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Revista Estudos Aplicados em Educação | v. 9 | e20249531 | jan.-dec. | 2024. https//doi.org/10.13037/reae.vol9.e20249531
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Representações de meninas negras brasileiras:
literaturas infantis como lugares seguros
Rosa Silvia Lopes Chaves1
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3096-026X
Daniela Finco2
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5731-1091
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a questão da construção identitária das meninas negras
nas literaturas infantis negras contemporâneas no Brasil. Os procedimentos metodológicos
envolvem entrevistas com quatro escritoras negras de literatura infantil: Sonia Rosa, Lucimar
Dias, Kiusam de Oliveira e Odara Delé. Buscou-se identificar os processos de criação e
construção identitária de suas personagens. Pensar na literatura infantil protagonizada por
personagens de meninas negras revela-se como possibilidade de refletir sobre os aspectos
materiais e simbólicos, sob os quais os processos identitários étnico-raciais e de gênero vão
sendo constituídos na infância. Tem como referencial teórico os estudos negros, que
interseccionalizam as questões de gênero e étnico-raciais (hooks, 2017; Collins, 2019; 2019;
Gomes, 2019a, 2019b). Os resultados revelam como as literaturas infantis podem dar ênfase
aos processos de resistência e contra-hegemônicos de construção das identidades,
evidenciando processos de empoderamento, desde as primeiras relações na educação da
pequena infância.
Palavras-chave: meninas negras; literatura infantil; feminismo negro.
Abstract
This article aims to analyze the issue of the identity construction of black girls in contemporary
black children’s literature in Brazil. The methodological procedures involve interviews carried
out with four black children’s literature writers: Sonia Rosa, Lucimar Dias, Kiusam de Oliveira
and Odara Delé, seeking to identify their processes of creation and identity construction of
their characters. Thinking about children’s literature starring black girl characters reveals itself
as a possibility to reflect on the material and symbolic aspects, under which ethnic-racial and
gender identity processes are being constituted in childhood. Its theoretical reference is black
feminist studies, intersectional studies on gender and ethnic-racial relations (hooks, 2017;
Collins, 2019; 2019; Gomes, 2019a, 2019b). The results reveal how children’s literature can
emphasize resistance and counter-hegemonic processes of identity construction, highlighting
processes of empowerment, from the first relationships in early childhood education.
Keywords: black girls; children's literature; black feminism.
Citação: CHAVES, Rosa Silvia Lopes; FINCO, Daniela. Representações de meninas negras brasileiras: literaturas
infantis como lugares seguros. Revista Estudos Aplicados em Educação, v. 9, e20249531, 2024. DOI
https//doi.org/10.13037/reae.vol9.e20249531
1 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Guarulhos-SP. Email: lopes.chaves@unifesp.br.
2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - USP. Professora da Universidade Federal
de São Paulo - UNIFESP Guarulhos-SP. Email: dfinco@unifesp.br.
Recebido em: 03/04/2024| Aceito em: 03/10/2024
Rosa Silvia Lopes Chaves, Daniela Finco
Revista Estudos Aplicados em Educação | v. 9 | e20249531 | jan.-dec. | 2023. https//doi.org/10.13037/reae.vol9.e20249531
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Introdução
Este artigo tem como objetivo refletir sobre o processo de valorização e fortalecimento
das identidades das meninas negras, a partir de literaturas negras infantis contemporâneas. Parte
dos resultados de uma pesquisa de doutorado (Chaves, 2023) que analisou as representações
acerca das personagens meninas negras, identificando como elas podem favorecer a visibilidade
e a afirmação de suas identidades de gênero e raça. Para isso, busca conhecer a intencionalidade
de quatro escritoras negras – Sonia Rosa, Lucimar Dias, Kiusam de Oliveira e Odara Delé – em
relação aos processos de criação das personagens de meninas negras em suas obras, e das
características da construção de suas identidades.
Cabe-nos pensar como tais literaturas podem servir de suporte para as práticas
educacionais, sociais e culturais com as crianças pequenas, tendo como eixos centrais as
relações étnico-raciais e de gênero. A literatura infantil desempenha uma função muito
importante do verdadeiro patrimônio simbólico das metáforas da infância, das representações
de infância e da relação entre mundo adulto e mundo infantil. Em particular, os livros infantis
são ferramentas muito poderosas para a transmissão de modelos tradicionais ou diversificados
(Finco; Seveso, 2018). Desse modo, destaca-se a importância de problematizar as
representações de identidade e os comportamentos ensinados através da leitura.
Os impactos da Lei 10639/2003, que já completou 20 anos de existência, e da Lei
11645/2008, tensionam a demanda por políticas públicas em prol da educação para as relações
étnico-raciais no Brasil. Assim, pudemos identificar como a legislação é impulsionadora de
mudanças na direção da garantia de direitos e de práticas efetivas de ressignificação dos
conhecimentos, de pluralização das identidades e de formas de ver o mundo além das lentes
colonialistas eurocêntricas. A afirmação e a valorização identitária das crianças negras também
está preconizada nos princípios do Parecer do Conselho Nacional de Educação n.º 3/2004
(Brasil, 2004), fornecendo subsídios para refletir sobre possibilidades educativas
emancipatórias. As mudanças legislativas propiciam, dessa forma, novas perspectivas para as
literaturas infantis, pois estimularam a ampliação e a composição de novos acervos literários
nos ambientes escolares.
Numa sociedade adultocêntrica, olhar para a construção das identidades das meninas
negras e valorizar suas formas de ser, ajuda a desafiar as tramas de poder que revestem as
relações sociais e invisibilizam essas crianças pequenas. Em função disso, interessa-nos pensar
a literatura para as infâncias de meninas negras, a partir do diálogo com epistemologias
historicamente silenciadas, reconfigurando as formas de saber e de ser (Gomes, 2019 a).
A partir dessa proposta, o artigo está organizado em três partes. A primeira apresenta as
contribuições do feminismo negro para a construção do percurso teórico-metodológica da
pesquisa, que nos proporcionou muitas possibilidades de reflexão e de construção de um olhar
atento às intrincadas e complexas relações de poder que se manifestam em diferentes dimensões
sociais. A segunda parte estabelece um diálogo com pesquisas acerca da literatura infantil,
produzida e disponibilizada para as crianças pequenas, buscando compreender – sob a
perspectiva étnico-racial e de gênero – as influências da cultura material para a pequena
infância, a partir dos conceitos de representatividade e imagens de controle (Collins, 2019 a),
problematizando a sub-representação e objetificação. Por fim, a terceira parte apresenta os
diálogos com as escritoras negras e suas personagens; nela, realizam-se análises dos dados
produzidos ao longo das entrevistas realizadas com essas mulheres negras que produzem
literaturas infantis protagonizadas por suas personagens, as meninas negras Lindara, Lukenya,
Luanda e Tayó.
