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DOI 10.21680/2446-5674.2024v11n21ID34721
O filme etnográfico: outros contatos, diversos olhares
José Muniz Falcão Neto
Universidade Federal da Paraíba
josemunizfalcaoneto@gmail.com
http://orcid.org/0009-0001-8932-5244
RESUMO
O objetivo deste artigo é explorar as potencialidades epistêmicas do filme etnográfico para a escrita
etnográfica e à Antropologia, especialmente quando esse estreita as relações entre os participantes da
pesquisa e o pesquisador. Utilizando minha pesquisa de mestrado e o filme Cinemas do interior (2019)
produzido na dissertação, bem como debates com alguns(as) autores(as) abordados(as) em uma disciplina
de doutoramento na UFPB, e as discussões teóricas e metodológicas vivenciadas em sala de aula, além
da expressividade e potencialidade das imagens (Samain, 2012), refletirei sobre como o filme etnográfico
e as concepções da Antropologia Visual promovem diálogos potentes e expressivos dentro do campo
teórico e metodológico da Antropologia. A inclusão da câmera filmadora na pesquisa de campo expõe
discussões, negociações e a narrativa fílmica/etnográfica na construção da imagem do “outro”,
contribuindo para o pensamento crítico sobre a teoria antropológica e a relação ética na pesquisa e na
escrita etnográfica.
Palavras-chave: Antropologia Visual; Etnografia; Filme etnográfico.
Equatorial
v.11 n.21 | jul./dez. 2024
ISSN: 2446-5674
DOSSIÊ
O filme etnográfico
Dossiê
Equatorial, Natal, v. 11, n. 21, jul./dez. 2024
2
The ethnographic film: other contacts, different perspectives
ABSTRACT
The objective of this article is to explore the epistemic potential of ethnographic film for ethnographic
writing and Anthropology, especially when it strengthens the relationships between research participants
and the researcher. Using my master's research and the film Cinemas do interior (2019) produced in the
dissertation, as well as debates with some authors covered in a doctoral course in Cinemas in the interior,
and the theoretical and methodological discussions experienced in the classroom class, in addition to the
expressiveness and potential of images (Samain, 2012), I will reflect on how ethnographic film and the
concepts of Visual Anthropology promote powerful and expressive dialogues within the theoretical and
methodological field of Anthropology. The inclusion of the film camera in field research exposes
discussions, negotiations and the filmic/ethnographic narrative in the construction of the image of the
‘other’, contributing to critical thinking about anthropological theory and the ethical relationship in
ethnographic research and writing.
Keywords: Visual Anthropology; Ethnography; Ethnographic film.
La película etnográfica: otros contactos, miradas distintas
RESUMEN
El objetivo de este artículo es explorar el potencial epistémico del cine etnográfico para la escritura
etnográfica y la Antropología, especialmente cuando fortalece las relaciones entre los participantes de la
investigación y el investigador. Utilizando mis investigaciones de maestría y la película Cinemas do interior
(2019) producida en la disertación, así como los debates con algunos autores tratados en un curso de
doctorado en [información suprimida], y las discusiones teóricas y metodológicas vividas en el aula,
además de las expresividad y potencial de las imágenes (Samain, 2012), reflexionaré sobre cómo el cine
etnográfico y los conceptos de la Antropología Visual promueven diálogos poderosos y expresivos dentro
del campo teórico y metodológico de la Antropología. La inclusión de la cámara cinematográfica en la
investigación de campo expone discusiones, negociaciones y la narrativa fílmica/etnográfica en la
construcción de la imagen del 'otro', contribuyendo al pensamiento crítico sobre la teoría antropológica
y la relación ética en la investigación y la escritura etnográficas.
Palabras clave: Antropología Visual; Etnografía; Película etnográfica.
José Muniz Falcão Neto
3
Equatorial, Natal, v. 11, n. 21, jul./dez. 2024
Introdução
Um dos grandes debates da antropologia do século XX foi a formulação de teorias
e métodos para a compreensão das sociedades e a produção das escritas etnográficas.
Muito se discutiu ao longo desses últimos dois séculos, onde várias escolas se
posicionaram a favor das suas estruturas lógicas de pensamento e modos interpretativos.
Pautados na escrita, as monografias estabeleceram regras e formas explicativas de pensar
o “outro”, de interagir e contribuir, muitas vezes, com os processos de colonização das
sociedades estudadas (Thomas, 1991). A partir dos sistemas interpretativos e teóricos,
elencados nos estudos da totalidade (Strathern, 1996), é que a escrita etnográfica se
constituiu e gerou grandes debates que envolveram os modos de pensar a antropologia, a
produção da escrita etnográfica e a alteridade. Como as teorias antropológicas
contribuíram na formação do que seja a alteridade? Quais as consequências da escrita
etnográfica na interpretação do “diferente” e na abordagem com as sociedades estudadas?
Até que ponto a escrita etnográfica permitiu esclarecimentos das relações estabelecidas
entre o(a) pesquisador(a) e os seus colaboradores?
Essas são perguntas iniciais que permitem refletir as técnicas de escrita e a
construção do “outro” (Thomas, 1991) dentro do cenário antropológico e como
alguns(mas) autores(as) têm buscado realizar críticas no sentido de diminuir as distâncias
da observação à escrita com as comunidades estudadas. Através da linguagem verbal
vários(as) foram os(as) autores(as) que discutiram os distanciamentos e generalizações
(Fabian, 2013; Ingold, 2015; Strathern, 1996) gerados pela escrita etnográfica e as
interpretações antropológicas. Podemos também destacar a obra de James Clifford A
experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX (2002) e a obra da autora Marylin
Strathern que com sua sofisticação discursiva em O efeito etnográfico e outros ensaios (2014),
expõem alguns problemas de representação que surgem na produção etnográfica da
antropologia clássica e de seus contemporâneos.
Porém, houve pesquisadores(as) que, a partir da imagem (especificamente o cinema
antropológico), também evocaram discussões acerca da representação, da produção do
conhecimento e da alteridade, a exemplo do cineasta/antropólogo Jean Rouch, isto ainda
na década de 60 (Rouch, 2015). Com o filme etnográfico, Rouch desvendou e colocou
simetrias na produção da ciência antropológica, horizontalizando um pouco mais a
hierarquia do saber, refletindo modos da produção etnográfica e na própria concepção
teórica e metodológica da disciplina com a proposta de uma antropologia compartilhada,
onde pesquisador/cineasta trocam de posições (frente à câmera) com os personagens
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colaboradores do filme e da pesquisa, e se colocam como narradores/diretores do próprio
filme, constroem a narrativa fílmica e etnográfica a partir das negociações e diálogos
estabelecidos com o cineasta/antropólogo e os vários pontos de vistas que se evocam no
diálogo cinematográfico
1
.
Pensando nesta potencialidade do cinema antropológico e sua capacidade de
provocações epistêmicas, para este artigo, farei uma rápida passagem pelas teorias e
métodos adotados na antropologia que contribuíram e deram condições para os vários
modos de escrita etnográfica, nas descrições e estudos na compreensão das sociedades,
dos grupos e dos indivíduos. Partindo de uma provocação
2
através dos debates de
alguns(mas) autores(as) trabalhados(as) na disciplina de Seminário de Doutorado do
Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
— tais como Tim Ingold, Marilyn Strathern, Nicholas Thomas, Frederick Barth e
Johannes Fabian —, farei breves comentários de como a teoria antropológica remodela as
escritas etnográficas na tentativa de estreitar a relação do cientista com os(as)
colaboradores(as) de pesquisa e consegue de maneira mais significativa criar um modo de
compreender os mundos sociais. Onde tal interpretação reverberou na construção do que
seja a alteridade, quando a escrita etnográfica desempenhou um papel fundamental na
formação da imagem do que seria esse “outro” e a alteridade.
