Bell
Burnell, 2010).
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Figura 1: Jocelyn Bell Burnell
Fonte: Foto por Robin Scagell, Sociedade Astronômica do Pacífico. Cortesia AIP Emilio Segrè Visual Archives,
Physics Today Collection.
Em agosto de 1967, durante a coleta de sinais de quasares para seu doutorado, a pesquisa-
dora identificou sinais com pulsos regulares, que “era um tipo de objeto totalmente inesperado
e totalmente novo, que se comportava de uma maneira que os astrônomos nunca esperaram”
(Bell Burnell, 2010):
Depois de operar o telescópio por cerca de um mês, tive a primeira visão de um pequeno
sinal que não parecia totalmente com um quasar cintilante e, ainda assim, não parecia com
interferência. [...] Então, eu poderia facilmente ter esquecido, mas algumas semanas depois,
analisando outro pedaço de gráfico [...] eu o percebi novamente. Peguei todos os meus
registros anteriores daquela parte do céu e descobri que, na ocasião, esse curioso [...] sinal
estava lá (Bell Burnell, 2010).
Nesse contexto, a incerteza quanto à existência desse objeto celeste pairava entre os
membros do grupo. Segundo a cientista, “essas coisas são altamente variáveis e quando você
vem alguém para vê-las, elas se recusam a aparecer” (Bell Burnell, 1983, p. 167). Ainda, em
meio às observações realizadas para a confirmação do primeiro pulsar pelos pesquisadores do
grupo, Bell apresentou um visível receio com o fato de que os sinais inesperados pudessem ser
simplesmente erros do radiotelescópio:
Foi um momento ruim quando [o sinal] não apareceu, porque sugeria que havia uma falha
no equipamento e eu era a pessoa que havia instalado a fiação. Meu doutorado estava
em jogo [e] [...] provavelmente toda a minha carreira científica (Bell Burnell, 2000, p. 54).
Entretanto, outros sinais semelhantes foram identificados: “Então, encontrei um segundo
[pulsar]. E um terceiro. E um quarto. Encontrar mais dessas estrelas foi um grande alívio” (Bell
Burnell, 2024, p. 6). Assim, no início de 1968, Hewish, Bell Burnell e outros cientistas publicaram
o artigo intitulado Observation of a rapidly pulsating radio source na revista Nature (Figura 2)
– interessante apontar que Hewish é o primeiro autor do trabalho. No resumo do artigo, apre-
senta-se que “sinais incomuns de fontes de rádio pulsantes foram registradas no Observatório de
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
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Radioastronomia Mullard. A radiação parece vir de objetos locais dentro da galáxia e pode estar
associada com oscilações de anãs brancas ou estrelas de nêutrons” (Hewish et al., 1968, p. 709).
Figura 2: Cabeçalho do artigo publicado na revista Nature Fonte: Hewish et al. (1968).
De fato, algumas das previsões expostas no artigo se confirmaram, tendo em vista que,
mediante as pesquisas de radioastrônomos e físicos teóricos, tais sinais foram compreendidos
como manifestações de objetos astronômicos denominados pulsares (Pires; Peduzzi, 2022a,
2022b). Hoje, entende-se que os pulsares consistem em estrelas de nêutrons em rotação, que
devido a seu forte campo magnético emitem radiação em seus dipolos magnéticos na faixa das
ondas de rádio (Bell Burnell, 2024).
Apesar de iniciar uma importante descoberta científica, Bell acabou por não modificar a
temática da sua tese. Ainda assim, no apêndice da pesquisa, elaborou um relato sobre a desco-
berta, “escrito mais do meu ponto de vista, mas ainda como um documento científico porque
eu acho que senti que poderia ser útil ter algo [...] documentado” (Bell Burnell, 2000, p. 69).
O pânico realmente ocorreu quando os pulsares apareceram, porque isso foi adicional à
minha tese. E Tony dissera que a tese ainda precisava ser sobre a cintilação interplanetária
e os diâmetros angulares dos quasares; que eu não poderia mudar isso. Então, de alguma
forma, no meu último ano, tive que lidar com pulsares e montar a tese. Isso foi um pouco
assustador (Bell Burnell, 2000, p. 46).
Entre a época de identificação do segundo e terceiro pulsar, a pesquisadora vivenciou
determinados contratempos ao aparecer em seu ambiente de trabalho com um anel de noivado.
Naquele momento, a cientista aponta que “definitivamente não tinha avaliado completamente
naquela fase as pressões sociais que havia sobre a mulher [...] Lembro-me de ter pensado:
Os homens podem ter carreiras e casar, então por que as mulheres não podem?” (Bell Burnell,
2000, p. 60):
Saí de férias e voltei para o laboratório usando um anel de noivado. Essa foi a coisa mais
estúpida que já fiz. Naquela época, as mulheres casadas não trabalhavam. Elas podiam
trabalhar por um ‘dinheiro’ por um tempinho, talvez, mas assim que os filhos nascessem,
todos sabiam que, se as mães trabalhassem, os filhos se tornariam delinquentes. Minha
aparência usando um anel de noivado indicava que eu estava saindo da vida profissional.