Representações de meninas negras brasileiras:
literaturas infantis como lugares seguros
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Neste artigo, as memórias e experiências compartilhadas por essas escritoras mostram
como vivenciaram seus processos de pertencimento étnico-racial; também revelam como elas
enxergam o lugar das infâncias de meninas negras nos dias de hoje. Elas socializam seus
percursos formativos, revelando como tais experiências permearam a criação e representação
de suas personagens, assim como suas intencionalidades nas narrativas que dão visibilidade às
identidades das meninas negras e favorecem sua afirmação. As reflexões problematizam o
desafio dos processos de construção identitária, compartilhando os diferentes significados e
estratégias que permitem fortalecer o processo de valorização e fortalecimento das identidades
das meninas negras e fornecem subsídios para pensar na educação para a garantia dos direitos
das crianças negras.
Contribuições do feminismo negro para percurso teórico-metodológico
Os diálogos com os estudos feministas negros – como os de bell hooks (2017, 2019),
Patricia Hill Collins (2019), Nilma Lino Gomes (2019a, 2019b) – aprofundaram a ampliação e
o refinamento do olhar para a construção do caminho da pesquisa. Com eles, foi possível
desvelar, nas sutilezas, as hierarquias presentes nas relações das mulheres negras, buscando o
desafio de identificar, nesta produção acadêmica, a presença e a visibilidade das infâncias das
meninas negras. Tais diálogos podem ajudar a romper silenciamentos também na luta por
direitos das crianças negras subalternizadas, que são corpos insurgentes no contexto histórico
brasileiro, marcado por assimetrias etárias, étnico-raciais e de gênero. A afirmação das
identidades, estéticas e corporeidades negras compõe também o cenário político da pesquisa
como forma de resistência, destacando uma epistemologia negra que articula teoria,
metodologia e prática política com vistas à transformação social.
Quando colocamos em xeque os imaginários oriundos da colonialidade do poder,
apresenta-se o desafio de pensar nas formas de representação de meninas negras em uma
sociedade adultocêntrica que invisibiliza as crianças e não lhes garante formas de participação
e decisão. Essas crianças, portanto, têm suas identidades diluídas e apagadas desde os primeiros
anos de vida. Ao problematizarmos as formas de exclusão e violência, confirmamos o
compromisso político com a justiça social para a garantia de direitos (Chaves; Gibim; Souza,
2021).
Problematizar uma sociedade racializada exige também discutir os processos arbitrários
de hierarquização que evidenciam os privilégios da branquitude neste arranjo social. Ocorre,
desse modo, um pacto narcísico de silêncio e naturalização com relação às violências e
desigualdades raciais reiteradamente sofridas pelas crianças negras na sociedade brasileira.
Segundo Bento (2012), a branquitude expressa uma repetição de lugares de privilégio
assegurados para as pessoas brancas, mantidos e transmitidos historicamente para as novas
gerações. Em nossa sociedade brasileira adultocêntrica (Rosemberg, 1976) e baseada nos
valores da branquitude, olhar para as formas de representação das meninas negras ajuda a
desvendar as tramas de poder que revestem as relações sociais e invisibilizam essas crianças
pequenas.
Desse modo, ao buscar as intencionalidades das escritoras negras, destacamos a questão
da representação e da constituição da autoimagem como parte do direito ao pertencimento racial
das meninas negras e como um importante meio de construção de suas identidades étnico-
raciais e de gênero, evidenciando os processos de valorização identitária e favorecendo a
construção de pedagogias feministas antirracistas para a educação da primeira infância
brasileira.
O diálogo com a socióloga Patrícia Hill Collins (2019), a partir das epistemologias
Rosa Silvia Lopes Chaves, Daniela Finco
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feministas negras, nos subsidia com o conceito de “imagens de controle”. Ele propõe para essa
pesquisa o desafio de olhar a cultura material e as representações das infâncias de meninas
negras na literatura infantil. Esse conceito ajudou a evidenciar as facetas simbólicas e materiais
do racismo e sexismo, as quais consideram que as meninas e mulheres negras são objetificadas
e subalternizadas.
Desafiar as “imagens de controle” é uma das prerrogativas da epistemologia feminista
negra, pois são elas que justificam ideologicamente as formas de opressão sobre grupos sociais.
Nesse sentido, fazer uso da epistemologia feminista negra para problematizar as infâncias pode
nos propiciar olhares que desestabilizem a ordem social hegemônica. Afinal, nomear e controlar
as narrativas sobre mulheres e meninas negras é uma das formas de exercício de poder. Nas
formas de representações estereotipadas, configura-se uma das artimanhas que contribuem para
a perpetuação de diversas formas de opressão, à medida que mascaram e naturalizam o racismo,
o sexismo, a feminização da pobreza, dentre outras formas de injustiças sociais e
epistemológicas.
A objetificação de sujeitos sociais assenta-se numa lógica segundo a qual as diferenças
são apresentadas hierarquicamente e categorizadas em oposição, em contradição e com o
apagamento deste/a denominado/a como “outro”, ou seja, aquelas/es que não pertencem ao
grupo hegemônico. O controle e a manipulação do “outro” garantem a manutenção e a
naturalização dos privilégios do grupo que busca afirmar sua hegemonia. Variadas formas de
objetificação desse “outro” sustentam-se dentro da lógica da colonialidade do poder que, ao
persistir, gera a invisibilidade e a desumanização (Collins, 2019). Trata-se, pois, de romper
estereótipos, exercendo resistência à supremacia branca, criando fissuras na linguagem e
forjando espaços para a produção cultural, de modo que a valorização da diferença seja decisiva
para criar e fortalecer perspectivas contra-hegemônicas (hooks, 2017).
Pensar nas relações étnico-raciais, de gênero e de infância a partir de outros paradigmas,
pluralizando as narrativas desde a primeira infância, é uma preocupação fundamental para o
universo desta pesquisa, que, voltada a olhar as infâncias de meninas negras, pode se configurar
como uma possibilidade de justiça epistêmica e curricular desde a Educação Infantil (Gomes,
2019b). Assim, ao tecermos um olhar para as literaturas infantis, indagamos: quais narrativas
são ocultadas nas práticas sociais e processos educativos das meninas negras? Quais são as
relações de poder que forjam subjetividades e práticas colonizadoras desde a infância? Como
pensar na educação das infâncias, potencializando visibilidades às identidades que foram
historicamente expropriadas pelo capitalismo, encobertas, hierarquizadas, sob a égide da
colonialidade do poder, do saber e do ser?