Por fim, partindo da provocação dos debates teóricos e metodológicos
experienciados na disciplina mais a expressividade e potencialidade das imagens (Samain,
2012), realizarei reflexões concisas de que o filme etnográfico mais as concepções da
Antropologia Visual promovem diálogos potentes e expressivos dentro do campo teórico
e metodológico da antropologia. Quando se insere na pesquisa de campo a câmera
filmadora e expõe as discussões, as negociações e a narrativa fílmica/etnográfica na
construção da imagem do “outro” corroboram para pensar a teoria antropológica e a
relação ética na pesquisa e na escrita etnográfica. Com este objetivo, trarei como exemplo
etnográfico as negociações e a realização de Cinemas do interior (2019), filme parte integrante
da minha dissertação de mestrado sobre as memórias dos(as) espectadores(as) e
trabalhadores(as) dos cinemas no Vale do Mamanguape. Assim, portanto, a intenção deste
1
Destaco três filmes que abordam essa perspectiva: Moi, Un Noi (1958), Chronique d'un été (1961) e Pétit a
Pétit (1972).
2
Em um momento da aula o docente que ministrava a disciplina de Seminário de Doutorado argumentou
que a Antropologia Visual era “inocente” ao pensar que tinha capacidade epistêmica de reelaborar teorias
e métodos antropológicos a partir das imagens. Ao seu ver, essa era uma premissa ingênua dos(as)
antropólogos(as) visuais. Agradeço ao docente pelos textos abordados na disciplina e a provocação que
contribuíram com as reflexões presentes no texto.
José Muniz Falcão Neto
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trabalho é explorar como o filme etnográfico potencializa e reflete os debates dos(as)
autores(as) trabalhados(as) na disciplina (os(as) quais estão no corpo do texto), produzindo
significativas simetrias na pesquisa antropológica por sua capacidade metalinguística,
processual e interacional. Deste modo, um propósito maior se estabelece nesse texto:
argumentar a capacidade teórica, metodológica e comunicacional da produção do filme
etnográfico, desenvolvido numa pesquisa de mestrado sobre antigas salas de exibição no
interior da Paraíba.
O que se observa, entretanto, é que ao se problematizar a equivalência entre visão
(entenda-se, aqui, imagem) e escrita surgem novas possibilidades de se construir um texto
etnográfico que leva em conta não mais a visão/imagem versus a escrita. Mas, sobretudo,
a ideia de imaginação enquanto categoria poderosa para articular um novo modo de
representar/apresentar essa relação com outro, em que a imagem e a escrita, em vez de
criarem um possível realismo, abrem caminhos para a fabulação, para a ficção como
formas de aceder a um conhecimento. Essa capacidade imaginativa possibilita também
outras formas tanto para o antropólogo quanto para o nativo de imaginarem sobre si e
sobre o outro, redefinindo, assim, a própria concepção de representação (Strathern, 1987)
(Gonçalves; Head, 2009, p. 17).
Antropologia: em busca da alteridade e da escrita etnográfica
Neste momento farei um resumo de como alguns(mas) autores(as) trabalhados(as)
na disciplina buscaram realizar críticas e/ou observações das consequências das produções
das etnografias escritas na construção e representação do “outro”, e como elas refletiram
no cenário antropológico, tentando aprender melhores maneiras de lidar com as
comunidades estudadas, no que consiste em abordagens teórico-metodológicas que
estejam ancoradas aos princípios éticos e comprometidos com uma simetria relacional
para as exposições e interpretações das circunstâncias socioculturais estudadas.
Trago esses(as) autores(as) trabalhados(as) durante a disciplina pois me aguçaram a
(re)pensar/(re)visitar o filme etnográfico realizado na minha dissertação de mestrado, no
ano de 2019. São eles(as): Tim Ingold, Marilyn Strathern, Nicholas Thomas, Frederick
Barth e Johannes Fabian. Nesse sentido, o(a) leitor(a) vai se deparar com algumas reflexões
dos(as) autores(as), os(as) que me levaram a estudar o assunto principal deste trabalho: o
filme etnográfico e suas potências epistêmicas. Não é minha intenção colocar e reafirmar
hierarquias do saber nesse diálogo entre o verbal e o visual. Mas fazer justamente o
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contrário: demonstrar que a complementariedade da escrita e do visual (Samain, 2000)
permitem percepções e reformulações teórica-metodológicas no processo de pesquisa que
colaboram enormemente na confecção da escrita etnográfica.
De início, quero trazer o artigo Against Ethnography de Nicholas Thomas (1991),
onde o autor vai realizar uma série de críticas em relação a construção do “outro” pelo
poder da escrita etnográfica. Destaco que as pesquisas antropológicas quando
argumentadas pela escrita com suas estruturas monográficas se transformavam em
representações etnográficas ficcionais (Strathern, 1996), e assim, criavam uma imagem de
alteridade que era produzida pelas estruturas mentais e escritas dos(as) antropólogos(as).
“A tendência de exotizar os outros pode ser considerada uma peculiaridade dos indivíduos
que se tornam antropólogos, ou uma consequência inevitável do encontro de trabalho de
campo” (Thomas, 1991, p. 311). A lógica de transformar o “outro” em diferente tendeu a
construir um certo tipo de relativismo que distanciava os grupos estudados do tempo
espacial e histórico dos(as) antropólogos(as) (Fabian, 2013). A tradução das culturas
oferecidas pelas distintas escolas antropológicas e seus modos etnográficos produziram
distanciamentos (Fabian, 2013) que estão atrelados às experiências de viagens dos(as)
pesquisadores(as) ao confrontar lógicas sociais diferentes das suas.
A alteridade, em certa medida, foi constituída por uma necessidade científica para
confirmar a legitimidade da ciência antropológica. Uma prática persuasiva (Strathern,
1996; Thomas; 1991) que gerou debates dentro da disciplina e inflamou vários(as)
teóricos(as) a formularem suas metodologias e modos de estruturar as suas etnografias
escritas. A persuasão etnográfica, segundo Strathern (1996) e Thomas (1991), eram
essenciais para convencer a maioria dos(as) estudiosos(as) da disciplina, assim,
conseguiriam legitimar-se dentro da ciência antropológica e enaltecerem as suas escolas e
perspectivas teórica/metodológicas.
Segundo Fabian (2013), o grande problema estava no conceito de “diferença
cultural” que estabilizou seu referente para um tempo antropológico que homogeneíza as
diferenças, pois “aborda uma forma de diferença entre muitas” (Moore, 1987: 9 apud
Thomas, 1991, p. 7). Isto é, ao colocar o “outro exótico” na concepção do diferente no
estudo da alteridade, as etnografias e os estudos antropológicos pautavam suas concepções
teóricas através de um tempo lógico antropológico para pensar outras sociedades. As
diferenças anulavam-se diante dessa “diferença” da alteridade formada pela tradição
ocidental da antropologia.