A propósito, é interessante notar que as pessoas estavam muito mais dispostas a me para-
benizar pelo meu noivado do que por fazer uma grande descoberta no campo da astrofísica.
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A sociedade sentiu que, ao ficar noiva, eu estava fazendo a coisa certa para uma jovem.
Ao descobrir pulsares, eu não estava [fazendo a coisa certa] (Bell Burnell, 2004a, p. 1.10).
Também, com a posterior publicação da pesquisa, manifestava-se uma ausência de reco-
nhecimento da cientista por estar envolvida em uma descoberta científica. Em outras palavras,
apesar do seu importante papel na pesquisa, em certos relatos (Bell Burnell, 1983, 2004a) a
cientista aponta que enquanto perguntavam em entrevistas a seu orientador sobre a importância
científica do trabalho, para ela, eram dirigidas perguntas de cunho pessoal:
Houve muita publicidade após o anúncio. [...] E essa foi outra experiência muito interessante.
Normalmente eles [a imprensa] perguntavam a Tony Hewish sobre a importância da desco-
berta para o campo da astrofísica. E então eles se viravam para mim e me perguntavam [...]
quantos namorados eu tinha (Bell Burnell, 2004a, p. 1.10-1.11).
Esse aspecto permite refletir sobre a histórica falta de autoridade científica atribuída às
mulheres. Assim, “embora agora fosse reconhecida por suas contribuições científicas legítimas
[...] os jornalistas perguntavam a essa jovem cientista se ela era mais alta do que a princesa
Margaret e quantos namorados ela tinha” (McNamara, 2008, p. 49). Além disso, os fotógrafos
agiam de maneira semelhante, dizendo coisas como “Fique feliz, querida! Você acabou de fazer
uma descoberta!”
No-Bell
A relevância científica da descoberta foi reconhecida no prêmio Nobel de Física, no ano
de 1974. O primeiro pulsar “oficialmente conhecido como PSR 1919+21 por suas coordenadas
celestes, nunca será esquecido – não apenas por sua descoberta, mas também pela polêmica
que mais tarde o cercou” (Bartusiak, 2017, p. 11). Segundo a cientista, “acho que havia um
sentimento bastante difundido entre a minha geração [...] de que as coisas tinham sido um
pouco injustas” (Bell Burnell, 2000, p. 79). A cientista descreve o momento quando recebeu a
notícia da premiação:
Tenho memórias muito vivas de 10 de outubro de 1974. Eu estava trabalhando com um
satélite chamado Ariel V, que estava sendo lançado na costa do Quênia na manhã daquele
dia. Por volta das 12h05, um dos meus colegas entrou furioso no escritório: ‘Você ouviu a
notícia?’. [Jocelyn]: ‘Não, John, quais são as novidades? Algo errado com Ariel V?’. [John]:
‘Não, o Prêmio Nobel’. Sua esposa estava ouvindo as notícias em casa e telefonou para ele
dizendo que Martin Ryle e Tony Hewish haviam recebido o Prêmio Nobel. E John estava
junto, eu acho, esperando ver fumaça saindo de meus ouvidos (Bell Burnell, 2010).
Rompendo com a tradição de não reconhecer pesquisas em astrofísica, astronomia e
geofísica, o Comitê Nobel concedeu à láurea aos radioastrônomos Martin Ryle (1918-1984) e
Antony Hewish: “Ryle por suas observações e invenções, em particular da técnica de síntese
de abertura, e Hewish por seu papel decisivo na descoberta de pulsares” (Nobel Prize, 2022).
Por certo, a omissão da cientista gerou polêmicas na comunidade científica, considerando que
nomes influentes defenderam o papel decisivo da cientista, como Fred Hoyle. Igualmente, houve
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repercussão no âmbito midiático: “na revista Great’s Britain Observatory, os editores brincavam
ironicamente entre si que o Nobel agora significava ‘No-Bell’” (Bartusiak, 2017, p. 11).
É válido considerar, todavia, “que a concessão de crédito por descobertas científicas às
vezes não é claramente definida” (McNamara, 2008, p. 50). Ainda assim, o astrônomo Fred Hoyle
(1915-2001) direcionou suas críticas ao Comitê Nobel por considerar que o instante decisivo
da descoberta havia ocorrido com a cientista. É importante apontar que, além de elaborar uma
ressalva quanto à demora do grupo de Cambridge em publicar os primeiros achados para a
comunidade científica, o astrônomo ressalta, em um comentário transcrito por Wade (1975, p.
