Content uploaded by Wagner Feloniuk
Author content
All content in this area was uploaded by Wagner Feloniuk on Jul 29, 2024
Content may be subject to copyright.
Porto Alegre
2024
Copyright ©2024 dos organizadores.
Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem
como a exatidão das referências bibliográcas, são
de inteira responsabilidade dos autores.
LICENCIADA POR UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS
Atribuição - Não Comercial - Sem Derivadas 4.0
Internacional (CC BY-NC-ND 4.0)
Você é livre para:
Compartilhar - copie e redistribua o material em qualquer
meio ou formato O licenciante não pode revogar essas
liberdades desde que você siga os termos da licença.
Atribuição - Você deve dar o crédito apropriado, fornecer
um link para a licença e indicar se foram feitas alterações.
Você pode fazê-lo de qualquer maneira razoável, mas não de
maneira que sugira que o licenciante endossa você ou seu uso.
Não Comercial - Você não pode usar o material para fins
comerciais.
Não-derivadas - Se você remixar, transformar ou desenvolver
o material, não poderá distribuir o material modificado.
Sem restrições adicionais - Você não pode aplicar termos
legais ou medidas tecnológicas que restrinjam legalmente
outras pessoas a fazer o que a licença permitir.
Este é um resumo da licença atribuída. Os termos da licença
jurídica integral está disponível em:
https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/legalcode
EXPEDIENTE:
Projeto gráco, diagramação e capa:
Editora Casaletras
Fotograa da capa:
Ladrilho do Prédio da Alfândega - Rio Grande
Foto de OliviaSilvaNery
Editor:
Marcelo França de Oliveira
CONSELHO EDITORIAL
Dr. Airton Pollini
Université Haute-Alsace, Mulhouse, França
Dr. Amurabi Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC
Dr. Aristeu Lopes
Universidade Federal de Pelotas/UFPel
Dr. Elio Flores
Universidade Federal da Paraíba/UFPB
Dr. Francisco das Neves Alves
Universidade Federal do Rio Grande/FURG
Dr. Fábio Augusto Steyer
Universidade Estadual de Ponta Grossa/UEPG
Dr. Giorgio Ferri
Università degli Studi “La Sapienza”, Roma, Itália
Drª Isabel Lousada
Universidade Nova de Lisboa
Dr. Jonas Moreira Vargas
Universidade Federal de Pelotas/UFPel
Dr. Luiz Henrique Torres
Universidade Federal do Rio Grande/FURG
Dr. Manuel Albaladejo Vivero
Universitat de València, Espanha
Drª Maria Eunice Moreira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul/PUCRS
Dr. Moacyr Flores
Instituto Histórico e Geográco do Rio Grande do
Sul/IHGRGS
Drª Yarong Chen
Beijing Foreing Studies University, China
Patrimônio cultural em debate: reexões contemporâneas / Carmem G. Burger t Schiavon,
Olivia Silva Nery, Vivian da Silva Paulitsch, Wagner Feloniuk e Laiana Pereira da Silveira
(Org.). Porto Alegre: Casaletras, 2024.
816 p.
Bibliograa
ISBN: 978-65-5220-000-6
1. História - 2. Patrimônio - 3. Memória - I. Schiavon, Carmem G. Burgert et al. - II. Título
CDU: 94(3/9) CDD: 363.69
P2757
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
E C
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
contato@casaletras.com
www.casaletras.com
casaletras
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................................ 11
PARTE I
PATRIMÔNIO CULTURAL: MUSEUS E ACERVOS
AS CAMADAS DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO: REFLEXÕES A PARTIR DA
CONSTRUÇÃO DO MEMORIAL LEPROSARIA CANAFÍSTULA, EM REDENÇÃO –
CE ............................................................................................................................................................................................ 14
Nauhan dos Santos Dias
O ESPAÇO MUSEAL ENQUANTO CAMPO DE EXPERIMENTAÇÃO: FORMAS DE
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL ATRAVÉS DO ACERVO MUSEU GAMA D’EÇA ..............26
Fernando Souto Dias Neto
PATRIMÔNIOS DIFÍCEIS E HISTÓRIA ORAL. OS SENTIDOS E OS SIGNIFICADOS
DA LEPRA E DA HANSENÍASE EM LUGARES DE MEMÓRIA ................................................... 35
Luiza Porto de Faria
TRATAMENTO, PRESERVAÇÃO, ACESSO E DIFUSÃO DE ACERVOS
ARQUIVÍSTICOS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG .............. 46
Andrea Gonçalves dos Santos
A PESQUISA EXPLORATÓRIA EM ACERVOS DOCUMENTAIS: POTENCIALIDADES
E LIMITAÇÕES A PARTIR DA INVESTIGAÇÃO DOS PROJETOS ARQUITETÔNICOS
DA CIDADE DE PELOTAS NA DÉCADA DE 1920-1930 ...................................................................62
Natália Toralles dos Santos Braga
Brunno Melo Molina
Franciele Fraga Pereira
ARQUIVO PESSOAL ENILDA RIBEIRO: DESAFIOS DA PATRIMONIALIZAÇÃO
ARQUIVÍSTICA............................................................................................................................................................ 77
Camila Casarotto Martins
Anna Paula Moura Canez
SOCIABILIDADES EXPRESSAS NO PACTO EPISTOLAR: PERCURSO PELOS
CONJUNTOS DE CARTAS DO ACERVO DO MUSEU MUNICIPAL PARQUE DA
BARONESA ..................................................................................................................................................................... 90
Nathalia Vieira Ribeiro
Carla Rodrigues Gastaud
A HISTÓRIA DA QUARTA COLÔNIA E FAXINAL DO SOTURNO (RS) ATRAVÉS DAS
LENTES DO IRMÃO ADEMAR DA ROCHA ........................................................................................... 103
Caroline do Nascimento Moraes
Tatiana Godinho Martins
ACERVOS E A DISPUTA POR NARRATIVAS: A FRONTEIRA A PARTIR DO ACERVO
HISTÓRICO DA AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DA BACIA DA LAGOA MIRIM ....115
Bethânia Luisa Lessa Werner
Nathalia Lima Estevam
ORGANIZAÇÃO DO ACERVO DA FLORESTA NACIONAL DE CHAPECÓ/SC:
CONSTRUINDO A HISTÓRIA AMBIENTAL LOCAL ..................................................................... 129
Rafael Pinheiro de Almeida
Fernanda de Sales
ARQUIVO PESSOAL DE ALBERTO PASQUALINI - A INTERVENÇÃO ARQUIVÍSTICA E A
BUSCA PELA MANUTENÇÃO DA NARRATIVA DE SI PRESENTE NO ACERVO ...................144
Augusto César Luiz Britto
PARTE II
PATRIMÔNIO CULTURAL: CULTURA AFRO-BRASILEIRA,
DECOLONIALIDADE, ENSINO E EXPERIMENTAÇÕES
O ESPAÇO PÚBLICO COMO SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA: “LARGO JOÃO
MULUNGU” ....................................................................................................................................................................156
Ana Carla de Jesus
CULTIVANDO MEMÓRIAS E PRESERVANDO A DIVERSIDADE CULTURAL:
A VALORIZAÇÃO DA HISTÓRIA AFRODIASPÓRICAS POR MEIO DO MUSEU
VISCONDE DE MAUÁ, ARROIO GRANDE/RS ....................................................................................165
Franciéle Gonçalves Soares
Heron Moreira
Maristela Machado Corrêa
LITERATURA INFANTIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA E.M.E.F. FRANÇA
PINTO (RIO GRANDE /RS), (RE)SIGNIFICANDO A EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL ... 178
Míriam Couto Ferreira
PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA: A ESCOLA ESTADUAL DELFIM MOREIRA E SUA
CONEXÃO COM O PATRIMÔNIO ................................................................................................................ 191
Mariana Cunha de Faria
BRINCAR E APRENDER HISTÓRIA: REINVENTANDO JOGOS TRADICIONAIS-
POPULARES COM A TEMÁTICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL ...................................... 202
Milca Fontenele de Sousa
OS PATRIMÔNIOS DE BAGÉ – ALGUMAS EXPERIMENTAÇÕES EM SALA DE
AULA ..................................................................................................................................................................................213
Natália Centeno Rodrigues
AS FOTOGRAFIAS DA VILA FRATERNIDADE DE LONDRINA-PR E SUA RELAÇÃO
ENTRE A MEMÓRIA E O ENSINO DE HISTÓRIA (1960-2023) ................................................229
Giovanna Barboza da Cruz
O ENSINO DE HISTÓRIA NO MUSEU: PRÁTICAS E DESLOCAMENTOS EM BUSCA
DO TEMPO PERDIDO ............................................................................................................................................ 243
Júlio César Virgínio da Costa
A CIDADE DE MARIANA E O ENSINO DE HISTÓRIA: LEITURA DAS PAISAGENS
URBANAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA ......................................................................................................... 258
Mayara Pacces Vicente
RECURSOS EDUCACIONAIS DE UM PATRIMÔNIO MUNDIAL DA HUMANIDADE: O
MUSEO SITIO DE MEMORIA ESMA E A EDUCAÇÃO MUSEAL ............................................274
Lucas Antoszczyszyn
Poliana Fabíula Cardozo
MODOS E USOS DO SABER CULINÁRIO COMPARTILHADO NO YOUTUBE .............285
Rafael Meira de Oliveira
ROMARIA DOS CARREIROS DO DIVINO PAI ETERNO EM TRINDADE
– GO: TRANSITANDO POR ENTRE O PATRIMÔNIO, O ENSINO E AS
EXPERIMENTAÇÕES ............................................................................................................................................ 295
Emilia Fleury Curado Sasse
João Guilherme da Trindade Curado
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL ATRAVÉS DOS CAPITÉIS
DE NOVA PALMA (RS) ........................................................................................................................................309
Alexandra Pozzatti Marchesan
Marta Rosa Borin
LETRAS E HISTÓRIA EM DIÁLOGO: O PATRIMÔNIO LINGUÍSTICO E SEUS
ATRAVESSAMENTOS PEDAGÓGICOS ................................................................................................... 323
Kleverson Gonçalves Willima
TRAVESSIAS SENSÍVEIS NUMA CAMINHADA PELO ACERVO DO MUSEU
HISTÓRICO ABÍLIO BARRETO EM BELO HORIZONTE/MG .................................................. 336
Lucinei Pereira da Silva
PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA: A ESCOLA ESTADUAL DELFIM MOREIRA E SUA
CONEXÃO COM O PATRIMÔNIO ............................................................................................................... 348
Mariana Cunha de Faria
PARTE 3
PATRIMÔNIO CULTURAL: POLÍTICAS PATRIMONIAIS,
CIDADES E ARQUITETURA
O NÃO TOMBAMENTO DE VIÇOSA DO CEARÁ: OUTRO OLHAR SOBRE A
PATRIMONIALIZAÇÃO ......................................................................................................................................360
Sara Silva Fonteles
CINE DRIVE-IN EM BRASÍLIA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A POLÍTICA DE
PATRIMONIALIZAÇÃO ...................................................................................................................................... 377
Mariah Boelsums
Rayane Cristina C. Silva
DISCUSSÕES EM TORNO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL EM RISCO: O CASO DE OURO
PRETO ..............................................................................................................................................................................390
Giovana Martins Brito
DIFERENTES USOS DO PATRIMÔNIO CULTURAL: PENEDO-AL E O PROGRAMA DE
ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO DAS CIDADES HISTÓRICAS (PAC-CH) ............ 403
Ana Beatriz Santos
Maria Raiane dos Santos
Silvana Pirillo Ramos
“PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NA PAISAGEM HISTÓRICA URBANA DE
SALVADOR: LUTAS E ESTRATÉGIAS DE EXISTÊNCIA NO CENTRO HISTÓRICO” .......416
Angélica Mello de Seixas Borges
Fabio Pina de Souza
Lívia Rebellato
Natalia Gabriel Rodrigues
PRAINHA DE VILA VELHA: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DE UM PATRIMÔNIO
CULTURAL ................................................................................................................................................................... 431
Cláudia Mazarakis Rubim
PELO DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA PATRIMONIAL: USOS E
PATRIMONIALIZAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE RERIUTABA-CE E SUAS
SOCIABILIDADES (1988-2023) ...................................................................................................................... 446
Jaciara Azevedo Rodrigues
POLÍTICAS PATRIMONIAIS: CIDADE DE SILVÂNIA (GO) .....................................................459
João Guilherme da Trindade Curado
Maria Idelma Vieira D’Abadia
Tereza Caroline Lôbo
PONTE DOS BOIADEIROS, O CASO DA PONTE CAÍDA: A RELAÇÃO DO LUGAR
ESQUECIDO NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES TRICORDIANAS ........................474
Sarah Meirielle Ferri Naves
ARQUITETURA, AFETOS E IDENTIDADE: A EXPERIÊNCIA DO VALE DOURADO -
ERECHIM/RS ..............................................................................................................................................................489
Mateus André Zagonel
REMINISCÊNCIAS TERRITORIAIS: O EQUIPAMENTO URBANO ESCOLAR COMO
PATRIMÔNIO CULTURAL DE MACAPÁ - AP ....................................................................................503
Ana Paula de Oliveira Ribeiro
Dinah Reiko Tutyia
O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO MUNICÍPIO DE SERRARIA/PB:
A MATERIALIDADE COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
COLETIVA .....................................................................................................................................................................519
Luiz Ricardo Sales
ARQUITETURA FRANCISCANA NA PARAHYBA COLONIAL: O CONVENTO DE SANTO
ANTÔNIO COMO EXPOENTE PATRIMONIAL DE POTENCIAL CULTURAL .........................536
Ivan Cavalcanti Filho
Laís Maria Rocha Bezerra
Mariana Dutra de Lucena
COMPLEJO AUDIOVISUAL IGLESIA DE PIRIA, PIRIÁPOLIS, URUGUAY:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
EM UMA PREEXISTÊNCIA DE INTERESSE CULTURAL ............................................................554
