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Anuário Antropológico
v.49 n.2 | 2024
2024/v.49 n.2
Byung-Chul Han e a antropologia do poder: Aportes
reflexivos
Byung-Chul Han and the anthropology of power: Reflexive contributions
Fernando José Ciello
Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/aa/12428
DOI: 10.4000/127w6
ISSN: 2357-738X
Editora
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB)
Refêrencia eletrónica
Fernando José Ciello, «Byung-Chul Han e a antropologia do poder: Aportes reexivos», Anuário
Antropológico [Online], v.49 n.2|2024, posto online no dia 28 agosto 2024, consultado o 10 outubro
2024. URL: http://journals.openedition.org/aa/12428 ; DOI: https://doi.org/10.4000/127w6
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Edição electrônica
URL: http://journals.openedition.org/aa/12428
DOI: 10.4000/aa.12428
ISSN: 2357-738X
Editora
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB)
Referência eletrônica
Fernando José Ciello, «Byung-Chul Han e a antropologia do poder: aportes reexivos», Anuário
Antropológico [Online], v.49 n.2 | 2023, e-12428. URL: http://journals.openedition.org/aa/12428 ; DOI:
https://doi.org/10.4000/aa.12428
Fernando José Ciello
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CC BY-NC-ND
Byung-Chul Han e a antropologia do poder:
aportes reexivos
Byung-Chul Han and the anthropology of power: reexive contributions
Anuário Antropológico
v.49 n.2 | 2024
anuário
antropológico
v. 49 • nº 2 • 2024.2
anuário antropológico
v. 49 • nº 2 • e-12428 • 2024.2
1 21DE
Byung-Chul Han e a antropologia do poder: aportes
reexivos
Byung-Chul Han and the anthropology of power: reexive contributions
DOI: https://doi.org/10.4000/aa.12428
Fernando José Ciello
Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, Roraima - RR, Brasil
ORCID: 0000-0001-8463-6150
fernando.ciello@ufrr.br
This essay engages in a discussion on concepts of power, contrasting
the works of the South Korean philosopher Byung-Chul Han with dis-
cussions on the subject within the scope of anthropology. Within the
limits of this essay, the text provides a minimal review of anthropologi-
cal traditions of studies on power, followed by a presentation of themes
that are present in Han’s work, especially related to how the author con-
ceptualizes power. While the philosopher proposes the pursuit of a mo-
bile concept, whose appearance could be modied depending on the
movement of its constituent aspects; in anthropology, studies on power
are centrally linked to the development of ethnography and the study
of precise empirical contexts, with no unequivocal concept of power
ever being constituted. Despite seemingly irreconcilable dierences,
this essay suggests that Han’s work can be incorporated into anthro-
pological readings by the possibility of revising the places attributed
to power in our research and by its potential contribution to studies
dedicated to issues associated with contemporary anthropologies and
critical events situated in these times.
Power; Byung-Chul-Han; Ethnography; Anthropology of Power; Anthro-
pology of the contemporary.
O presente ensaio ocupa-se de uma discussão sobre conceitos de poder,
contrastando trabalhos do lósofo sul-coreano Byung-Chul Han com
discussões sobre a temática, no âmbito da antropologia. Dentro dos
limites deste artigo, o texto oferece uma revisão mínima das tradições
antropológicas de estudo do poder e, em sequência, uma apresenta-
ção de temas presentes na obra de Han, especialmente relacionados
ao modo como o autor conceitua o poder. Enquanto o lósofo propõe
a busca de um conceito móvel, cuja aparência pudesse ser modica-
da dependendo do movimento de seus aspectos constituintes; em
antropologia, estudos em torno do poder associam-se centralmente
ao desenvolvimento da etnograa e do estudo de contextos empíri-
cos precisos, nunca tendo constituído um conceito inequívoco. Apesar
das diferenças aparentemente irreconciliáveis, busca-se sugerir que o
trabalho de Han possa ser incorporado às leituras da antropologia pela
possibilidade de rever os lugares atribuídos ao poder em nossas pes-
quisas, e por sua contribuição potencial aos estudos que se dedicam
a questões associadas com as antropologias do contemporâneo e aos
eventos críticos que se situam nestes tempos.
Poder, Byung-Chul-Han, Etnograa, Antropologia do Poder, Antropologia
do contemporâneo.
Byung-Chul Han e a antropologia do poder: aportes reexivos
Fernando José Ciello
Anu. Antropol. (Brasília) v. 49, n. 2, 2024, e-12428, ISSN 2357-738X. https://doi.org/10.4000/aa.12428 221DE
Introdução
Byung-Chul Han, lósofo sul-coreano radicado na Alemanha, lançou recen-
temente um provocativo comentário sobre o conceito de poder (2019). Em seu
livro, o autor sugere a busca por um conceito móvel, capaz de unicar diferentes
representações1. Ainda imperaria, segundo Han, um “caos teórico” (2019, 7), sendo
necessária a criação de uma “forma fundamental de poder que, pelo deslocamento
de elementos internos”, fosse capaz de gerar “diferentes formas de aparência”
(2019, 8). Este apelo por um conceito mais arejado ao mesmo tempo também erta
com um problema caro para a antropologia, o de reduzir diferentes formas a um
conjunto de regras absolutas de funcionamento. Apesar disso, os trabalhos do
autor têm abordado questões centrais do contemporâneo e produzido interpreta-
ções interessantes sobre a vida diante dos ditames da informação, da motivação
e da positividade; sobre violência; comunicação; melancolia; produtividades do
neoliberalismo; depressão e outros diagnósticos de nosso tempo; entre outros
temas (Han 2017, 2018, 2022).2
Neste trabalho busco dialogar sobre os encontros e desencontros entre a an-
tropologia e Byung-Chul Han, quanto ao poder. Argumento que Han contribui
para uma etnograa das diferentes constelações de poder nas sociedades con-
temporâneas, por meio do inventário de imagens que compartilhamos sobre o
poder e da atenção aos arranjos e agentes que compõem estes universos relacio-
nais, fazendo ao seu modo uma contribuição relevante para a escrita de teorias
etnográcas, especialmente em contextos em que o escape, a multiplicidade e a
dissidência fazem parte da experiência da pesquisa antropológica.
O artigo inicia com uma discussão sobre os modos como o poder aparece nas
teorias antropológicas. Em seguida, busca apresentar de modo crítico alguns pon-
tos da obra de Byung-Chul Han sobre o poder, especialmente a partir de alguns
de seus trabalhos recentes (Han 2019, 2018). Nas seções nais, em busca de uma
apresentação mais contundente das colaborações possíveis entre as perspectivas
envolvidas, resgato diferentes autoras e discussões para defender a busca de uma
visão mais abrangente para as contribuições da antropologia sobre os eventos
do poder, e simultaneamente, mais preocupada com as diferentes constelações
relacionais nas quais aparece a questão do poder, para além da particularização
etnográca.
Antropologia, poder e diferença
As discussões sobre poder em antropologia não estão circunscritas a um cam-
po especíco, mas a primeira metade do século XX é usualmente considerada
como um momento marcante devido ao desenvolvimento do que se convencio-
nou chamar de antropologia política. Neste momento as teorias tanto buscam se
distanciar das interpretações evolucionistas, quanto buscam armar-se a partir
de um novo paradigma, da pesquisa de campo e das noções de estrutura e função.