Para responder a tais questões, este artigo olha para a literatura infantil buscando refletir
sobre o direito à representatividade das meninas negras, sobre os modos pelos quais seus corpos
e suas formas de ser são representados numa sociedade constituída a partir do mito da
democracia racial, pela ideologia do embranquecimento e por uma cultura marcada pela
invisibilidade de mulheres, sobretudo das negras, na história oficial. O exercício é o de pensar
as meninas negras a partir de personagens protagonistas na literatura infantil negra
contemporânea, que se revela como possibilidade de refletir sobre os aspectos materiais e
simbólicos subjacentes à constituição dos processos identitários na infância e, assim,
problematizar as desigualdades étnico-raciais e de gênero presentes na educação da infância.
Literatura infantil, representatividade e objetificação
Tendo em vista os desafios de compreender a questão da representatividade das meninas
negras nas literaturas infantis, é preciso pensar sobre o racismo no âmbito da literatura infantil.
Representações de meninas negras brasileiras:
literaturas infantis como lugares seguros
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Os processos de exclusão e discriminação racial de crianças negras estão enraizados na
sociedade brasileira, apesar da falácia presente na ideia tão difundida em nosso país de que
vivemos em uma democracia racial. Nesse sentido, esse mascaramento traduz a imposição de
um ideal branco que se manifesta no tratamento estereotipado da produção cultural negra na
sociedade brasileira.
No começo do século XX, a presença de personagens negras nas obras de literatura
infantil se fez mais presente, mas ainda de forma estereotipada e subalternizada com relação às
personagens brancas. As lacunas que atravessam as personagens negras e temáticas
relacionadas à cultura e história afro-brasileiras evidenciam a desigualdade racial, fruto do
racismo, sistêmico e institucional, que se revela também na produção literária, expressando
alguns dos grandes dilemas da sociedade brasileira (Jovino, 2017).
Fúlvia Rosemberg (1981), ao abordar tal temática, analisou livros de literatura infanto-
juvenil brasileira destinados diretamente às crianças e jovens, nas décadas de 1950 a 1970. Ela
mapeou as formas de representação das personagens femininas na literatura infantil. Os
resultados de sua pesquisa contribuíram para evidenciar e denunciar formas de discriminação
étnico-racial peculiares à linguagem (literária e pictórica) dos livros infanto-juvenis (ou dos
meios de comunicação de massa) detectadas na atribuição de valor ou prestígio aos
personagens. A pesquisadora também elucidou a sub-representação de personagens negros,
destacando as armadilhas da branquitude que, ao se colocar enquanto neutra, se estabelece
como forma de representação hegemônica da humanidade (Rosemberg, 1981).
Estudos trazem à tona importantes indicadores para analisar a presença de meninas
negras na literatura infantil contemporânea. Eliane Debus (2010), ao investigar, os catálogos de
editoras, identifica que boa parte dos títulos acabam revelando preconceitos, seja nas
ilustrações, na caracterização das personagens, bem como em seus títulos. Os resultados
apontam a necessidade de uma reflexão crítica e de uma investigação de forma a banir livros
que reiterem estereótipos e sejam voltados a uma perspectiva racista.
Pesquisas mais recentes, como a de Débora Cristina de Araújo e Cintia Raquel Moreira
Ribeiro (2018), realizaram levantamentos pautados na representação estético-literária de
personagens negras, identificando a reiteração da branquitude normativa tanto na caracterização
de personagens quanto no direcionamento majoritário às leitoras e aos leitores brancos/as. Tais
estereótipos racistas estão implícitos ou explícitos nas formas de retratar as personagens negras
na literatura infantil, com a associação de personagens negras às condições de pobreza,
humilhação, violência, bem como na exaltação de características corporais apresentadas como
exóticas. Os resultados são desafiadores, visto que há sub-representação de personagens negros
e negras, e representações estereotipadas deles/as. Esses dados são relevantes, considerando a
“resistência e aversão a personagens negras, realçando o papel que as formas simbólicas como
a literatura, a mídia e outras como o livro didático exercem na formação identitária dos grupos
sociais” (Araújo; Ribeiro, 2018, p. 360).
Assim, podemos perceber, pelas pesquisas, que não serve qualquer forma de
representação da criança pequena negra. Os olhares críticos construídos pelas pesquisas nos
últimos anos apontam para a necessidade de uma vigilância constante, para não reproduzir
imagens que afetam sua dignidade, a partir de formas de apresentação que visam subalternizar
seus corpos diante das narrativas hegemônicas (Araújo, 2017). Além disso, embora
reconheçamos que a questão do racismo esteja presente nas representações sociais do campo
da literatura, também pudemos perceber como a literatura infantil negra contemporânea se
configura um espaço promissor para o processo de ampliação de um repertório que contemple
a diversidade, como poderemos ver com a discussão a seguir.
Rosa Silvia Lopes Chaves, Daniela Finco
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Diálogo com escritoras negras e suas personagens
Ao elaborar as análises das entrevistas realizadas com quatro escritoras negras que
produzem literatura infantil envolvendo personagens meninas negras, buscamos identificar os
seus processos de criação e construção identitária. Trata-se, pois, de evidenciar os desafios para
a afirmação e a valorização identitária étnico-racial e de gênero desde a pequena infância. Os
caminhos para as análises das entrevistas evocam diferentes significados e reflexões que
permitem problematizar o objetivo desta pesquisa. Olhamos para os elementos utilizados na
composição das características e formas de ser dessas personagens, nas memórias que
inspiraram sua criação e nos processos que contribuíram para pensar a questão da representação
e representatividade das meninas negras.
Sonia Rosa, Lucimar Dias, Kiusam de Oliveira e Odara Delé, mulheres negras,
professoras, pesquisadoras, escritoras comprometidas com as infâncias, nos ajudam a tecer
narrativas que põem em destaque as construções identitárias de meninas como elas, com seus
percursos e histórias compartilhadas se aproximando e se distanciando, ao mesmo tempo que
revelam processos de mudanças e permanências. Nas particularidades de cada relato, são
retomadas memórias de infância e suas experiências de vida, revelando como essas mulheres
enxergam as infâncias negras e a relação com suas personagens. A partir das intencionalidades
e formas de produção de conhecimento das entrevistadas, buscamos compreender como a
literatura negra infantil brasileira contemporânea pode auxiliar no processo de valorização e
fortalecimento das identidades das meninas negras. Buscamos identificar as narrativas, as
mensagens acerca dessas personagens e a forma pela qual elas favorecem a visibilidade e a
afirmação de suas identidades.
O diálogo com as entrevistadas revelou, a partir de suas óticas e experiências, as
estratégias utilizadas quando crianças para escapar do racismo, bem como o modo pelo qual
elas enxergam esse processo na vida das crianças. Também são observadas como essas questões
aparecem na criação literária de forma a compreender as escolhas e estratégias utilizadas.