Marcela da Rosa Dias
Aline Montagna da Silveira
Larissa Mörschbächer
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E DESENVOLVIMENTO
URBANO COMERCIAL: UMA ANÁLISE DO CENTRO HISTÓRICO DE BARBALHA-
CE ......................................................................................................................................................................................... 567
Emanuel Ewerton Matias
NOTAS SOBRE CONSTRUÇÃO DE VALORES PATRIMONIAIS NA GESTÃO DA
IGREJA DE SANTA LUZIA/RJ ........................................................................................................................ 583
iago Santos Mathias da Fonseca
ENTRE LINHAS E LEMBRANÇAS: CABO FRIO NAS TRAMAS DE CLIO - PATRIMÔNIO
HISTÓRICO, ENQUADRAMENTO DE MEMÓRIA E HISTORIOGRAFIA ........................ 602
André Luiz Garrido Barbosa
PARTE IV
PATRIMÔNIO CULTURAL: MATERIAL, IMATERIAL E
INDUSTRIAL
ESTRADA DE FERRO RIO GRANDE - PELOTAS - BAGÉ: PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO
DA REGIÃO SUL ....................................................................................................................................................... 618
Alexsandra de Los Santos
Antonio Soukef Junior
Aline Montagna Silveira
POLÍTICAS DE PATRIMONIALIZAÇÃO E MEMÓRIA: PATRIMÔNIO INDUSTRIAL
FERROVIÁRIO EM PARNAÍBA-PI, 1916-1980 .....................................................................................630
Lêda Rodrigues Vieira
PATRIMÔNIO CULTURAL EM CONFLITO: AS BARRAGENS EM MINAS GERAIS 640
Ariane Cristina Paes Da Paixão
OS “HOMENS ORDINÁRIOS” DA PEDREIRA DO CERRO DO ESTADO, NO ESTUDO
DA OBRA DE MICHEL DE CERTEAU .........................................................................................................651
Gladis Rejane Moran Ferreira
Carla Rodrigues Castaud
FERROVIAS BRASILEIRAS: UMA REFLEXÃO DA HISTÓRIA, MEMÓRIA E
PATRIMONIALIZAÇÃO ...................................................................................................................................... 662
Heoclizia Aparecida Alves de Mautas Mesquita
Juliana Borges de Souza
CAMINHO FABRIL: ENTRE A HISTÓRIA E A MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO
INDUSTRIAL DA CIDADE DE RIO GRANDE .......................................................................................676
Olivia Silva Nery
Laiana Pereira Silveira
Sabrina Machado Araujo
CONTRIBUIÇÃO DAS FESTAS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
IMATERIAL E DA TRADIÇÃO DOCEIRA DO MUNICÍPIO DE MORRO REDONDO/
RS: ONDE O IMATERIAL E O MATERIAL SE ENCONTRAM ................................................... 691
Wagner Halmenschlager
Giane Trovo Belmonte
Francisca Ferreira Michelon
INVENTARIANDO FOLIAS DE REIS NO INTERIOR PAULISTA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA ..........................................................................................................................................................706
Rafaela Sales Goulart
PATRIMÔNIO IMATERIAL: UMA ANÁLISE DOCUMENTAL DOS REGISTROS
CABOCLINHO (PERNAMBUCO) E DANÇA DOS CABOCLINHOS (PEÇANHA/MG) .... 721
Marina Fares Ferreira
O PROCESSO DE REGISTRO DA MARUJADA DE DOIS SANTOS NA AMAZÔNIA
PARAENSE.................................................................................................................................................................... 734
Ana Paula Aviz
Wanessa Pires Lott
“É UM PATRIMÔNIO [...] É ALGO CULTURAL NOSSO DAQUI”: O RESPONSO EM
MOSTARDAS/RS E SEU REGISTRO ..........................................................................................................744
Sabrina Machado Araujo
PARTE V
PATRIMÔNIO CULTURAL: ARTES E CULTURA VISUAL
AS ESCULTURAS DE HAROLDO CARLOS ALVARENGA E A VALORIZAÇÃO
PATRIMONIAL EM FOZ DO IGUAÇU ........................................................................................................757
Marcos Moraes de Mendonça
Pedro Louvain de Campos Oliveira
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DO PROJETO DE VALORIZAÇÃO
DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA FEMININA POR MEIO DA CIÊNCIA: AS ARTISTAS
MULHERES DA ESCOLA DE BELAS ARTES DE PELOTAS........................................................770
Letícia Quintana Lopes
Simone Pinho de Oliveira
Daniele Baltz da Fonseca
ENTRE CENAS, CENÁRIOS E IDENTIDADES: PISTAS DE UMA CIDADE QUE DANÇA
SUAS MEMÓRIAS .................................................................................................................................................... 780
Denise Prado Costa
A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO RIO-GRANDINO A PARTIR DA OBRA “O
PESCADOR DE CEBOLAS” ................................................................................................................................ 793
Fernando Selagem Barros
A TRAJETÓRIA DA DEVOÇÃO: UMA JORNADA FOTOGRÁFICA, PATRIMONIAL,
HISTÓRICA E CULTURAL ............................................................................................................................... 806
Tatiana Godinho Martins
Marta Rosa Borin
11
INTRODUÇÃO
As mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas
vivenciadas nos últimos anos, sobretudo após a pandemia de
Covid-19, e os novos arranjos geopolíticos, também atravessam
as questões patrimoniais. Reetir sobre a ampliação conceitual,
a democratização e a própria episteme do patrimônio tornou-se
um aspecto inadiável das pautas do nosso campo. Entretanto, esse
debate traz inúmeros desaos e olhares trans e interdisciplinares
que colaboram para que as diferentes percepções e vivências
patrimoniais sejam respeitadas e consideradas, tanto do ponto de
vista teórico, quanto do prático.
Ao falarmos de patrimônio cultural, estamos tratando de vidas,
de materialidades, imaterialidades, memórias, esquecimentos,
identidades e ressonâncias. Longe de uma estagnação, o patrimônio
cultural que é o ponto principal de discussão neste livro é, por
natureza, um campo de conito, de disputas e de reexões. “Portador
de tempos e vivências” (Ferreira, 2008, p. 79), o patrimônio possibilita
a compreensão de questões sociais e culturais imprescindíveis para
o estudo das humanidades e do mundo contemporâneo.
Frente a esse cenário, faz-se necessário o debate e o diálogo
contínuo entre pesquisadores, pesquisadores e a sociedade, de
modo a se pensar e propor ações de preservação, valorização, escuta,
inclusão e democratização. E esse é um dos principais objetivos que
motivam a organização deste livro e que estão presentes em cada
um dos capítulos. Com múltiplos olhares e enfrentando diferentes
realidades, as discussões da obra colocam em pauta pontos que
precisam ser considerados, na contemporaneidade.
Nesta direção, o presente livro está dividido em cinco partes:
a primeira, titulada “Patrimônio cultural: museus e acervos”, trata
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
12
sobre os acervos museológicos, arquivísticos, bibliográcos e
institucionais, que lidam com a salvaguarda e a comunicação de
memórias e patrimônios. A segunda parte “Patrimônio cultural:
cultura afro-brasileira, decolonialidade, ensino e experimentações
patrimoniais” aborda as práticas educativas, políticas e sociais do
patrimônio cultural e do patrimônio afro-brasileiro, contribuindo
para o debate sobre a decolonialidade e a educação. A terceira parte
“Patrimônio cultural: políticas patrimoniais, cidades e arquitetura”
versa sobre as políticas patrimoniais nas cidades, as questões
arquitetônicas, paisagísticas que permeiam as políticas públicas,
as ações de turismo, medidas de preservação e conservação de
bens culturais. A quarta parte, denominada “Patrimônio cultural:
material, imaterial e industrial” é dedicada para o pensamento
acerca do patrimônio industrial, ferroviário, suas camadas
materiais e imateriais, bem como, especialmente, sobre a categoria
de patrimônio imaterial, como festas, modos de fazer, saberes, ritos
e expressões culturais. Por m, a quinta parte “Patrimônio cultural:
artes e cultura visual”, analisa as relações entre as produções artísticas
e visuais e o campo do patrimônio cultural.
As diferentes vertentes e facetas patrimoniais aqui abordadas,
representam a diversidade temática e disciplinar que envolve o
campo patrimonial. Contudo, esta obra não tem por intuito esgotar
essas discussões, mas sim contribuir para o debate necessário sobre
algo tão importante para a sociedade: seu patrimônio cultural.
O
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
13
PARTE I
PATRIMÔNIO CULTURAL:
MUSEUS E ACERVOS
AS CAMADAS DA MEMÓRIA E
DO ESQUECIMENTO: REFLEXÕES
A PARTIR DA CONSTRUÇÃO
DO MEMORIAL LEPROSARIA
CANAFÍSTULA, EM REDENÇÃO –
CE
Nauhan dos Santos Dias1
Memórias Difíceis
O interesse pela memorialização do Centro de Convivência
Antônio Diogo (CCAD), fundado em 1928 como Colônia Leprosaria
Canafístula, surge a partir dos anos 2000 e se inicia em 2009, quando
se estabelece em portaria a comissão de trabalho responsável pelo
processo de musealização da instituição. Entretanto, é somente
em 2018, com a comemoração dos 90 anos da instituição, onde se
realizou uma mostra temática com o acervo histórico coletado no
decorrer dos anos, que esse projeto viria a se materializar. Tal mostra
temporária logo se tornou permanente e a exposição foi atingindo
maiores dimensões, ocupando o espaço de sete salas do prédio
administrativo e passando a se chamar de Memorial Leprosaria
Canafístula. A instituição que esteve sob os cuidados da Igreja
Católica, até os anos 90, atualmente administrada pela Secretaria
1 Arquiteta e Urbanista. E-mail: nauhandias@gmail.com.
14
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
15
da Saúde do Ceará (SESA), contou com o investimento do órgão
pertencente ao Governo Estadual para execução do projeto de
musealização do antigo Leprosário.
Em 2009, como apoio da Universidade Estadual do Ceará
(UECE), foi iniciado o processo de construção do inventário do
patrimônio material da Colônia Antônio Diogo. O projeto também
contava com o apoio da Secretaria de Cultura, subordinada à
Prefeitura de Redenção, e do Museu do Ceará, que cedeu o material
necessário para elaboração do projeto. O sítio arquitetônico que
atualmente abriga 138 moradores em 65 residências, entre estes,
antigos pacientes e seus descendentes, recebe em 2011, o professor e
pesquisador Gisafran Nazareno Mota Jucá, que passou a fazer parte
do grupo de iniciação cientíca, contribuindo, sob a perspectiva
da oralidade, para o estudo do patrimônio imaterial através da
realização de entrevistas com funcionários do setor administrativo,
antigos pacientes e seus familiares. (JUCÁ, LIMA, 2014). Já em
2019, a professora e pesquisadora Fernanda Aparecida Domingos
Pinheiro da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira (Unilab) passa a coordenar um projeto de extensão
voltado ao tratamento de arquivos do Centro de Convivência
Antônio Diogo.
A mobilização responsável pela criação e execução do projeto
que possibilitou o Memorial Leprosaria Canafístula pode ser
entendida como um movimento resultante das novas percepções
acerca do patrimônio histórico, ampliadas nos últimos anos, em
consequência das discussões contemporâneas e reivindicações de
patrimonialização de lugares relacionados a memórias traumáticas.
No contexto da sociedade ocidental, essa nova forma de olhar
o passado surge a partir da Segunda Guerra Mundial2, onde os
valores culturais passam por signicativa mudança, transformando
as políticas de preservação em diferentes países e avançando nos
debates acerca do patrimônio em lugares de memórias difíceis em
escala mundial. Se por um lado, buscava-se esquecer as atrocidades
do Holocausto3 e reconstruir o que havia sido devastado, por outro,
as reexões trazidas com a guerra possibilitaram que os traumas
2 Guerra travada entre 1939 e 1945, foi o maior e mais catastróco conito da história
da humanidade, resultando em milhões de mortes e a ruína de centenas de cidades.
3 Genocídio de milhões de judeus cometido pelos nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
16
culturais4 e o direito à memória e a justiça zessem parte das novas
discussões e processos patrimoniais.
De acordo com Menezes (2018), existem novos conceitos
pertencentes a ideia de memórias traumáticas, algum deles são: a
memória transgeracional, que assume o signicado a medida que
passa pelas gerações; a pós-memória, aquela não experienciada,
mas aderida pela empatia; a memória ausente, aquela existente,
que por convenções sociais, não se fala; a memória silente, que se
manifesta através das expressões corporais, quando a testemunha
não consegue falar; a memória incorporada, implicações corporais
do testemunho; paisagem mnemônica, que são os chamados sítios
de consciência; etc.
No Brasil, só a partir de 1980, no contexto da redemocratização,
os lugares de sofrimento passam a ganhar maior atenção do poder
público e da sociedade. Anos mais tarde, em 2011, com a instituição
do Decreto-Lei 12528/2011, o governo brasileiro implementou a
Comissão Nacional da Verdade reconhecendo as graves violações
aos direitos humanos cometidas pela ditadura militar. Todavia,
o passado brasileiro é carregado de um legado de violência, não
apenas marcado pela ditadura, mas pela perseguição aos indígenas,
escravização, crimes de tortura, abusos de poder, entre outros.
Nesse cenário, muitos movimentos sociais relacionados aos direitos
humanos começam a surgir em forma de denúncia, reivindicando
o reconhecimento das memórias coletivas através dos instrumentos
de preservação e das políticas públicas.