358), a importância do trabalho desenvolvido pela cientista:
Há uma tendência de interpretar mal a magnitude da realização de Miss Bell, porque parece
tão simples – apenas pesquisar e pesquisar em uma grande massa de registros. A conquista
veio de uma vontade de considerar como uma possibilidade séria um fenômeno que todas
as experiências anteriores haviam sugerido que era impossível. [...] Eu acrescentaria que
minha crítica ao Prêmio Nobel foi dirigida contra a própria comissão de premiações, não
contra o professor Hewish. Parece claro que o Comitê não se preocupou em entender o
que aconteceu neste caso.
pós a láurea, a cientista concedeu declarações compreendendo sua ausência pelo fato de que
o Comitê Nobel não costumava reconhecer estudantes de pós-graduação, além de considerar
que a responsabilidade pelo sucesso deveria ser direcionada aos orientadores e às pesquisas
de longa data (McGrayne, 1998). Segundo a própria pesquisadora, “acredito que rebaixaria os
prêmios Nobel se fossem concedidos a estudantes de pesquisa, exceto em casos muito excep-
cionais, e não acredito que este seja um deles” (Bell Burnell, 1977, p. 688). Todavia, Combes e
Durret (2020) destacam que, posteriormente, ao adentrar em discussões sobre a presença das
mulheres da ciência, Bell Burnell considerou a possibilidade de sua ausência estar associada à
uma discriminação de gênero:
Indiscutivelmente, meu status de estudante e talvez meu gênero também foram minha ruína
com relação ao Prêmio Nobel, que foi concedido ao professor Antony Hewish e ao professor
Martin Ryle. Naquela época, a ciência ainda era percebida como sendo realizada por homens
ilustres liderando equipes de lacaios não reconhecidos que cumpriam suas ordens e não
contribuíam de outra forma senão conforme as instruções! (Bell Burnell, 2004b, p. 489).
Interessante apontar que, Bell Burnell e Hewish foram reconhecidos, em 1973, com a
medalha Albert Michelson pelo The Franklin Institute: conforme McGrayne (1998, p. 371), esta
láurea “imediatamente alimentou especulações de que Burnell poderia dividir o Prêmio Nobel
com Hewish”. A despeito do prêmio Nobel, a astrônoma (Figura 3) veio a ser reconhecida em
outras ocasiões, como o Oppenheimer Prize em 1978, o Beatrice Tinsley Prize da American
Astronomical Society em 1987 e a medalha Herschel da Royal Astronomical Society em 1989
(McGrayne, 1998). Em 2007, recebeu o título de Dama da Ordem do Império Britânico pela
Rainha Elizabeth II.
Em 2018, recebeu o Breakthrough Prize de Física, sendo “reconhecida pelo comitê com
um prêmio especial em física fundamental por suas realizações científicas e por sua liderança
inspiradora nas últimas cinco décadas” (Merali, 2018, p. 161): ela destinou o prêmio de 3 milhões
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de dólares ao financiamento de pesquisas para grupos sub-representados na ciência (Combes;
Durret, 2020). Em 2021, recebeu a medalha de ouro pela Royal Astronomical Society, devido a
sua “contribuição excepcional à astronomia por meio de sua pesquisa, ensino, liderança acadê-
mica e engajamento público” (Royal Astronomical Society, 2021).
Pós-pulsares
McGrayne (1998, p. 370) faz um importante questio-
namento quanto à atuação da cientista após a descoberta
dos pulsares: “E onde estava Jocelyn Burnell durante toda
a empolgação que ela havia criado?”. Embora a publica-
ção dos primeiros pulsares tenha gerado repercussão na
comunidade astronômica, entre físicos teóricos e radioas-
trônomos, fazendo com que cientistas pudessem adentrar
nesse novo aspecto de estudo, a cientista “estava ocupada
tentando redigir sua tese de doutorado e procurando um
emprego no sul da Inglaterra, onde seu noivo, um funcio-
nário público, estava trabalhando” (Wade, 1975, p. 362).
Após defender seu doutorado, ela se casou com
Martin Burnell: “ele havia se formado em Cambridge, seis
meses antes de mim e tinha um emprego [...] eu precisava
encontrar um emprego naquela parte da Inglaterra” (Bell
Burnell, 2000, p. 71). Dessa forma, “assim que ela descobriu
os pulsares, foi entrevistada e fotografada pela imprensa
e terminou sua tese de doutorado, abandonou a pesquisa
competitiva de nível mundial” (McGrayne, 1998, p. 357):
Eu realmente passei por momentos difíceis e me afastei da radioastronomia [...] A fase
seguinte ao meu doutorado foi extremamente diversa. Eu era casada com um homem que
tinha que mudar de emprego regularmente, então estávamos em mudanças para cima e
para baixo no país (Bell Burnell, 2018, p. 16).
Nesse contexto, lecionou em determinadas universidades em meio período para cuidar de
seu filho. Atuou em diferentes áreas da astronomia, em estudos de objetos na faixa dos raios
gama, na Universidade de Southampton, entre 1968 e 1973, e na faixa dos raios-X, no University
College London e no Mullard Space Science Laboratory em 1974. Por certo, seu “sucesso inicial
na astronomia deu-lhe uma vantagem enquanto se mudava pelo país tentando encontrar um
emprego em algum lugar perto de seu marido” (McGrayne, 1998, p. 371):
Eu estava muito insegura quanto a desistir do trabalho. [...] Portanto, os padrões de minha
carreira nos 20 anos seguintes foram na verdade governados por seus empregos [do marido]
e pelo fato de que depois de um tempo tivemos um filho e eu trabalhei em meio período
(Bell Burnell, 2000, p. 71).
