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artigo ] Julia Valle-Noronha
| NÚMERO 41 | MAIOAGOSTO 2024
https://dobras.emnuvens.com.br/dobras | e-ISSN 2358-0003
Moda e Agência Material
Fashion and Material Agency
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https://dobras.emnuvens.com.br/dobras | eISSN 23580003
artigo ] Julia Valle-Noronha
Julia Valle-Noronha1
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9284-2069
[resumo] Este trabalho conceitual se propõe a articular a questão da agência material
na moda e como a experiência material travada com as coisas que vestimos pode servir
de suporte para se repensar as práticas de moda. O texto se baseia em teorias de agência
material, pós-humanismo e afetos e devires, e considera que não apenas as pessoas, mas
também as coisas que usamos, desempenham um papel ativo no sistema da moda. Para
[palavras-chave] agência material. práticas da moda. experiência material. moda e
responsabilidade.
[abstract] This article proposes to rethink fashion from a material agency perspective.
It seeks to reimagine fashion practices based on the experiences we have with the things
we wear. The text is based on theories of material agency, posthumanism and affects and
becomings, and considers that not only people, but also the things we wear, play an active
role in the fashion system. To discuss the subject fashion examples are used. The text con-
design and experience.
[keywords] material agency. fashion practices. material experience. fashion and res-
ponsibility.
Recebido em: 02-04-2024
Aprovado em: 14-05-2024
1 Doutora em Artes (Design) pela Aalto University. Professora Assistente da Aalto University, Depart-
ment of Design. Email: julia.valle@aalto.fi. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6482713572189906
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Introdução
Boa parte dos mais de 8 bilhões de indivíduos que habitam a Terra hoje passam a maio-
ria do seu tempo vestidos, seja com penas, algodão, tinturas, lã ou tantos outros materiais.
Esse fato denota a importância das experiências que compõem a moda – como a experiência
do vestir, de confeccionar ou de manutenção de roupas. Pesquisadores em Cultura Material e
Antropologia apontam para um distanciamento entre as pessoas e os objetos de design, e.g.
roupas, e uma atenção quase exclusiva à dimensão estética visual da moda (Anusas; Ingold,
2023; Chapman, 2015). Tal distanciamento, eles argumentam, promove uma série de ques-
tões problemáticas, como o descarte prematuro, o uso irresponsável de recursos naturais e a
exclusão de partes da sociedade. Esforços recentes propõem um novo olhar para as agências
da moda, mudando o foco da atenção da estética visual para uma estética da experiência, con-
siderando que não apenas os humanos, mas também as roupas desempenham papel ativo nas
construções que compõem a moda. Este trabalho argumenta que tal mudança de foco pode
ser capaz de alterar o atual distanciamento entre as pessoas e as roupas que usam, promo-
vendo um futuro mais responsável para a moda. Para se iniciar esta discussão, este trabalho
propõe conceituar a ideia de agência material na moda a partir da exploração dos conceitos de
afeto e devir, baseado na filosofia de Deleuze e Guattari e em seus desdobramentos contempo-
râneos. A partir dessa exploração, é proposto repensar as práticas de moda, incluindo formas
de interação entre pessoas e roupas que vão além da atual ênfase estética2, com o intuito de
promover a longevidade da vida útil das roupas, o uso responsável de recursos como materiais
têxteis e a valorização de pluralidade social e estética.
Este texto começa introduzindo o conceito de afeto (Deleuze; Guattari, 1987) por
meio do trabalho de designers de moda contemporâneos3. Em seguida, é discutido o sur-
gimento das teorias de agência material e como elas têm sido empregadas no campo do
design e da moda. O resultado desses afetos nas relações usuário-vestimenta, conforme vis-
to à luz da teoria da agência material, é compreendido pelo conceito de devir, explorado
na sequência. Finalmente, o trabalho conclui com uma discussão sobre como essas teorias
podem oferecer direções para novas formas de relacionamento entre as pessoas e as coisas
que elas vestem para um futuro mais responsável.
2 Este texto é amplamente baseado no Capítulo 3 de minha tese de doutorado, intitulada Becoming with
Clothes (Valle-Noronha, 2019). Esta versão, traduzida para o português, está focada exclusivamente
em uma proposta conceitual de agência material da moda. O texto original sofreu diversas alterações,
como a exclusão de discussões fenomenológicas, ficando mais compacto, e a adição de uma reflexão
sobre o papel do pós-humanismo no avanço de questões ambientais.