Em primeiro lugar, a distinção feita por Henry Maine (1986) entre socieda-
1 “Para alguns signica opres-
são. Para outros, um elemento
construtivo da comunicação. As
representações jurídica, política
e sociológica do poder se
contrapõem umas às outras de
maneira irreconciliável. O poder
é ora associado à liberdade, ora
à coerção. Para uns, baseia-se
na ação conjunta. Para outros,
tem relação com a luta. Os pri-
meiros marcam uma diferença
forte entre poder e violência.
Para outros, a violência não é
outra coisa senão uma forma
intensiva de poder. Ele ora é
associado com o direito, ora
com o arbítrio” (Han 2019, 8).
2 Agradecimentos à tradutora
do artigo, Ti Ochôa Tesser, mes-
tra em Inglês pela Universidade
Federal de Santa Catarina,
professora de inglês, tradu-
tora e intérprete simultânea
(contatodati@gmail.com), e ao
Projeto Cooperação Cientíca
na Amazônia: fronteiras,
territorialidades e diversidades
socioambientais, (PDPG-Amazô-
nia Legal/CAPES) pelos recursos
para a realização da tradução.
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des cuja organização social baseava-se no status e no contrato havia, desde muito
tempo, tornado as sociedades ditas primitivas o tema principal da antropologia.
A presunção da ausência de política e Estado nestas sociedades devia-se à dife-
rença entre o modelo jurídico estatal e o modelo contratual. Contudo, ao serem
identicadas, na primeira metade do século XX, as linhagens segmentares e as
relações envolvendo troca, reciprocidade e parentesco, resultantes do trabalho da
antropologia estrutural-funcionalista em África nos anos 1940, os modelos vincu-
latórios característicos do Estado passaram a ser associados também às sociedades
ditas primitivas (Lima e Goldman 2003)3.
Em segundo lugar, desde o século XIX, ideias de subordinação, determinação
social e coerção estavam presentes em diferentes construtos teóricos sobre orga-
nização social4. Na medida em que as teorias se colocavam questões relativas à
coesão ou à interação sociais, também colocavam implicitamente o problema da
denição de sociedade, que, para Rapport e Overring (2000), implicava uma dupla
denição: sociedades como estruturas de separação e oposição, ou como formas
de elaborar institucionalmente relações de dominação e subordinação.
De um lado, portanto, tinha-se o problema do quanto uma dada sociedade se
aproximava, mais ou menos, de um modelo baseado em estruturas de dominação,
separação, oposição, subordinação – modelos de organização que essencialmente
mimetizavam o aparato estatal ocidental, baseado na organização hierarquizada e
na legislação (Kuper, 2008). De outro lado, no entanto, tinha-se o desenvolvimento
da pesquisa empírica como ferramenta para descrever as instituições políticas de
outras sociedades. Mesmo no contexto do funcionalismo britânico, contudo, as
instituições políticas representavam universais da experiência social humana, o
que termina por perpetuar a retenção das categorias ocidentais como referenciais,
especialmente para a denição do que poderia ser considerado como sociedade
(Rapport e Overring 2000, 336).
A questão do poder não se tornou imediatamente um tema para a antropolo-
gia, cuja conceituação foi subsumida em temas relacionados à estrutura e orga-
nização social. A ênfase na pesquisa empírica potencializou as descrições de mo-
delos outros, mas não tematizou o conceito implícito de poder. Estes comentários
iniciais mostram que os encontros e desencontros sobre o poder não são novos em
antropologia. Foi ao longo do século XX que as teorias antropológicas pertinentes
ao poder se desenvolveram de modo mais especíco. Gostaria de seguir falando
sobre elas nas próximas seções.
Do Estado aos seus limites
Na primeira metade do século XX, as ideias associadas ao poder ainda estavam
fortemente relacionadas à noção de Estado. A percepção de que o parentesco era
priorizado nas sociedades ditas primitivas, em oposição ao lugar ocupado pela
economia e pela política em nossa própria ordem social, impôs o problema da
comparação entre o Estado nas sociedades ocidentais e o Estado (ou ausência dele)
nas sociedades primitivas (Rapport e Overing 2000, 336). A partir do funcionalis-
3 Esta é uma questão mais
complexa e abrangente.
Conferir Kuper (2008), Goldman
(1999), Lima e Goldman (2003),
Kuschnir (2007), Sá (2015).
4 Simmel (1983), por exemplo,
destaca o lugar da subordinação
a um poder superior (de uma
ideia, de um grupo, de uma pes-
soa) como uma forma básica do
estabelecimento de interações
e de reciprocidade. O próprio
Durkheim (1996, 2007) erige em
torno da ideia de coerção todo
um conjunto de desdobramen-
tos sobre coesão social. À parte
as nuances e contextualizações
necessárias, destaco a existência
de um imaginário sobre o
evento político e sobre o poder
que já está em movimento há
muito tempo nas teorias sociais
antes do aparecimento da
antropologia política enquanto
especialização.
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mo, no entanto, a possibilidade de explorar a temática das instituições políticas,
mesmo em sociedades em que se questionava sobre o Estado, apresentou um novo
campo de possibilidades analíticas à antropologia.
O trabalho de Evans-Pritchard é representativo deste período (2008). Quando
se dedica a compreender as instituições e o sistema político Nuer, o autor começa
por descrever o esquema de segmentos das tribos e o modo como, em princípio,
elas não denotam estrutura ou coerência política equivalentes ao Estado. Seu tra-
balho não fala sobre poder político necessariamente, mas sobre diferentes arran-
jos relacionais que conduzem ao desempenho de funções da organização social
e política. Um grupo político somente se constitui enquanto tal, entre os Nuer,
em situações particulares, quando se demanda um tipo de organização que gere
tal identicação. Ainda que cada grupo possua diversos segmentos, eles tendem
a unir-se em oposição a outros agrupamentos, tornando a fusão e a segmentação
formas constantes do que Evans-Pritchard chama de estrutura política Nuer.
A constituição de um grupo, feito circunstancial, não se qualica como uma
identidade permanente e, em simultâneo, um segmento pode estar relacionado
com outros, para outros ou os mesmos ns, e gerar diferentes identicações tran-
sitórias. Evans-Pritchard também notou que a chea entre os Nuer não correspon-
dia a uma gura formal ou a uma liderança com esfera e poderes denidos. Ao
contrário, uma “personalidade social de destaque” (Evans-Pritchard 2008, 190),
associada ao papel de uma liderança, alcançaria este lugar por uma variedade de
aptidões pessoais e disposições sociais, que permitiriam a ela exercer inuência
em um grupo de sujeitos aparentados, mas não na comunidade e nem no grupo,
de modo mais extenso.
Edmund Leach (2014), também considerado uma leitura central para discus-
sões antropológicas neste âmbito, igualmente não constrói um conceito inequí-
voco sobre poder, armando que o poder é um atributo de “pessoas com cargo”.