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Este distanciamento provocado por essa “diferença cultural”, afirma Fabian (2013),
está atrelada a um tempo físico na relação estabelecida na pesquisa de campo e o tempo
de montagem do material, seja ele escrito ou visual. Outra colocação importante do autor
é quando faz uma ênfase em relação à escrita e à pesquisa de campo, onde a antropologia
estabeleceu uma espécie de “tempos distintos” que tenderam a distanciar o pesquisador
do grupo pesquisado. De fato, há distanciamentos entre a pesquisa de campo e o tempo
de escrita do trabalho etnográfico. A grande questão é como alinhar as temporalidades
sem que distanciemos a conexão com os(as) colaboradores(as) da pesquisa. Tendo em
vista o caráter processual (Barth, 2000) das culturas, como, portanto, alinhar ou equilibrar
as assimetrias estabelecidas durante a pesquisa e a escrita? De que modo, então, articular
outras maneiras antropológicas de trabalhar com (Ingold, 2015) o “outro” na construção
da etnografia?
Para tentar responder estas questões, no artigo Etnografia não é método, Tim Ingold
(2015) realiza uma abordagem para argumentar de que há diferenças entre a antropologia
e a etnografia. Na discussão, Ingold questiona o modo de realizar uma etnografia e afirma
que a antropologia como ciência se faz no ato do diálogo e dos emaranhados relacionais
com as pessoas, não humanos, materiais, artefatos culturais e objetos. Foi partindo e
revisitando teorias clássicas e modos do fazer etnográfico que o autor percebe as
generalizações, distanciamentos, ficções na construção da alteridade (Fabian, 2013;
Thomas, 1991; Strathern, 1996) que estão atreladas na escrita etnográfica. “Ao contrário
dos modos convencionais a Antropologia é habitar o mundo, de estar com, caracterizado
pelo (olhar de) soslaio da atitude comparativa — é propriamente uma prática de
observação ancorada no diálogo participativo” (Ingold, 2015, p. 19). Isso é, os diálogos
com pessoas é o que constrói o pensamento intelectual e etnográfico. Agindo dessa
maneira, segundo Ingold, a escrita etnográfica tenderia a explicitar o “estar com e
descrever com”, e não “descrever sobre”, produzindo “autoridades etnográficas”
(Clifford, 2002) e interferindo nas relações éticas e de confiança com os(as)
colaboradores(as) de pesquisa (Gálan, 2011). Pensar a vida é pensar ela como processo
(Barth, 2000; Ellen, Al, 1996), isto é, em constante transformação.
Repetindo, a antropologia é uma investigação sobre as condições e
possibilidades da vida humana no mundo; não é — tal como muitos acadêmicos
no campo da crítica literária a faria ser — o estudo de como escrever etnografia,
ou das problemáticas reflexivas da transformação da observação para descrição
(Ingold, 2015, p. 21).
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Bem, trabalhar com comunidades, povos, indivíduos em suas diversas
circunstâncias, nos faz refletir sobre como devemos agir em campo e pensar como nossas
produções podem gerar consequências positivas e/ou negativas para o grupo e indivíduos
que colaboram com nossas investigações antropológicas. Tomar cuidado com o que
escrevemos e expomos em imagem implica em estabelecer relações de confiança (Noel,
2011) para que o grupo se sinta parte agente do que se está produzindo
antropologicamente. E que, na medida do possível, o material e as discussões realizadas
em pesquisa sejam de grandes retornos para os(as) nossos(as) colaboradores(as).
Observamos até aqui, a partir de Marylin Strathern, Nicholas Thomas, Johannes
Fabian, Frederick Barth e Tim Ingold
3
, breves reflexões sobre o processo da escrita
etnográfica e seu efeito na construção do “outro” e da alteridade. Os apontamentos
realizados por esses(as) autores(as) são extremamente relevantes para pensarmos em
nossas pesquisas e não cometermos erros com generalizações, distanciamentos,
autoritarismos e descrições rasas das nossas pesquisas. Uma etnografia ética é aquela
realizada com os(as) colaboradores(as) no compromisso de desnivelar as assimetrias
instituídas nas posições sociais as quais ocupamos.
Logo, como proposta deste artigo, apresentarei as reflexões discutidas acima através
das descrições na realização e negociação na produção do filme Cinemas do interior (2019).
O objetivo é provocar e apontar como a câmera filmadora, a imagem e a narrativa fílmica
potencializam diálogos para as questões da alteridade, o “outro”, a ética e a escrita
etnográfica. Estaria o filme etnográfico como potência para minimizar e/ou responder as
questões suscitadas pelos(as) autores(as)? Quero destacar, que não pretendo apontar o
filme etnográfico e a linguagem audiovisual como solução aos problemas antropológicos
aqui desenvolvidos. Mas que a antropologia com e das imagens, evoca de forma
contundente as colocações e preocupações apontadas pelos(as) autores(as).
O devir-imagético dá conta desta autonomia do indivíduo e sua possibilidade de
auto-representação criativa que não coincide com a ideia clássica de
‘representação coletiva’. A individuação criativa dos personagens-pessoas
desenvolve uma autonomia de significados que não está submetida diretamente
à força imanente da sociedade. Pelo contrário, o improviso, a fala, a narração,
3
Destaco que Ingold não é tão a favor da tecnologia/câmera nos estudos antropológicos, quando dá
ênfase ao desenho como método implacável nas descrições e interpretações antropológicas. Para apreciar
esse debate entre câmera e desenho ver Desenhar com uma câmera? Filme etnográfico e antropologia transformadora
(2010), das autoras Anna Grimshaw e Amanda Ravetz. As concepções antropológicas de Ingold sobre o
desenho e o descontentamento com as tecnologias podem ser apreciadas na conferência da 33ª Reunião
Brasileira de Antropologia (RBA) na abertura do Prêmio Pierre Verger 2022.
José Muniz Falcão Neto
9
Equatorial, Natal, v. 11, n. 21, jul./dez. 2024
não exercem o papel de uma discursividade neutra, são puras agências no sentido
de que criam e agregam novos significados ao mundo e às coisas ao mesmo
tempo em que transformam aqueles que constroem a narrativa etnográfica, seja
o antropólogo, seja seu personagem etnográfico. Seguindo esta premissa, a
realidade sociocultural não é apreendida a partir de uma concepção de
representação, mas de experienciação do mundo (Gonçalves; Head, 2009, p. 26).
Cinema do interior: outros contatos, diversos olhares
Bem, como destacado no início do artigo, a proposta maior desse texto é apontar a
potencialidade da antropologia com as imagens, em especial, o filme etnográfico. Nesta
seção o(a) leitor(a) irá conhecer alguns processos da pesquisa de mestrado, quando
trabalhei com o fenômeno do cinema na região do Vale do Mamanguape-PB.
Antes de descrever algumas eventualidades e negociações no processo de produção
das imagens, tenho que destacar que algumas das imagens que fazem parte do filme já
tinham sido produzidas nos anos de 2015 e 2016, quando ainda estava na graduação em
Antropologia na UFPB/Campus IV-Rio Tinto. Momento que conheci os principais
colaboradores dessa pesquisa: Saulo Cavalcanti, João Fernandes (Dunga)
4
, Augusto
5
e José
da Silva (Pai Herói). Nos conhecemos dentro do antigo prédio do Cine Teatro Orion,
num evento intitulado Cine Saudade, idealizado por Júnior da Locadora
6
, filho dos antigos
donos dos cinemas no Vale do Mamanguape. As entrevistas com esses moradores foram
também dados iniciais da pesquisa sobre os cinemas, quando ainda produzia o TCC e a
edição do filme Imagens e memórias: os cinemas no Vale do Mamanguape-PB (2016).