3 Afeto, para Deleuze e Guattari, se difere do conceito de ‘afeição’ e denota uma habilidade de mudar
e promover mudanças, de afetar e ser afetado. O termo será mais explorado no decorrer do texto.
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O viés da experiência na moda
[Sobre as calças pretas assimétricas] Quando a experimentei pela primeira vez
me senti ao mesmo tempo abraçada e desequilibrada, segura e ousada. Quase
direções diferentes, às vezes parecendo uma saia. “Isso não é um par de calças, é
uma declaração”, ouvi uma vez. Mas que tipo de declaração ela está fazendo eu não
saberia dizer. Acho que é mais um ato que fazemos, juntas. Ou assim espero. Ao
bem acima do chão. Ao caminhar, um som crocante nos acompanha, reverberando
nas dobras profundas. Geralmente, à medida que a uso, perco a noção dos limites
menos parecida comigo. (Diário da autora, 12 de fevereiro de 2016)
A ontologia da moda tem sido amplamente discutida, embora talvez não necessa-
riamente debatida (Almila; Inglis, 2017). Entre as diversas definições do termo, existe um
consenso generalizado sobre uma parte: a moda não é exclusivamente uma questão de coi-
sas – como roupas– nem é apenas uma questão de valores, imagens e ideias abstratas (Ent-
wistle, 2000; Kawamura, 2009). A moda é composta por entidades materiais e imateriais,
em permanente estado de fluxo, afetando-se constantemente. Embora os estudos da moda
normalmente mantenham o foco na dimensão imaterial da moda, compreender as dimen-
sões materiais e imateriais da moda é essencial para compreender os seus fenômenos de
forma holística.
Uma ampla revisão de literatura acadêmica publicada (artigos e teses de doutora-
mento) entre 2005 e 2018 mostra que o lado imaterial da moda tem sido priorizado (Valle-
-Noronha, 2019). Essa posição está alinhada com uma abordagem consolidada na década de
1960 com o trabalho de Roland Barthes (1990), ainda frequente hoje (cf. Thornquist, 2014).
Essa abordagem semiótica oferece à moda ferramentas úteis para compreendê-la como um
fenômeno sociocultural. Quando se trata da dimensão material da moda, grande parte da in-
vestigação tem sido conduzida a partir de um posicionamento objetivista (cf. Smelik, 2018;
Ruggerone, 2017). Esses estudos concentram-se na ontologia do vestuário ou aplicam uma
perspectiva semiótica ou de estudos culturais para compreender uma peça de vestuário,
como em estudos históricos ou museológicos. Eles entendem as roupas não como coisas que
nos afetam mutuamente, mas nas quais projetamos a nossa cultura.
Confrontando esse interesse restrito pelas características ontológicas das roupas (ou
seja, o que são as roupas), este artigo propõe que olhemos para o seu lado ativo, em outras
palavras, como elas se ‘comportam’ e afetam outros corpos (ou seja, o que as roupas fazem).
Ao transpor o foco de interesse, a atenção passa de questões sobre o que o corpo é para o que o
corpo pode fazer, alinhado com a proposta de Deleuze e Guattari (1987). A teórica cultural Lisa
Blackman defende que tal “desvio para o afeto” pode ser particularmente útil na compreensão
de que tais relações “[...] não estão confinadas ao significado, à cognição ou à significação” na
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moda (Blackman, 2012, p. x-xi, tradução minha4). A citação do diário de uso que abre esta se-
ção ilustra isso, pois identifica como o usuário e o vestido efetivamente moldam – ou afetam
– um ao outro, de maneira física ou abstrata. Como pouco tem sido dedicado à forma como
a experiência de usar roupas se desenrola, os esforços recentes que olham para a dimensão
material da moda a partir da perspectiva da experiência exigem mais contribuições dentro
do campo. Olhar para as roupas como detentoras de agência e, portanto, com uma capacida-
de de afetar, nos ajuda a compreender como as roupas podem oferecer relações mais ativas.
Aqui, enquanto os conceitos de afeto e agência material explicam como as roupas e as pes-
soas interagem, a noção de devir descreve os resultados dessas interações5.