O conceito de memória coletiva é apresentado por Maurice
Halbwachs, que descreve a memória como um fenômeno que se
origina das relações entre indivíduos e grupos sociais. Halbwachs,
sustenta sua ideia, armando que as lembranças individuais só são
construídas por indivíduos que fazem parte de um grupo social,
pois essas lembranças não são capazes de serem sustentadas sem
testemunho de outros: “Recorremos a testemunhos para reforçar ou
enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento
sobre o qual já temos alguma informação” (HALBWACHS, 2006).
Nesse sentido, o Memorial Leprosaria Canafístula representa
a herança e a transmissão da memória de milhares de pessoas
4 O conceito de trauma cultural foi desenvolvido por Jerey Alexander, Neil Smelser,
Ron Eyerman, Bernard Giesen e Piotr Sztompka em 1998 e 1999, em um grupo liderado
pelos dois primeiros.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
17
isoladas compulsoriamente no estado do Ceará a partir de 1928.
Entretanto, o processo de musealização deve ser entendido como
uma representação do passado que defende um discurso pertencente
a um determinado grupo social, ao mesmo tempo em que oculta
outras perspectivas referentes ao mesmo patrimônio musealizado,
ou seja, a construção da memória implica o esquecimento. Segundo
Chagas (2002), a compreensão desses discursos se faz através da
busca pelas respostas de três questionamentos: o que faz falar?
quem fala? de que lugar se fala? No artigo Memória e Poder: Dois
Movimentos, o autor discorre sobre a necessidade de desnaturalizar
os conceitos de memória e esquecimento, compreendendo que
podem ser processos motivados por outros agentes, como o poder.
Paul Ricoeur (2007) arma que o esquecimento não refere-se a
ausência de memória, mas uma ação humana de reconstrução da
memória, que pode envolver perdas e repressões, na tentativa de
reorganizar a forma como se compreende o passado. Para Ricoeur
(2007), o processo de esquecimento faz parte fundamental da
memória, uma vez que, seleciona-se o que deve ser esquecido e
o que deve ser lembrado. Paul Connerton (2008), antropólogo
britânico da Universidade de Cambridge e autor do artigo Seven
Types of Forgetting5, aponta a existência de pelo menos sete tipos
de esquecimento: o apagamento repressivo, quando há destruição
intencional da memória, como nos regimes totalitários; o
esquecimento prescritivo, quando se esquece por convenção social;
o esquecimento constitutivo na formação de uma nova identidade,
quando há o descarte da memória em prol da construção de
novos valores; o esquecimento por anulação, quando o excesso de
informação leva a eliminação do supéruo; a amnésia estrutural,
quando a cultura determina o que a sociedade deve lembrar/
esquecer; o esquecimento por obsolescência planejada, quando
por inuência do sistema capitalista se é levado constantemente a
consumir as novidades do mercado; e o esquecimento como silêncio
humilhado, quando se ignora a memória traumática para evitar o
sofrimento.
Se por um lado, o Memorial Leprosaria Canafístula é a
representação de um passado que se inicia a partir de 1928 com a
inauguração da Colônia Leprosaria Canafístula, por outro, o museu
5 Sete Tipos de Esquecimento.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
18
oculta a memória de quase 50 anos que antecederam a fundação do
leprosário.
As Camadas da Memória e do Esquecimento
O complexo arquitetônico que hoje abriga o Centro de
Convivência Antônio Diogo está localizado a aproximadamente 45
km da capital cearense, na atual cidade de Redenção, e começou
a ser construído ainda no século XIX, sendo inaugurado em 1880
como Colônia Orfanológica Cristina, um asilo destinado ao abrigo
dos denominados “órfãos da seca”. A construção foi considerada
uma das mais relevantes de seu tempo e fazia parte das políticas
de assistencialismo aos “agelados da Seca” de 1877-79, estes
eram moradores do semiárido que migraram do seus territórios
até Fortaleza em busca de trabalho e subsistência. Para o mesmo
período e nessa mesma perspectiva, além do asilo para órfãos,
foram construídos o Asilo de Alienados São Vicente de Paula
e o Asilo de Mendicidade. Estas construções não foram apenas
edicadas para os retirantes6, mas pelos retirantes, submetidos ao
trabalho forçado nas obras públicas em troca de assistência; outro
aspecto em que se assemelhavam estava relacionado aos territórios
de implantação, pensados estrategicamente a grandes distâncias dos
centros urbanos. As razões que levaram a esse afastamento podem
ser explicadas por um sentimento cultural que se espalhou entre as
classes mais abastadas de Fortaleza, que consideravam a presença
de órfãos, alienados e indigentes uma ameaça à ordem pública.
Além disso, o Asilo de Alienados São Vicente de Paula e a Colônia
Orfanológica Cristina estavam próximas às estações da Via Férrea
de Baturité, onde ocorriam as relações sociais e de comércio e era
possível impedir novas migrações até a capital (OLIVEIRA, 2021).
A partir de 1984, o sítio histórico, que a esta altura era composto
por pequenas casas, capela, enfermaria, escola e ocina, torna-se
uma Colônia Correcional Agrícola e em 1906 é construída uma
Estação Agronômica em seu território. Em 1915, foi inaugurada
a Escola Prática Agropecuária Luiz Ribeiro nas proximidades da
estrada de Ferro de Baturité. Em 1925, a Colônia se transformou
6 Nome dado ao morador do semiárido que migra para os centros urbanos em busca
de trabalho e sobrevivência durante os longos períodos de estiagem. O termo faz
analogia à retirada do rebanho.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
19
na primeira Prisão Agrícola do Estado do Ceará. Anos mais tarde,
em 1928, tornou-se a primeira Colônia de Leprosos do Ceará, com
o nome de Leprosaria Canafístula. Em 1930, é inaugurada uma
creche no leprosário para os lhos dos pacientes internados.
A instituição foi mantida pela caridade até 1940, quando passou
a ser mantida pelo Governo do Estado pelo Decreto Lei n° 686 de
13/03/1940. Em 1977, pelo Decreto 12.435, a Colônia que a esta
altura chamava-se Antônio Diogo veio a tornar-se o Hospital de
Dermatologia Sanitária Antônio Diogo. Com a fundação nacional
do MORHAN (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas
pela Hanseníase), a partir de 1981, a permanência dos moradores
na Colônia deixou de ser uma imposição. Até 1990, a Igreja Católica
foi responsável pela administração do antigo leprosário, através
das ações das Irmãs Missionárias Capuchinhas de São Francisco
de Assis. Atualmente, é o Centro de Convivência Antônio Diogo,
instituído em 2006, pela Portaria n° 2424/2006 Decreto n° 28.511
de 01/12/2006 série 2 ano IX n° 230, abriga os antigos pacientes
que foram curados e seus familiares, que não puderam ou quiseram
abandonar o local.
A multiplicidade de sentidos e usos que esta edicação vai
ganhando ao longo de mais de um século destacam a complexidade
desse patrimônio, trazendo algumas reexões e questionamentos.
Dentre as reexões, é relevante citar os semelhantes usos atribuídos
à Colônia, que em sua maioria, eram alvos de políticas de isolamento
e esquecimento, onde o objetivo de eliminar a presença da pobreza
para lugares distantes se alinhava ao interesse em fazer com que
órfãos, pobres, mendigos e criminosos caísse no esquecimento da
sociedade pelo tempo em que se tornassem “civilizados” ou, até
mesmo, permanentemente. Essas instituições, que eram voltadas
ao isolamento, exclusão, controle e disciplinamento de indivíduos,
funcionavam como uma espécie de panóptico. O inglês, Jeremy
Bentham, foi o idealizador desse modelo arquitetônico conhecido
como panóptico, reproduzido nas prisões européias do século
XVIII. Foucault, lósofo francês que se aprofunda no estudo dessas
instituições, descreve como
[...] uma construção em anel, no centro, uma torre; esta é vazada
de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
20
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado (FOUCAULT, 1977)
Neste modelo arquitetônico, pela torre central é possível ter
visão para todas as celas e prisioneiros, pois a iluminação atravessa
toda a estrutura. Nesse sentido, “a visibilidade é uma armadilha”
(FOUCAULT, 1977), pois os indivíduos submetidos à ideia de
constantemente observação, não são capazes de identicar quem ou
quando os vigia. Desse modo, essa tipologia de instituição funciona
como uma arma de controle e poder, onde os sujeitos isolados
podem ser facilmente disciplinados.
Apesar dos diferentes usos, as memórias desse território
estiveram sujeitas a um processo de amnésia social, pois mesmo
nos dias atuais, pouco se sabe sobre os indivíduos que estiveram
nesses lugares, a qual tipo de tratamento eram submetidos ou para
onde foram após sua passagem por essas instituições. Para Russell
Jacoby (1996), autor do livro Amnésia Social, o conceito desse termo
pode ser denido como o processo de “esquecimento e a repressão
da atividade humana e social que faz e pode refazer a sociedade”, ou
seja, esse fenômeno ocorre através da criação de uma história ocial
em substituição às memórias coletivas de sofrimento, na tentativa de
reconstruir a sociedade. As contradições entre memória e história
se dão pela forma em que se manifestam, onde a primeira lança o
olhar para o presente, e se dá através das ressignicações; a segunda
é uma performance sempre direcionada ao passado. Como arma
Pierre Nora (1993), “a memória é um fenômeno sempre atual, um
elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do
passado”.
Outra reexão que pode ser levantada sobre a dinâmica de
transformações ocorridas na Colônia desde a sua fundação,
em 1880, é a ideia de palimpsesto de memória e esquecimento.
Longe de ser uma novidade nos estudos do patrimônio cultural
e das transformações urbanas, o termo palimpsesto refere-se aos
manuscritos em pergaminhos apagados através de um processo
de raspagem para receber novas inscrições, onde as marcas das
diferentes inscrições permanecem sobrepostas e perceptíveis.
Desse mesmo modo, a Colônia pode ser vista como um patrimônio
arquitetônico que carrega marcas de seus antigos usos e sentidos,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
21
pois a memória, mesmo que fragmentada, não pode ser apagada e
seus efeitos permanecem.
Musealização do Centro de Convivência
Antônio Diogo
O Memorial Leprosaria Canafístula tem sua exposição
distribuída em sete salas do bloco administrativo. A primeira com o
título de “Do Pânico quanto ao Contágio à Fundação do Leprosário:
Os anos 20” traz em seu centro o maquinário antigo do relógio da
torre. Além disso, apresenta banners com recortes de jornais da
época que narram o medo das classes mais abastadas quanto ao
contágio da lepra. Em uma matéria do jornal O Ceará com o título
“Fortaleza ameaçada de ser invadida por morpheticos” datada de 07
de abril de 1929 está escrito
[...] se providencias eicazes não forem tomadas com urgencia breve,
esta capital será invadida pelos leprosos que pelas ruas mais centraes,
estenderam à mão repugnante a caridade publica. Fortaleza que já se
encontra invadida pelas legiões de famintos, terá no rosário de suas
misérias, mais uma praga” (O CEARÁ, 1929)
Em um dos painéis é possível ler sobre o primeiro uso da
instituição, a Colônia Orfanológica Cristina e sua fundação, em
1880. Entretanto, como o título desta primeira sala já destaca, a
exposição é focada no início dos anos 20 e a fundação do Leprosário
Canafístula.
A segunda sala, nomeada de “Terror da Internação: Memórias
e Documentos” , traz os documentos da administração da Colônia
de 1928 até 1994. Nesses registros encontram-se informações sobre
admissões dos enfermos, nascimentos, batismos, casamentos,
fugas e óbitos. Entre os livros expostos, também é possível acessar
relatórios sobre as questões nanceiras da instituição.
A sala denominada de “O adoecimento em uma ‘Instituição Total’:
Enfermaria” é a terceira sala. Este espaço foi decorado conforme
eram os antigos quartos individuais existentes no leprosário, com
o mobiliário original. Os objetos pessoais encenam a ausência
de energia elétrica e a precariedade das instalações sanitárias e
hidráulicas no antigo leprosário, perceptíveis pelos objetos que
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
22
são uma lamparina, uma quartinha7, um urinol e uma cama de
enfermaria. Nessa sala, também encontramos fotograas antigas
que mostram a lotação das enfermarias e a escassez de alimentação
para os moradores da Colônia que vivia de doações.
O quarto ambiente intitulado de “A presença Religiosa no
cotidiano da Colônia: Sala Sacra” tem os objetos sacros expostos, as
vestimentas religiosas e as fotograas das cerimônias e celebrações.
A quinta sala, chamada de “Assistência à Saúde e Trajetórias
para a Cura”. É nesta sala que encontram-se os vários adereços
médicos utilizados na Colônia, sendo equipamentos odontológicos,
oalmológicos, de laboratórios e das enfermarias, com fotograas
antigas que demonstram sua utilização.
A sala com nome de “Sala dos Pacientes” é a sexta e penúltima
sala, sendo idealizada pelos moradores e funcionários para ser
um espaço que representa a experiência do isolamento sob a
perspectiva dos antigos internos do leprosário. Nas paredes
encontramos retratos dos antigos pacientes, uma poesia escrita por
seu Manelão, morador da Colônia e ilustrações reproduzidas por
um artista, que representam os desenhos de um dos moradores. Em
uma das paredes, também encontramos uma escultura com rostos
desconhecidos, que simboliza os lhos separados de suas famílias.
Nessa sala, existe ainda um pendente expositivo com luminárias e
fotograas das vivências na Colônia, da atualidade e do passado.
O último espaço, chamado de “Sala Interativa”, é um ambiente
que simula o isolamento compulsório e a ressocialização enfrentados
pelos antigos pacientes, através de uma experiência sensório-motora
para os visitantes.