Ao montar uma coleção etnográfica sobre os cinemas no Vale do Mamanguape,
guardei as imagens em acervo para pesquisas futuras. Foi assim que me encaminhei no
mestrado para dar continuidade à investigação do fenômeno cinema na região. Após a
qualificação da dissertação, foi recomendado pela banca a realização de novas pesquisas
de campo, pois o que se tinha coletado não dava conta de responder às questões levantadas
na dissertação de mestrado. Elas se concentravam em entender processos de colonialidade
4
Esse texto também é dedicado a Dunga (in memoriam) que veio a falecer no primeiro semestre desse
ano, no mês de abril. João Fernandes foi uma pessoa muito especial, alegre, amante do cinema, de filmes
de faroeste, de Giuliano Gema, Roberto Carlos e torcedor assíduo do Vasco da Gama.
5
Apesar de manter contato com esse interlocutor, as imagens foram realizadas com o morador durante
a pesquisa de TCC.
6
Júnior da Locadora foi interlocutor base da pesquisa de TCC, o início das nossas conversações se deu
no ano de 2013. Ele é filho dos antigos donos dos Cines Eldorado e Orion, respectivamente, localizados
na cidade de Mamanguape-PB e Rio Tinto-PB. Os municípios ficam em uma distância de 7 km. Esse
colaborador é morador de Mamanguape.
O filme etnográfico
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na região do Vale do Mamanguape através das memórias cinematográficas dos(as)
moradores(as) das cidades de Rio Tinto-PB e Mamanguape-PB, a partir das recepções
fílmicas experienciadas pelos(as) moradores(as). Sendo assim, as descrições que estão nos
próximos parágrafos são das imersões em campo após as recomendações da banca de
qualificação
7
, com três principais colaboradores da pesquisa, com os quais mantive contato
na pesquisa de 2016 até 2019
8
.
Iniciemos com um dos primeiros encontros no dia 22 de janeiro de 2019, com
Júnior da Locadora, na sede da Prefeitura Municipal de Mamanguape, antiga Casa do
Imperador, localizada na Rua do Imperador. Tinha combinado com o interlocutor
(momentos antes da data) de entregar um pen drive para copiar músicas que tocavam dentro
e fora dos cinemas. Combinamos nosso encontro pelo Messenger do Facebook e, assim, nos
encontramos. Chegando na prefeitura conversamos sobre uma série de coisas até mostrar-
lhe a lista dos trabalhadores dos cinemas que estava construindo. Ele me tirou muitas
dúvidas, deu novos nomes, confirmou algumas funções e nomes de trabalhadores(as)
9
.
Após a revisão da lista, começou a mexer no celular e me mostrou um vídeo da Praça 13
de Maio, de 1989. Quando vi sua empolgação com o celular e o vídeo que mostrara,
perguntei se poderia ligar a câmera para filmá-lo falando sobre suas páginas no Facebook.
Ao aceitar, liguei a câmera e começamos a conversar sobre suas postagens. Sabendo de
que poderia surgir uma oportunidade para filmagem, levei a câmera na mochila. Caso
surgisse uma eventualidade estaria de prontidão com a câmera em mãos para registro.
Momento oportuno foi quando colocou na página filmes antigos e foi revelando os
filmes que já tinham sido exibidos nos antigos cines. Passei metade da manhã com o
interlocutor, finalizando as filmagens. Desliguei a câmera, agradeci mais uma vez a
colaboração e retornei só no dia 24 de janeiro para pegar o pen drive com as músicas que
havia pedido para gravar.
No dia da gravação utilizei uma PJ 230 Sony Handycam. Câmera na mão, fiz planos
e enquadramentos que filmassem a cabeça do interlocutor, suas mãos e o celular que
manejava com o tato passando as imagens que foram compartilhadas por ele nas suas
páginas. A ideia foi dar ao espectador, através daqueles planos, a interação corpo e
aparelho celular para demonstrar os novos meios de distribuição de imagens (Flusser,
7
Os apontamentos fazem parte do capítulo 5, Filme etnográfico, da dissertação. Fiz alguns recortes do texto
para compor este artigo. Para maiores detalhes, ler o capítulo 5.
8
Atualmente, ainda mantenho contato com os colaboradores.
9
Construí uma lista de trabalhadores(as) que passaram pelo Cine Teatro Orion e o Cine Teatro Eldorado.
A lista se encontra nos anexos da dissertação.
José Muniz Falcão Neto
11
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2008) em rede. Me posicionei por trás do interlocutor e fiz planos longos de suas falas, as
pausas eram devido ao cansaço do braço que segurava a câmera. Fiz três planos-sequências
e quatros planos curtos do espaço onde se localizava o Júnior.
Figura 1 – Captura da tela do computador. Local: Prefeitura de Mamanguape. Plano fechado das mãos e o celular segurado
por Júnior. Fonte: Reprodução do frame do filme.
Concomitantemente, no mês de janeiro de 2019, fui conversando com Dunga,
morador de Rio Tinto-PB, para marcarmos o dia da gravação. Nossas conversas eram via
WhatsApp, o interlocutor trabalhava nos dias de semana numa repartição de uma antiga
fábrica
10
e nos finais de semana trabalhava na Rádio Interação. Percebi que estava difícil
combinarmos o dia das filmagens por causa do seu itinerário. Em um dos momentos, por
mensagens no WhatsApp, quando perguntei se podíamos marcar à noite num dia da
semana, ele me manda a seguinte mensagem: “Vamos deixar quando ficar de férias ok
amigo. Porque fica mais à vontade eu te aviso ok amigo. Abraços do amigo dunga”.
Respondo: “Abraços amigo”. Esse diálogo foi no dia 03 de fevereiro de 2019.
Quando recebi a mensagem pensei em desistir da nossa vídeo-elicitação
11
e apenas
trabalhar com o material coletado durante a graduação e as novas imagens feitas com o
Júnior. O tempo estava curto e precisava correr para finalizar as filmagens e o material
10
No ano de 1917 os irmãos-suecos Lundgreen chegam à região do Vale do Mamanguape para instalarem
a Companhia de Tecidos Rio Tinto-PB. Os irmãos são responsáveis por invadir terras indígenas
Potiguara, contribuir com a urbanização de Rio Tinto, que se emancipa em 1956, construir várias casas
para os operários e o próprio prédio do Cine Teatro Orion (1944) (Donato, 2016; Melo, 2002).
11
Processo o qual o colaborador assiste a um filme, dialoga com as imagens narrando suas impressões e
evoca suas memórias.
O filme etnográfico
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escrito para dar início à edição do filme. Porém, no dia 06 de fevereiro de 2019, quando
fui ao centro de Mamanguape, no Banco do Brasil, coincidentemente encontro com João
Fernandes (Dunga), no Centro da cidade. Paramos em frente a uma farmácia e começamos
a conversar sobre nossas filmagens na sua casa. Diante de algumas negociações para
realizar o trabalho e escolher um dia propício, marcamos para sexta da mesma semana.
Iríamos gravá-lo indo para o trabalho e, no domingo, após o programa na rádio,
gravaríamos a vídeo-elicitação na sua casa com Pai Herói, Saulo Cavalcanti e Augusto
12
.
João Fernandes, na conversa em frente à farmácia, relatou que Roberto Carlos foi
até à Itália conhecer Giulliano Gema (ator de filmes de Bang-Bang western). Relatou de filmes
de Roberto Carlos e Valdick Soriano que passaram no antigo Orion. Tentamos decidir
qual filme seria exibido na vídeo-elicitação, mas ele começou a falar de um amontoado de
filmes: Canhões de Navarone, El Condor, Django, Teixeirinha Coração de luto, Ela tornou-se freira,
O Ébrio, Ringo e sua pistola de ouro e vários outros filmes. Relatou que a maioria do seu acervo
de filmes é Bang-Bang. Concluímos nossa conversa confirmando e marcando nossas
filmagens, daríamos a confirmação a Pai Herói por Whatsapp e no dia da vídeo-elicitação
selecionaríamos o filme que iríamos assistir.