Um estudo de moda baseado na experiência amplia a compreensão do que uma de-
terminada peça carrega e pode oferecer. Tomando como exemplo um cardigã de lã azul,
poderia produzir informações como a forma como a luz é refletida nas dobras quando a
peça é usada, como o material é ao toque – quente, frio, liso ou áspero –, como a costura dos
ombros pesa no corpo, se ele faz o usuário ligar o ar-condicionado ou como ele pode mudar
inicial em tomar tal abordagem para a pesquisa em vestuário. Numa série de artigos, ela
expõe como as ações e relações das mulheres com o seu ambiente são afetadas pelas suas
experiências situadas e corporais. Em Throwing Like a Girl
contexto ‘feminino’ (incluindo as roupas) dificulta os movimentos das mulheres, restringin-
do seus espaços. “Arremessar como uma menina”, então, não é biologicamente diferente de
“arremessar como um menino”, mas sim uma ação situada de forma diferente que afeta sua
experiência corporal de arremessar.
Um exemplo mais recente compartilha partes desta questão. O trabalho de Smelik et
al. (2016) analisa wearables e células solares incorporadas em uma jaqueta. Aqui, a noção de
experiência é central para investigar como os indivíduos e as peças se relacionam. Os auto-
res baseiam-se em vertentes do novo materialismo6 (Barrett; Bolt, 2013; Coole; Frost, 2010;
Bennett; Joyce, 2010), permitindo-lhes revelar como a tecnologia pode afetar tais relações.
Eles concluem que a moda solar pode impactar a consciência dos usuários sobre a luz solar,
bem como convidar à interação social, apontando como essas roupas afetam os usuários.
Apesar de provirem de disciplinas distintas, os dois trabalhos citados acima compar-
tilham descobertas sobre como o contexto e o uso afetam nosso estar no mundo, conceito
que se torna relevante quando se trata de relacionamentos e experiências.
Sobre afetos e devires na moda
O que seria uma moda que prioriza a interação, os afetos e os devires em vez de suas
superfícies e imagens? Negrin (2016, 125) sugere que alguns designers de moda enfatizam
4 No original em inglês “not confined to meaning, cognition or signification” (Blackman, 2012, p. x-xi)
5 Na obra de Deleuze e Guattari, os devires não são necessariamente vistos como afetos efetuados. Embora
o termo ofereça essa flexibilidade, os devires também podem ser entendidos como os próprios afetos.
6 O novo materialismo é uma das muitas correntes teóricas que se recusam a considerar a matéria como
inerte e propõem que a posição dos humanos entre outras questões seja reconsiderada. Algumas das
pensadoras na vanguarda do novo materialismo são Karen Barad (2007), Jane Bennett (2010) e Rossi
Braidotti (2013).
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essa perspectiva em seus trabalhos, como Issey Miyake e Rei Kawakubo. Em seus traba-
lhos, as peças de vestuário são constantemente remodeladas e reconfiguradas pelo corpo de
quem as veste, uma espécie de affordance (veja mais sobre o termo na seção Agência Mate-
rial em Design e Estudos de Moda a seguir) permitida pelas qualidades materiais das peças.
-
gânica entre o tecido e o corpo, na qual a roupa muda constantemente de forma
em resposta ao movimento do corpo. Em vez de o corpo ser contraído pela vesti-
menta ajustada [...] as vestimentas de Miyake e Kawakubo permitem uma maior
amplitude de movimento. (Negrin, 2016, p. 126, tradução minha7)
No entanto, para mim, o grande potencial dessas peças não reside na ‘maior amplitu-
de de movimentos’ permitida ao utilizador, mas sim naquilo que o encontro entre o usuário
e a vestimenta convida e oferece – seja um movimento, um pensamento, uma ação. A Figura
1 abaixo apresenta uma das obras discutidas por Negrin, a coleção Dress meets body, body
meets dress, de Rei Kawakubo. Nela, embora alguns movimentos sejam certamente restrin-
gidos pelos volumes e saliências, é precisamente a experiência entre corpo, espaço e vesti-
menta que permite a criação de algo novo.
SCENARIO. PEÇAS DE REI KAWAKUBO PARA MERCE CUNNINGHAM
FONTE: Merce Cunningham, Scenario, 1997. Foto: Jacques Moatti. Imagem obtida em Walker Art.
Disponível em: https://walkerart.org/collections/artworks/costumes-for-scenario. Acesso em: 29 mar. 2024.