Figura 3: Jocelyn Bell Burnell em 1987
Fonte: AIP Emilio Segrè Visual Archives, John
Irwin Slide Collection.
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
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Paralelamente com a Mullard, entre 1973 até 1987, a astrônoma atuou na Open University,
instituição direcionada à formação a distância. À época da entrevista de McGrayne (1998), Bell
Burnell apontou que as aulas eram ministradas por tutoras/es, presencialmente ou por telefone.
De acordo com a cientista, a universidade apresentava uma explícita consciência de gênero,
mas ações institucionais como a licença-maternidade ainda não existiam (Bell Burnell, 1996):
Grande parte da minha vida profissional foi impulsionada por circunstâncias familiares.
Trabalhei meio período por 18 anos e era casada com um marido peripatético que se mudava
muito, então eu procurava qualquer emprego que pudesse conseguir em Astronomia ou
Física, onde quer que ele estivesse. [...] Comecei a trabalhar para a Open University em 1973
[...] Candidatei-me para ser tutora e fui recrutada. A intenção original era ser uma tutora
enquanto eu educava os filhos em casa. Eu rapidamente decidi que criar filhos em casa
era enfadonho em comparação com a vida no mundo exterior, então na verdade voltei a
trabalhar mais cedo do que esperava, embora em meio período (Bell Burnell, 1996, p. 184).
Não, nem havia licença-maternidade quando eu estava grávida. Lembro-me de meus
vizinhos, principalmente das mulheres me dizendo: ‘Olha, você tem um marido, uma nova
casa e um novo bebê e você diz que está entediada? O que você tem?’ Acreditava-se, de
maneira absoluta, que você não trabalhava e que se sentia realizada por ser dona de casa,
esposa e mãe. Então, eu realmente tive muitos problemas também para encontrar creches e
essa foi uma das razões pelas quais eu trabalhei em meio período (Bell Burnell, 2000, p. 92).
Em 1982, enquanto atuava na Open University, a cientista (Figura 4) também trabalhou
“realizando pesquisas em astronomia na faixa do infravermelho no Observatório Real de
Edimburgo” (Combes; Durret, 2020, p. 31). Atuando em outra faixa do espectro eletromagnético,
nesse observatório, atuou no gerenciamento do James Clerk Maxwell Telescope, localizado no
Havaí (McGrayne, 1998).
Figura 4: Jocelyn Bell Burnell na Open University
Fonte: The Open University, Cortesia AIP Emilio Segrè Visual Archives.
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Por certo, “seu conhecimento profundo da radioastronomia e de todo o espectro eletro-
magnético valeram-lhe uma vida inteira de respeito na comunidade científica e uma carreira de
prestígio na academia” (Combes; Durret, 2020, p. 31). Além da sua atuação em várias universi-
dades entre as décadas de 1970 e 1990, Jocelyn Bell Burnell atuou na reitoria do Departamento
de Ciências na Universidade de Bath entre 2001 a 2004. Entre 2008 e 2010, presidiu o Instituto
Britânico de Física e, de 2014 até 2018, foi presidente da Royal Society de Edimburgo. Atualmente,
é professora visitante em instituições como Princeton e Oxford.
Ainda, a cientista escreveu um livro intitulado Broken for life, que, segundo McGrayne (1998),
curiosamente não faz quaisquer menções aos pulsares, mas aborda questões vinculadas à sua
religiosidade, por ser pertencente à religião quaker. No entanto, “logo depois que ela escreveu
o livro [...] o casamento de Burnell entrou em colapso. Como ela brincou, ‘Eu lidei mal com
meu nome de solteira. Descobri pulsares como Bell e me casei. Escrevi um livro como Burnell
e divorciei-me’” (McGrayne, 1998, p. 377). Nesse contexto, a cientista atuou em seu primeiro
emprego em tempo integral, na cidade de Milton Keynes, como professora de física na Open
University, em 1991: “a posição [...] representou uma ligeira mudança de direção, mas não mais
do que isso [...] ela estaria ajudando outros a terem uma segunda chance – ou a primeira chance
que eles nunca tiveram” (McGrayne, 1998, p. 377).
Nas últimas décadas, Bell Burnell vem apresentando preocupação com os debates sobre a
diversidade na ciência e as questões de gênero no campo da astronomia. Por exemplo, “quando
ela chegou a Edimburgo, ficou surpresa ao descobrir que as aulas de astronomia tinham a mesma
porcentagem de mulheres de 1892, ano em que o Departamento de Astronomia da universidade
admitiu mulheres pela primeira vez” (McGrayne, 1998, p. 375). Atuando na União Astronômica
Internacional, trabalha na elaboração de estudos sobre a presença de mulheres na entidade,
além de atuar na divulgação de ações para a promoção da diversidade no campo da astronomia.