Até aquele momento tinha em mente gravar com os quatro interlocutores (Pai
Herói, Saulo, Dunga e Augusto), mas quando visitei Saulo Cavalcanti na sua casa no dia
07 de fevereiro, ele diz que não poder ir para as gravações por estar ocupado com outras
obrigações. Também não consegui contatar Augusto, sendo assim, para ganhar tempo e
por já ter confirmado a gravação na casa de Dunga com Pai Herói presente na sessão,
fiquei apenas com os dois interlocutores nesse processo.
No primeiro momento, a proposta foi gravar os dois interlocutores indo para seus
locais de trabalho. Escolhi o programa que eles apresentam na Rádio Interação. Ainda
conversei com Dunga em gravar no seu outro local de trabalho, mas ele falou que não
seria legal pois seu patrão era um pouco rígido, então desistimos e ficamos apenas com a
rádio. Os programas acontecem todas as sextas-feiras e domingos. Nas sextas, quem
comandava era Dunga com o programa Jovem Guarda; e, aos domingos, a programação
ficava por conta de Pai Herói e Dunga. Pai Herói direcionava o programa A hora do brega.
Respectivamente, os programas vão ao ar na sexta-feira, das 20h às 23h; e aos domingos,
das 13h às 16h.
12
Já mantinha contato com esses quatro colaboradores desde o ano de 2016.
José Muniz Falcão Neto
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Sendo assim, na noite do dia 8 de fevereiro de 2019 fui até a casa de Dunga, em Rio
Tinto, para filmar ele indo ao trabalho na Rádio Interação. Passo na sua casa, mas ele ainda
estava jantando, vou à casa de Pai Herói e o espero. Após alguns minutos ele chega e
vamos para a rádio no carro de Pai Herói. No entanto, pensando que ele iria de bicicleta
como toda sexta-feira, disse a Dunga que iria acompanhá-lo a pé, enquanto ele fosse de
bicicleta. Mas como iríamos gravar sua caminhada até o trabalho, o interlocutor optou por
ir de carro, pois segundo ele, ficaria mais elegante e bonito. A câmera acionou uma
situação, a escolha de ir ao trabalho de carro foi conduzida pelo aparelho de filmar. A
câmera interferiu na atuação do personagem na ida ao seu trabalho, criando uma cena e
uma representação fílmica. Um detalhe é que Pai Herói não vai a esse programa com
Dunga, mas por saber que iríamos filmar o trajeto e seu cotidiano de trabalho, ele também
quis participar das filmagens desse dia.
Figura 2 – Captura da tela do computador. Pai Herói dirigindo e Dunga do lado direito de quem vê a foto (poltrona do
passageiro). Saída para a Rádio interação. Cena: 13min 3s até 13min 59s. Local: Rio Tinto-PB.
Fonte: Reprodução do frame do filme.
Chego na rádio e faço algumas filmagens de Dunga preparando os equipamentos e
iniciando a apresentação do programa. Entretanto, em detrimento de alguns problemas
técnicos, o programa Jovem Guarda foi ao ar com suas músicas um pouco mais tarde. Usei
a PJ 230 Sony Handycam na mão, gravei o interlocutor iniciando o programa, enquadrei
num plano médio para registrar as gesticulações de suas mãos e sua cabeça. Filmei também
seu corpo num plano mais geral para apresentar suas vestimentas utilizadas neste dia,
como também, um plano geral do seu ambiente de trabalho. Finalizando este dia, volto
para casa e já vou me preparando para as filmagens de domingo, que seria acompanhá-los
O filme etnográfico
Dossiê
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até a rádio novamente. Após o término do programa nos deslocaríamos à casa de Dunga
para a vídeo-elicitação.
No dia 10 de fevereiro 2019, num domingo à tarde, chego próximo à casa de Pai
Herói, aproximadamente umas 12h 40min. Encontro-o em seu carro próximo à rua de
sua residência e vamos até a casa de Dunga para irmos à Rádio. O programa do dia seria
A hora do Brega, coordenado por Pai Herói e Dunga. Filmo de dentro do carro a ida de
suas casas até à rádio. Chegando lá, faço algumas filmagens das apresentações de Pai Herói
e suas interlocuções na Rádio Interação. Momento curioso é que Pai Herói queria que eu
falasse no microfone para me apresentar. Achei um pouco estranho e fiquei tímido e não
me apresentei. Assim, ele pediu para escrever no papel a minha apresentação e Dunga
anunciar minha presença no estúdio. E eles anunciam:
Dunga: É o nosso amigo Muniz. Faz mestrado em Antropologia, né?! Grande
Muniz. Na Universidade Federal da Paraíba, né?! E pesquisador dos antigos
filmes, né?! Dos cinemas, né?! Do Vale do Mamanguape. É nosso amigo Muniz.
Pai Herói: E lembrando Dunga. Já terminou?
Dunga: Já!
Pai Herói: E lembrando Dunga que quando a gente sair daqui da rádio, vamos
pra sua residência. Vamos assistir uns filmes, né?!.
Dunga: Uns filmes, né?!
Pai Herói: Junto com o nosso amigo Muniz.
Dunga: Teixeirinha, Joselito.
Pai Herói: Pronto. Junto com nosso amigo Muniz que ele tá por aqui fazendo a
filmagem hoje, de nosso programa A hora do brega. Muniz é o cara... De muito
tempo vem aí, acompanhando a gente, né?!
(Dunga; Herói, entrevista 10/02/2019, Rio Tinto-PB)
Figura 3 – Captura da tela do computador. Plano médio de Pai Herói na Rádio Interação, Rio Tinto-PB.
Fonte: Reprodução do frame do filme.
José Muniz Falcão Neto
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Esse momento foi bastante importante pois me colocou em cena para o público
ouvinte e expôs a relação de confiança, de amizade e de trabalho construída desde o ano
de 2016, instante que iniciamos nossas conversas e nos conhecemos na época das
filmagens no evento Cine Saudade
13
, em frente ao Cine Orion, na cidade de Rio Tinto-PB.
Usei a mesma Handycam PJ 230 Sony na mão para produzir as imagens, sempre deixava ela
na mão para facilitar as gravações, pois percebendo um tempo forte em cena, poderia ligar
imediatamente sem perder aquela situação que se apresentava. Nos intervalos das músicas,
Pai Herói e Dunga sempre falavam da minha presença na rádio e lembravam aos ouvintes
do nosso compromisso na sua casa, de que iríamos assistir uns filmes e filmar.
Contudo, momentos antes de acabar o programa, Pai Herói me leva numa casa
vizinha para conhecer alguns(mas) moradores(as) que estavam ouvindo o programa.
Adentrando na casa deles(as), sento-me na mesa e eles(as) já me oferecem uma dose de
suas bebidas e churrasco. Me apresento e falo meu nome, depois Pai Herói diz: “fale do
seu trabalho, se apresente”.
Me apresento aos(às) moradores(as), relato sobre a minha pesquisa com os antigos
cinemas da região e nas buscas de espectorialidades em relação aos filmes antigos. Quando
termino de falar sobre minha pesquisa, as moradoras imediatamente começam a falar de
Teixeirinha Coração de Luto e tecem vários comentários sobre o filme e suas experiências no
Cine Orion.