Quando trazemos essa questão à tona, pensamos em constructos sociais de desigualdades e
poder expressos nas relações étnico-raciais, de gênero e etárias.
A primeira entrevistada, a escritora Sonia Rosa, 73 anos, é moradora de Niterói,
professora, estudiosa e mestra em educação. Sua produção literária contempla versos, prosa,
provérbios e adivinhas. A autora destaca sua relação íntima com as palavras, já que, mesmo
com a pouca presença dos livros em sua infância, ela pôde viver rodeada de contação de
histórias, geralmente pela sua mãe. A figura materna é ressaltada em suas memórias de infância
com uma sabedoria e acolhimentos imensos. Do encanto pelas histórias, Sonia Rosa foi criando
outros enredos e despertando o encantamento nas crianças com quem trabalhava no seu
percurso docente; assim, a escritora encontrou, na educação, um espaço potente para a
transformação sonhada. Como professora, também encontrava espaços para expressar suas
palavras. Hoje autora premiada, o conjunto da obra de Sônia Rosa conta com mais de 60 títulos.
Em seu mestrado, a escritora aprofunda a compreensão sobre os processos de construção
de identidade e as relações étnico-raciais à luz de novas perspectivas e referenciais teóricos que
permitiram revisitar suas memórias desde a infância. Seu trabalho de pesquisa tem como eixo
norteador a realização do diálogo entre o conceito de letramento racial e a literatura infantil
afro-brasileira (Jesus, 2019). Aborda também as contribuições da literatura infantil e juvenil
sobre a cultura africana e afro-brasileira para a construção da representatividade das crianças
negras desde pequenas, permitindo que elas possam ter intimidade com as várias possibilidades
das palavras.
Ainda no campo acadêmico, a autora-pesquisadora aborda os três sentimentos que
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perpassam o seu processo de aquisição de novos conhecimentos referentes às relações étnico-
raciais. Inicialmente, deparou-se com o sentimento de incômodo e, com isso, pôde perceber e
ressignificar as situações desconfortáveis que vivenciou como racismo. Posteriormente,
emergiu o sentimento da raiva diante das desigualdades sociais e étnico-raciais; por fim, ela
ressalta o desafio do sentimento da amorosidade (Jesus, 2019). A partir da chave do amor,
revisita e narra sua história de vida desde a infância como menina negra pobre que vivia numa
comunidade no Rio de Janeiro. Esses processos foram sistematizados ao aprofundar a temática
e desnaturalizar silenciamentos e demais violências impostas pelo racismo à população negra.
Durante a entrevista, fica evidente como esse prisma tem balizado sua atuação e forma
de escrita, diante da necessidade de pensar em um letramento racial a diversos públicos. Por
essa razão, sua produção está voltada para enegrecer enredos literários, favorecendo a
representatividade de crianças negras a partir de uma abordagem que prioriza a afetividade, a
qual denomina como “Literatura Negroafetiva para crianças e jovens” (Entrevista com Sonia
Rosa). A Literatura Negroafetiva para crianças, premissa de suas obras, visa acolher e
potencializar o protagonismo negro com foco na literatura com temática negra e/ou africana,
afetiva e humana, com a intenção de que essa literatura “venha contribuir para uma convivência
interracial mais respeitosa e digna” (Entrevista com Sonia Rosa), na perspectiva de uma
sociedade não racista.
Sonia Rosa ressalta que tem um longo percurso como escritora, iniciado na década de
1990, e que seu mote é compor textos literários com personagens negros e negras, nos diversos
enredos destinados às crianças pequenas. Destaca que, na época em que começou a publicar,
não era comum no mercado literário a presença de personagens negros, assim como apontaram
os estudos sobre a sub-representação de personagens negras na literatura infantil. Finalmente,
sobre o êxito de sua empreitada, a autora nos conta que, atualmente, há mais de dez bibliotecas
com o seu nome.
A segunda entrevistada, Lucimar Dias, 55 anos, “mulher preta, segundo o IBGE, e negra
politicamente” (Entrevista com Lucimar Dias), nasceu no Paraná, foi professora de Educação
Infantil e atualmente é professora universitária e pesquisadora. Relata que é a sexta filha de
uma família inter-racial, formada por quatro meninas e três meninos, o que lhe trouxe a
possibilidade de entrar em contato com as referências de leitura compartilhadas pelos/as irmãos
e suas irmãs. Das memórias como menina negra, Lucimar conta que o amor pela leitura sempre
foi algo muito forte em sua vida. A entrevistada começou sua carreira docente assim que
terminou o Ensino Médio. No exercício da profissão, cada vez mais foi delimitando e afirmando
o seu compromisso profissional e político voltado à educação das relações étnico-raciais desde
a primeira infância. Em uma época em que o tema era pouco explorado, Lucimar Dias fez sua
trajetória acadêmica com pesquisas sobre as relações étnico-raciais na Educação Infantil. Suas
pesquisas de mestrado e doutorado contribuem para o campo de pesquisa, denunciando os
efeitos do racismo na infância (Dias, 1997, 2007) e proporcionando um repertório formativo
para pensar a educação para as relações étnico-raciais.
A terceira entrevistada, a escritora Kiusam de Oliveira, mulher preta, com 56 anos,
escritora, bailarina, professora, militante no Movimento Negro Unificado, assim define a
trajetória das questões raciais em sua vida: “desde muito cedo, fui adolescente para o
Movimento Negro Unificado, então o meu olhar era muito treinado, era muito focado nas
questões raciais” (Entrevista com Kiusam de Oliveira). Foi, por mais de 30 anos, professora de
Educação Infantil e, desde muito nova, também construiu seu percurso como pesquisadora,
tendo como temática as corporeidades negras na luta antirracista. Além disso, sua produção
literária promove olhares que contemplam as infâncias negras, numa perspectiva afrocentrada.
Kiusam revisita sua história na qual delineia as estratégias para pensar as corporeidades
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das mulheres negras e seu “empoderamento, como um processo coletivo e futurista abordando
lugares sociais, redes de apoio e proteção” (Entrevista com Kiusam de Oliveira). Com efeito, a
partir de suas experiências, reconta os caminhos de (re)existência no contexto brasileiro
marcado pela imposição de constantes silenciamentos, violências e ambiguidades provocados
pelo racismo.