Discussões de gênero na história de Jocelyn Bell Burnell
Esses elementos históricos relativos à trajetória pessoal e acadêmica de Jocelyn Bell Burnell
possibilitam a discussão sobre determinados desafios que se refletem em exemplos de cientis-
tas mulheres. Como apontado por Santana (2021), a utilização da categoria de gênero permite
não somente explorar a história de determinada mulher cientista, mas também evita escrever
tais histórias de forma anedótica ou hagiográfica que perpetuam estereótipos. Desse modo,
a intenção dessa análise consiste em “usar o particular, o específico para nos auxiliar a ver e
compreender modelos mais amplos sobre as práticas, o desenvolvimento de ideias, os papéis
culturais e políticos das mulheres e das ciências” (Sombrio, 2014, p. 5-6).
Primeiramente, um dos aspectos discutido por Sharon McGrayne (1998, p. 5) diz respeito
às razões que mantiveram mulheres no campo científico, a despeito dos inúmeros desafios
estruturais: “Diante de tais obstáculos, o que sustentava essas mulheres?”. Assim, a autora
pontua alguns fatores que podem contribuir com o acesso e a permanência de mulheres no
campo científico, como por exemplo, além do gosto pessoal pela ciência, a influência de pais
e parentes – e posteriormente de parceiros; valores familiares favoráveis à educação e o apoio
das instituições concedido às mulheres. No exemplo de Bell Burnell, notamos um amplo suporte
familiar no acesso cultural à ciência por meio de visitas ao observatório e a leitura de livros de
astronomia; e apoio escolar, como no exemplo de seu professor de física.
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
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Além de aspectos da vivência privada, elementos do contexto político e das instituições
interferem no incentivo de jovens para ingressarem no campo científico. Podemos questionar,
por exemplo, o fato de uma das escolas frequentadas pela cientista separar o cronograma de
estudo por gênero: a concepção de “ciência doméstica” estabelece relações com a dicotomia
entre as esferas sociais públicas e privadas, sendo estas últimas predominantemente direciona-
das às mulheres. Também, Schiebinger (2001) argumenta que, ao longo da história, a atuação
feminina esteve fortemente condicionada ao contexto político de organização das instituições,
como a ciência: nesse âmbito, conforme apontado por Bell Burnell (2010), o lançamento do
satélite Sputnik desencadeou um contexto propício de encorajamento das gerações mais jovens,
como mulheres, no ingresso à ciência:
A partir das décadas de 1960 e 1970 um conjunto de fatores conspirou para estimular as
mulheres a ingressarem na ciência. [...] O lançamento do Sputnik, em 1957, desencadeou um
frenesi de recrutamento [...] Nessa atmosfera, mesmo mulheres e minorias figuravam como
recursos nacionais valiosos. Isso, juntamente com o movimento das mulheres renovado da
década de 1970, produziu um boom na participação das mulheres na ciência – um boom
intensificado por um financiamento governamental de programas designados para atrair
mais minorias e mulheres para a ciência e engenharia.
Nesse sentido, embora a formação básica de Jocelyn Bell fosse constituída de elementos
favoráveis para seu interesse pelas ciências, ao analisarmos o contexto de sua entrada e perma-
nência, durante sua formação acadêmica, observamos que, sendo a única mulher no curso de
física, não era bem recebida por seus colegas homens: “ela logo percebeu que as mulheres nas
ciências físicas estavam ‘fora de seu papel’. Os alunos a tratavam como se ela fosse ‘Jocelyn de
Júpiter’ – algo pouco natural” (McGrayne, 1998, p. 362). Desse modo, apesar da entrada feminina
em instituições universitárias ser institucionalizada naquela época, o contexto universitário ainda
era pouco convidativo para mulheres na física. No caso específico da cientista, ela conviveu com
situações de desestímulo de seus pares:
[A cientista] [...] simplesmente ignorou as mulheres bem-intencionadas em seu dormitório,
que a aconselharam a largar a física e deixar a universidade com um diploma geral de três
anos em vez de um diploma com honras de quatro anos. Mulheres casadas não precisam
de muita educação, disseram a ela (McGrayne, 1998, p. 362).
Ao longo de sua vida, as mulheres se deparam com determinadas expectativas cultu-
rais que podem propiciar seu afastamento silencioso em certos espaços, como o ambiente
científico. No entanto, como no caso de Bell Burnell, mulheres que se destacaram na ciência
expõem momentos de uma “autodúvida” quanto ao seu lugar no meio científico (Schiebinger,
2001). Conforme conta a cientista, referindo-se à sua formação acadêmica, “quando vim para
Cambridge, comecei a sofrer do que agora sei que é a síndrome do impostor [...] decidi que
até que eles me expulsassem eu iria dar o meu melhor” (Bell Burnell, 2018, p. 16). Esse é um
importante ponto igualmente debatido por Schiebinger (2001, p. 126), no sentido que “por
serem submetidas a cerrado escrutínio, as mulheres desenvolvem padrões extremamente altos
[...] como um pré-requisito para ingressar e permanecer na ciência, sentindo às vezes que devem
ser mais brilhantes que os homens”. Esse aspecto se manifesta no seguinte relato da cientista:
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A educação na Irlanda do Norte, York e Glasgow não me preparou para a confiança que
encontrei em Cambridge no outono de 1965. Eu era provinciana e mulher. Os homens de
Cambridge pareciam muito espertos (e alguns muito ansiosos para que alguém soubesse
disso). Fiquei intimidada e concluí que minha admissão como estudante de pós-gradua-
ção havia sido um erro, que seria [...] considerada estúpida demais para ter sucesso em
Cambridge. Essa atitude agora seria rotulada de ‘síndrome do impostor’ e, apesar das
intervenções, pode fazer com que o aluno saia por conta própria antes [...] de ser expulso
de um lugar de prestígio. Porém, não querendo desistir prematuramente, decidi trabalhar
o mais duro e cuidadosamente que pude, para que quando me expulsassem eu não tivesse
a consciência culpada! (Bell Burnell, 2017, p. 831).