O teórico de gênero Stephen Seely (2013) descreve estes trabalhos como uma ‘moda
afetiva’, uma abordagem ao vestuário e ao design de moda que procura expandir-se para
além do visual. “Além disso, uma abordagem afetiva da moda envolve uma atenção às suas
7 No original, em inglês: “[They] allow for a much more fluid and organic relationship between the
fabric and the body in which the garment is constantly changing its form in response to the move-
ment of the body. Rather than the body being constricted by the fitted garment […] the garments of
Miyake and Kawakubo allow for a greater range of movement” (Negrin, 2016, p. 126).
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implicações políticas, em vez de reduzi-la ao totalmente estético [...] dando-lhe acesso a um
campo virtual de potencialidade” (Seely, 2013, p. 248, tradução minha8). Na introdução da
tradução inglesa de A Thousand Plateaus (Deleuze e Guattari, 1987), Brian Massumi (1987)
define os termos afeto e afeição com clareza. Ele ressalta que “nenhuma das palavras denota
um sentimento pessoal (sentiment em Deleuze e Guattari). L’afeto (afeto de Spinoza) é uma
capacidade de afetar e ser afetado” (Massumi, 1987, p. xvi, tradução minha9). Essa capacida-
de, explica ele, também pode ser percebida como os processos de aumento ou diminuição
da capacidade de ação do corpo. Resumindo, sugere o filósofo Ian Buchanan, o afeto é uma
“capacidade que um corpo tem de formar relações específicas” (Buchanan, 1997, p. 80, tra-
dução minha10), nas quais os corpos e os afetos podem ser humanos ou não-humanos.
A teórica queer Sarah Ahmed (2006) discute os afetos como “impressões”. A autora
entende essas “impressões” como reorientadoras tanto de humanos como de não-huma-
nos. Dessa forma, os humanos impressionam as coisas e as coisas nos humanos, afetando
a maneira como estão dispostos no lugar e no tempo. No entanto, o que mais me interessa
na compreensão de Ahmed sobre os afetos (ou, nas suas palavras, impressões) é como ela
engloba emoções e sentimentos no conceito, reconhecendo que as emoções são relacionais
(Ahmed, 2004). Receber as impressões do que se veste vai além das marcas de elástico na
cintura ao usar uma saia justa ou ser rotulado como adolescente desajustado pela escolha
de roupas aparentemente pouco convencionais. Esses afetos devem ser entendidos tam-
bém como sentimentos (emocionais ou não) capazes de provocar profundas implicações
sensoriais, políticas e emocionais. As interações entre pessoas e roupas podem resultar, por
exemplo, na compreensão tátil de superfícies, na produção de significados ou na ignição de
reações químicas e físicas por meio de hormônios.
O que acontecerá no encontro entre os corpos é desconhecido; essas “capacidades”
não podem ser percebidas ou compreendidas antes que a experiência ocorra. Muitas vezes
você pode saber as razões pelas quais você escolhe um determinado vestido do seu guarda-
-roupa, mas o que esse vestido vai proporcionar, que tipo de abertura ele vai convidar, não
pode ser previsto. Ao discutir tais “potencialidades”, os diversos corpos envolvidos desem-
penham um papel relevante: são o locus do afeto. Isso significa que apesar de tais ‘potencia-
lidades’ dependerem de relações para serem ativadas, não há afeto sem corpo, sem matéria
(Buchanan, 1997, p. 80). Por isso, para falar de como as roupas podem afetar nossos corpos
(e vice-versa) é fundamental que sejam considerados seus agenciamentos materiais, suas
‘capacidades de agir’, de se relacionar e de se ressignificar, de se remodelar. e reformado com
o uso. Deleuze e Guattari sugerem que “[...] nada sabemos sobre um corpo até sabermos o
que ele pode fazer, ou seja, quais são seus afetos, como podem ou não entrar em composição
com outros afetos, com os afetos de outro corpo” (Deleuze e Guattari, 1987, p. 257). Nesse
8 No original, em inglês: “An affective approach to fashion, moreover, involves an attention to its
political implications, rather than reducing it to the wholly aesthetic […] giving it access to a
virtual field of potentiality” (Seely, 2013, p. 248).
9 No original, em inglês: “[n]either word denotes a personal feeling (sentiment in Deleuze and Guat-
tari). L’affect (Spinoza’s affectus) is an ability to affect and be affected” (Massumi, 1987, p. xvi).