Seus estudos foram delimitando o conceito de literatura negra-brasileira do
encantamento infantil e juvenil, cujo foco consiste na investigação de formas de
empoderamento pessoal e coletivo (Oliveira, 2020a). Kiusam de Oliveira é interpelada pelas
corporeidades pretas, pela ancestralidade, pelo diálogo com as infâncias, compondo seus
enredos num eixo oposto à colonialidade do poder, etnocêntrica e branca, na qual os corpos
negros são os desviantes. No entrecruzar entre suas experiências como menina negra e os
registros de situações reais ao longo da sua carreira docente com crianças pequenas na Educação
Infantil, foi tecendo seu fazer literário tendo como mote a garantia de direitos e a dignidade das
crianças negras.
Segundo ela, são as marcas da resistência negra impressas na nação brasileira que se
reiteram na produção literária (re)inaugurando narrativas contra-hegemônicas, também
destinadas às infâncias negras. A docência e a militância antirracista compõem seus olhares,
memórias e ações que são “gravadas no corpo” (Entrevista com Kiusam de Oliveira). Trata-se,
pois, de estimular um olhar para o (re)encantamento das crianças negras pelos seus corpos, que
são socialmente invisibilizados: “Então, todas as minhas histórias trazem muito a questão do
corpo, do corpo preto.” (Entrevista com Kiusam de Oliveira).
Por fim, a última entrevistada, a escritora Odara Delé, mulher preta, 32 anos, socióloga
e professora no Ensino Médio, paulistana, é a mais nova dentre as escritoras. Desde menina, o
seu amor pela leitura impulsionou o interesse pelos povos bantus e pela ancestralidade
diaspórica por meio da língua kimbundu, pertencente ao tronco linguístico bantu. A autora tem
como pressuposto que a língua é viva e se constitui como uma das referências identitárias. Por
essa razão, Odara Delé se sentiu impulsionada a conhecer Angola e, com isso, pode criar a sua
personagem Lukenya.
As lembranças que povoam sua mente são os momentos de carinho traduzidos nos
cuidados e ornamentação dos seus cabelos crespos, cuidados alternados entre ela e sua mãe,
como o apoio da família na acolhida e discussão da questão étnico-racial: “Os meus pais têm
uma consciência política e racial, o que já é um ponto, um caminho importante para munir os
seus filhos”. (Entrevista com Odara Delé). Ela nos conta que saber que podia recorrer ao seu
pai, sua mãe e avó a deixou mais segura diante de manifestações racistas: não se deixar
desumanizar foi uma das ferramentas importantes fornecidas pela sua família e pelas leituras
que realizou.
As trajetórias de formação profissional, acadêmica e de vida das entrevistadas se
refletem em suas obras e na construção das personagens. Observando a produção literária das
quatro escritoras, encontramos as protagonistas das literaturas infantis negras: Lindara, Luanda,
Lukenya e Tayó. Trata-se, pois, de personagens que nos ajudam a analisar as formas como são
construídas as representações das imagens e das identidades dessas personagens meninas
negras, a partir das narrativas literárias que dão vida para suas infâncias, revelando
similaridades e diferenças nos seus modos de ser.
Ao aprofundar, no diálogo com as escritoras, a reflexão sobre as intencionalidades e os
incentivos para os processos de criação literária, buscamos pistas para elaborar uma construção
e valorização identitárias negras, rompendo com silenciamentos, sub-representações e
desumanização que pautam a construção das meninas negras como personagens na literatura
infantil brasileira contemporânea.
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Figura 1 – Capa do livro Lindara
Fonte: Sonia Rosa (2009, [s.p.]).
“Lindara” é a história de uma linda menina negra de tranças, com seus sonhos,
brincadeiras e muita falação. Sempre gostou de falar “pelos cotovelos’… Um dia, sem mais
nem porquê, ela resolveu colocar as ideias arrumadas num papel, em forma de histórias (Rosa,
2009 [s.p.]). A menina Lindara, personagem criada por Sônia Rosa, foi inspirada em vivências
da escritora, que se apresenta como uma menina que transbordava palavras, cheia de
imaginação e de fala rápida que, segundo ela, se mantém viva até hoje. A escritora encontrou
na literatura uma forma de resgatar e compartilhar seus olhares, as invenções das histórias que
contou para as crianças ao longo da sua trajetória pessoal e profissional.
Lindara é baseada em fatos reais, eu sou uma pessoa muito faladeira, sempre
contadora de história. Eu gosto da Lindara porque é a história de todas as meninas que
falam muito, falam pelos cotovelos, eu sempre fui uma criança assim. A gente deve
transformar aquilo que a gente tem de mais criticado em algo que vai a nosso favor,
então eu comecei a entender que eu não só falava muito, como também eu cansava
muito. A escrita foi a possibilidade de dar conta disso, por isso me tornei escritora.
Lindara é baseada em fatos reais. Lindara tem isso (Entrevista com Sonia Rosa).
É interessante observar, conforme atesta a entrevista com a autora, que tais qualidades
da menina Lindara são baseadas em fatos reais, são inspiradas nas memórias de Sonia Rosa
que, quando menina, sempre transbordava palavras. Segundo a escritora, tais qualidades eram
classificadas como pontos fortes, ao mesmo tempo que eram alvo de críticas: “comecei a
entender que eu não só falava muito, me chamavam de vitrola” (Entrevista com Sonia Rosa).
Assim, a literatura, tal como relatado em situações envolvendo outras crianças e adultos,
permitiu que Sônia transformasse algo negativo em um desejo de escrever, de contar suas
histórias.
Cumpre destacar que a perspectiva de representação de Sonia Rosa se apoia na
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pluralidade de personagens negros em protagonismos com leveza e ludicidade, e busca se
afastar do caráter de denúncia do racismo:
Eu não tenho na minha obra um caráter de denúncia, eu não trabalho nesta linha, com
este peso. O texto literário tem que ter a leveza do encanto, do abraço, do acolhimento.
Eles são textos literários para o fortalecimento das identidades negras, como
possibilidade de ampliação de conhecimento das crianças não negras. Eu tenho vários
personagens negros em protagonismo, em alegria, em ludicidade e é isso que eu quero
e faço, enredos com personagens negras em protagonismo, isso me dá uma
responsabilidade muito grande com aquilo que escrevo (Entrevista com Sonia Rosa).
A escritora Sonia Rosa evidencia que sua produção está atravessada pela valorização da
diversidade e pelo combate à desigualdade. Sua intencionalidade prioriza a dimensão da
afetividade, que tem como premissa uma
Literatura Infantil Negroafetiva, com um texto literário que tem que ter a leveza do
encanto, do abraço, do acolhimento, que podem ser trabalhados como fortalecimento
das identidades negras, como possibilidade de ampliação de conhecimento das
crianças, são personagens em protagonismo, em alegria, em ludicidade. Minha
estratégia sempre foi a estratégia da alegria, da inteligência, da criatividade, da poesia
e da possibilidade de acreditar que era possível ser diferente (Entrevista com Sonia
Rosa).