Além disso, em relação ao reconhecimento público de cientistas, Rossiter (1982, p. xvi)
também aponta o fato de que “mulheres notáveis frequentemente [...] eram [e ainda são]
reconhecidas apenas tardiamente [...] décadas depois de suas realizações”. O episódio ocor-
rido com Bell Burnell permite refletir a estrutura de láureas como o prêmio Nobel, reconhecida
como uma das mais importantes premiações científicas do mundo. Segundo Santana (2021, p.
40), tais premiações refletem a “segregação hierárquica pela sub-representação das mulheres
nas áreas científicas e tecnológicas”. Nesse sentido, o prêmio Nobel consiste em uma fonte de
exemplificação de um fenômeno social denominado Efeito Matilda, definido pela historiadora
Margaret Rossiter.
Segundo Rossiter (1993), o Efeito Matilda pode se manifestar no âmbito de publicações bem
como de premiações, consistindo, em outras palavras, em “casos onde a participação feminina na
atividade científica tem seu mérito diminuído ou completamente atribuído ao trabalho mascu-
lino” (Santana, 2021, p. 38). Por certo, Sepúlveda e Silva (2021) argumentam a recorrência desse
fenômeno no contexto de láureas, a exemplos de prêmios Nobel que apresentam a omissão
do nome de mulheres cientistas nas indicações, como: Frieda Robscheit-Robbins em medicina
em 1934, Rosalind Franklin em medicina em 1962, Chien Shiung-Wu em física em 1957 e Lise
Meitner em física em 1944. A historiadora também menciona o exemplo de Jocelyn Bell Burnell:
Da mesma forma, nas décadas de 1960 e 1970, mulheres mais jovens associadas, como a
astrofísica Jocelyn Bell na Inglaterra [...] colaboraram em importantes trabalhos científicos,
mas não participaram dos prêmios Nobel [...] concedidos a essas descobertas. Até então,
no entanto, havia crítica feminista suficiente para que essas decisões fossem chamadas de
‘controversas’ (Rossiter, 1993, p. 329).
Os elementos relativos ao casamento e à maternidade, também presentes na trajetória de
Bell Burnell, sugerem uma possível evidência da chamada polarização entre as esferas privada
e pública. Sobre esse contexto, Schiebinger (2001, p. 69) argumenta que “a família deslocou-se
para a esfera doméstica privada, enquanto a ciência migrava para a esfera pública da indústria e
universidade”. Assim, quando a astrônoma apareceu no laboratório com um anel de noivado, era
um indicativo para seus colegas de que ela sairia do contexto público da ciência, para adentrar
a um contexto privado, de cuidado do marido, e, por conseguinte, dos filhos. De outra forma,
no contexto social em que Bell estava inserida, não era reconhecido que mulheres casadas e/
ou mães pudessem atuar em ambientes públicos, como a ciência:
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
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As instituições científicas – universidades, academias e indústrias – foram estruturadas
sobre a suposição de que os cientistas seriam homens com esposas em casa para cuidar
deles e de suas famílias. O funcionamento homogêneo do mundo profissional de muitas
maneiras dependia das contribuições não reconhecidas de esposas que [...] cuidavam de
seus maridos profissionais, proporcionando lares bem dirigidos e apoio disponível para o
progresso das carreiras dos homens (Schiebinger, 2001, p. 70).
Após defender seu doutorado, a cientista necessitou reorganizar sua carreira, abando-
nando-a parcialmente, de maneira a cuidar do marido e do filho, atuando em meio período
em universidades, em um contexto em que não existia licença-maternidade ou infantários
disponíveis. Naquela época, ela “não percebeu a magnitude daquilo de que estava desistindo.
Estava apenas começando a perceber que muitos cientistas a consideravam uma descobri-
dora de pulsares” (McGrayne, 1998, p. 371). Como o caso de Bell Burnell, mulheres acabam
por “enfrentar dificuldades maiores para conciliar trabalho, vida de casal e responsabilidades
familiares” (Löwy, 2020, p. 239), o que acarreta em interrupções frequentes em suas carreiras
profissionais. Conforme a própria cientista:
Embora agora estejamos muito mais conscientes sobre a igualdade de oportunidades,
acho que ainda há uma série de desvantagens estruturais inerentes às mulheres. Estou
muito consciente de que, tendo trabalhado meio período, tendo tido uma carreira bastante
interrompida, meu histórico de pesquisa é muito mais irregular do que qualquer homem
de idade comparável (Bell Burnell, 1996, p. 184).