Embora acene com uma conceituação, Leach discorda de que os desejos ou as
necessidades que orientam as ações sociais destinadas a obter poder possam ser
tão rapidamente associadas a ns particulares e inambíguos (2014, 78). Quando
expressa a conexão entre poder e “pessoas com cargo”, Leach não está falando
sobre poder político no sentido como o entendemos, mas ao desenvolvimento da
“pessoa social”, do reconhecimento e da busca do “apreço” dos companheiros do
grupo. Em suma, portanto, o poder aí não aparece como um conceito amarrado a
instituições em particular, mas ao desempenho das relações sociais, onde adquirir
poder pode exercer um diferencial signicativo.
O autor está preocupado em demonstrar que os modelos imaginados pela
antropologia da época pressupunham equilíbrio e utilizavam do conceito de estru-
tura social (Radclie-Brown 2013) como um recurso para enfatizar a estabilidade
dos grupos sociais. Leach (2014) conclui que é importante contrastar as estrutu-
ras sociais imaginadas pelos antropólogos às sociedades reais, que, ao contrário
do que pressupõem os modelos estáticos, estruturam-se em correlação com o
ambiente e suas transformações. Uma sociedade real, diz ele, é “um processo no
tempo” (2014, 69). À antropologia caberia estudar as ideias sobre a distribuição de
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poder entre grupos e pessoas que conduzem à construção das estruturas sociais
em situações práticas (2014, 68). Os trabalhos de Evans-Pritchard, Leach, e outros
do período, estão alinhados com a evidenciação do aspecto político de outros
modelos de relações e fazem uma contribuição central para o desenvolvimento
do campo da antropologia política (Kuschnir 2007).
Saindo do funcionalismo britânico, o confronto da antropologia com seu pró-
prio papel na dominação colonial impactou o modo de engajar com o poder em
antropologia a partir da segunda metade do século XX (Niezen 2018). Movendo-
-se para além do problema da associação entre poder e Estado, mas também do
poder como atributo de atores especícos ou de pessoas com autoridade, o foco
teria passado para territórios mais amplos e contraditórios de poder. Os estudos
passaram então a privilegiar os modos como a subalternidade e a vulnerabilidade
poderiam emergir no interior de relações de poder, no capitalismo, em políticas
e empreendimentos internacionais (Niezen 2018, 2); condizentes com outras dis-
cussões também sobre o papel da antropologia política na evidenciação de um
sistema mundial e na produção de etnograas do capitalismo (Caldeira 1989, Ri-
beiro e Feldman-Bianco 2003). Ocorreu também uma pulverização de problemas
teóricos e temas de pesquisa a partir dos anos 1950, como arma Kuschnir (2007),
motivado pelo enfrentamento de novas questões, percebendo-se aí o impacto do
feminismo e das discussões pós-coloniais nas reexões sobre o poder (Kuschnir
2007, Maluf 2013).
O vasto trabalho de Michel Foucault e o surgimento de uma “etnograa das
instituições” (Niezen 2018), correspondem a duas formas importantes de enga-
jamento com o poder na segunda metade do século XX, de grande impacto para
a antropologia como um todo. No primeiro caso, representando um descentra-
mento do poder com relação ao Estado e buscando interpretar, sob um olhar
histórico-crítico, a formação de discursos e tecnologias que agem indiretamente
como formas de dominação, e no segundo, buscando uma maior especicida-
de, principalmente a partir da etnograa, na descrição dos efeitos e práticas do
poder nas organizações. Estes dois movimentos são cruciais para acompanhar o
desenvolvimento da antropologia política a partir dos anos 1950. Conceitos como
o de relações de poder, hegemonia, dominação, ideologia, capital cultural, entre
tantos outros, exerceram papel importante a partir desse período, na medida em
que as instituições passaram a ser interpretadas por sua capacidade de engendrar
formas de dominação e de violência, em congurações de poder mais ampliadas
(Niezen 2018, 5).
Merecem destaque também os trabalhos de Pierre Clastres (2003), cuja elabo-
ração seminal sobre as ditas “sociedades contra o Estado” teve grande impacto no
campo da antropologia política. Em sua discussão sobre o papel da chea entre
sociedades indígenas, principalmente da América do Sul, o autor demarca que a
liderança não se dá pelo exercício efetivo de um poder coercitivo, salvo em situ-
ações excepcionais, mas sim, majoritariamente, pela produção de uma função
pacicadora, moderadora, generosa, comunicativa, em correlação com um papel
de mediação e não de comando ou de decisão sobre outros. O autor reete sobre
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a estranheza de uma chea que exerce uma autoridade “sem poder”, ou, da per-
sistência de um “poder impotente” (Clastres 2003, 47). O feito realizado por Pierre
Clastres teria sido o de centrar a antropologia política no poder, articulando-a
principalmente em torno dos diferentes modos de constituição da política nas
diferentes sociedades humanas e não em tipos ideais (Lima e Goldman 2003, 15).
Próximo ao m do século impõem-se ainda outras questões, sobre a produção
da autoridade e do poder a partir da escrita antropológica e das limitações do con-
ceito de cultura. O problema, diz Strathern (2013), é um de natureza técnica: de
“como criar uma consciência de mundos sociais diferentes, quando tudo que se
tem à disposição são termos próprios” (2013, 43). A tradução de um mundo con-
cebido como outro envolve um esforço de tornar aquela existência uma adaptação
capaz de ser compreendida dentro de um universo conceitual que possa abrigá-la,
de certa forma criando este universo (Strathern, Idem). A consciência profunda
do problema da representação etnográca já nas décadas nais do século XX (Cli-
ord e Marcus 1986, Caldeira 1988), transformou ainda mais profundamente as
interpretações sobre a questão do poder em antropologia, que, ao longo do século,
trilhou um caminho que partiu da conturbada relação com o Estado para o estudo
dos seus limites.
O fortalecimento da etnograa e da pesquisa de campo como instrumentos da
prática antropológica demarcaram uma transformação importante para as teorias
antropológicas do século XX (Guber 2001), e a etnograa é um nódulo central nas
discussões que envolvem o poder neste mesmo período. Na passagem do século,
a etnograa correspondeu à grande invenção dos funcionalistas britânicos, anun-
ciando um novo tipo de texto antropológico, uma nova forma de traduzir o outro
(Strathern 2013). No contexto da chamada crise da representação e nas críticas
sobre o autor, a etnograa é novamente o centro da discussão, suas formas de
autoridade, sua natureza literária, política, artística (Cliord 2002). Concomitante-
mente, o desenvolvimento das chamadas teorias da prática e as novas sínteses en-
volvendo a relação entre indivíduo e sociedade impulsionaram o desenvolvimento
das críticas feministas, colocando um novo conjunto de questões que envolviam
as estruturas de dominação e também a dimensão da ação social/agência (Ortner
2006, 2011). A agência, por exemplo, jamais sairia da agenda antropológica nos
anos que se seguiram, impulsionando ainda outras reexões em diferentes cru-
zamentos (Mahmood 2019, Despret 2013, entre outros).
A adoção, pela antropologia, de um conjunto de discussões teóricas mais
abrangentes5 e não necessariamente nascidas no campo antropológico, deu-se
igualmente pela ênfase no papel da etnograa na descrição de novos agentes,
movimentos e processos sociais. Em suma, os diferentes movimentos que acom-
panham o desenvolvimento das teorias antropológicas no século XX não podem
ser descolados do fortalecimento da etnograa como prática vinculada à prática
antropológica. Nesses diferentes movimentos, a questão do poder jamais deixou
5 Ver Maluf (2013), sobre o
impacto das críticas feministas,
pós-coloniais, das losoas da
diferença, entre outras.