Pai Herói diz que iríamos até a casa de Dunga para filmá-los assistindo filmes, elas
se empolgam e pedem uma sessão em casa com o filme Teixeirinha Coração de luto. Falaram
que iriam comprar comidas e bebidas e que iríamos assistir o filme. Mas só não podia
filmar elas chorando, pois “o filme é muito bonito e emociona bastante”. E quando
falaram do filme na mesa da cozinha, local onde estávamos desde a hora que entrei na
casa, Pai Herói e uma das moradoras presentes começa a cantar a música do filme. Pai
Herói faz gestos de estar arrepiado e a moradora fala que a música é muito bonita.
Fico na casa mais um pouco e Pai Herói volta a rádio para terminar o programa.
Terminado o programa, me despeço das moradoras e sigo com Pai Herói para a casa de
Dunga. Chego na casa e já começamos a ajeitar a sala, começo a observar o ambiente para
melhor posicionar as câmeras. Nesse momento, estou com duas câmeras, uma Canon T-6i
e a Handycam Sony PJ 230. A Canon posiciono próximo a televisão, de frente ao sofá, onde
13
O Cine saudade foi um evento realizado por Júnior da Locadora, filho dos antigos donos dos cinemas
na região, onde exibiu durante uma semana filmes que foram assistidos anteriormente na sala de exibição
Orion. O evento ocorreu do dia 30 de abril a 5 de maio de 2016.
O filme etnográfico
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ficaram os dois personagens. Deixo-a no tripé já posicionada e fico com a Sony na mão,
próximo à Dunga, que pegou sua sacola cheias de filmes em DVD e começa a colocar na
janela da sala, me mostrando seu acervo de filmes.
Vou filmando-o enquanto ele fala sobre os filmes e os organizando na janela.
Estabeleço a câmera enquadrando (de baixo para cima) sua mão exibindo os filmes, faço
três planos sequências e um plano mais curto mostrando a capa do filme escolhido.
Articulo alguns movimentos de câmera para filmá-lo em plano médio e não perder o
enquadramento quando o interlocutor se abaixa para pegar os filmes na sacola.
Apesar de ter me pedido para escolher o filme, deixei que o escolhesse. Após
mostrar os filmes, ele escolhe A vida por um Dólar, um filme de 1998 spaghetti faroeste. O
filme é uma homenagem aos filmes Westerns e segue a mesma narrativa dos filmes dos
anos 60 de faroeste. Sem saber na hora da filmagem que era mais recente do que os que
buscava, os quais foram exibidos nos antigos cinemas, assistimos o filme e ele menciona
sempre o artista. Dunga e Pai Herói riram muitas vezes das cenas de violência do filme e
lembraram constantemente dos filmes mais antigos de faroeste que passaram no antigo
Orion. A narrativa do filme escolhido pelo interlocutor nada muda dos antigos, a não ser
uma pitada maior de efeitos especiais.
Enquanto Dunga e Pai Herói assistem o filme, a câmera no tripé filma suas reações,
com a Sony Handycam na mão. Me posicionei sentado no sofá, ao lado de onde os
interlocutores assistiam o filme. Fiquei bastante livre para manusear e fazer movimentos
de câmera filmando a TV e os corpos dos interlocutores. Desse modo, filmei algumas
cenas do filme na TV e fiz alguns planos médios e fechados de suas gesticulações, sem
que a câmera chamasse suas atenções, interferindo nas suas espectorialidades com o filme
em exibição.
José Muniz Falcão Neto
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Figura 4 – Captura da tela do computador. No canto esquerdo de quem vê a imagem, observem a câmera no tripé, ao lado
direito de quem vê a imagem, sofá com cobertor vermelho onde me posicionei para filmar livremente com a câmera na mão.
Local: Casa de Dunga, Rio Tinto-PB. Fonte: Reprodução do frame do filme.
Figura 5 – Captura da tela do computador. Câmera Canon T6i no tripé. Reações de Dunga (a direita de quem vê a imagem)
e Pai Herói (a esquerda de quem vê a imagem). Local: Casa de Dunga, Rio Tinto-PB. Fonte: Reprodução do frame do filme.
Terminado A vida por um dólar, Dunga pede para assistir mais um e escolhe Minha
lei é matar ou morrer, com o ator Giuliano Gema, produzido em 1967. Com as baterias já no
final e um cartão de memória cheio, utilizo a última bateria e o último cartão na Sony PJ
230 Handycam no tripé durante os 30 minutos iniciais do filme. Depois, tiro do tripé e a
utilizo na mão, sentado no sofá ao lado da poltrona que Dunga estava sentado. Neste
segundo filme, Pai Herói foi para casa e só ficamos eu, Dunga e sua esposa. No primeiro
filme, a esposa de Dunga também estava. Algo interessante que ocorreu nessas filmagens,
foi que até a esposa do Dunga participou e no final do primeiro filme, a esposa de Pai
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Herói também se sentou na sala e começou a participar do diálogo estabelecido com as
duas câmeras.
No momento do primeiro filme a esposa de Dunga nos trouxe bolo, refrigerante,
caranguejo no coco e algumas cervejas. O ambiente estava bem espontâneo, apesar de
estarem na presença de duas câmeras filmadoras. No segundo filme, com a handycam,
enquadrei Dunga e sua esposa que participou mais ativamente quando Pai Herói foi
embora com sua esposa. Enquanto Dunga estava no sofá, sua esposa estava ao lado do
sofá numa cadeira de balanço.
Eles vão tecendo comentários sobre o filme, comparam com o filme anterior,
analisam as desenvolturas dos personagens principais. Dunga relata que Roberto Carlos
foi conhecer Giuliano na Itália e um detalhe interessante é que na parede da sala há um
canto chamado O cantinho do rei Roberto Carlos (ver figura 5). Dunga é fã de Roberto Carlos
e Roberto era fã de Giuliano. Nesse sentido, portanto, Dunga é fã de Roberto e admirador
dos filmes de faroeste e das performances de Giuliano. Nas vestimentas de Dunga,
percebe-se sua relação com a Jovem Guarda e as formas de se vestir daquela época. O
interlocutor expressa em sua mise en scene uma performatização de Roberto Carlos com
características locais. Suas referências fílmicas e musicais se entrelaçam com sua
tradicionalidade construída na cidade de Rio Tinto-PB
14
.
Com estas cenas finalizo a produção imagética e parto para a edição. O que foi
coletado mostrou-se suficiente para a pesquisa que desenvolvemos. Esse material mais o
acervo da pesquisa que foi construído durante a graduação foi composto juntamente com
essas novas imagens para integrar a edição fílmica do filme Cinemas do interior (2019)
15
.
Bem, o cinema abre as portas para o registro do “outro”, suas memórias, vivências,
costumes, singularidades e diferenças. É o cinema etnográfico como capacidade de uma
nova linguagem de “apresentar a realidade e não somente transcrever, traduzir ou
reproduzir a realidade do real” (Piault, 1999, p. 27). A tarefa da Antropologia Visual, neste
sentido, especificamente em nosso caso, mostra que o filme etnográfico estaria na
dimensão de apresentar os diversos olhares, a troca e o diálogo partilhado entre “as
culturas e seus protagonistas”. A linguagem audiovisual oferece outros processos de saber
14
Ainda nesse dia, consegui filmar algumas impressões do colaborador com o filme Zorro e Tonto (1956),
como também algumas imagens exibidas na tela da TV.