Por fim, é interessante apontar que, a exemplo dos diferentes posicionamentos da cientista
na época do prêmio Nobel e em tempos posteriores à premiação, McGrayne (1998) aponta
como a participação de Bell Burnell em discussões de gênero na ciência aconteceu gradual-
mente. Seu posicionamento em relação aos episódios de discriminação vivenciados durante a
graduação evidencia tal aspecto. Segundo ela, “em parte, acho que foi à medida que fui ficando
mais velha que tive uma perspectiva das coisas, que vi mais claramente as injustiças [...] Eu não
estava terrivelmente alerta – não estava nem um pouco alerta – como feminista naquela época”
(Bell Burnell, 2000, p. 30). De fato, Fox Keller (2006) argumenta que muitas mulheres atuantes
na ciência deram inúmeras contribuições sem estar diretamente associadas aos debates femi-
nistas. Por certo, no seguinte comentário, por exemplo, a astrônoma elenca a importância de
modelos de cientistas, pois durante a sua trajetória, “não havia nenhum modelo, nem mesmo
um mentor, na verdade” (Bell Burnell, 2000, p. 73). Também, sugere a necessidade de ressig-
nificação de situações vivenciadas por mulheres que adentram em tais discussões feministas:
Muitas mulheres que foram as primeiras mulheres a entrar nas áreas chegaram lá sendo
dragões, machados de batalha ou até mesmo homenzinhos. Espero que, à medida que mais
mulheres entram em campo, algumas das mulheres mais velhas tenham tempo e inclinação
para ajudar a apoiar e encorajar as mulheres mais jovens, para que haja uma mentora, ou
talvez uma rede ou um modelo para elas. Acho que tudo isso é muito importante. Levei
muito tempo para articular e interpretar as experiências que estava tendo e encontrar
o equilíbrio certo: isso é sexista, isso é assédio, sou eu que sou paranoica ou o quê? Se
houvesse mulheres mais velhas a quem eu pudesse recorrer, acho que teria sido mais fácil
(Bell Burnell, 1996, p. 184).
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Nesse relato, a cientista também certamente está se referindo a uma cultura científica cujas
práticas são permeadas por características associadas ao imaginário masculino, como a compe-
titividade e a neutralidade. Desse modo, para permanecer no ambiente científico, muitas vezes,
“as mulheres que tentam se tornar pesquisadoras aceitam essa cultura como a única possível”
(Löwy, 2020, p. 238). Por outro lado, em outra declaração, a cientista aponta uma crítica sobre
a insuficiência de apenas incentivar a entrada de mulheres e de outros grupos na ciência sem
efetuar mudanças na própria estrutura científica. Sobre esse aspecto, a astrônoma destaca que:
Não acredito mais que tornar as mulheres mais corajosas, mais assertivas, ‘mais parecidas
com os homens’ é o caminho certo para seguir em frente. As mulheres não deveriam ter
que fazer toda a adaptação. É hora de a sociedade se mover em direção às mulheres, não
as mulheres em direção à sociedade. No passado, houveram algumas mulheres astrôno-
mas excelentes que não foram totalmente reconhecidas por suas contribuições. Embora o
avanço e o reconhecimento das astrônomas mulheres possam vir de maneiras inesperadas
e em surtos, como a pesquisa do pulsar, espero que eles venham mais rapidamente no
futuro. No entanto, há mais mulheres na astronomia agora do que em 1967, quando eu era
estudante de graduação, e a sociedade está mais acostumada com sua presença intelectual.
As mulheres começaram a mover a sociedade em sua direção, e a familiaridade ajudará a
gerar aceitação. Espero que as mulheres mais jovens encontrem o campo cada vez mais
aberto e receptivo, e que suas realizações sejam prontamente reconhecidas (Bell Burnell,
2004b, p. 489).
Considerações finais
Os estudos feministas sobre a ciência possibilitam direcionar pesquisas no sentido de
se evidenciar dinâmicas de opressão de gênero existentes nas práticas, nos ambientes e nos
resultados científicos. Em especial, a escrita sobre as trajetórias de cientistas mulheres possibi-
lita, dentre vários aspectos, romper com um modelo de representação da ciência que concede
destaque apenas para homens, como líderes de pesquisa e vencedores de grandes prêmios
(Lima, 2019). No sentido de ensejar mudanças na representação do campo científico, “a História
da Ciência tem o poder de, se não fazer, ao menos iniciar tais reparações. Deve estar atenta ao
mundo atual e romper com as estruturas de desigualdade” (Vieira, 2021, p. 11).