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de estar presente de uma forma ou de outra. Como sugeriram Palmeira e Goldman
(1996) em sua leitura do trabalho de Kuper (2008), o poder acaba tendo um lugar
central no desenvolvimento da antropologia social.
Pode-se falar, neste sentido, de um lugar especial que o poder ocupa na an-
tropologia. De sua natureza “oblíqua, indireta, oculta” (Niezen 2018). Na antropo-
logia, o poder
(...) não seria uma coisa dada, não seria uma realidade substantiva para a
qual se oferecem pensamentos teóricos que lhe correspondessem, pres-
supondo um apelo a uma concepção referencial da verdade. (...) quando
falamos de poder, no sentido em que essa noção ganhou valor operatório,
implícito ou explícito, no pensamento antropológico, não reivindicamos
um objeto sobre o qual a “tradição” da disciplina de modo unívoco e linear
veio a oferecer, cumulativamente, uma maior inteligibilidade (Sá 2015, 87).
Ainda assim, na antropologia do m do século XIX e início do século XX
ainda está preocupada em tematizar a política, o Estado, a economia, a religião,
partindo dos próprios modelos de socialidade ocidentais (Rapport e Overing
2000, 335). Da mesma forma, apesar de ter sido levada a compreender outras
congurações de poder a partir da segunda metade do século XX, os estudos an-
tropológicos sobre poder e sobre política ainda assim enfatizariam a dominação
como um modo privilegiado da prática do poder. Vale a pena lembrar a crítica de
Marshal Sahlins (2004), para quem existiria “uma hiper-inação de signicância”,
uma “obsessão foucaulti-gramsci-nietzsheana com o poder”, a encarnação do
“incurável funcionalismo da antropologia” (Sahlins 2004, 27). Derivações como
hegemonia, resistência, contra-hegemonia, violência, colonização, dominação,
entre outras, ao invés de serem aprofundadas pela antropologia teriam sido tri-
vializadas pela sua subsunção ao poder, esvaziando-as de suas referencialidades
(Sahlins 2004).
Um traço marcante da antropologia é o de, como às vezes se diz, levar a sério
os sujeitos. Esta ênfase, especialmente no campo da antropologia política, pode
ser elaborada, a partir da ideia de “teoria etnográca”, proposta por Goldman
(2006). Para o autor, a teoria etnográca teria como proposta tentar solucionar o
problema do meio que se forma em antropologia, quando vemos, de um lado, as
teorias nativas e de outro, as teorias cientícas. Seu objetivo central seria:
a elaboração de modelos de compreensão de um objeto social qualquer
que, mesmo produzido em e para um contexto particular, (...) [pudesse]
funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contextos (Gold-
man 2006, 170-171).
A ideia de teoria etnográca é importante pois não está centrada em conceitu-
ações generalistas, mas sim, nos modos como tais relações emergem em contextos
empíricos precisos, colocando em comparação conceitos diversos, sem cair na
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extrema particularização nem na objeticação cientíca. O movimento, diz Gold-
man (2006, 28), procederia um pouco à moda do pensamento selvagem, coletando
elementos concretos e combinando-os em análises mais abstratas e capazes de
explicitar outras formas do pensamento humano em ainda outros contextos.
Em seu comentário sobre as relações entre antropologia e etnograa, Ingold
(2017) sugere que a antropologia tem a possibilidade de losofar no mundo, em
conversação com seus múltiplos e diversos habitantes. A conexão da antropologia
com o mundo, seu caráter especulativo é o que a caracterizaria, mais do que a et-
nograa propriamente, com sua própria história, e cujos objetivos não se esgotam
na antropologia como forma de generalização teórica. Ingold (2017) problematiza
a correspondência entre antropologia e etnograa, defendendo a primeira como
forma de exploração comparativa e sensível com o mundo, mas não como expli-
cação ou etapa sucessiva ao “campo”.
A análise de relações de poder em contextos particulares, portanto, é coerente
com os desenvolvimentos das teorias ao longo do século XX, especialmente com o
uso da etnograa. A percepção de que o poder está mais bem localizado em con-
textos precisos, fortalecida pela grande pulverização de pesquisas e temáticas a
partir da segunda metade do século XX, também implicaria, no entanto, em uma
diminuição da capacidade da antropologia em fazer generalizações comparativas,
em contraste com a ideia de que fazer antropologia é fazer etnograa e depois
descrevê-la de modo integrado (Ingold 2017, 333).
É evidente que o poder congura uma problemática central na antropologia.
O que quero sugerir então, adentrando em seguida nas contribuições de Byung-
-Chul Han, é a possibilidade de olhar para o poder, o que se sabe sobre ele, o que
se diz sobre ele, reconhecer certos lugares comuns, inclusive tentar aprofundar
a crítica sobre o que fazemos com o poder em nossas pesquisas. Se o poder não é
uma coisa em si mesma, mas, ainda assim, como já vem sendo notado desde há
muito tempo, ele também não deixa de “fazer coisas”, então não é absurdo tentar
imaginar algum lugar “no meio”, entre a particularização excessiva dos contextos
em que o poder serve como forma de descrever relações de diferentes ordens, de
um lado, e as elaborações teóricas que podemos fazer sobre ele, de outro.
O argumento, nesse sentido, é o de que a prática antropológica no momento
presente já é ela própria uma experiência de atravessamentos entre diferentes
questões, mas que muitas vezes chegamos ao campo com uma ideia presumida das
relações de poder6. Esta não é uma constatação nova, e talvez a empresa antropoló-
gica tenha sempre tratado disto, mas talvez caiba começar a reimaginar os modos
com que trabalhamos com diferentes categorias. Diferentes vozes, dentro e fora da
antropologia, têm engajado na interpretação de eventos marcados pela incongru-
ência, pela instabilidade, pela fragmentação, condizente com os movimentos que
se situam no contemporâneo. Tem-se chamado atenção para a necessidade de pro-
duzir novas ciências da complexidade (Cesarino 2022), atentar para o mundo em
mudança, questões que já não podemos deixar de perceber em nossas pesquisas.
Diferentes autores (Maluf 2013, 2015; Cesarino 2021, 2022; Ingold 2015; Sten-
gers 2015; Segata e Riotis 2021; Dardot e Laval 2016) têm trabalhado para de-
6 Por ser um ensaio voltado
à discussão teórica, não apre-
sento aqui discussões de meu
próprio trabalho de campo.
A motivação inicial para esta
revisão, no entanto, situa-se
precisamente na pesquisa de
um contexto social particular
(Ciello 2013, Ciello 2019) em que
as ideias de poder não chegam
somente enquanto teorias cien-
tícas, mas como formulações
do campo da saúde mental, da
psiquiatria, dos próprios pro-
ssionais com quem pesquisei,
dos movimentos sociais.