15
Recomenda-se aos leitores assistir o filme para melhor leitura do artigo. Ao todo, foram contabilizados,
ao longo do processo de pesquisa com os cinemas na região do Vale do Mamanguape, 103,2 GB de
registro audiovisual.
José Muniz Falcão Neto
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Equatorial, Natal, v. 11, n. 21, jul./dez. 2024
e conhecer, o de conhecer “com” (Ingold, 2015). “A passagem à imagem”, a construção
do processo fílmico passa pelas escolhas dos ângulos, das imagens a serem colocadas na
edição, das distâncias, das aproximações, da dialogia construída entre observador e
observado, que é onde “se constrói a passagem produtiva” (Piault, 1999, p. 28).
A linguagem audiovisual na Antropologia permite a produção colaborativa do
trabalho de pesquisa, a partir da visualidade do filme pelos interlocutores mais as suas
indagações, reações, gestos e outras performances frente às imagens reproduzidas em tela.
Permite-se uma maior possibilidade de entendimento do filme etnográfico em si e a
pesquisa social, pois os mesmos nos dão informações e afirmam, ou não, a legitimidade
daquela edição em relação às suas experiências de vidas representadas.
Na passagem da realidade para a imagem há uma ordenação particular; o olhar
que observa não é apenas uma máquina que registra, ele também escolhe e
interpreta. Para legitimar este registro do real e torná-lo não apenas
compreensível, mas aceitável, isto é, sujeito a todo tipo de questionamento,
convém explicitar as modalidades, entender as condições, identificar as
orientações. Assim se constitui uma verdadeira “situação”, ou seja, o espaço de
interação define as condições particulares no interior e se apresentam parceiros
que não são apenas sujeitos e/ou objetos ou observadores e os observados. O
jogo de cada um não cessa simplesmente na disposição particular que
privilegiaria o olhar “armado”, como diria Vertov, de um antropólogo-cineasta
e que seria, de uma vez por todas, dado a ver. A passagem à imagem supõe um
acesso a esta imagem como composição, senão como resultante de uma
negociação, de uma transação entre os agentes e sua fabricação (Piault, 1999, p.
29).
Neste ponto, a técnica da montagem (Bruno, 2019; Nakaóka, 2019) é muito
importante dentro do processo fílmico, pois a edição é também orientada pelos olhares
dos nossos interlocutores. Até porque eles similarmente são editores, pois suas posições e
visões, suas narrativas selecionadas pela visão antropológica, só serão substancialmente
válidas através do questionamento de seus olhares sobre as imagens que reproduzimos
deles, na qual essa validação pode-se dar no processo de filmagem, na negociação de
ângulos e enquadramentos, passagens de câmeras às mãos dos observados, no diálogo
construído perante a filmagem e nos processos de vídeo-elicitação.
É a montagem que dará ao filme a sua estrutura e a sua significação, que fará
emergir os temas do discurso fílmico. A montagem acontece desde a primeira
observação até o filme definitivo: no momento da observação, depois da
observação, durante a rodagem depois da rodagem; organização grosso modo
O filme etnográfico
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daquilo que foi filmado em função dos índices de base e das tomadas de vista
para a pesquisa das sequências; montagem definitiva, reorganização de todos os
materiais na melhor sucessão salientando a ideia-chave do filme (Ribeiro, 2007,
p. 78).
A produção do conhecimento proposto pelo audiovisual possibilita este tipo de
abordagem que é a junção das percepções entre as diferentes pessoas, construindo o
trabalho fílmico na intenção de almejar uma expressão visual e verbal (áudio) para expor
uma “realidade suficiente” (Piault, 1999), isto é, uma construção do “real” que não seja
absoluta e estática, mas processual (Barth, 2000) e que proponha novos questionamentos
e abordagens com os saberes envolvidos, diminuindo distâncias discursivas e
interpretativas (Fabian, 2013; Thomas, 1991) do mundo social estudado.
Trabalho com a práxis de atores e interlocutores profissionais alinhados ao projeto
proposto. Cada indivíduo se comporta diante da câmera de maneira única, refletindo sua
própria perspectiva. É importante reconhecer que essas mise en scène foram influenciadas
tanto pelo pesquisador quanto pela própria câmera. Assim, as pessoas filmadas são reais,
não figurativas, e seus corpos estão em constante movimento (Barth, 2000 e 2005). Nesse
sentido, o filme etnográfico está preparado para lidar com as imprevisibilidades do campo
de pesquisa, refletindo uma condição de inversão do controle sobre o “real”.
O trabalho com as memórias coletivas exige que, no filme etnográfico, revelemos
as relações que os antigos moradores estabeleceram com o passado dos cinemas e seus
contextos sociais. É a interação com o cotidiano que demanda essa revelação.
Si se tienen cuenta estas circunstancias, un análisis de cómo se construye en las
interpretaciones del pasado los lenguajes audiovisuales, especialmente el cine,
resulta fundamental para comprender cómo diversos componentes de nuestras
sociedades se ven a si mismos y el tipo de relación que establecen con el pasado
(Aprea, 2005, p. 39).
Desta forma, com o princípio da antropologia compartilhada de Rouch (2005) e
seguindo as discussões teóricas e etnográficas pautadas pela Antropologia Visual, a edição
se direciona no sentido de dar aos espectadores do filme etnográfico as diferentes
interpretações e recepções dos moradores aos antigos filmes exibidos no Cine Orion e
Eldorado. Através de suas memórias, abriram espaços e imaginários que se entrelaçam
com o cotidiano, mas que agora, estão em imagem e áudio e nos concebem um
entendimento sobre os cinemas do interior e suas relações com a sociedade.
José Muniz Falcão Neto
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Simultaneamente, transmitir através da montagem, o caráter dialógico de produção das
imagens, mostrando os caminhos e as diferentes maneiras compartilhadas no registro do
material, evocando as memórias coletivas relacionadas a estes cinemas.
A narrativa fílmica foi construída para elucidar as relações estabelecidas durante a
pesquisa sobre os cinemas. Com base no material coletado e nas contribuições dos
interlocutores, a edição ultrapassou os 15 minutos estabelecidos para a defesa da
dissertação, totalizando 39 minutos. Essa extensão foi necessária para apresentar a
totalidade da relação desenvolvida ao longo de anos de pesquisa com os interlocutores.
Além disso, a produção reflete a discussão abordada no texto da dissertação. O
documentário antropológico é o resultado de um processo de interação (Freire, 2012). O
filme, além de evocar as memórias cinematográficas, explora a interação entre os
interlocutores, a câmera e o pesquisador, evidenciando as relações dialógicas que
possibilitaram tanto a produção fílmica quanto a elaboração da escrita etnográfica.
Figura 6 – Captura da tela do computador. Leitura da imagem da esquerda à direita de quem vê a imagem: Dunga, Pai Herói
e Saulo Cavalcanti, em frente ao antigo prédio do Cine Orion, no dia da exibição do filme. Django no evento Cine Saudade,
ano 2016. Esse foi o dia e momento que nos conhecemos. Este encontro/diálogo pode ser apreciado entre os 6min 46s e
9min 46s do filme. Fonte: Reprodução do frame do filme.
A interação entre a câmera, o pesquisador e os(as) colaboradores(as) me levaram a
refletir profundamente sobre as teorias e métodos na pesquisa. A análise e reanálise do
material foram essenciais para a estruturação da dissertação. A câmera desempenhou um
papel crucial, ativando e construindo relações recíprocas que aproximaram o campo de
pesquisa e os colaboradores, facilitando a cooperação com os objetivos antropológicos
propostos. O filme, assim, torna-se uma ferramenta para expor a alteridade construída na
O filme etnográfico
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pesquisa antropológica e tornar públicos os diálogos estabelecidos ao longo dos anos com
antigos espectadores(as) e trabalhadores(as) do cinema.