Assim, especificamente, longe de querer apresentar as histórias de vida das mulheres em
um caráter meramente descritivo, é imprescindível que “reflexões políticas sejam levantadas ao
teorizar sobre essas histórias de vida, pensando a partir de epistemologias feministas, questio-
nando os modos como gênero demarcou a vida daquelas mulheres cientistas” (Santana, 2021,
p. 53). Como explorado neste artigo, o estudo biográfico de uma cientista atuante na física,
como Jocelyn Bell Burnell, permite que possamos evidenciar diversos elementos da prática e da
formação dos cientistas nesse campo, a exemplo da divisão do trabalho científico com base no
gênero e a discriminação no que diz respeito ao reconhecimento intelectual entre físicas e físicos.
Dessa maneira, percebe-se que histórias de vidas sobre cientistas podem fornecer elementos
de forma a se refletir e se buscar mais equidade de gênero no meio científico (Santana, 2021).
Realizar estudos biográficos sobre mulheres cientistas que envolvem “o contexto das conquistas
das mulheres [...] fornece uma visão sobre como as situações ocorreram no passado e como
mudanças precisam ocorrer no futuro” (Larsen, 1995, p. 127). Em específico, os elementos
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell
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apontados na trajetória de Jocelyn Bell Burnell sugerem a importância de uma estrutura familiar
e escolar de incentivo ao ingresso na ciência e de mudanças estruturais para mulheres perma-
necerem no ambiente científico.
Por outro lado, observamos a mudança de postura da cientista em discussões feministas
ao longo da sua trajetória, que certamente, possibilitou elencar barreiras estruturais que se
refletiram em sua carreira e que se projetam na história de tantas outras cientistas, como a
discriminação durante a formação de mulheres em campos do conhecimento, como a física;
a conciliação do casamento e da maternidade com a vida acadêmica; e as diferenças no
reconhecimento intelectual de mulheres, a exemplo do Efeito Matilda. Longe de querer esgotar
essas discussões, sugerimos a possibilidade de estudos de outras fontes documentais com o
objetivo de aprofundar ou elencar outros aspectos da trajetória da astrônoma, a exemplo de
arquivos pessoais, como diários de laboratório e outras entrevistas.
Ao se discutir acerca da escrita de narrativas sobre a trajetória de mulheres, como cientis-
tas, há um importante contraponto a se destacar: devemos ser vigilantes sobre o fato de que
“homens e mulheres não formam grupos homogêneos e unitários” (Sepúlveda; Silva, 2021, p.
99). Assim, essa vigilância diz respeito a não ressaltarmos o imaginário de uma mulher univer-
sal, pois, como exposto por Sandra Harding, “temos uma infinidade de mulheres que vivem
em intrincados complexos históricos de classe, raça e cultura” (1993, p. 9). Um conceito que
considera essa reflexão é a interseccionalidade, podendo ser entendida como o entrelaçamento
entre aspectos de gênero, raça, classe e sexualidade (Costa, 2010). Dessa forma, no exemplo
explorado neste artigo, Jocelyn Bell Burnell é bem caracterizada como uma mulher cis, branca,
europeia e heterossexual, inserida em uma condição socioeconômica relativamente favorável
que lhe possibilitou o acesso ao campo científico. Apesar dessas condições, percebemos deter-
minados desafios em sua trajetória associados ao seu gênero, mas, que são barreiras que não
generalizam as opressões vivenciadas por todas as cientistas: “a experiência isolada de uma
mulher não pode servir de base para concepções e políticas que nos emanciparão a todas da
hierarquia de gênero” (Harding, 1993, p. 23).
Em conclusão, como aponta Schiebinger, “a ciência moderna é um produto de centenas
de anos de exclusão das mulheres, [e] o processo de trazer mulheres para a ciência exigiu, e vai
continuar a exigir, profundas mudanças estruturais na cultura, métodos e conteúdo da ciência”
(2001, p. 37). Acrescentamos à citação da historiadora que tais mudanças estruturais podem
ser ensejadas por meio de ações na educação científica. Nesse âmbito, é válido demonstrar aos
discentes e docentes as potencialidades da ciência, mas também suas problemáticas como um
corpo de conhecimento que também reproduziu – e ainda reproduz – opressões sociais, como
de gênero. Em outras palavras, modificações também são igualmente requeridas na abordagem
de exemplos de cientistas no contexto escolar.
Concordamos com Sepúlveda e Silva (2021) quanto à potencialidade na abordagem de
elementos sobre natureza da ciência associada às discussões sobre relações de gênero na
ciência, bem como outros marcadores sociais, como raça e classe. Não levar tais aspectos em
consideração “é estar alheio à diversidade das personagens do campo da ciência” (Lima, 2019,
p. 163). Em suma, o acesso às narrativas sobre mulheres cientistas por discentes e docentes,
em especial, meninas e mulheres, permite que nós, pesquisadores/as ou futuras/os cientistas,
possamos nos reconhecer em tais histórias de vida, podendo “ajudar a reorientar nossos modos
familiares de pensar como as relações de gênero exercem poder sobre nossa própria existência
e nossa relação com a ciência” (Santana, 2021, p. 86).
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Recebido em 30/04/2024
Aceito em 19/12/2024
“Olhe, querida! Você fez uma descoberta”: aspectos da vida e da trajetória da astrônoma Jocelyn Bell Burnell