Figura 2 – Capa e contracapa do livro Lukenya
Fonte: Delé (2019, [s.p.]).
A obra Lukenya é a história de uma menina negra serelepe, cheia de ginga e
encantamento, envolvendo uma grande aventura pela busca do seu poder poderoso. A ideia da
personagem Lukenya de Odara Delé nasce de uma viagem da escritora para Angola, durante a
qual ocorreu um diálogo com uma menina angolana a respeito da imagem negativa que a
criança tinha do seu cabelo crespo. Nesse sentido, a opção de produzir uma obra bilíngue tem
por objetivo difundir os valores relacionados à cultura africana. Na busca pela língua bantu,
Odara Delé percebe como o continente africano é marcado pela pluralidade: “não existe só uma
África, existem várias” (Entrevista com Odara Delé). Além disso, ela conta que sua viagem a
Angola foi uma busca de maior contato com a cultura bantu: “é uma das culturas dos povos
com quem eu mais me identifico, por conta do samba, enfim, por conta da língua. Eu comecei
a pesquisar sobre os povos bantus e a entender também as influências deles no cotidiano
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brasileiro” (Entrevista com Odara Dele).
No processo de conhecer e reconhecer o continente africano, a autora se dá conta de
como o “processo de colonização foi muito mais pesado nos países africanos do que
imaginamos” (Entrevista com Odara Delé). O impacto diante da expectativa inicial de conhecer
a cultura bantu e a predominância de corpos negros com padrão estético eurocêntrico, além de
suas memórias como menina negra, a impulsionaram a escrever para as crianças, segundo ela,
em especial pensando nas meninas negras brasileiras e angolanas.
Nesse sentido, as descrições de Lukenya incluem adjetivações como bonita, inteligente,
com perfume precioso que recobre seus cabelos, pernas ágeis e cabelos cheios de movimento
comparados às ondas do mar. Assim, a composição da personagem apresenta outra
representação do corpo negro visto como cheio de ginga e produtor de conhecimento, um corpo
com agência, que produz sentidos. Trata-se de referências positivas às corporalidades negras,
revertendo as imagens de controle socialmente construídas que depreciam, desqualificam e
animalizam corpos das meninas negras.
Assim, a protagonista Lukenya encontra sua ancestralidade na ginga, nas sonoridades,
nas relações com seu núcleo familiar: pai, mãe, avós que a amam, e com os quais se reconhece
pertencente a uma coletividade. As diferentes formas com que ornamenta seus cabelos crespos
o transformam em signos de beleza e de poder. Assim, Lukenya encontra em si, ao se olhar
com olhos livres, toda uma coletividade ancestral dotada de força, sabedoria e beleza. O livro
Lukenya e seu poder poderoso revela, portanto, o compromisso das mulheres negras, como
Odara Delé, com as práticas afro-referenciadas, tendo como crivo o fortalecimento das meninas
negras, desde bem pequenas, nos seus processos de construção de identidade, valorizando e
reconhecendo suas corporeidades e ancestralidade.
Desse modo, a escritora Odara Delé evidencia o desafio de sempre reafirmar a
humanidade negra pela literatura com orgulho e altivez. “É fundamental toda criança ter a
possibilidade de acesso a livros que enriqueçam a sua história. Para as meninas negras, se verem
e reconhecerem de uma forma positiva é importante para fortalecê-las.” (Entrevista com Odara
Delé).
A obra Cada um com seu jeito e cada jeito é de um apresenta a personagem
Luanda,“uma menina sapeca, inteligente, que gosta de brincar e comer chocolate. Ela é super
vaidosa e adora usar penteados diferentes! Então um dia ela usa tranças, outro o cabelo preso,
outro dia com enfeites, e toda sua família ajuda, papai, mamãe e vovó.” (Entrevista com
Lucimar Dias).
Luanda é uma personagem negra e menina descrita como “levada da breca”, “curiosa”
e “sapeca”. Ela brinca, corre e tem acesso a livros de literatura desde bem pequena. Ademais,
pertence a um coletivo familiar no qual todos são respeitados na sua individualidade. Nesse
contexto, a história tem como mote a provocação para que o leitor descubra o nome da
protagonista, o qual remete a uma herança e a um país do continente africano.
Seu núcleo familiar é composto por mãe, avó, pai, irmãos e irmãs. Trata-se de uma
família em que os membros são divertidos, se amam e se apoiam mutuamente. Ou seja, eles
formam um coletivo no qual cada um é reconhecido também em sua singularidade, com
similaridades e diferenças nos modos de ser e estar no mundo. Essa sutileza na representação
das diferentes individualidades dos familiares de Luanda, cumpre realçar, rompe com as formas
unidimensionais com que as personagens negras são tradicionalmente apresentadas.
A ideia do livro Cada um com seu jeito e cada jeito é de um nasceu da experiência da
escritora Lucimar Dias na docência com crianças. Segundo ela, Luanda tem uma relação muito
próxima com o seu fazer pedagógico, como professora e formadora de outros professores e
professoras na universidade há mais de 10 anos. Como ativista do Movimento Negro Unificado,
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participa de ações formativas envolvendo e valorizando a literatura infantil. Nesse sentido, o
processo de criação da personagem Luanda envolve um processo de reeducação, de encontro a
outras possibilidades literárias, para além do referencial eurocêntrico:
A primeira conversa entre mim e a Luanda foi que eu queria ter lido livros com
personagens como ela. Eu queria ter sido uma criança negra que tivesse tido essa
oportunidade. Na minha infância a literatura foi toda eurocêntrica, as imagens eram a
Branca de Neve; Rapunzel; Chapeuzinho Vermelho. Então, a Luanda também
expressa esse meu desejo de ser aquela criança negra que pode se ver no livro. Luanda
é uma menina feliz! (Entrevista com Lucimar Dias).
Figura 3 – Capa do livro Cada um com seu jeito e cada jeito é de um
Fonte: Dias (2012 [s.p.]).
Em seu processo de criação, Lucimar Dias tem como fonte de referência o campo da
sociologia, com os estudos e pesquisas sobre relações étnico-raciais. Faz críticas ao
eurocentrismo, a partir do campo das relações étnico- raciais: “mas eu não falo de racismo na
obra e isso é intencional, não pretendo falar sobre o racismo. A Luana gosta da cor da sua pele,
do cabelo, do seu corpo. A minha inspiração não é nos casos de racismo” (Entrevista com
Lucimar Dias).
A sua fala destaca a valorização das corporeidades e estéticas negras, tal como visto em
pesquisas na área da Educação Infantil e das Relações Étnico-Raciais. Trata-se, então, de uma
crítica à estética hegemônica da branquitude como representante universal da humanidade.