O Memorial Leprosaria Canafístula, seu acervo e o próprio
conjunto arquitetônico que abriga o Centro de Convivência Antônio
Diogo, sob uma perspectiva do campo do patrimônio material, deve
ser tratado não apenas como “objeto histórico” (MENESES, 1998),
mas como “documento histórico”, sendo uma manifestação cultural
através da materialidade, carregado de identidade e valor simbólico
atribuídos e interpretados pela memória individual e coletiva. Nesse
sentido, pode-se armar que
O objeto, ou a coisa mesmo, que circula enquanto algo praticado e
ritualizado no corpo do social, mediante os atos que o fazem percorrer
7 Pote de barro, onde se coloca água para beber.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
23
os complexos (des)caminhos da vida em sociedade, está repleto de
sentidos e nexos compartilhados por aqueles que lhe atribuem valores
e simbolismos, sendo que os mesmos emergem da própria experiência
intersubjetiva das pessoas em interação entre si, e delas com o mundo.
O objeto encerra sempre uma dimensão ético-estética, remetendo ao
gesto humano de criar, confeccionar e operar com os mais variados
objetos em lugares especícos. (FILHO; SILVEIRA, 2005)
Os objetos não carregam valores intrínsecos em si, esses valores
são atribuídos conforme o tempo e contexto histórico no qual estão
inseridos. No caso do patrimônio, não é diferente, valores sociais,
de memória e identidade são imbuídos em objetos à medida que
passam por novas congurações de tempo e espaço. Em museus
e memoriais, a expograa sustenta narrativas predenidas, com
o objetivo de mediar a comunicação com o público, entretanto
diferentes formas de contar uma história podem ser trazidas a
partir do olhar externo, nesse sentido, os objetos são “semióforos”
(POMIAN, 1977).
A criação do Memorial Leprosaria Canafístula possibilitou
a discussão ainda pouco debatida no campo do patrimônio no
Ceará: as memórias de sofrimento relacionadas a lugares de
exclusão e disciplinamento social. Ao mesmo tempo que traz à
tona as vivências de milhares de pessoas portadoras de hanseníase
isoladas compulsoriamente por representarem uma ameaça à saúde
pública e a ordem social, revela as camadas de excluídos que foram,
anteriormente, isolados em um mesmo plano de assistência social.
Além disso, a musealização do Centro de Convivência Antônio
Diogo possibilita reexões e questionamentos sobre grupos, antes
esquecidos, silenciados ou subalternizados, abrindo caminho para
que esses grupos e indivíduos tornem-se agente patrimoniais e
possam narrar suas próprias vivências nesses espaços de memória e
consciência, como arma Poulot (2009), “a história do patrimônio
é amplamente a história da maneira como uma sociedade constrói
seu patrimônio”. Esse movimento de ressignicação das memórias
traumáticas permite a construção de políticas de preservação e
reparação que garantam o direito à memória e a possibilidade de
ressocialização de grupos historicamente injustiçados.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
24
REFERÊNCIAS
O CEARÁ. Fortaleza Ameaçada de ser Invadida por Morpheticos. 07 de abril
de 1929.
CHAGAS, M. Memória e Poder: Dois Movimentos. Cadernos de
Sociomuseologia: Museu e Políticas de Memória. n° 19. 2002.
CONNERTON, Paul. Seven types of forgetting. Memory Studies 1, n. 1. p.
59 - 71. Janeiro de 2008.
FILHO, M. F. de L. SILVEIRA, F. L. A da. Por uma antropologia do objeto
documental: Entre a “Alma das Coisas” e a Coisicação do Objeto.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 37-50, jan/jun
2005
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Rio de
Janeiro: Vozes, 1977.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro,
2006.
JACOBY, R. Amnésia Social: Uma Crítica à Psicologia Conformista de Adler
a Laing. Trad. Brasileira. Rio de Janeiro. Zahar, 1977.
JUCÁ, G. N. M. LIMA, Z. M. M. Patrimônio Material e Imaterial da
Hanseníase: A Colônia de Antônio Diogo em Redenção e a sua memória
social. In: SOARES, Menezes Igor e SILVA, Itala Byanca Moraes. (Org.).
Cultura, Política e Identidades: Ceará em Perspectiva I. 1ed.Fortaleza:
IPHAN, 2014, v. I, p. 65-84.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde com arte: Memorial Leprosaria Canastula
(CE). Publicado em 18 de junho de 2020. Acesso em: 08 de janeiro de 2024.
Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/noticias/saude-com-arte-
memorial-leprosaria-canastula-ce.
MENESES, Ulpiano T. B. de. A História, Cativa da Memória? Para um
mapeamento da Memória no Campo das Ciências Sociais. Revista do
Instituto Histórico Brasileiro. 34:9-24. São Paulo, 1992.
MENESES, Ulpiano T. B. de. Os Museus e as Ambiguidades da Memória: A
Memória Traumática. Encontro Paulista de Museus - Memorial da América
Latina. São Paulo, 2018.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
25
MENESES, Ulpiano T. B. de. Memória e Cultura Material: Documentos
Pessoais no Espaço Público. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n.21,
p. 89-104, 1998.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares.
Tradução: Yara Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10. Dezembro
de 1993.
OLIVEIRA, Cláudia F. de. A institucionalização da loucura no Ceará
[livro eletrônico] : o asilo de alienados São Vicente de Paula (1871-1920).
Imprensa Universitária, Fortaleza, 2021.
POMIAN, K. 1984. Colecção. In: Enciclopédia Einaudi. Memória - História.
Lisboa/Imprensa Nacional/Casa da Moeda, p. 51-86.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos
XVIII--XIX. Do monumento aos valores. São Paulo: Estação da Liberdade,
2009.
RICOEUR, P. 1913. A Memória, a História, o Esquecimento. Tradução:
Alain François. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 2007.
O ESPAÇO MUSEAL ENQUANTO
CAMPO DE EXPERIMENTAÇÃO:
FORMAS DE EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL ATRAVÉS DO
ACERVO MUSEU GAMA D’EÇA
Fernando Souto Dias Neto1
Introdução
O presente trabalho parte sobretudo da inserção do pesquisador
nas atividades de extensão realizadas no Museu Educativo Gama
d’Eça, e compreende, assim, a coleta de dados – bem como a obtenção
de resultados referentes ao estudo de público e seu entendimento –,
além do olhar constituído sobre as questões acerca do patrimônio
a partir do espaço museológico. Com esses movimentos, é possível
compreender o papel educativo do museu enquanto um lugar de
memórias, produção de histórias, que, por vezes, pode propiciar a
fuga da chamada “história ocial”, apontando novos modos de se
obter fontes que revelam outras narrativas caras ao município, à
região e também ao território nacional.
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
de Santa Maria, bolsista CAPES/DS. E-mail: feranndo.neto@acad.ufsm.br.
26
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
27
Figura 1–Museu Educativo Gama d’Eça
Fonte: Tripadvisor (20--)
As motivações que levam o pesquisador à elaboração do presente
escrito partem da busca por novas formas de educação através do
patrimônio, o que justica a instalação na casa de memória que
congura o espaço museológico, até mesmo a visibilidade do que
é dito como patrimônio, entendendo que esse espaço é um local
de disputas, seja direta ou indiretamente. Toda essa atmosfera
torna visíveis os conitos culturais e étnicos entre as mais diversas
manifestações de população e suas origens, matrizes, em nosso país.
Anal, que memórias estamos preservando? Com que objetivo? A
quem serve ou se faz a reprodutibilidade desses elementos? Como
contemplar uma abordagem que faça com que a população abrace
seu patrimônio local? São essas algumas das perguntas que norteiam
este trabalho – e a pesquisa em andamento –, além de questões que
são postas quando nos deparamos com as manifestações culturais
expostas no museu.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
28
Entendendo o patrimônio que está posto
O museu teve sua edicação construída no ano de 1913, e já foi
um prédio que serviu de sede para a prefeitura do município de
Santa Maria (RS). Constitui-se com o acervo da Sociedade União
dos Caixeiros Viajantes – SUCV, a mesma coleção que foi tombada
pelo Sphan. Após essa coleção, foi anexada ao acervo institucional da
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Entre os elementos
que podem ser encontrados no acervo estão: a paleontologia,
numismática, taxidermia, além de uma reserva técnica.
Figura 2– Museu Gama d’Eça
Fonte: P.M. de Santa Maria S. de Cultura (19--).
Para Michael Pollok (1992), ocorre o processo de formação de
lugares de memórias, constituídos por acontecimentos que acabam
reverberando a memória de um grupo, por consequência, por vezes,
geram um sentimento de pertencimento. Dessa forma, entende-se
que há uma relevância na preservação, manutenção, salvaguarda
de elementos que contam a história desses grupos, sejam eles os
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
29
protagonistas ou, em alguns casos, aqueles que foram postos à
borda do processo social.
Ainda na esteira do patrimônio, Lorenç Pratts (1998) compreende
a formação do patrimônio cultural como uma forma de construção
social, cuja ecácia simbólica perpassa inúmeras variáveis. Dessa
maneira, analisando práticas, discursos e consensos dos mais
variantes signicados. Logo, essa simbologia estabelece uma série
de relações entre ideais e valores.
O patrimônio vem a cumprir um papel pedagógico, com
efeito, de educar e fazer com que esses valores, sentimentos,
afetos, informações, enm, sejam disseminados através de uma
comunicação entre seus signicados e aqueles que os interrogam,
que os (re)visitam, servindo, muitas vezes, de fontes para abrir novos
trabalhos, promover diferentes maneiras de (re)leitura. Segundo
Françoise Choay (2017, p. 117), o patrimônio desenvolve esse papel
pedagógico que promove civismo, logo, carrega consigo memórias,
a partir das quais se cria o sentimento de orgulho e, muitas vezes,
endossa superioridades. Ajustam-se valores cognitivos, econômicos,
e como movimento promove um grande “passeio” para os visitantes
sobre a história.
A presente discussão contempla, através das palavras de Hugues
de Varine (2013, p. 44), o patrimônio através de um caráter
comunitário e a partir da pertença aos múltiplos e plurais grupos
presentes naquela sociedade. Assim, congura uma abordagem
que se vê como diversa. Esse seria o papel a cumprir do patrimônio
diante de sua população local, espaço no qual ela veja e seja vista
através do que falam os seus elementos, ou seja, o que está posto vá
ao encontro de sua(s) história(s).
Sobre a humanidade, Joël Candau (2021, p. 31) assinala a ideia
de que os humanos não se inserem na sociedade como indivíduos,
ou seja, de forma que se coloquem como átomos com o objetivo de
perseguir metas, mas fazem parte de uma comunidade. Portanto,
há um compartilhamento entre esses sujeitos. Para isso, faz-se
necessária a conexão entre esses sujeitos, que, por sua vez, possuem
laços em comum que os ligam, conectam: saberes que compartilham
e vivenciam naquela atmosfera, ou até mesmo em lugares em que
estão inseridos e acabam por transitar e exercer suas práticas sociais.
Dessa forma, observa-se a necessidade de conexão entre a
instituição museu e os saberes que compõem o compromisso com
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
30
a produção de conhecimento. Conforme as palavras de Manuelina
Maria Duarte Cândido (2012), articulando o patrimônio com a
memória e os respectivos elementos culturais de uma população,
enm, o patrimônio torna-se elemento de identicação dos sujeitos.
O museu adota uma postura de comunicar, informar, bem como
produzir saberes referentes àquilo que está nos objetos, àqueles que
o pertenceram que atuaram sobre eles, muitas vezes, servindo de
testemunho do passado, am de educar o tempo recente.
Resultados parciais do estudo de público
Em três dias – 18, 19 e 29 de dezembro do ano de 2023 – realizou-
se um estudo de público, em que foram ouvidas nove pessoas, uma
amostra pequena, porém, levando em conta as condições climáticas,
assim como o tempo que se pôde desprender para a aplicação do
questionário, obteve-se uma parcela satisfatória de visitantes, a
partir dos quais se começou a desenhar a formação de ideias sobre
o patrimônio. Vale lembrar que o formato questionário é oferecido
aos visitantes logo após a sua visitação, por ventura, cabendo ou não
de livre escolha a utilização de sua palavra após a experimentação
do espaço museológico.
A pesquisa está balizada nos primeiros passos de um elemento
maior, que busca a constituição da tese que se encaminha para
observar o olhar sobre o patrimônio cultural através dos visitantes
do Museu Gama d’Eça. Para isso, os questionários contam com uma
estrutura de elementos sugestivos a dissertativos, conforme o desejo
do sujeito que participa com seus dizeres e reexões a respeito do
patrimônio na casa de memória.
Com o intuito de solidicar a proposta metodológica, o
pesquisador debruça-se sobre autores como Laville e Dionne (1999),
sobretudo acercados saberes caros às ciências humanas, a posteriori,
passando por Cervo e Bervian (2002) e nalizando em Marconi
e Lakatos (2007). Os teóricos têm suas contribuições elencadas
pelo pesquisador entendendo a contribuição ímpar da instalação
do sujeito in loco, da mesma forma que as amostras de pesquisas
experienciam o mesmo espaço, bem como obtendo respostas que
se diversicam e trazem resultados que podem corroborar com o
planejamento e execução de ações em prol do patrimônio histórico
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
31
e cultural, não apenas da instituição museológica, mas das casas de
memórias nas mais diversas realidades.
Gráco 1– Faixa etária dos visitantes
Fonte: Elaborado pelo autor (2024).
Gráco 2–Origem dos visitantes
Fonte: Elaborado pelo autor (2024).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
32
Gráco 3– O que os visitantes enxergam como patrimônio
Fonte: Elaborado pelo autor (2024).
O que se pode observar a partir do Gráco 1 é a faixa etária dos
visitantes, cuja concentração é acima dos 35 anos, seguidos pelas
demais faixas etárias. A entrada é franca e o acervo é de classicação
livre de idade. Muitos dos que por ali realizam a incursão já
possuem um conhecimento prévio, porém, há um público externo
ao município de Santa Maria (RS), escolas e grupos de visitantes,
por sua vez, realizando visitas guiadas com um prévio agendamento.