10 No original, em inglês: “capacity that a body has to form specific relations” (Buchanan, 1997, p. 80).
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movimento de troca de afetos, ações e paixões, os autores veem a emergência de um outro
corpo – mais potente –: um corpo que se torna com outros corpos por meio da interação.
Ao falar sobre “o que um corpo pode fazer”, Deleuze e Guattari (1987) baseiam-se di-
retamente no trabalho de Spinoza (1994), no qual a distinção importante a fazer não é entre
humano e não-humano, vivo ou inerte (Bennett 2010). Em vez disso, o interesse recai sobre
os encontros e afetos que um corpo pode oferecer. Indicam que os afetos são devires – a troca
dinâmica de diferentes graus de potências, daquilo de que os corpos são capazes. Para com-
preender o que um corpo faz, sugerem eles, as características de um corpo não devem estar
no centro do interesse, mas sim os seus efeitos, o que é que esse corpo específico pode fazer
quando em interação com outros corpos. Fazendo a ponte entre esta ideia e a moda, podem
contrapor-se duas formas diferentes de investigar as “questões materiais da moda” – uma an-
corada em uma tradição museológica mais clássica e outra numa tradição materialista con-
temporânea. Enquanto o primeiro olha para as características estáticas da matéria (por exem-
plo, comprimento das mangas, composição de uma renda), o segundo está interessado nos
seus devires (por exemplo, como o corpo promove e recebe mudanças numa relação).
Embora tenham surgido séculos depois dos escritos de Spinoza11 ou dos conceitos
asiáticos de vazio ativo (por exemplo, a noção de ‘ma’), as correntes recentes da física, mais
especificamente as teorias do caos e da complexidade, enfatizaram os fluxos (inesperados)
de mudanças intrínsecas a toda e qualquer matéria (Coole; Frost, 2010; Barad, 2007). A
teórica feminista Karen Barad (2007) baseia-se na física quântica para provar que todas as
coisas emergem da interação (ou, nas palavras de Barad, intra-ações12) entre as diferentes
partículas existentes. Ao discutir o trabalho de Barad, Tim Ingold esclarece como a matéria
pode ser entendida como estando em um estado de fluxo constante:
Os materiais não existem, à semelhança dos objetos, como entidades estáticas
com atributos diagnósticos; não são – nas palavras de Karen Barad – “pequenos
pedaços de natureza”, aguardando a marca de uma força externa como a cultura
ou a história para a sua formação. Pelo contrário, como substâncias em formação,
elas continuam ou perduram [...]. Quaisquer que sejam as formas objetivas em
que são atualmente moldados, os materiais estão sempre e já a caminho de se
tornarem outra coisa. (Ingold, 2013, p. 31, tradução minha)13
11 As obras de Spinoza datam de 1670-1677 e deram origem a muitas discussões sobre a agência da matéria
ao longo dos séculos, ganhando particular força nas últimas três décadas, especialmente através das
articulações de Deleuze e Guattari (1998).
12 Karen Barad (2007) diferencia os termos interação e intra-ação. Para a autora, a intra-ação deno-
ta que as trocas entre diferentes corpos não podem ser dissociadas dos próprios corpos. A palavra
interação, por sua vez, pode situar estas trocas num espaço “entre” – e desta forma dá a ideia de
interacção como algo externo aos corpos. Aqui não estou fazendo esta distinção precisa e uso o termo
“interação” para descrever esta troca de uma forma mais flexível.
13 No original, em inglês: “Materials do not exist, in the manner of objects, as static entities with di-
agnostic attributes; they are not – in the words of Karen Barad – ‘little bits of nature’, awaiting the
mark of an external force like culture or history for their completion. Rather, as substances-in-be-
coming they carry on or perdure […]. Whatever the objective forms in which they are currently cast,
materials are always and already on their ways to becoming something else” (Ingold, 2013, p. 31).
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Tal como Ingold nos lembra, não é necessário ir tão longe quanto ao nível dos quarks
e glúons para observar as roupas. É bom ter em mente a ideia geral de que toda a matéria
está em constante mudança e, à luz de tais descobertas científicas, o devir torna-se mais re-
levante do que o ser e os processos mais relevantes do que os estados (Gleik citado por Coo-
le; Frost, 2010, p. 13). Este trabalho está interessado, portanto, nesses devires entre quem
usa e o que é usado na medida que agem um sobre o outro, em compromissos que às vezes
resistem ou são mais abertos a esses afetos.