Byung-Chul Han e a antropologia do poder: aportes reexivos
Fernando José Ciello
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monstrar como parece existir um novo estado de coisas com instituições que antes
poderiam ser tomadas como estáveis; sobre o problema de lidar com temáticas em
que eventos frequentemente escapam de modelos já estabelecidos; sobre novos
sujeitos, movimentos e práticas sociais; entre outros. Para os efeitos deste ensaio,
o que se vislumbra é a possibilidade de que, mesmo com diferenciações signica-
tivas com relação aos paradigmas antropológicos, ao sugerir novos olhares para
os arranjos que envolvem o poder, Byung-Chul Han pode se somar aos esforços
dessas antropologias do contemporâneo.
Um movimento que Han realiza é o de contestar a noção segundo a qual o
poder emerge da imposição da obediência, contrapondo-se a um modelo de poder
como forma de coerção. O autor indica que usualmente entende-se poder como
uma mera relação causal entre ego e alter, em que ego é capaz de gerar no alter a
realização de determinado comportamento contra a vontade do mesmo. O alter,
nesse modelo, sofre a vontade do ego, e esta vontade lhe é alheia e imposta. A li-
berdade do alter, entendida no âmbito da relação com este outro poderoso, seria,
assim, limitada pelo poder do ego (Han 2019, 9).
Para Han, é característico do acontecimento do poder que o ego provoque no
alter o desejo e o querer; que o ego se continue na percepção de si do alter. Neste
sentido, a lógica das relações de poder não teria a ver com a imposição de obediên-
cia nem, tampouco, com a neutralização pré-reexiva da vontade do subordinado.
O acontecimento do poder estaria envolto, assim, em relações de mediação, de-
pendência, interdependência, participação, reciprocidade, inuência, adaptação,
persuasão, entre tantas outras.
A lógica segundo a qual o poder emanaria ou de cima ou de baixo, hierarquica-
mente, produziria um modelo adialético (Han 2019, 15-16), resultante de uma aten-
ção demasiada para o poder como forma de opressão e não como forma criativa.
Há que se considerar, segundo o autor, “a dialética múltipla do poder” e as diferen-
tes “constelações políticas”, dado que um poderoso criará estratégias de manter-se
ou de manter seu projeto de poder em seus subordinados, aumentando o número
de pessoas que, de alguma forma, participam daquele projeto (Han 2019, 16).
O argumento de Han, no entanto, não é somente sobre a não sinonímia entre
poder e coerção, o que parece bem estabelecido em antropologia, mas de que o
poder é um “fenômeno da forma” (2019, 11), pois depende de como uma ação é
motivada. Assumindo o problema da representação de que o ego se impõe no alter,
a pergunta seria sim sobre que tipo de aparência assume a relação. Ao falar da
lógica do poder como uma lógica que se projeta para além do desejo de dominação
e de força sobre outros, Han (2019) sugere que o poder produziria não uma força
ou um golpe mecânico, mas um espaço e um domínio de movimentos e relações.
A existência de um poder maior seria acompanhada por um “sim” de “livre-
-vontade” e não pelo “não”, ou pelo “devo” dos subordinados. Esse poder capaz de
continuar-se no alter de modo não coercitivo é tomado por Han como um poder
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mais capaz de mediação do que aquele do modelo puramente baseado na coerção.
O poder, assim, reetiria a capacidade de fazer uir o desejo do ego em uma di-
reção ali imaginada e fazer com o que o alter também o desejasse. O poder, neste
sentido, não excluiria a liberdade, nem poderia ser considerado seu oposto, mas
promoveria uma relação com ela: a liberdade apareceria aí como um modo de
garantir a impressão de ausência do poder e, ao mesmo tempo, a aceitação tácita e
envolta pela livre-vontade do alter. A liberdade, portanto, é um efeito de uma certa
forma que assumem as relações de poder. Liberdade e poder, assim, poderiam
perfeitamente estar arranjados em relações de poder, congurando-o assim como
um evento essencialmente vinculado ao que chama de mediação.
A aparência da relação entre um ego e um alter foi uma questão também deba-
tida por Eric Wolf (Feldman-Bianco e Ribeiro 2003). Para o autor (Idem), existiriam
quatro formas essenciais de poder, sendo que a capacidade de um ego impor em
um alter sua vontade seria uma delas, que permitiria chamar atenção para as “se-
quências de interações e transações entre pessoas” (2003, 326). Os outros modos
de poder seriam o poder como atributo da pessoa - capacidade ou potência pes-
soal; o poder como controlador de cenários e arenas onde as interações ocorrem
e; por m, o poder como organizador dos próprios cenários e da distribuição e
uxo da energia dentro de uma estrutura de poder. Para Wolf (Feldman-Bianco e
Ribeiro 2003), assim, há um escalonamento das práticas do poder, sendo que se
pode atentar para quatro planos, iniciando no próprio sujeito e indo em direção
a estruturas mais abrangentes.
Comparativamente, em Han, os modos do poder se articulam em torno de
cinco dimensões: sua lógica, sua semântica, sua metafísica, sua política e sua
ética. Enquanto em Wolf (Feldman-Bianco e Ribeiro 2003), as quatro dimensões
podem ser avaliadas isoladamente, como momentos distintos ou como ênfases
distintas em diferentes processos, em Han (2019), não há uma clareza sobre o que
signicam tais dimensões, pairando a dúvida se de fato o que se busca é um “novo
conceito”, unicado, de poder, ou se de fato o autor está chamando atenção para
as armadilhas de nossas próprias representações sobre ele.
Sua posição com relação à mediação parece importante ainda de outras duas
maneiras. Em primeiro lugar, sua posição é consistente com a ideia de que a re-
lação é um ponto central, isto é, como acontecem os diferentes processos que
colocam os agentes em relações, abrindo-se aí para a possibilidade de extrapolar
a dimensão da coerção ou da dominação. Em segundo lugar, o autor também re-
cupera o problema de que, em alguma medida, os sujeitos têm conhecimento dos
processos sociais dos quais tomam parte, no sentido de que há uma participação
nos projetos de poder e que as relações que aparecem aí (se resistência ou não)
resultam do arranjo próprio e das posições que tais sujeitos ocupam.
Ausência
Para Han, a fórmula corriqueira do poder, portanto, não faz jus à sua com-
plexidade, dado que o aparecimento de uma resistência ou oposição denotaria
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justamente a fraqueza do poder. As ideias de resistência e disputa, podemos de-
preender, não podem ser lidas apenas como formas de oposição ou contraposi-
ção a um poder estabelecido, mas nas dimensões de mediação e agenciamento
existentes entre esses lugares. Para Han, “quanto mais poderoso for o poder, mais
silenciosamente ele atuará. Onde ele precise dar mostras de si, é porque já está en-
fraquecido” (2019, 9-10). Uma segunda questão no debate sobre a lógica do poder,
neste sentido, refere-se à sua capacidade de não estar aparente, conforme sua ca-
pacidade de mediação. O poder, dirá Han, “resplandece pela ausência” (2019, 92).
Uma vez que não se trata de violência pura, pois o poder ocorre em processos
de mediação, e a violência é carente desta capacidade, o poder só pode manter-se
enquanto tal na medida em que crie ou habite horizontes de signicado que orien-
tam para a ação. Em articulação com a lógica, portanto, o poder também é dotado
de uma semântica. A ocorrência de sentido só pode existir dentro de redes de
relações que atravessam e ultrapassam o fato enquanto tal (Han 2019, 52). O senti-
do, assim, é tomado pelo autor como um fenômeno relacional e, também, o lugar
onde está baseada a mediação necessária às relações de poder. O poder de fato
aparece aí, portanto, como uma relação e não como algo que pode ser possuído.