Uma questão que se observa a partir do Gráco 2 é a questão da
origem do sujeito que visita o museu, o que acaba congurando,
em sua maioria, externos ao município. A edicação, cabe lembrar,
encontra-se em uma área de grande uxo no centro de Santa Maria,
que possui uma projeção signicante, ainda que a edicação do
museu seja notável por manter a fachada e demais elementos da
época, ou seja, ao conservar sua arquitetura em meio às mudanças
que ocorrem na urbanização santamariense.
Por m, debruçamo-nos sobre o último gráco, o de número 3,
que adota uma perspectiva diferente, entretanto, partindo do sujeito
que preenche o questionário vindo a elencar o que ele considera
patrimônio, entre as opções que são postas acima. Vale dizer que o
objetivo não é classicar, tampouco categorizar, mas sim enxergar
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
33
e compreender a visão do visitante sobre patrimônio e o que pode
ou não vir a ser.
Mas, como um todo, observando desde a coleta de dados até
a resposta, após a experimentação do espaço museal, é notória
a questão da visibilidade e materialidade do patrimônio. Vê-se
que a questão material é muito forte e presente nos dias de hoje,
mesmo havendo esforços em prol da legitimação da imaterialidade
pelos diferentes órgãos, instituições e dispositivos, ainda assim a
materialidade prevalece.
Dessa forma, é necessário que ocorram trabalhos em conjunto, da
sala de aula às mais diferentes áreas do saber; bem como extrapolar
o campo da escola, de forma que se oportunize a visitação aos
museus, casas de memórias, lugares de rememoração, ou mesmo
paisagens que remetam a acontecimentos, feitos, à singularidade de
eventos históricos.
Referências
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2021.
CÂNDIDO, Manuelina Maria Duarte. Museus, história e interdisciplinariedade.
In: CHUVA, Márcia; NOGUEIRA, Gilberto Ramos. (Org.) Patrimônio cultural:
políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Mauad X FAPERJ, 2012.
CERVO, Amado L.; BERVIAN, Pedro A. Metodologia Cientíca. São Paulo:
Prentice Hall, 2002.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação
Liberdade, 2017.
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A Construção do Saber: manual de
metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Editora
Artes, Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de
metodologia cientíca. São Paulo: Atlas, 2007.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
PRATS, Lorenç. El concepto de patrimonio cultural. Cuadernos de
Antropologia Social. Buenos Aires, n. 11, p. 115-136, 2000.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
34
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do
desenvolvimento local. Porto Alegre: Medianiz, 2013.
PATRIMÔNIOS DIFÍCEIS E
HISTÓRIA ORAL. OS SENTIDOS
E OS SIGNIFICADOS DA LEPRA E
DA HANSENÍASE EM LUGARES DE
MEMÓRIA
Luiza Porto de Faria1
Considerações iniciais
Samanta Quadrat (2018) aponta que temas sensíveis são aqueles
que se perpetuam no tempo presente causando disputas políticas
e sociais pela memória. São passados dissonantes sobre os quais
não há consenso e que demandam tratamento ético e moral. Neste
sentido, as internações compulsórias de pessoas atingidas pela
hanseníase em asilos-colônias ao longo do século XX são entendidas
como experiências que caracterizam passados difíceis, uma vez que
as memórias sobre tais eventos, ao repercutirem no tempo presente,
causam debates quanto ao seus usos políticos e sociais.
O presente texto trata de um dos desdobramentos da dissertação
de mestrado escrita pela autora e defendida no Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa
Catarina (PPGH/UDESC) em 2023. O problema de pesquisa
1 Mestre em história pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bacharel em história pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). E-mail: luizapfaria@gmail.com
35
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
36
deste trabalho supõe que existem, no tempo presente, diferentes
sentidos e signicados que circundam o fenômeno biológico
atualmente denominado “hanseníase”. É proposto que esse cenário
está articulado entre duas “molduras” (ROSENBERG; GOLDEN,
1992) que atribuem noções à doença: a “moldura da hanseníase” e a
“moldura da lepra”2 (CARVALHO, 2016).
O conceito de “moldura” é examinado conforme descrito por
Rosenberg e Golden (1992). Segundo os autores, o conceito refere-
se ao processo de estabelecimento de esquemas explanatórios e
classicatórios para uma doença especíca. Argumentam que cada
doença desempenha um papel ativo na determinação das situações
da vida social, ao mesmo tempo em que é inuenciada por esses
contextos (p. 15). Dessa forma, as doenças são constituídas como
‘eventos biológicos’ e só adquirem existência após serem nomeadas.
É importante pontuar que o conceito de “moldura” é mobilizado na
linha de argumentação desenvolvida por Keila Carvalho (2016) no
que se refere à hanseníase.
Assim, partindo da hipótese central do trabalho, este texto
explora concepções associadas à “moldura da lepra” cujos ecos
ressoam nos dias atuais. O propósito é compreender como antigas
noções que moldaram a lepra como metáfora (SONTAG, 2007)
persistem no tempo presente.
Para isso, três “lugares de memória” (NORA, 1993)3 que
corroboram os sentidos atribuídos à lepra são analisados. Não se
pretende fazer um levantamento de todos os lugares de memória
dedicados à lepra/hanseníase no Brasil, mas, sim, observar como
2 Da mesma forma que na dissertação, no trabalho exposto no V Seminário
História e Patrimônio. Diálogos e perspectivas, o vocábulo “lepra” é empregado em
determinados contextos. Quando isso ocorre, a expressão é utilizada para designar
a enfermidade marcada pela estigmatização religiosa e moral, responsável pelo
isolamento compulsório de milhares de indivíduos no Brasil ao longo do século XX.
3 Pierre Nora desenvolveu a ideia de “lugares de memória” em seu ensaio “Entre
Memória e História: a problemática dos lugares” (1993). Ele argumentou que, à
medida que a história se institucionalizava, era crucial criar locais onde a própria
história pudesse ser reetida. Esses lugares de memória surgiram após a consolidação
da história como ciência no século XIX, permitindo que a história se percebesse por
meio de vestígios. No entanto, Janice Gonçalvez (2012) ressalta que o conceito de
Nora foi reinterpretado por vários autores envolvidos na elaboração da obra, cada um
interpretando os “lugares de memória” de maneira única (GONÇALVEZ, 2012, p. 29).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
37
alguns espaços atestam, no tempo presente, a lepra como uma
metáfora marcada pelo estigma religioso e pela mácula milenar.
O primeiro local a ser examinado é o Centro de Memória e Ação
Luís Veganin, instalado na antiga Colônia Santa Isabel, em Betim,
Minas Gerais4. O edifício que atualmente abriga o museu dedicado
à hanseníase era originalmente a enfermaria masculina da Colônia
Santa Isabel, mas cou abandonado por muitos anos e estava em
péssimo estado de conservação no início dos anos 2000. Apesar
disso, o local sempre teve uma conexão íntima com a memória dos
moradores locais, conferindo grande importância à estrutura.
O Centro de Memória e Ação Luís Veganin é permeado por
diversas dimensões - a historiograa, a etnograa e a museologia.
Essas áreas colaboram para compor a exposição do museu e
denir sua “intenção de memória”. No entanto, a atual exposição
do museu, ao se aproximar dos sentidos associados à lepra, gera
questionamentos em relação a essa vontade de memória.
Isso porque a maioria dos objetos expostos apontam que essa
vontade de memória é direcionada pelos sentidos atribuídos à
lepra. A narrativa construída pela exposição atual aborda o passado
da Colônia Santa Isabel e das internações compulsórias através
de objetos, documentos, livros e fotos dos antigos pavilhões, da
igreja, do cemitério e de outras construções internas e, com isso,
reconstroem a história da Colônia a partir do tempo presente.
Ainda, a exposição dedica atenção especial às questões relacionadas
à organização burocrática do hospital, ao tratamento dado aos
internos e à história da saúde.
Por exemplo, são encontrados inúmeros sapatos adaptados
devido às complicações da doença, cadeiras de rodas improvisadas
com bicicletas e caixas de seringas. Ao lado dessas peças, existe
uma antiga cadeira de dentista, um altar de madeira e uma grande
mesa de pedra diante de um quadro da crucicação de Cristo. Além
disso, vários itens de escritório estão expostos, como máquinas
de escrever, escrivaninhas, canetas e relógios. Considerando tais
4 O Centro de Memória e Ação Luís Veganin foi reformado em 2010 por meio de uma
parceria entre o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Fundação Artístico-
Cultural de Betim (FUNARBE) e a Fundação DAHW Brasi - lial da ONG Alemão (Deutsche
Lepra – und Tuberkulosehilfe) que atua no combate à hanseníase e à tuberculose. O
local foi visitado inúmeras vezes pela autora e as imagens utilizadas pertencem a seu
acervo pessoal.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
38
objetos (que seguem abaixo), é possível indagar quais passados
estão sendo iluminados ou apagados.
Cena religiosa
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
39
Sapatos adaptados
Cadeiras de rodas adaptadas
A m de fazer esta análise, o conceito de “objeto gerador”,
proposto por Francisco Regis Ramos Lopes (2016), é mobilizado.
Segundo o autor, um objeto-gerador tem como propósito “a
construção criativa de práticas pedagógicas que possibilitam novas
leituras da nossa própria historicidade” (LOPES, 2016, p. 75). Lopes
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
40
destaca que esses objetos devem explicitar sua relevância para além
da qualidade de fontes de informação.
Considerando essas ideias, os objetos expostos no Centro de
Memória e Ação Luís Veganin são questionados aqui. Por exemplo,
as formas de sapatos adaptados e as cadeiras de rodas improvisadas,
na sua disposição atual, não provocam reexões sobre as interações
entre os pacientes, o hospital e a doença. A simples disposição no
espaço não estimula a leitura dos objetos com o objetivo de promover
novas interpretações, ou seja, de fomentar um diálogo entre o
conhecimento existente e o que ainda está por descobrir (LOPES,
2016). Os objetos estão meramente expostos, sem explicitar sua
relevância ou estabelecer uma conexão entre o passado e o presente.
Em outras palavras, boa parte dos objetos em exposição não
desempenham o papel de “objetos geradores” e não conseguem
instigar novas sensibilidades em relação à doença (BORGES, 2017).
Isso ocorre principalmente porque esses objetos não possibilitam a
exploração dos signicados do passado e do futuro que coexistem
no presente (LOPES, 2016).
Em seguida, será analisado um segundo local de memória que
reforça os sentidos associados à lepra. Diferentemente do Centro
de Memória e Ação Luís Veganin, o Memorial Hospital Colônia
de Itapuã (Memorial HCI) não foi visitado pessoalmente pela
pesquisadora. Portanto, a análise desse espaço de memória será
realizada por meio da bibliograa existente e de fontes online
disponíveis ao público.
O Memorial HCI está situado na antiga Colônia de Itapuã,
na cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul. O Memorial HCI
foi inaugurado em 27 de novembro de 2014 na antiga “Casa das
Freiras” dentro do complexo hospitalar. O espaço abriga um amplo
acervo, incluindo fotograas, objetos de época, equipamentos
cirúrgicos e laboratoriais, documentos de registros e máquinas
de esterilização. Os visitantes podem percorrer ambientes que
reproduzem consultórios do período das internações compulsórias,
apresentando equipamentos médicos e informações sobre a doença.
A construção do Memorial HCI foi idealizada por dois
funcionários da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do
Sul: Marco Antônio Lucaora e Rita Sosnoski. Rita destaca-se como
a única narradora do espaço e é responsável pelas palestras dadas
aos visitantes (BEZERRA, 2019). A análise dos objetos expostos no
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
41
Memorial HCI pode contribuir para reforçar ou para questionar
os sentidos atribuídos à lepra. Segundo Daniele Bezerra (2019), a
narrativa do Memorial HCI tem a oportunidade de desconstruir
preconceitos associados ao estigma da doença, mas, ao mesmo
tempo, opera no limite entre a “transmissão do passado doloroso e
o reforço negativo desse passado” (Bezerra, 2019, p. 356), fazendo
uso do fetiche como estratégia de comunicação.5
Bezerra (2019) chama atenção à narrativa das visitações. De
acordo com a autora, esta construção é permeada pelos signicados
ligados à lepra, o que rearma antigas metáforas e reforça o estigma
milenar da doença. Tais associações contribuem para a aproximação
entre os sentidos da doença e ideias de culpa e castigo. Desta forma,
conforme argumenta Viviane Borges (2021), seria pertinente
conceber uma exposição que não apenas forneça “um repertório de
existências belas e/ou aterrorizantes, mas uma oportunidade para
repensar estigmas” (BORGES, 2021, p. 53).
Quanto ao acervo do Memorial HCI, este abrange
majoritariamente objetos que remetem à história institucional e da
saúde, incluindo equipamentos cirúrgicos, laboratoriais e utensílios
hospitalares. Além disso, destaca-se a presença de fotograas,
documentos escritos, moedas e moldes de calçados. Nesta análise,
a atenção está concentrada na primeira sala do Memorial HCI,
intitulada “História da lepra no mundo” (imagem abaixo). Essa
escolha se justica pelos objetos expostos que, tomados como
elementos cenográcos, conguram um local de memória que
remete aos signicados atribuídos à lepra.