Com a discussão apresentada acima, fica explícito que nós, como humanos, estamos
em estados de constante reconfiguração à medida que nos relacionamos com as coisas que
vestimos. De muitas maneiras, nos tornamos aquilo com que interagimos em diferentes ní-
veis. A noção de devir utilizada neste trabalho faz parte dos conceitos propostos por De-
leuze e Guattari (1987) e refere-se aos resultados de uma capacidade de afetar e ser afeta-
do. Os devires estão essencialmente relacionados com “multiplicidades”, e não apenas com
entidades isoladas; assim, o termo é um verbo ativo na forma infinitiva e não um estado
fixo, podendo ser entendido como resultado de um engajamento afetivo ativo. A moda, com
transformações ideais de estações e constantes mudanças, já instiga a articulação com devi-
res. Contudo, o que a moda realmente proporciona, ao se estruturar de forma hierárquica e
ditatorial (cf. von Busch, 2008), está estranhamente fechado à promoção de afetos. Superar
a ênfase constante na moda como um sistema visual e de produção de significado pode abrir
caminho para visualizá-la como um campo de interações mais responsáveis e engajadas.
Poderemos nós acompanharmos a moda baseados em sua agência material e capacidade de
afetar mudanças no mundo e em nós?
Agência Material em Design e Estudos de Moda
No campo da Teoria do Design, a discussão sobre a agência material parte da noção
de affordances. Proposto pelo psicólogo James J. Gibson (2014), o conceito de affordances
refere-se a uma possibilidade de objetos ‘convidarem’ interações humanas e não humanas.
Gibson observou que os objetos projetados muitas vezes evocam sua função através da for-
ma, do toque ou de outras propriedades percebidas (ou mesmo despercebidas). O concei-
to foi trazido para a comunidade de design com as articulações (ou, às vezes, declarações
imperativas) de Donald Norman sobre o termo (1988). Embora, inicialmente, não fosse a
intenção de Gibson, o termo foi incorporado pela comunidade do design para se referir mais
estritamente à interação com objetos de design, reduzindo seu potencial de ruptura com
um ponto de vista antropocêntrico. Embora a noção de affordance, articulada por Norman
(1988), denote essencialmente um processo mental, o afeto e a agência herdam uma vi-
são não dualista das experiências como incorporadas e, portanto, ocorrendo tanto no corpo
quanto na mente, e situadas no espaço e no tempo. No entanto, a ideia de que a matéria não
viva pode agir no mundo precede a noção de affordances em alguns séculos e tem sido cada
vez mais revisitada (cf. Malafouris, 2013; Bennett, 2010).
No século XXI, outros autores começaram a explorar ainda mais a forma como os
artefatos possuem agência. Por exemplo, no trabalho do antropólogo Daniel Miller (2005) e
do filósofo Peter Paul Verbeek (2005), os artefatos são entendidos como o resultado de um
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processo artístico ou de design, e não geralmente como matéria. Apesar de pertencerem
a campos de conhecimento diferentes, os dois autores são vozes proeminentes na ligação
das discussões sobre agência material com o campo do design ao falarem sobre artefatos
(materiais ou imateriais). Eles consideram que, embora a projeção e a produção de arte-
fatos dependam tanto das escolhas humanas, a sua materialidade ainda deve ser levada a
sério. Nos últimos anos, temos visto estudiosos da moda envolvidos na discussão, apoia-
dos pelos primeiros esforços de Entwistle (2000) em explicar o uso de roupas como uma
prática incorporada. Smelik (2018), Bruggeman (2014) e Tiainen et al. (2015) contribuem
para o desenvolvimento do campo sob uma nova perspectiva materialista. Na sua investiga-
ção, analisam designers de moda que fazem uso de novas tecnologias, como impressão 3D
e wearables, entre os quais o trabalho de Iris van Herpen (Figura 2) é o mais proeminente.
Neste trabalho, procuro apoiar o ponto de vista de que não só as roupas construídas com e
por meio das novas tecnologias, mas as roupas em geral têm a capacidade de afetar e podem
beneficiar ao serem abordadas a partir de tal enquadramento.
AERIFORM DE IRIS VAN HERPEN
FONTE: IRIS VAN HERPEN para ANOTHER MAG. Modelo: Park SooJoo. Foto: Warren du Preez e Nick
Thornton, conforme publicada em Another Mag.