As regras, disposições e costumes de um povo, por coercitivas que sejam,
são vivenciadas como liberdade e, assim, tem uma capacidade maior de produzir
sentido com a perpetuação da lógica do poder. A continuidade deste sentido está
atrelada ao “ser-aí” (dasein) do qual fala Heidegger e que serve como o signicado
interiorizado pela formulação de um “a gente” que é inconsciente do poder, mas
que se perpetua enquanto normalidade, cotidiano, consciência, natureza (Han
2019, 88-89). Segundo Han, portanto, é a automação deste hábito que aumenta
a efetividade do poder, posto que aparece sob a rubrica deste “a gente” natural e
cotidiano (Han 2019, 91).
Um autor crucial às discussões de Byung-Chul Han (2018, 2019), como já se
deve ter percebido, é Michel Foucault. As tecnologias de poder (Foucault 1987)
poderiam ser descritas a partir de seus efeitos semânticos: o poder da soberania
seria um poder pobre em mediação mas, ainda assim, produtor de uma simbolo-
gia relacionada à espada, ao sangue, a vingança e à luta, signos centrais através
dos quais o poder se comunicaria (Han 2019, 69-70); o poder da legislação civil, por
outro lado, não teria o controle sobre a espada e a luta, mas sim sobre a pena que
produz a lei. Possuindo maior capacidade de mediação, o poder da feitura de leis
seria também o poder do controle de ideias. Ele se mantém enquanto tal pelo seu
potencial de fazer circular um sistema de signicantes, que é respeitado, incor-
porado moralmente (Han 2019, 72-73); o poder da disciplina, por m, penetraria
“profundamente no sujeito [na forma de] (...) feridas e representações” (Han 2019,
74). Nem da espada, nem da lei, o poder disciplinar estaria baseado em uma outra
linguagem, do hábito, aliada com a criação de corpos adestrados e obedientes, e
vendendo-se como normalidade, cotidianidade e trivialidade (Han 2019, 74-75).
Vale a pena demorar um pouco nas associações entre Foucault e Han. Em
primeiro lugar, a questão do poder, em Michel Foucault, não se coloca pela neces-
sidade de um conceito, mas pelos problemas suscitados pelo que o autor conside-
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rava o objetivo central de sua obra, o de “criar uma história dos diferentes modos
pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (Foucault
1995, 231). Para estudar tais modos, seria necessário um modelo que não apenas
pensasse nas formas de legitimar o poder, nos modelos legais, mas que também
fosse capaz de ampliar estas denições (Ibid., 232). Ao invés de uma análise volta-
da para a racionalização geral das relações de poder em nossa sociedade e nossa
cultura, a proposta seria então a análise desta racionalidade em campos especí-
cos, como processos bem situados. Um ponto de partida para esta nova analítica,
mais preocupada com a relação entre teoria e prática, seria partir das “formas de
resistência contra as diferentes formas de poder”, não somente analisando o poder
a partir de sua racionalidade interna, mas do “antagonismo das estratégias” nas
relações de poder (Ibid., 234).
No desenvolvimento desta ideia, Foucault parece indicar que o que está em
questão não é a resistência em si mesma como uma operação intrínseca do po-
der, mas de que especialmente no Estado moderno, lutas como as que opunham
homens e mulheres, medicina e população, entre outras implicavam formas de
resistência que poderiam ser um ponto de partida para compreender as relações de
poder. Em Sujeito e Poder (1995 [1982]), Foucault distingue três modalidades de luta:
contra as formas de dominação; contra as formas de exploração; conta as formas
de sujeição. Anteriormente, no entanto, na História da sexualidade (2015 [1976]),
a ideia de luta não é utilizada pelo autor, quando descreveu o poder como “uma
situação estratégica complexa numa determinada sociedade” (p. 101).
Castro (2016) sugere que a interrogação sobre o poder, em Foucault, tem mo-
tivações políticas, principalmente relacionadas com os fenômenos da moderni-
dade: “o Estado centralizado, a burocracia, os campos de concentração, as políti-
cas de saúde” (2016, 323). As formas políticas da modernidade promoveram uma
“combinação complexa de técnicas de individualização e de procedimentos de
totalização” (Foucault apud Castro 2016, 323) que foram tematizadas por Foucault
como reação ao seu tempo. O olhar de Foucault para o poder, portanto, não decor-
reu de uma necessidade de avaliar o conceito no sentido de sistematizar aspectos
que lhe seriam inerentes, mas sim, de racionalizar sobre diferentes de seus me-
canismos e modos de funcionamento, analisando racionalidades especícas que
emergiram em um determinado período do tempo.
Han concorda que Foucault busca se afastar do poder como uma forma nega-
tiva, apenas destinada a “excluir, oprimir, expulsar, censurar, abstrair, mascarar,
dissimular” (Han 2019, 63). Mas, em sua opinião, Foucault teria privilegiado a
dimensão da resistência ao orientar sua análise para as práticas de coerção e para
a presença de um “paradigma da luta” nos processos que observou (Han 2019, 65).
A existência de luta ou resistência, por outro lado, não é um critério, em Han, para
que se reconheçam relações de poder (2019, 182).
Estas distinções entre os dois autores reetem menos um problema metodoló-
gico, e mais os diferentes lugares de onde falam. São as novas condições de vida no
neoliberalismo que se impõe na obra de Han. Em outro de seus trabalhos, a neces-
sidade para uma tal discussão ca explícita (Han 2018). É que no neoliberalismo
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passamos a acreditar que somos projetos livres e insubmissos, não tanto sujeitos
do poder (substantivado), mas capazes de poder (Han 2018, 10). O que o autor
sugere é que, no âmbito do neoliberalismo, o sujeito torna-se capaz, participante
do projeto dominante, desejoso da reinvenção pessoal, do empreendimento de si,
pois experimenta a liberdade como forma de poder fazê-lo. O que está em jogo aí,
portanto, não é mais uma relação de exploração explícita, mediada por uma resis-
tência do “subalterno”, mas seu aceite tácito em participar do projeto de poder7.
Enquanto no regime disciplinar, o corpo é o objeto de um regime biopolítico
(Foucault 1999, 2008, 2015, 2019; Deleuze, 1992), no neoliberalismo, a “alma” torna-
-se o objeto, transformando-o num regime agora psicopolítico (Han 2018, 30; 40).
Os imperativos que comandam o modo de existir neste mundo são os estímulos
positivos, as emoções, a otimização mental, o empreendimento de si à exaustão, a
iniciativa, a motivação, as técnicas de autoajuda, os tratamentos psicoterapêuticos,
entre outros8. No neoliberalismo, portanto, a dimensão das lutas e da resistência,
no sentido que lhe conferiu Foucault (1995), estaria cada vez menos presente, mes-
mo nestes grandes blocos de oposições, pois o dispositivo psicopolítico implicaria
eu uma nova “programação” subjetiva.