Lucimar Dias, quando explicita sua intencionalidade ao criar uma personagem negra valorizada
e reconhecida em sua diversidade, constata a receptividade da história tanto pelas crianças como
pelos/as adultos/as, no caso, se referindo também aos/às profissionais que atuam na Educação
Infantil. Com essas questões em mente, tais experiências foram propulsoras e fizeram com que
a professora e pesquisadora se transformasse também em escritora de literatura infantil.
Desse modo, a escritora Lucimar Dias destaca a capacidade de a literatura infantil
“transformar a fraqueza em fortaleza”, de “inverter a chave do racismo, que vai delimitar outro
lugar social que atualmente ocupa, possibilitando outros caminhos” (Entrevista com Lucimar
Dias). Ela aponta que a
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literatura infantil brasileira, hoje, com a participação efetiva de editoras negras, de
autoras negras e, mais recentemente, de ilustradores negros, significa um respiro de
vida para as crianças negras. A literatura tem esse poder de nos colocar diante do
mundo e de fazer as diferentes emoções emergirem. A gente precisa de personagens
negros também vivendo essas possibilidades (Entrevista com Lucimar Dias).
Figura 4 – Capa do livro O mundo no black power de Tayó
Fonte: Oliveira (2013, [s.p.]).
Por fim, a obra O mundo no black power de Tayó, com a personagem Tayó, uma menina
negra que tem orgulho do cabelo crespo com penteado black power, enfeitando-o das mais
diversas formas. Uma personagem cheia de autoestima, capaz de enfrentar as agressões dos
colegas de classe, que dizem que seu cabelo é “ruim”. A escrita do livro de Kiusam de Oliveira
traz à tona a valorização das corporeidades negras a partir da menina Tayó. A protagonista da
obra parte, também, do olhar ressignificado para o seu corpo de menina negra que carrega o
mundo nos seus cabelos, a altivez do povo afrodiaspórico, como uma coroa que remete à
realeza.
No enredo, destaca-se o apoio recebido pela protagonista do seu grupo familiar e a
resposta a uma agressão racista que sofreu na escola, situação comum para muitas meninas
negras. Tayó, com efeito, não se silenciou, não fingiu que a agressão não aconteceu, e responde
à agressão com uma recusa à desumanização justamente por se reconhecer como parte da
coletividade ancestral. Sobre seu processo criativo, a autora relata que suas obras se inspiram
nas diversas formas de registros que compõem as suas experiências como professora, bailarina
e pesquisadora.
É importante dizer que essa frase: “O meu cabelo é muito bom porque ele é fofo, lindo
e cheiroso” aconteceu depois de sete meses de trabalho antirracista com um grupo de
crianças, empoderando a Jade3, que antes sempre chorava diante das agressões
sofridas. [Jade] Sempre falava chorando: “Fulano me chamou de macaca”; “Fulano
me chamou de neguinha”. Depois disso foram sete meses de trabalho e um dia a Jade
chega e fala assim: “o fulano disse que eu sou preta, feia e que o meu cabelo é duro,
que meu cabelo é ruim”. Eu percebi que desta vez ela não estava chorando, ela
3 Nome fictício.
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simplesmente contou olhando de lado, fazendo mistério. Eu falei: Ah é? Ele falou isso
para você? [A criança responde] Falou! [Eu pergunto:] E você, o que respondeu dessa
vez? Você conseguiu dar a resposta para ele? Ela fez o gesto com a cabeça dizendo
que sim. E o que você respondeu? “Eu disse que meu cabelo é muito bom, porque ele
é fofo, lindo e cheiroso!” Ganhei uma vida! (Entrevista com Kiusam de Oliveira).
Ao falar sobre a inspiração para a elaboração de sua personagem negra Tayó, a autora
relata uma cena com uma menina negra de quatro anos com uma potente capacidade de se
defender diante de uma agressão racista. Tratou-se, pois, de uma cena que Kiusam considerou
emblemática na tradução do fortalecimento de uma menina negra, com quatro anos, em relação
ao seu cabelo crespo.
Kiusam apresenta o conceito de uma “Literatura Negra-Brasileira do Encantamento
Infantil e Juvenil” (Oliveira, 2020a), que descreve uma forma de escrita por mulheres negras
conscientes e comprometidas em enfrentar as ambiguidades para pensar, no contexto do
racismo brasileiro, os silenciamentos nas vidas das crianças. Essa perspectiva também busca
construir enredos a partir das experiências vividas com o intento explícito de instrumentalizar
e fortalecer as crianças negras em termos de repertórios e forças diante do que denomina como
“a arapuca social do racismo” (Oliveira, 2020b).
A experiência vivida com as crianças – na ambivalência de sentimentos de aceitação da
professora negra e rejeição da menina pequena negra – trouxe à tona o caráter perverso dessa
“arapuca social do racismo que captura as crianças de diversas maneiras. Eu falo dessa captura,
dessa sociedade que somos nós, em relação às infâncias, uma arapuca social. Aprendemos com
as crianças e suas potências, há muitas possibilidades para ser e estar no mundo, mas a gente as
captura.”(Entrevista com Kiusam de Oliveira).
Ao refletir sobre as capturas étnico-raciais e de gênero nas infâncias, a autora aponta os
aprisionamentos que afetam meninos/as negros/as ou não negros/as numa lógica binária. Nessa
lógica, as crianças constroem significados; produzem culturas na relação com seus pares, com
suas famílias, com demais adultos e com a cultura material. As provocações da autora nos
ajudam a questionar o tipo de educação que está sendo engendrada entre nossas crianças
pequenas. Seu raciocínio permite indagar os desafios de como as meninas negras podem sentir
orgulho e se reencantar com seus corpos, uma vez que são reiteradamente representados como
inadequados diante do olhar da branquitude.
Ao se inspirar em situações de violência vivenciadas e registradas nos corpos e nas falas
das crianças pequenas, Kiusam reforça a necessidade de reconstruir o olhar para esses corpos e
romper silenciamentos. Nessa direção, somos provocadas a refletir sobre a construção da
personagem Tayó e o seu cabelo crespo armado como motivo de orgulho e pertencimento
ancestral. A literatura se transforma em uma ferramenta que pode promover o fortalecimento,
o reconhecimento e o reencantamento das crianças negras pelos seus corpos. A história narrada
por Kiusam de Oliveira promove o reencanto do corpo negro apresentado em narrativas
imagéticas que tensionam a representação hegemônica da branquitude como ideal de beleza em
oposição binária com o corpo negro. Pluralizar as formas de representação imagética presentes
na produção de conhecimento literário destinado às crianças pequenas implica compreender as
sutilezas nas quais se operam os processos de normalização.