Assim, reitero a afirmação inicial deste artigo de que a câmera e o filme são
dispositivos potentes para refletir as questões da alteridade, distanciamento e a pesquisa
etnográfica. As leituras de Fabian, Barth, Ingold, Strathern e Thomas fizeram-me retornar
ao trabalho e evocar essas questões através do filme produzido na dissertação, em que
expressamente nas filmagens, no processo de montagem, nas imagens, nas narrativas e
diálogos, torna-se propício realizarmos as considerações e reflexões apontadas pelos(as)
autores(as).
Portanto, afirmo que a Antropologia Visual não seja inocente ao pensar em sua
potência de reflexão teórica-metodológica. Judith e David MacDougall (Barbosa, Cunha,
2006) deixaram bem explicado através do seu conceito de intertextualidade que o filme
não se limita apenas ao processo do registro e que as imagens estão para além do seu
conteúdo. “O modo como trabalho com a expressão do ‘outro’ enquanto tema constitui
uma forma de exprimir diferentes pontos de vista, o que fundamenta as atividades
intelectuais específicas aos filmes e aos escritos antropológicos” (Cezar, 2007, p. 182). As
imagens são dispositivos que nos concebem imaginação e imaginários, entrelaçam pontos
de vistas, assim, portanto, colaboram com reformulações antropológicas e nossos campos
de pesquisa.
Advogo hoje a favor de uma “elaboração múltipla” ao invés de “conjunta”,
resultando numa forma de cinema intertextual. Este passo pode fazer com que
a diferença cultural e geopolítica que separa o realizador do “sujeito”, seja
reconhecida mais claramente, a fim de que seja respeitada a integridade de cada
voz. Podemos dizer que qualquer filme etnográfico inscreve o texto do
realizador no texto de uma outra sociedade: um “cinema intertextual” poderia
adotar formas mais complexas como a inclusão de vozes múltiplas, o recurso de
interpretações diferentes, a montagem de materiais provenientes de realizadores
diversos, a sobreposição de antigos textos sobre novos, etc. Tais aproximações
colocariam o filme etnográfico em melhor posição para confrontar visões
opostas de uma mesma realidade e para assegurar a reciprocidade das
experiências (MacDougall, 1994, p. 74 apud Ferraz, 2014, p. 45).
Essa “elaboração múltipla” contribui significativamente para a escrita etnográfica,
não apenas incorporando as diferentes vozes no corpo do texto, mas também oferecendo
reflexões sobre o campo de pesquisa por meio da análise das performances, narrativas,
gestos, olhares e questionamentos evocados pelos participantes durante o processo de
José Muniz Falcão Neto
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pesquisa antropológica. Nesse sentido, o filme etnográfico, como parte integrante da
escrita, concretiza as perspectivas teóricas e metodológicas da pesquisa. Muitas vezes,
precisei revisar o filme ou determinadas cenas para entender como os participantes
percebem o fenômeno do cinema na região do Vale do Mamanguape-PB. Foi a partir
dessas análises de imagens que confrontei alguns posicionamentos teóricos da
antropologia e do cinema, que estavam geralmente vinculados à pesquisas em grandes
cidades.
Desse modo, trabalhar com a etnografia das memórias cinematográficas através do
audiovisual
16
, permitiu compreender que o universo social interiorano se (re)produzia e
relacionava com os filmes exibidos de forma distinta dos(as) espectadores(as) das grandes
cidades. Desse modo, alguns pressupostos teóricos do cinema elaborados nas grandes
cidades brasileiras e europeias não cabiam para pensar as circunstâncias sociais e culturais
encontradas numa região predominantemente habitada por agricultores, indígenas
Potiguara, operários e pequenos comerciantes
17
. Assim, pude realizar reflexões sobre o
campo de pesquisa, a teoria e a metodologia, consequentemente, da escrita e da estrutura
da própria dissertação, quando nas (re)análises do material etnográfico, pude retomar as
minhas escolhas teóricas e metodológicas.
Conclusão
Antes de finalizar, é digno de se notar (acredito que boa parte dos(as)
antropólogos(as)) que a introdução das imagens na pesquisa antropológica se deu “numa
relação difícil” (Novaes, 2009), com alguns olhares retrucados por não as aceitarem como
ferramenta científica. A aceitação do filme etnográfico dentro do próprio campo
antropológico, em alguns casos e contextos, é ainda resistente. Um bom exemplo que
posso oferecer foi a afirmação do professor da disciplina de Seminário de Doutorado ao
dizer que “antropólogos visuais seriam inocentes ao pensar que as imagens são suficientes
para pensarmos reelaborações teóricas e metodológicas”. Diante dessa afirmação, ao que
me parece, se tem por parte de alguns(mas) antropólogos(as) um desconhecimento da
história da Antropologia Visual, das suas (re)elaborações teóricas e metodológicas nos
16
Na pesquisa também trabalhei com análises fílmicas de filmes exibidos na época das atividades dos
cinemas estudados.
17
A pesquisa se concentrou em dois cinemas localizados na cidade de Rio Tinto e Mamanguape. As
investigações foram dos anos de 1964 ao final da década de 80, época de atividades das salas de exibição
estudadas.
O filme etnográfico
Dossiê
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distintos campos de pesquisa realizados(as) por seus diferentes pesquisadores(as), seja em
território nacional ou não. Vale destacar, que a partir dos anos 80, David e Judith
MacDougall já falavam do cinema intertextual (Barbosa; Cunha, 2006). Um tipo de cinema
antropológico que permite a cada edição fílmica e visualização refletir “questões
epistemológicas” (Barbosa, Cunha, 2006, p. 24) trabalhadas em diferentes campos de
pesquisa em seus artigos científicos.
A partir desse conceito, a relação construída entre realização cinematográfica e
pesquisa ou entre pesquisador/realizador e sujeitos do documentário torna-se o
foco do problema. O cinema intertextual cria no espaço de realização do filme
um ambiente também privilegiado para a reflexão antropológica, pois é pensado
como o lugar do encontro, como o espaço em que “observadores” e
“observados” não estão essencialmente separados, e em que a observação
recíproca e a troca estabelecida foram o centro sobre o qual recai o foco —
intersubjetividades criando intertextualidades (Barbosa, Cunha, 2006, p. 24).
É neste sentido, que o filme etnográfico se torna potente e essencial dentro das
nossas pesquisas e nas construções teóricas e metodológicas para pensar a antropologia
em suas diferentes frentes de trabalho. Esse foi o objetivo maior deste artigo: refletir a
potencialidade epistêmica do filme etnográfico na antropologia e no processo de pesquisa.
Como dito anteriormente, não é de minha intenção colocar em níveis de hierarquia do
saber qual perspectiva analítica se torna perspicaz para enfrentar os diferentes desafios na
pesquisa de campo e à escrita etnográfica. Mas enfatizar que a Antropologia Visual mais
os seus métodos e teorias com e da imagem, tornam-se imprescindíveis para ponderar
nossos campos de pesquisa. Ainda mais quando vivemos cercados de imagens que são
produzidas e compartilhadas por diferentes aparelhos, pois, estamos imersos naquilo que
Vilém Flusser (2008) apontou: a sociedade da telemática.
Referências
APREA, Gustavo. Documental, testimonios y memorias: miradas sobre el passado militante.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Manantial, 2015.
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Recebido em 30 de novembro de 2023.
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