De toda forma, de um ponto de vista da antropologia da política e do poder,
que se ampara fortemente na obra foucaultiana, as duas perspectivas não pare-
cem mutuamente excludentes. A seu modo, Han vê na reexão sobre as formas
de poder uma possibilidade de racionalizar novas problemáticas e controvérsias
da contemporaneidade, a respeito das quais certamente não faltam exemplos: a
pandemia mundial, a crise climática e o antropoceno, a guinada à extrema-direi-
ta em vários governos no mundo, o reaparecimento do fascismo, entre outros.
A dimensão que ressalta em Foucault é, como ele próprio diz, a de que o poder
designa um “conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras”
(Foucault 1995, 240). Na leitura que se oferece aqui, ambos os autores provocam,
assim, uma reexão de interesse para a antropologia, na medida em que colocam
em questão as múltiplas formas, operações, posições que se encontram dispostas
nas relações de poder.
Continuidade do poder
Como vimos, para Han, um poder que deve se mostrar enquanto tal efetiva-
mente não tem capacidade de mediação, pois não é capaz de continuar-se no ou-
tro. Um pleno poder, ao contrário, seria aquele capaz de autocompreensibilidade,
de resplandecer pela ausência. A sociedade capitalista não poderia jamais ter se
sustentado se estivesse apenas amparada na repressão (Machado 2019, 19): o que
permite que estruturas de poder se perpetuem ou se transformem, se continuem
nos projetos individuais das pessoas? Como investigar estas diferentes formas de
relacionar-se com os eventos do poder? Ao contrário do desagenciamento, para
Han, o poder permitiria ir-além-de-si: o desejo de poder estaria fundado no reen-
contro de si no outro, isto é, no reencontro não só dos projetos e intentos do ego,
mas do próprio self, no alter, recolocando por assim dizer uma dimensão do lugar
7 Butler (2017) traz cola-
borações importantes sobre
esta temática. Para a autora, a
ambivalência do poder como
forma de produção e de subor-
dinação é uma temática pouco
explorada. Ela investiga o que
torna possível que, simultane-
amente, a subordinação torne
possível a emergência do sujeito
e as condições para a possibi-
lidade de ação. Como Han, a
autora problematiza a ênfase no
poder como força que se impõe
e pressiona os sujeitos.
8 Para Dardot e Laval (2016), o
neoliberalismo tornou possível
uma sociedade empresarial por
meio do prolongamento dos
desejos de máxima produtivi-
dade e de autoempreendimento
nos próprios sujeitos, a partir
de uma nova norma subjetiva
(Dardot e Laval 2016, 321).
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da alteridade nas relações de poder.
Poder, nesta perspectiva, é uma característica fundamental da experiência de
ser humano e uma política da alteridade, por assim dizer. Não compondo nunca
entidades ontológicas discrepantes, ego e alter relacionam-se no evento da ação, há
possibilidades de agência que se pronunciam em ambas as direções. É necessário,
segundo Han, que se visualize o alter como “indivíduo capaz de tomar decisões e
de agir de maneira ativa” (Han 2019, 100), atentando-se aí para os múltiplos modos
por meio dos quais alter e ego integram-se e, também, para os modos por meio dos
quais também o alter experimenta liberdade e participa de projetos de poder. Uma
atenção decorrente é possível aqui, justamente para ressituar liberdade, poder e
democracia, valores que compõem nossas constelações de poder, para além dos
referenciais capitalistas e liberais onde estão amarradas.
Han aprofunda o sentido da continuidade de si no outro para um espaço sub-
jetivo: o outro não é dominado, necessariamente, mas interiorizado, assimilado.
Subjetivo aqui não seria, necessariamente, referente a uma oposição entre objeto
e sujeito, mas, precisamente, a uma isomora conceitual entre eles: sujeito e ob-
jeto se reconciliam na interiorização (Han 2019, 114). O poder teria, neste sentido,
como uma de suas dinâmicas essenciais, a “digestão” do outro, a transformação do
exterior estranho e negativo, em identidade e interioridade (Han 2019, 102-103).
A maior potência do ser seria sua maior capacidade de gestar a negatividade, de
portar o “não-ser”, de transformá-lo em um “vir-a-ser” (Han 2019, 106-107).
Pelo menos três aspectos parecem, assim, resultar centrais dessa discussão:
a) o poder permite a posse de uma representação e de uma imagem própria sobre
o mundo e sobre o outro, portanto uma imagem que não é a do outro, mas que
emergiu de uma dobra da alteridade. O poder não seria este algo desejado externo
ao ser humano, mas a condição mesma pela qual a “alma” e a identidade humana
se tornam possíveis (Han 2019, 119); b) “a vontade de poder é (...) sempre uma
vontade de si” (Han 2019, 106) e; c) “O poder é um fenômeno da interioridade e da
subjetividade”/ “A subjetividade é constitutiva do poder” (Han 2019, 108).
Na primeira parte deste ensaio, busquei desenvolver a ideia de que, em antro-
pologia, as discussões que tocam no poder estão intimamente relacionadas com a
etnograa. O surgimento da antropologia política coincidiu com o desenvolvimen-
to do trabalho de campo como traço prossional da atuação do/a antropólogo/a
e foi neste contexto, também, que a questão do poder passou a ser colocada de
modo mais especíco pela antropologia, muito embora ela nunca tenha estado
descolada da prática antropológica. Os desdobramentos que vieram com a obra
de Michel Foucault de modo geral, e o impacto das discussões sobre colonialismo
e das teorias feministas, especicamente, consolidaram um certo pendor antro-
pológico para o estudo do poder a partir de contextos empíricos precisos e não
como uma forma de racionalidade fundamental.
Uma diferença que considerei importante demarcar ao longo do ensaio, desta
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forma, é que enquanto na obra de Byung-Chul Han vê-se um apelo para o desen-
volvimento de um conceito mais móvel de poder, que pudesse ter sua aparência
modicada em resposta às combinações de diferentes aspectos constitutivos; em
antropologia não se chegou, ao longo da história da disciplina, a ser constituído
um conceito especíco de poder. Ao contrário, em antropologia, seguindo trans-
formações disciplinares importantes ocorridas ao longo da segunda metade do
século XX, a categoria central é a das relações de poder e do questionamento em
torno das instituições e lugares em que o poder aparece. Esta diferença pareceria
irreconciliável.
O que quero sugerir nesta última seção é que mesmo não investindo na deni-
ção de conceitos especícos, a prática antropológica não deixou de conformar um
conjunto de pré-conceitos sobre o poder. A perspectiva de Han (2019) tem resso-
nância com o que já se sabe em antropologia, de que ele não se esgota em um único
modelo de relação em que a dominação ou a opressão são tomadas como anulado-
ras da agência e do desejo dos subordinados. Mesmo na antropologia, no entanto,
a permanência da lógica jurídica, da hierarquia e da subordinação, perpetuou-se
na maneira como se buscou conhecer o poder. Assim, o poder parece estar sempre
imbricado em diferentes relações, mas efetivamente não se questiona por que o po-
der aparece seja nos discursos nativos ou nos cientícos como uma categoria dada.