Imagem obtida em http://www.irisvanherpen.com. Acesso em: 21 de Janeiro, 2018.
A pesquisadora de moda Anneke Smelik (2018) olha para o novo materialismo como
uma estrutura para estudar a moda, proporcionando ao campo uma nova perspectiva. Aca-
dêmicos em design e cultura material (por exemplo, Verbeek, 2005; Miller, 2009; Appadurai,
1986) servem como suporte para o desenvolvimento de sua pesquisa. Ela confirma que este
enquadramento pode ajudar a moda a ultrapassar a sua rotulagem como um campo de mera
representação que privilegia o imaterial (Smelik, 2018, p. 36). Ao reconhecer a importância
da matéria, os investigadores da moda conseguem romper com a tradição semioticista es-
tabelecida por Barthes (1990) que não leva em consideração a agência material das roupas
(Thornquist, 2014).
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Conclusão
Estas novas perspectivas chamam a atenção para as questões da moda, não como
tradicionalmente abordadas por muitos museólogos e historiadores – com sistemas de me-
dição fixos como ferramentas para ler uma peça de vestuário (Steele, 1998;. Finn, 2014) mas
com e através dos nossos corpos e daqueles que vestimos. E se, em vez de ler as roupas, as
ouvíssemos? Se, em vez de réguas, balanças e lupas, tomássemos as nossas experiências de
design e uso de roupas como ferramentas para dar sentido à moda?
Muitas das discussões contemporâneas em torno da agência material na moda se
concentram em questões tecnológicas. Essas teorias nos ajudam a compreender como essas
relações são formadas e evoluem. No entanto, não apenas a incorporação de eletrônicos nas
roupas pode se beneficiar dessa abordagem filosófica. Acredito que o potencial material da
moda pode afetar além das relações íntimas travadas entre pessoas e roupas, e expandir de
uma forma mais geral sobre como nos relacionamos com o mundo.
Uma mudança de foco pode impactar amplamente a forma com que nos relaciona-
mos com a moda. Por exemplo, poderíamos superar a ênfase visual e passar a considerar
outras questões presentes nas roupas, como por exemplo a origem dos materiais, as formas
de construção e modelagem, o modelo de negócios que apoiamos a optar por uma nova
compra.
As qualidades materiais das peças podem nos apresentar novas formas de lidarmos
com o meio ambiente, prestando mais atenção para suas origens e mudanças. Por exemplo,
roupas com tingimentos naturais amplificam essa agência material tanto ao estarem depen-
dentes do contexto climático no qual materiais tinctórios se encontram quanto ao sofrerem
alterações físicas (e.g. intensidade de cor) ao entrarem em contato com sol e água. Ainda,
podemos estar mais abertos a peças de roupa que manifestam abertamente uma relação
com o tempo, mudando nossas percepções estéticas e ampliando sua vida útil. Por exemplo,
percebendo a beleza de uma peça que sofreu consertos e remendos visíveis ao longo dos
anos e adicionando camadas de novos remendos somando a complexidade sensorial das
peças. Reconhecer a agência material das roupas também pode promover diversidade, va-
lidando expressões e existências plurais. Por exemplo, poderíamos incluir outros corpos na
moda ao criar peças que se conformam a diversos formas físicas. Reconsiderar a dimensão
material também nos permite evidenciar outras dimensões sensoriais para além da visão,
incluindo no sistema da moda, por exemplo, pessoas com diversas deficiências visuais ao
alterar as formas que descrevemos roupas em lojas virtuais. Pode parecer pequeno, frente
a gigante dimensão dos problemas da moda. No entanto, uma mudança de paradigma, uma
mudança em como nos relacionamos com as peças que vestimos (ou que desejamos vestir),
é um avanço enorme em direção a uma moda mais respeitosa e respeitável. Uma mudança
de percepção pode abrir caminhos para novas formas de negócios da moda, mais atentos a
estas questões materiais e afetivas, promovendo longevidade, responsabilidade e diversida-
de. O que aconteceria se passássemos a perceber as coisas que vestimos não como matéria
passiva, mas como forças agentes prontas para agir?
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https://dobras.emnuvens.com.br/dobras | eISSN 23580003
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Revisora do texto: Ana Carolina Carvalho. E-mail: carvalho.carol@uol.com.br