Kiusam nos aponta suas intencionalidades na produção literária, as quais consistem em
fortalecer as crianças negras diante da violência racial. Tendo em vista que essa violência racial
coloniza corpos e conhecimentos, entendemos que sua produção literária almeja ampliar
referências também para as crianças não negras, pluralizando e valorizando as corporeidades
negras: “os livros todos são focados, eu penso que as crianças precisam ser preparadas para
enfrentar a violência do racismo” (Entrevista com Kiusam de Oliveira).
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Desse modo, a autora Kiusam de Oliveira insere no bojo das suas criações literárias
estratégias de fortalecimento e reencantamento das crianças negras com suas corporalidades,
como uma forma de empoderamento pessoal e coletivo desde a infância:
As nossas crianças pretas precisam se (re)encantar pelos seus corpos, então é esse o
sentido, o encantamento! As minhas histórias trazem muito a questão do corpo, do
corpo preto. Uma Literatura Negro-brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil,
como possibilidade da criança negra se reencantar pelo seu próprio corpo e buscar o
seu projeto de vida (Kiusam de Oliveira).
As formas de representação dessas personagens significam gritos de (re)existências
frente à sub-representatividade da menina negra na literatura infantil. Suas obras contribuem
para pensar no processo de construção identitária na infância, ao envolver a escuta, cuidado,
afetividade, fantasia e encantamento. Mostram também que é fundamental transformar o
imaginário, valorizando as potencialidades e a estética negra, oferecendo outros espelhos para
meninas olharem para si com orgulho do seu pertencimento étnico-racial, permitindo habitar
outras lógicas, redimensionar ideias e inverter valores.
Considerações finais
A eliminação do racismo nas representações sociais na literatura infantil se configura
como um campo promissor no Brasil, trazendo elementos para auxiliar na identificação, num
processo de reeducação e de encontro com outras possibilidades. A literatura negra feminista
infantil contemporânea se mostra como uma potente ferramenta para sustentar a autoafirmação,
o autoconhecimento e o autocuidado, com a função de humanizar e impactar positivamente as
formas de olhar para si. São literaturas engajadas para o rompimento do silêncio e das dores
causadas pelos preconceitos e discriminações, celebrando a diferença numa perspectiva
libertadora. Tais ferramentas também exercem uma função política, pois trazem subsídios para
pensar em uma educação emancipatória, democrática e multicultural para as infâncias num país
com histórico racista e colonial como o Brasil.
A produção literária analisada, com suas poderosas personagens, representam gritos de
(re)existências frente à sub-representatividade de personagens negras na literatura infantil.
Pudemos conhecer essas meninas protagonistas de suas histórias, crianças felizes, tagarelas,
serelepes, sapecas, inteligentes, poderosas e ágeis, orgulhosas de si e cheias de autoestima, que
gostam de viver intensamente e carregam as energias das infâncias.
Elas mostraram que é fundamental transformar o imaginário, envolvendo a fantasia, o
fortalecimento do poder e potencialidades, o alargamento de possibilidades de ser e estar no
mundo, oferecendo outras lentes e espelhos para olharem para si e para as demais crianças com
alteridade e valorização. As falas das escritoras negras entrevistadas convergem, portanto, para
o reconhecimento da literatura infantil como ferramentas simbólicas, nas quais essas
personagens ocupam espaços de valorização e de orgulho no que se refere ao seu pertencimento
étnico-racial. Assim, ressignifica-se o corpo negro em suas visibilidades e belezas, ampliando
o mundo da literatura para crianças.
Como pudemos ver, para a literatura infantil negra ser positiva, há necessidade da
agência dos/as personagens negros/as, bem como de contextos nos quais as crianças negras
estejam afirmadas em suas singularidades. Pudemos aprender com essas personagens e com as
escritoras negras o protagonismo das meninas negras e as formas humanizadas como foram
retratadas. Isso nos leva a olhar para a emergente literatura feminista negra como potente
ferramenta que possa sustentar a autoafirmação e o autorreconhecimento. A função das
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linguagens apresentadas sobre as meninas negras é humanizar, de modo a impactar
positivamente as formas de olhar para si, revelando, assim, possibilidades de mudanças na
produção literária destinada às crianças negras.
As produções dessas escritoras mostraram-se como ferramentas de fortalecimento para
o pertencimento étnico-racial e para o combate aos estereótipos e violências, consistindo em
uma “literatura de afetividade negra” (Entrevista com Sonia Rosa), uma “literatura negra
brasileira do encantamento infantil e juvenil” (Entrevista com Kiusam de Oliveira). Literaturas
infantis que impõem o desafio de “reafirmar a humanidade negra com orgulho e altivez”
(Entrevista com Odara Delé) e apontam para a necessidade de “inverter a chave” (Entrevista
com Lucimar Dias) a fim de transformar em fortaleza o que antes as fragilizava, vencer a
invisibilidade e a timidez; um convite a afirmar-se de forma positiva. Trata-se, pois, de
contribuir com práticas educativas comprometidas com o combate ao racismo e ao sexismo
desde a Educação Infantil.
A partir das vozes dessas quatro escritoras, podemos encontrar “lugares seguros”
(Collins, 2019) para as rupturas com a narrativa hegemônica sobre ser menina negra.
Considerando que o pensamento feminista negro fala da importância de criar e sustentar
espaços seguros, como espaços livres, espaços protegidos, para que as relações sejam
plenamente humanas, tais espaços são essenciais para uma educação crítica, política e
emancipatória, espaços criados a partir de um empreendimento coletivo (Corrochano et al.,
2024).
Retomando as questões iniciais deste artigo, as literaturas infantis negras
contemporâneas, desse modo, têm um papel fundamental para repensar nas narrativas que são
ocultadas nas práticas sociais e processos educativos das meninas negras, num processo de
construção identitária na infância, que tenha como base a construção de uma educação que
envolve a escuta, cuidado, educação, afetividade, fantasia e encantamento. Pensar nas
literaturas como suporte para a educação das infâncias, potencializando visibilidades às
identidades que foram historicamente encobertas e hierarquizadas, nos convida a enriquecer o
processo de valorização identitária com histórias que se entrelaçam, dialogam e ampliam os
leques de significação. Os resultados desse rico processo aparecem como muitas possibilidades
de trabalho educativo com as crianças.
Finalizamos este artigo lembrando do convite de bell hooks (2019) para a celebração da
diferença que estimula o engajamento numa pedagogia para combater a desumanização imposta
pelo sexismo e racismo, e que constrói estratégias de resistência, numa perspectiva libertadora,
rompendo o silêncio e a dor impostos por essas formas de opressão, de maneira a encontrar o
poder e a identidade que liberta e descola do jugo colonizador.
Referências bibliográficas
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