Por um lado, portanto, a priori, o poder não é tomado como um fenômeno separado
das práticas sociais, mas como prática integrada em uma analítica das relações de
poder. Ao mesmo tempo, não obstante, a antropologia não apenas não investiu em
denir poder, mas também o presumiu no interior de distintas instituições sociais.
Assim, apesar de não constituir uma gura estável no arcabouço conceitual
da antropologia, é importante perceber que ao falar de diferentes congurações
de poder, a categoria em si mesma não deixa de ser substantivada, equiparada a
uma condição ontológica. Assim, aprendemos a falar do poder político, do poder
popular, de relações de poder, do poder das instituições, entre outros. O poder, ain-
da que relativizado, pareceria de alguma forma existir pré-objetivamente, e seria
somente na cultura reelaborado, recongurado. Para além da crítica das teorias,
o que parece importante reter é que o poder não existe apenas como categoria
de análise ou expressão conceitual de contextos particulares, mas que ao fazer
antropologia, também fazemos circular conceitos de poder que, em retrospecto,
podem também limitar nossa compreensão sobre quaisquer que sejam as relações
que ele permitiria (ou não) descrever. Podemos concordar, em parte, portanto,
com a crítica de Sahlins (2004) de que o poder foi trivializado em antropologia.
Ao mesmo tempo, no entanto, o contexto com relação ao qual se posiciona-
va Sahlins (2004), que escreveu tais impressões para uma conferência ocorrida
no ano de 1993, refere-se ao pós-modernismo em antropologia de maneira mais
imediata. Muitas questões, desde aquele momento, já foram repensadas, e um dos
méritos do pós-modernismo talvez tenha sido justamente colocar o poder em re-
levo, instigando discussões sobre agência, representação, ação social, autoridade
etnográca, entre outras. Da mesma forma a importância das críticas feministas
e decoloniais, bem estabelecidas em antropologia, residiu na retomada do poder
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como um tópico central para compreender a vida social, e na percepção destes
impactos na multiplicação de temáticas em antropologia (Kuschnir 2007, Vincent
2002, Niezen 2018). O poder não sai da agenda da antropologia por que as questões
que são suscitadas por seu estudo não deixam de se tornar presentes.
Se, por um lado, o modo como a antropologia tem pensado o poder não pres-
cinde da etnograa e Han, à primeira vista, não se associa com a mesma; por
outro, assim como a antropologia, ele está engajado em pensar com outros o que
signica o poder. Estes outros desincorporados, já que Han não evoca nenhum su-
jeito como faríamos em antropologia, são, no entanto, as próprias representações
comuns do poder que perpassam diferentes imagens correntes. Seu texto é, como
disse, provocativo, mas como sugere Ingold (2017), suas considerações ajudam a
lançar luz sobre o mundo, os debates públicos e as controvérsias da vida social,
lugares onde enm a antropologia pode se realizar. Uma razão para ainda pensar
no poder, é justamente o de fomentar a análise sobre diferentes constelações de
poder, por um lado, mas também o de talvez imaginar o que implicaria um con-
ceito antropológico sobre o mesmo, por outro.
Apesar de extensamente debatidas, imagens como as de que o poder é aquilo
que oprime e violenta; de que o poder é aquilo capaz de dizer não; que o ser hu-
mano busca incessantemente por poder; ou ainda, de que a política é um campo
que cria o poder e que todo poder emerge do Estado, são imagens resistentes em
nossas representações. Elas dizem alguma coisa, mas, essencialmente, quando
optamos por tratar o poder a partir deste lugar teoricamente puricado, tais con-
ceitos também nos impedem de descrever outras relações. Ao adotar uma postura
crítica quanto ao conceito de poder, abrir-se-ia a possibilidade de considerar que
modelo de relações subjaz a esta ideia quando empregamos a mesma em nossas
produções.
Tem se tornado cada vez mais comum que, ao invés de estudos sobre objetos
ou instituições claramente distinguíveis, tenhamos interesse em processos, em
relações, em ideias. Muitas das diculdades que parecem emergir na formação em
antropologia parecem prover do embate entre uma formação teórica preocupada
com a particularização e a objeticação de “contextos culturais” inconfundíveis,
quando nossos campos de pesquisa, são, por outro lado, todos multiplamente
constituídos, atravessados, multissituados, tensionados, disputados. Pensando
neste diálogo, Han talvez possa talvez estar um passo mais próximo da antropo-
logia do que se imaginaria a princípio.
Talvez a principal questão da obra de Byung-Chul Han sobre o poder seja
a ideia de que o poder não é uma relação causal entre um eu e um outro, onde
o primeiro impõe ao segundo, contra sua vontade, seu desejo. Apesar de esta
conclusão não estar distante da antropologia, ainda é uma inferência instigante
sobre o modo como a palavra poder circula em nossa vida cotidiana. A maioria
dos signicados atribuídos à palavra poder nos dicionários, por exemplo, utiliza
adjetivos como força, autoridade, controle, dominação, imposição, obediência,
superioridade, como algumas de suas qualicações. Isto testemunha o modo como
o poder parece amarrado a uma imagem de imposição de um eu sobre outro.
Byung-Chul Han e a antropologia do poder: aportes reexivos
Fernando José Ciello
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Quando chama atenção para este problema de princípio no modo como se teori-
zou sobre o poder, Han, de certa forma, concorda com a antropologia política, ao
notar que deve, anal, haver algo mais no poder do que apenas este modelo de
relação (Balandier 1969).
Neste sentido, vale prestar atenção aos detalhes e eventos que compõem as
constelações de poder, reconhecendo talvez aí a necessidade de tornar a antropo-
logia mais atenta a outras construções relacionais. É por este motivo, me parece,
que um texto como o de Han merece ser lido em antropologia, pelo reclame que
faz de uma atenção densa e sistemática ao conceito de poder. Tentei fazer uma
leitura a contrapelo do autor, deslocando talvez sua atenção do debate puramente
losóco para a contribuição que ele faz, implicitamente, a uma etnograa do
poder, no sentido de evidenciar simplesmente como o poder é uma categoria que
circula muitas vezes de modo trivializado e subsumido.
O postulado central de Han, da (re)articulação entre poder-violência-liberdade
e do lugar da mediação, da ausência e da relação no conceito de poder, pode ser
premente em um tempo em que cada vez mais testemunhamos rápidas e poten-
tes transformações nas constelações de poder que nos rodeiam. Sua discussão
pode contribuir para o desenvolvimento de uma sensibilidade etnográca com
relação às questões de poder e, seguindo a pista de Ingold (2017), também fazer
a antropologia engajar com comentários mais arejados sobre o poder, que não se
restrinjam à coletânea de casos etnográcos.
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Fernando José Ciello
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Sobre o autor
Fernando José Ciello
Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima, vinculado ao Instituto
de Antropologia e ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PP-
GANTS/UFRR). Pesquisador associado ao Instituto de Ciência e Tecnologia Brasil
Plural (INCT/IBP/UFSC) e ao Center for Global Mental Health (UC San Diego).
Contribuição do autor
Conceptualização da proposta do artigo, pesquisa, escrita e revisão de todas
as versões do texto.
Recebido em 24/04/2023
Aprovado para publicação em 07/05/2024 pela editoria Kelly Silva (https://orcid.org/0000-0003-3388-2655)
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