5 A utilização do fetiche como meio de comunicação pode ser associada ao conceito
de Dark Tourism, cunhado por John Lenon e Malcolm Foley na década de 1990. Essa
categoria refere-se à espetacularização de temas sensíveis e à organização de visitas a
locais vinculados a passados traumáticos. Antigas prisões, manicômios e leprosários,
por exemplo, são envoltos em fascínio, de maneira que as visitas podem oscilar entre
entretenimento e reexão sobre a realidade observada (BORGES, 2018).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
42
Sala “História da lepra no mundo”
Nesse espaço, destaca-se: um mapa representa a disseminação da
lepra pelo mundo, um caixote de madeira, dois quadros pequenos,
uma imagem de pessoas pedindo esmolas e, como peça central do
cenário, o manequim de um homem com hanseníase. O doente,
chamado “Lázaro”, personica o estereótipo do leproso medieval
que vagueia pedindo esmola, excluído de sua comunidade. A
imagem evoca diversas metáforas associadas à lepra: o homem veste
roupas rasgadas, carrega uma matraca para anunciar sua chegada e
apresenta sequelas no nariz e nas mãos (BEZERRA, 2019).
Portanto, a escolha dos objetos expostos e a construção da sala
“História da lepra no mundo” não propicia espaços de reexão, mas
sim para a provocação de sensações desconfortáveis relacionadas
aos signicados vinculados à lepra. Em vez de questionar esses
signicados no contexto atual, cada objeto colocado ali reforça os
mitos associados à doença.
O Museu Silas Braga dos Reis, o último local de memória abordado
na presente análise, é examinado considerando sua “vontade de
memória”. Essa intenção torna-se evidente no processo de escolha
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
43
do que deve ser preservado ou não e na narrativa construída para o
público. Pode-se armar que a maior parte da exposição no Museu
visa preservar e transmitir conhecimentos sobre a história da saúde e
da prática médica durante o período das internações compulsórias,
excluindo a narrativa dos antigos pacientes.
O Museu Silas Braga dos Reis está situado no antigo Asilo-
Colônia Aimorés, na cidade de Bauru, São Paulo. O memorial foi
inaugurado em 2004 no edifício que abrigava o Cassino da antiga
colônia (BATISTA, 2022). Sobre seu acervo, este é composto
majoritariamente por instrumentos médicos e itens administrativos.
Assim, é possível dizer que os objetos expostos representam antes
o funcionamento do Asilo-Colônia Aimorés como instituição do
que as experiências dos pacientes ali isolados. Nesse sentido, não é
possível compreender os signicados da segregação por meio das
peças expostas; apenas se tem conhecimento das práticas médicas,
ociais e burocráticas do hospital (como pode ser visto nas imagens,
abaixo).
O Museu Silas Braga dos Reis
Diante disso, surge a pergunta sobre qual passado está sendo
iluminado. Isto é, qual memória cultural está sendo selecionada
e quais partes desta memória estão sendo preservadas (BORGES,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
44
2018). Através dessa escolha de signicados, uma série de
importâncias é determinada e, consequentemente, omissões e
silenciamentos moldam a narrativa. Naquele espaço, a memória
se afastou do presente, isolando a lepra do passado da hanseníase
atual.
De modo geral, observa-se uma semelhança entre os locais de
memória analisados: a ausência da narrativa dos antigos moradores
como parte integrante das exposições. A exposição atual do Centro
de Memória e Ação Luís Veganin, a ênfase central do Museu Silas
Braga dos Reis e a abordagem implementada pelo Memorial HCI
coincidem ao negligenciar as experiências daqueles que vivenciaram
o isolamento compulsório nos respectivos espaços de cada centro
de memória.
Portanto, é plausível armar que os três espaços são frágeis como
pontos de ancoragem de identidades e como locais portadores de
memórias particularmente signicativas para os indivíduos que
enfrentaram a doença e a segregação. Incorporar testemunhos
orais de ex-pacientes nas exposições ou convidar moradores para
participarem como guias são estratégias possíveis para enriquecer a
relação entre memória e história nesses centros de memória.
Referências
BATISTA, Gabriela Lopes. Narrativas documentárias em Asilos Colônias
paulistas: Patrimonialização e memória. In: BAUER, Leticia; BORGES,
Viviane Trindade (org.). História oral e patrimônio cultural. São Paulo:
Letra e Voz, 2018. p. 73-90. (v. 1).
BEZERRA, Daniele Borges. A ressonância afetiva das memórias como
meio de transmissão para um patrimônio difícil: monumentos em
antigos leprosários, 2019. 520 f. Tese (Doutorado em Memória Social e
Patrimônio Cultural) – Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
Patrimônio Cultural. Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal
de Pelotas, Pelotas, 2019.
BORGES, Viviane Trindade. Memória pública e patrimônio prisional:
questões do tempo presente. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis,
v. 10, n. 23, p. 310-332, 2018.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
45
BORGES, Viviane. Memórias difíceis: Hospital Colônia de Barbacena,
reforma psiquiátrica brasileira e os usos políticos de um passado doloroso.
Museologia e Patrimônio, online, v. 10, n. 1, p. 105-127, 2017
CARVALHO, Keila Auxiliadora. Colônia Santa Izabel: a lepra e o isolamento
em Minas Gerais (1920-1960). Curitiba: Editora Prismas, 2016
NORA, Pierre; KHOURY, Yara Aun. Entre Memória e História: a problemática
dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993
QUADRAT, Samantha. É possível uma história pública dos temas sensíveis
no Brasil? In: MAUAD, Ana; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane (org.).
Que história pública queremos? São Paulo: Letra & Voz, 2018. p. 213-220.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Objeto gerador: considerações sobre o
museu e a cultura material no ensino de História. Revista Historiar, [S. l.],
v. 8, n. 14, 2016. Disponível em: //historiar.uvanet.br/index.php/1/article/
view/234. Acesso em: 9 maio 2023.
ROSENBERG, Charles; GOLDEN, Janet (org.) Framing Disease: studies in
cultural history. New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press,
1992.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
TRATAMENTO, PRESERVAÇÃO,
ACESSO E DIFUSÃO DE
ACERVOS ARQUIVÍSTICOS NA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO
GRANDE – FURG
Andrea Gonçalves dos Santos1
1. Introdução
Se bem o documento é qualquer “unidade de informações,
qualquer seja o suporte ou formato” (ARQUIVO NACIONAL,
2005, p. 73), o documento de arquivo é a informação registrada,
independente da forma ou do suporte, “produzidos e acumulados
por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família,
no desempenho de suas atividades, independente do suporte”
(ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 27) dotado de organicidade,
que possui elementos constitutivos sucientes para servir de
prova dessas atividades. A aproximação do termo informação
para além de dados e documentos, proposta por Buckland (1991),
incluem objetos e eventos, representa uma expansão conceitual,
sendo possível denir informação como evidência com potencial
1 Arquivista e Conservadora-Restauradora de Bens Culturais Móveis, Especialista
em gestão de documentos (UAB/UFSM), Mestra em Patrimônio Cultural (UFSM) e
Doutoranda em Educação (UFPel), trabalha na Coordenação de Arquivo Geral da
Universidade Federal do Rio Grande – FURG. E-mail: andreasantos@furg,br
46
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
47
informacional estabelecendo a relevância da tangibilidade e
materialidade como meios de acesso à informação. Permite
reconhecer as representações de ideias, conceitos e conhecimentos
em quaisquer recursos físicos com potenciais informacionais em
suas estruturas e devidas contextualizações (BUCKLAND, 1991).
Dessa forma, o documento de arquivo (ou documento
arquivístico), dentro de instituições escolares como são as
Universidades é considerado como fonte documental para a
História da Educação assim como parte integrante do patrimônio
documental da instituição. Nessa perspectiva, a História da Educação
como campo interdisciplinar indica “que o objeto de investigação –
a educação – é estudado a partir dos métodos e teorias próprias à
pesquisa e investigação histórica” (LOMBARDI, 2004, p. 151).
Considerando, em muitos casos, a inexistência de prossionais
capacitados na área, o acesso se vê comprometido devido à má
organização, perdas que provocam lacunas, ou ainda, questões de
mau acondicionamento que provocam a deterioração acelerada
do suporte devido à sua composição, manuseio e ações de agentes
físicos, químicos e biológicos. Se bem o documento é “nito”
pelas características do suporte (papel, lme, etc.) são utilizadas
diversas técnicas para migrar de suporte (como microlmagem,
digitalização, etc.) que implicam em novos desaos e regras para
prolongar o seu acesso.
Assim, este trabalho tem por objetivo apresentar o tratamento, a
gestão, a preservação, o acesso e a difusão dos fundos documentais
custodiados pela Coordenação de Arquivo Geral da Universidade
Federal do Rio Grande (FURG), localizado no Estado de Rio
Grande do Sul, Brasil. Para isto se realizou o tratamento dos
fundos documentais (revisão do arranjo, ordenação e descrição)
das primeiras faculdades que deram origem à FURG: a Escola de
Engenharia Industrial, a Faculdade de Direito Clovis Bevilaqua, a
Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas, a Faculdade Católica
de Filosoa de Rio Grande e a Faculdade de Medicina do Rio
Grande, incorporadas à Universidade entre os anos de 1969 e 1971.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
48
2. Documentos de arquivo como fonte para a
história da educação e arquivos como lugares
de memória
Bellotto (2004) explica que o documento é qualquer elemento
gráco, iconográco, plástico ou fônico pelo qual o homem se
expressa, produzido por diversos motivos (funcionais, jurídicos,
cientícos, técnicos, artísticos ou culturais) pela atividade humana.
Diante desta visão ampla, a autora explica que “a razão de sua
origem e de seu emprego, [...], que vai determinar sua condição de
documento de arquivo, de biblioteca, de centro de documentação
ou de museu” (BELLOTTO, 2004, p. 36). No caso dos documentos
de arquivo, estes são produzidos por uma entidade pública ou
privada, pessoa ou família no decorrer das funções que justicam
sua existência, onde o documento mantêm relações orgânicas entre
si. Seja seu surgimento por motivos funcionais, administrativos ou
legais, tratam de provar, de testemunhar alguma coisa (BELLOTTO,
2004).
Jenkinson (1947 apud RONDINELLI, 2011) explica um
aspecto importante “embora todo documento arquivístico seja um
documento, nem todo documento é um documento arquivístico”
(RONDINELLI, 2011, p. 265). Para se congurar como documento
arquivístico, além da sua característica de produção citado por
Bellotto (2004), precisa possuir características diplomáticas. Assim,
outros aspectos também caracterizam o documento arquivístico
como organicidade, imparcialidade, autenticidade, dentre outras,
estão presentes na sua conceituação (RONDINELLI, 2011). Desde
a sua criação, o documento passa por sucessivas fases (corrente,
a intermediária e a permanente) chamadas como “ciclo vital dos
documentos” que compreende desde a sua produção até a sua
destinação nal (guarda permanente ou eliminação) e caracterizado
pela frequência do seu uso. O ciclo vital dos documentos está
relacionado aos valores que os documentos possuem, divididos em
dois grandes grupos: valor primário e valor secundário.
Dessa forma, o documento possui um valor primário desde
sua produção, estabelecido em função do interesse que possa ter
para quem o produziu e levando em conta também sua utilidade
administrativa, legal ou scal. Cumprido este período, este revela
outro valor, de interesse tanto para a entidade produtora como a
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
49
outros usuários, serve como fonte para a pesquisa histórica, isto é,
adquire um valor secundário, tendo em vista a sua utilidade para
ns diferentes daqueles para os quais foi originalmente produzido
(SANTOS, 2012).
Ao mesmo tempo o ciclo vital dos documentos está relacionado
com a teoria das Três Idades dos documentos. Esta teoria diz que
“os arquivos são considerados arquivos correntes, intermediários ou
permanentes, de acordo com a frequência de uso por suas entidades
produtoras e a identicação de seus valores primário e secundário”
(ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 160).
Assim, o arquivo corrente é mantido junto aos órgãos produtores
em razão da frequência de consulta, em decorrência das funções e
atividades exercidas que originaram sua produção ou recebimento.
No arquivo intermediário, os documentos oriundos dos arquivos
correntes, com usos pouco frequente, aguardam sua destinação
nal. Já no arquivo permanente são preservados os documentos em
caráter denitivo, em função de seu valor secundário, destinados a
servir para a pesquisa histórica ou cultural.
Para Bellotto (2004) um documento arquivístico só tem sentido
se relacionado ao meio que o produziu. O conjunto deve reetir
suas atividades (meio e m). Assim, um fundo de arquivo se baseia
na origem do documento: o que ele representa no momento da sua
criação, como instrumento que possibilitará a consecução de uma
atividade dentro de uma função que cabe ao órgão produtor no
contexto administrativo no qual atua. Le Go (2013) acrescenta que
possa contribuir para uma história total é importante não “isolar os
documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte” (LE
GOFF, 2013, p. 497).
Entende-se aqui o arquivo universitário como fonte de pesquisa
e repositório da informação administrativa, onde a intervenção
arquivística colabora com o desenvolvimento, a transmissão,
a preservação e a difusão do conhecimento desenvolvido na
instituição. O arquivo, como lugar de memória, fornece informações
como testemunho dos acontecimentos, práticas, costumes e
fatos. Considerando os diferentes campos nesta pesquisa as suas
especicidades metodológicas serão construídas no decorrer do seu
desenvolvimento.
Segundo Magalhães (2004, p. 67), “a instituição é contexto,
representação, materialidade e é apropriação” e dentro dessa
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
50
perspectiva procura-se problematizar as relações entre os arquivos
e a memória. Na preocupação de conservar a memória, na ânsia
de não perder nada, o homem acaba por tentar guardar tudo, e é
esta memória guardada que origina as identidades do passado
(CANDAU, 2011). Nesse sentido, Le Go (2013) arma que a
memória é fundamental para a construção da identidade seja ela
coletiva ou individual.
Segundo Le Go (2013) a memória por ser entendida como a
propriedade de conservar determinados dados e informações,
através da psique que permite ao indivíduo atualizar ou reinterpretar
impressões ou informações passadas. Por sua vez, Halbwachs (2013)
mostra a existência de uma relação íntima entre o individual e o
coletivo, a memória individual e a memória coletiva. A primeira
se refere às lembranças pessoais sobre determinados fatos e
acontecimentos, sendo um fragmento da memória coletiva, também
denominada como memória social. Neste sentido, a memória
é percebida como um fato social, já que o grupo ou coletividade
lembra e constrói, não apenas o indivíduo. Assim, ela é um
fenômeno construído coletivamente e, como coletivo, susceptível a
transformações e mudanças constantes, como a sociedade.
Nesse contexto, o arquivo se apresenta “como um lugar físico
que abriga o destino dessa espécie de rastro que cuidadosamente
distinguimos do rastro cerebral e do rastro afetivo, a saber, o rastro
documental” (RICOEUR, 2007, p. 177). Sendo a preservação dos
acervos é fundamental para a construção das fontes, Melo (2010)
aponta que o entendimento de fonte histórica “inclui toda e qualquer
peça que possibilite a obtenção de notícias e informações sobre o
passado histórico-educativo” (MELO, 2010, p. 15).
Nesse sentido, a utilização do termo fontes documentais pretende
reunir os conceitos de documento e fonte documental, na busca de
atrelar um signicado amplo para o pesquisador que trabalha com
elas, além de documentos de diversas tipologias e suportes.
3. O interesse e proteção do Estado na gestão
dos documentos arquivísticos públicos
Para entender a preservação da informação arquivística
governamental, como que passará a ser fonte documental nas
Universidades Federais é necessário entender em qual contexto
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
51
essa informação surge. Assim, Silva (2008) arma que a informação
governamental é uma informação pública e portanto, pertence a
todos. Seja como garantia da cidadania ou para o uso pelo país, a
ameaça à informação pública, de alguma forma ameaça a democracia.
Sendo a informação arquivística como “aquela produzida, recebida
e acumulada por um organismo em razão das suas competências e
atividades necessárias para a realização de seus objetivos (SILVA,
2008, p. 45), o autor dene a informação arquivística governamental
como
a informação acumulada pelo Estado, registrada em qualquer suporte
material, produzida e recebida em razão de atividades próprias e
especícas de governo e em atenção às respectivas competências e
funções das estruturas administrativas e burocráticas existentes para a
realização dos objetivos de governo (SILVA, 2008, p. 45).
Segundo Jardim (2006), por políticas públicas arquivísticas
entende-se
o conjunto de premissas, decisões e ações -produzidas pelo Estado e
inseridas nas agendas governamentais em nome do interesse social
que contemplam os diversos aspectos (administrativo, legal, cientíco,
cultural, tecnológico) relativos à produção, uso e preservação da
informação arquivística de natureza pública e privada. (JARDIM, 2006,
p. 39).
Sousa (2006) explica que “os objetivos de políticas publicas de
arquivo devem ser pautados, inicialmente, pelo direito do cidadão
à informação e, também, pelo apoio à administração, à proteção
à memória e ao desenvolvimento cientíco” (SOUSA, 2006, p. 5).
Para o autor, se as políticas públicas arquivísticas têm como objetivo
a garantia de acesso à informação como direito constitucional, é
necessário “colocar o usuário em primeiro plano, isto é, tirá-lo das
sombras e convocá-lo para o debate, o que exigirá·, também, uma
mudança de enfoque” (SOUSA, 2006, p. 6), isto é, precisamos “dos
arquivos direcionados aos arquivistas para os arquivos direcionados
aos usuários” (Idem, Ibidem).
Dessa forma, as políticas que dão suporte aos arquivos públicos
e privados no Brasil são xadas na Constituição Federal de 1988, na
Lei nº 8.159/1991 e o Decreto nº 4.073/2002, onde o Poder Público
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
52
possui o dever da gestão documental assim como a proteção a
documentos de arquivos, considerados como elementos de prova
e informação e instrumento de apoio à administração, à cultura, ao
desenvolvimento cientíco.
Um marco importante na gestão de documentos no Brasil é a Lei
Nacional de Arquivos (Lei n° 8.159/1991) que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências.
Além de apresentar denições importantes para a área aponta para
a preocupação para os conjuntos de documentos de instituições
públicas, quanto a cessão de suas atividades, quanto à eliminação e
quanto a inalienabilidade e imprescritibilidade dos documentos de
valor permanente.
A Lei estabelece ainda a ordenação da malha arquivística pública
do país: Arquivos Federais (o Arquivo Nacional e outros arquivos
do Poder Executivo. Legislativo e Judiciário Federais), os Arquivos
Estaduais, os Arquivos do Distrito Federal e os Arquivos Municipais
e a onde a administração da documentação pública ou de caráter
público compete às instituições conforme a sua esfera de atuação.
4. Identicação dos fundos documentais
Fundada em 1969, a Universidade do Rio Grande (FURG) tem
produzido e acumulado, ao longo do tempo, importantes acervos
como fontes de testemunho visando a preservação da sua memória
institucional. A sociedade rio-grandina, na década de 1950,
vislumbrou a oportunidade para alavancar o desenvolvimento da
região, com o estabelecimento da Universidade. Nesse contexto,
em 2008, com a incorporação de arquivistas e a criação do Curso
de Arquivologia, inicia-se o processo de valorização e gestão do
patrimônio documental da Universidade, sendo a Coordenação
do Arquivo Geral fundamental ao ser responsável pelas políticas
de gestão, custódia e preservação dos documentos produzidos e
recebidos pela Instituição. A Coordenação, localizada no Campus
Rio Grande, é subordinada à Pró-Reitoria de Planejamento e
Administração – PROPLAD.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
53
Figura 1 – Coordenação de Arquivo Geral da FURG no Campus Rio Grande.
Fonte: Acervo da Coordenação do Arquivo Geral, 2016.
Desde 2008, todas as atividades desenvolvidas, pautam-
se na gestão de documentos, considerada como o conjunto de
“procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção,
tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos em fase
corrente ou intermediária, visando sua eliminação ou recolhimento”
(ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 100) visando garantir “a guarda
ordenada de documentos, sua conservação e, principalmente seu
acesso” (SANTOS, 2012, p. 33).
Em 2012, a pesquisa de Santos (2012) do Programa de Pós-
Graduação Prossional em Patrimônio Cultural, na Área de
Concentração em História e Patrimônio Cultural, da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM), focou seus estudos na organização
e descrição do acervo e desenhou o Inventário da Faculdade de
Direito Clóvis Bevilácqua e o “O guia de fundos do Arquivo Geral
da FURG”, considerada a primeira proposta de arranjo e criação de
instrumentos de pesquisa.
Em 2017, uma nova proposta de guia, trouxe uma visão da
instituição e dos serviços arquivísticos oferecidos, resultado da
pesquisa de mestrado intitulada Arquivo Universitário: preservação
e acesso ao patrimônio documental arquivístico da Universidade
Federal Do Rio Grande – FURG2 que focou seus estudos nas atas
2 Programa de Pós-Graduação Prossional em Patrimônio Cultural, Área de Concentração
em História e Patrimônio Cultural, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), elaborada
por Elisângela Gorete Fantinel, sob orientação do professor Dr. Daniel Flores.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
54
de reunião do Conselho Universitário – CONSUN, no período de
1970 a 1995, com a nalidade de elaborar a descrição, difusão desse
acervo e propiciar o acesso online, via plataforma AtoM (Acess to
Memory).
Em 2022, a pesquisa de Dotto (2022) apresentou a descrição das
fotograas, com base na Norma Brasileira de Descrição Arquivística,
e resultou na elaboração do “Catálogo Seletivo de Fotograas da
FCPE”, produto nal da dissertação de mestrado.
No caso das antigas faculdades, o trabalhou se enfocou no arranjo,
preservação e acesso, seu tratamento obedece às normativas e
legislação arquivística nacional ao integrar a Administração Pública
Federal. Assim, toda intervenção arquivística nos documentos em
âmbito público deve estar em consonância com as normativas do
Arquivo Nacional e do Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ.
Nesse sentido, foram analisados diversos documentos relacionados
a sua criação, o seu funcionamento e seu desenvolvimento, como
estatutos, regimentos, organogramas, históricos institucionais,
dentre outros documentos constitutivos da Instituição, incluídos das
antigas faculdades. Com as sucessivas mudanças organizacionais
era imperativo denir o(s) fundo(s) documental(ais), onde foram
observados os critérios elencados Duchein (1986) acrescidos do
critério concernente à autonomia nanceira, auxiliaram nessa
denição.
Sem a denição do fundo, os documentos perdem o seu contexto
de produção e sua relação com os outros conjuntos documentais
existentes, onde a inexistência da relação orgânica descaracteriza ao
documento arquivísticos. Nesse sentido, Duchein (1986) enfatiza
na observação das diferentes hierarquias dos órgãos produtores
de documentos, podendo ser maximalista e minimalista. Se
maximalista, irá do mais alto nível para o menor e se minimalista, o
fundo documental é a menor partícula funcional.
No caso da FURG adotou-se o critério minimalista (onde a
menor partícula funcional é a própria instituição), considerando
a característica descentralizada da Administração Pública, a
Autonomia Universitária e também para evitar diculdades
no gerenciamento devido ao seu grande volume documental
produzido e/ou acumulado, se adotado o critério maximalista.
Nesta perspectiva, o autor arma que, ao adotar o critério
minimalista deve-se evitar “situar demasiadamente baixo, o nível
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
55
de competência funcional o qual corresponde ao fundo de arquivos
[...] para evitar o risco de retirar da noção de fundo seu verdadeiro
signicado” (DUCHEIN, 1986, p. 20). Dessa forma, evitou-se
rebaixar o fundo além da própria instituição (como no caso de
unidades administrativas, unidades acadêmicas, órgãos vinculados,
etc.) para evitar a perca da relação orgânica entre os documentos
e seus conjuntos, considerando sempre a FURG como entidade
produtora a partir de 1969.
Antes do Decreto-Lei n° 774/1969 (que cria a URG) foram
denidos que a Escola de Engenharia Industrial, a Faculdade
de Direito Clovis Bevilaqua, a Faculdade de Ciências Políticas e
Econômicas, a Faculdade Católica de Filosoa de Rio Grande e
a Faculdade de Medicina do Rio Grande seriam fundos fechados
conforme os critérios apontados por Duchein (1986) onde
se respeitou o Princípio da Proveniência, se deniu o critério
minimalista e se observou as características organizacionais dos
órgãos produtores para denir quais fundos seriam abertos (no
caso a FURG por produzir e receber documentos) ou fechados (no
caso das antigas faculdades por não produzirem nem receberem
mais documentos).
5. Tratamento dos fundos documentais das
primeiras faculdades que deram origem à
Universidade Federal do Rio Grande - FURG
Após a denição dos fundos, foram utilizados espelhos (projeção
da caixa-arquivo que indica o seu conteúdo) e a cada fundo fechado
foi atribuída uma cor de espelho. Esta metodologia favorecer a
identicação visual de cada acervo, evita possíveis dispersões ou
erros no momento da guarda além de colaborar com a manutenção
da relação orgânica de forma mais intuitiva.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
56
Figura 2 – Atribuição de cor aos fundos fechados pertencentes as antigas faculdades na
Coordenação de Arquivo Geral da FURG.
Fonte: Acervo da Coordenação do Arquivo Geral, 2013.
Para a organização dos acervos foram observados dois
instrumentos: O código de classicação e tabela de temporalidade
e destinação de documentos relativos as atividades-meio do Poder
Executivo Federal, aprovado em 20203 e o Código de classicação
referente à atividade-m das Instituições Federais de Ensino
Superior – IFES, aprovados pelo Diretor-Geral do Arquivo Nacional,
por meio da Portaria n° 092/2011, seguindo a legislação vigente,
conforme mencionado anteriormente. Se bem foram organizados
todos os documentos das antigas faculdades entre os anos de 2012
e 2013, a atualização recente do Código referente à atividade-meio
e as incorporações de documentos ao acervo da Coordenação de
Arquivo Geral entre os anos de 2008 e 2017 provocaram a sua
reorganização.
O Código adota o modelo de código de classicação decimal
por assuntos dividido em dez classes e estas, por sua vez, em
dez subclasses e assim sucessivamente. As classes principais
correspondem às grandes funções desempenhadas pelo órgão.
Elas são divididas em subclasses e estas, por sua vez, em grupos
e subgrupos, os quais recebem códigos numéricos, seguindo-se o
método decimal, desde 000 à 900 (sendo as classes 600, 700 e 800
vagas), divididas em atividades-meio e atividades-m. Atualmente
o acervo encontra-se no arquivo deslizante, na Sala de Acervo
3 Este instrumento teve várias atualizações desde 1996.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
57
Permanente da Coordenação de Arquivo Geral, com controle de
Umidade Relativa do Ar entre 45 a 55% e proteção de raios UV nas
janelas.
Figura 3 – Localização dos fundos fechados pertencentes as antigas faculdades na
Coordenação de Arquivo Geral da FURG.
Fonte: Acervo da Coordenação do Arquivo Geral, 2013.
Para a descrição utilizaram-se a Norma internacional para
descrição de instituições com acervo arquivístico (ISDIAH) e
Norma Geral de Descrição Arquivística – ISAD(G) do Conselho
Internacional de Arquivos (CIA) e a Norma Brasileira de Descrição
Arquivística – Nobrade do Conselho Nacional de Arquivos –
CONARQ para criar, num primeiro momento, o guia de fundos
da instituição. A proposta do guia de fundos junta as pesquisas
realizadas por Santos (2012) e Fantinel (2017).
Atualmente, encontra-se em fase de elaboração inventários
e catálogos dos acervos das antigas faculdades (que será
disponibilizado em formato de e-book no website da Coordenação
de Arquivo Geral), partindo da atualização da aplicação das normas,
a complementação dos documentos incorporados e a revisão e
adequação dos trabalhos desenvolvidos pelos acadêmicos do Curso
de Arquivologia da FURG referente às atividades de descrição
documentais realizadas durante o estágio supervisionado em ditos
acervos.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
58
Após a elaboração, revisão e publicação dos instrumentos de
pesquisa, os mesmos serão reunidos no website da Coordenação
de Arquivo Geral. O passo seguinte será digitalizar os conjuntos
documentais visando o uso do soware AtoM (Access to Memory).
Este soware pode ser usado por uma única instituição para
sua própria descrição, ou pode ser denido como uma “lista de
união”, aceitando descrições de qualquer número de instituições
arquivísticas. A utilização deste soware para descrição de
documentos arquivísticos e a difusão dos fundos em ambiente
virtual é um marco no âmbito institucional, que permitirá ao
pesquisador, detectar, preliminarmente, a existência e localização
de documentos de seu interesse, garantindo o pleno acesso aos
documentos, bem como sua visualização a través de estrutura do
soware. Esta experiência tem resultado em muito satisfatório no
trabalho desenvolvido por Fantinel (2017) descrevendo as atas
do Conselho Universitário utilizando a Nobrade e inserindo os
representantes digitais e a descrição no soware.
Figura 4 – Atas do Conselho Universitário no software AtoM.
Fonte: Acervo da Coordenação do Arquivo Geral, 2017.
6. Considerações nais
A gestão documental na FURG teve um dos seus momentos
mais importantes no ano de 2023, ao aprovar o Sistema de Arquivos
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
59
da FURG (SIARQ/FURG) pelo Conselho de Ensino, Pesquisa,
Extensão e Administração (COEPEA) na Resolução n° 106 de 15
de setembro de 2023, sendo um modelo de gerenciamento, entre
outros que podem ser tomados como ferramenta na condução
de políticas arquivísticas. Seja qual for a anatomia do sistema, da
rede ou dos programas de ação, sua concepção e operacionalização
decorrem da política arquivística. O SIARQ/FURG é o conjunto
de órgãos arquivísticos inter-relacionados com vistas a promover
a gestão continuada dos documentos de arquivo visando assegurar
a gestão, o acesso e a preservação pela Instituição. Esta resolução
tem por objetivo assegurar a conservação, a proteção, e o acesso aos
documentos para defesa de direitos ou como elementos de prova,
informação ou fonte para a pesquisa cientíca, pautada pela Política
Arquivística.
Assim como aprovar concomitantemente, a Política arquivística
da FURG, pelo Conselho Universitário, na Resolução n° 16 de
23 de setembro de 2023 que visa assegurar a gestão, o acesso e a
preservação dos documentos produzidos ou recebidos pela FURG
em decorrência das atividades-meio e atividades-m. Esta resolução
aplica-se aos documentos de arquivo, independente da natureza,
suporte ou formatos, inclusive aos documentos digitais. Mantêm
consonância com outras políticas congêneres que tratam sobre
segurança da informação, proteção de dados pessoais, privacidade
e classicação da informação quanto à condencialidade denidas
pela Universidade.
Nesse sentido, a preservação do patrimônio documental da
FURG, por meio da organização dos fundos documentais cria uma
ponte entre a Universidade, o arquivo e a sociedade promovendo o
acesso ativo à informação como também busca fortalecer o sentido
de identidade e pertencimento da sociedade à Universidade.
Referências
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia
arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento
documental. 2° ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
60
BRASIL. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário
Ocial da União, seção 1, Brasília, DF, ano 129, n. 6, p. 455-456, 9 jan.
1991. Disponível em: https://www.google.com/search?client=refox-b-
d&q=lei+8159. Acesso em: 18 jul. 2022.
BUCKLAND, Michael K. Information as thing. In: Journal of the
American Society for Information Science, [s.n.], v. 42, n. 5, p. 351-
360, jun.1991. Disponivel em: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-
4571(199106)42:5<351::AID-ASI5>3.0.CO;2-3. Acesso em: 6 maio 2021.
CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. 1
ed. São Paulo: Contexto, 2011.
DUCHEIN, M. O respeito aos fundos em arquivística: princípios teóricos e
problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n.
1, p. 14-33, abr. 1982/ago. 1986. Disponível em:
<https://www.brapci.inf.br/index.php/article/download/19306>. Acesso
em: 03 set. 2023.
FANTINEL, Elisângela Gorete. Arquivo universitário: preservação e acesso
ao patrimônio documental. 2017. 659 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Programa de Pós-graduação Prossional em Patrimônio Cultural, Centro
de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria,
Santa Maria, 2017.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução do original francês 2
ed. por Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2013.
JARDIM, José Maria. Políticas públicas arquivísticas: princípios, atores e
processos. In: Arquivo & Administração, v. 5, n. 2, 2006. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/51586>. Acesso em: 17 mai.
2023.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão (et al.) 7
ed. revista Campinas. Ed. da Unicamp. São Paulo, 2013
LOMBARDI, José Claudinei. História e historiograa da educação;
atentando para as fontes. In: LOMBARDI, J. C. e NASCIMENTO, M. I. M.
(Org.). Fontes, História e Historiograa da Educação. Campinas: Autores
Associados et all, p. 141-176, 2004.
MAGALHÃES, Justino. Tecendo Nexos: história das instituições educativas.
Bragança Paulista/SP. Editora Universitária São Francisco, 2004.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
61
MELO, Joaquim José Pereira. Fontes e métodos: sua importância na
descoberta das heranças educacionais. In: COSTA, C. J., MELO, J. J. P.,
FABIANO, L. H. (Orgs.). Fontes e métodos em história da educação.
Dourados, MS: Ed. UFGD, 2010.
RICOEUR, Paul. A história, a memória, o esquecimento. Tradução de
Alan François (et al). Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
RONDINELLI, Rosely Curi. O conceito de documento arquivístico frente à
realidade digital: uma revisitação necessária. Tese (Doutorado em Ciência
da Informação), Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Informação, Instituto de Arte e Comunicação
Social, Instituto Brasileiro em Ciência e Tecnologia, Niterói, 2011.
SANTOS, Andrea Gonçalves dos. Descrevendo o patrimônio documental
da FURG: Faculdade de Direito Clovis Bevilaqua (1959-1972). 2012. 274 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação Prossional
em Patrimônio Cultural, Centro de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012.
SILVA, Sérgio Conde de Albite. A preservação da informação arquivística
governamental nas políticas públicas do Brasil. Rio de Janeiro: AAB/
FAPERJ, 2008.
SOUSA, Renato Tarciso Barbosa de. O arquivista e as políticas públicas
de arquivo. In: CONGRESSO NACIONAL DE ARQUIVOLOGIA, 2., 2006, Porto
Alegre. Anais... Porto Alegre: ABARQ/UnB, 2006.
A PESQUISA EXPLORATÓRIA
EM ACERVOS DOCUMENTAIS:
POTENCIALIDADES E
LIMITAÇÕES A PARTIR DA
INVESTIGAÇÃO DOS PROJETOS
ARQUITETÔNICOS DA CIDADE DE
PELOTAS NA DÉCADA DE 1920-
1930
Natália Toralles dos Santos Braga1
Brunno Melo Molina2
Franciele Fraga Pereira3
INTRODUÇÃO
Sant’anna (2017) aponta que a prática da preservação de bens
apresenta raízes que remontam o período do Renascimento, no
qual colecionadores e construtores passaram a atribuir valores
1 Mestre em Arquitetura e Urbanismo - PROGRAU-UFPel. E-mail: nataliatsbraga@
gmail.com
2 Graduando em Arquitetura e Urbanismo - FAUrb-UFPel. E-mail: brunnommolina@
gmail.com
3 Mestre em Arquitetura e Urbanismo - PROGRAU-UFPel, Professora Substituta do
Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo FAUrb-UFPel. E-mail: franfragap@
gmail.com
62
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
63
documentais a objetos e obras do passado. A autora comenta que
os novos valores atribuídos às obras do passado não promovem
necessariamente a sua preservação, ela justica essa armação
indicando fatores como a necessidade de maior interesse político
e econômico para a concretização dessas ações como práticas
governamentais e sociais em escala internacional (SANT’ANNA,
2017).
Na Europa, a concepção moderna de patrimônio, assim como
de memória, conceitos de conservação e de restauração avançaram
signicativamente em decorrência das perdas causadas pelas duas
grandes guerras mundiais que assolaram o continente. Foram
criados centros internacionais, responsáveis pela elaboração e
divulgação de conhecimentos com um caráter cientíco a respeito
da composição dos bens materiais e seus processos de degradação
(BOJANOSKI; MICHELON e BEVILACQUA, 2017).
Pesavento (2012) arma que a arquitetura e a cidade começaram
então a atuar como representações da cultura de um local e de
um povo e que essas representações são portadoras do simbólico,
reunindo em si os próprios sentidos e sentimentos ocultos e
explícitos, construídos social e historicamente. É a partir dessas
questões, que foi desenvolvida uma rede diversicada de agentes
de preservação patrimonial. Ao longo das últimas décadas tem-
se identicada a necessidade de comunicação, não somente entre
prossionais da área, mas também com a população, e é nesse
contexto de exigências de comunicação entre especialistas que
os estudos patrimoniais e terminológicos ganham evidência
(BOJANOSKI; MICHELON e BEVILACQUA, 2017).
No Brasil, ao longo do século XIX, passou a ser desenvolvida
uma estrutura voltada para a construção de uma memória nacional
e, com isso, para a promoção de uma atitude de preservação
(SANT’ANNA, 2017). A cidade de Pelotas, localizada no sul do
estado do Rio Grande do Sul, é reconhecida por possuir “um dos
sistemas municipais de preservação do patrimônio edicado mais
completos, dentre os municípios brasileiros que não são capitais”
(IPHAN, 2018, p. 21). Além de apresentar um conjunto histórico
tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) no ano de 2018, Pelotas demonstra um reconhecimento e
valorização de seu acervo também no âmbito municipal.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
64
A iniciativa de arquivar os projetos arquitetônicos de construção,
reconstrução e modicação aprovados pelo órgão municipal surgiu
no nal do século XIX e se estende até os dias atuais. A exigência
de apresentar os projetos para requerer a respectiva licença, é
descrita no artigo segundo do Código de Posturas Municipais de
1895, (PEREIRA, 1895). Atualmente, mais de 120 anos de projetos
aprovados compõem o acervo documental da Secretaria de Gestão
da Cidade e Mobilidade Urbana (SGCMU) da Prefeitura Municipal
de Pelotas. Esses documentos constituem uma importante fonte de
conhecimento, que relata a cronologia edicada da cidade.
Ao reconhecer o valor histórico-cultural deste acervo, as
possibilidades de investigações acadêmicas se amplicam. Em
virtude disso, este trabalho busca compreender como esses
documentos podem auxiliar os pesquisadores a entender as
permanências e transformações do tecido historicizado da cidade.
O período almejado para o estudo encontra-se entre os anos de
1920 e 1930, tendo os anos de 1920 a 1924 já sido contemplados pela
coleta de dados junto ao acervo. O recorte espacial da pesquisa se
alicerça nos limites do perímetro urbano destas décadas, visto que,
a exigência de aprovação de projetos pela intendência municipal
englobava apenas essa área. As potencialidades da documentação
contida no acervo visam, além da compreensão de uma trajetória
construtiva da cidade, propor uma comunicação entre diferentes
campos de conhecimento.
O ACERVO
O acervo histórico de projetos arquitetônicos da SGCMU se
encontra armazenado em caixas organizadoras de papelão do tipo
“arquivo morto”, organizados sobre prateleiras metálicas. As peças
grácas encontram-se dobradas, e estão dispostas segundo a ordem
cronológica. Dentro das caixas, essas são numeradas segundo a
sequência em que foram aprovadas. Cada caixa representa um ano,
com a possibilidade de ter mais de uma caixa por ano, dependendo
do número de projetos que foram aprovados nesse período (ver g.
01).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
65
Figura 01 - Acervo da SGCMU.
Fonte: Autores, 2024
O amplo acervo conta com projetos arquitetônicos de tipologias
funcionais diversicadas, tais como: residenciais, comerciais,
institucionais e industriais, dentre outros. Construção, reconstrução,
reforma e ampliação são outras categorias de projetos observadas.
As peças se constituem, em sua maioria, de papel vegetal e manteiga,
no entanto, ocorre também a presença do papel de linho, o qual se
torna particularmente mais comum a partir de 1925. Foi adotado
como método de manuseio das plantas o uso de máscaras e luvas
descartáveis, essenciais para a preservação do acervo por conta da
fragilidade dos papéis.
Foi observado que apesar do esforço na tentativa de preservação
do acervo, o estado dos documentos está visivelmente prejudicado
pela ação do tempo e humana. Aspectos como a falta de aeração,
presença de poeira, umidade, ambiente sujeito ao calor excessivo,
uso de tas adesivas buscando reparar inadequadamente os
papeis e dobras incorretas, são fatores identicados pela “Apostila
de Processo de Restauração e Materiais Utilizados” (MATOS
e OLIVEIRA, 2012) como agentes exteriores e humanos que
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
66
danicam os documentos, e que foram identicados nesse acervo. O
resultado observado após o manuseio do material foi um conjunto
de peças grácas se desmantelando pouco a pouco com uma perda
lamentável e irreversível de informações (ver g. 02).
Figura 02 - Peças grácas danicadas do acervo da SGCMU.
Fonte: Autores, 2024.
Além dos documentos físicos a prefeitura dispõe de uma
tabela, elaborada em um soware de planilhas, com a descrição
dos projetos do acervo. Esse arquivo digital reúne as informações
contidas nas peças grácas, facilitando assim a identicação das
pranchas e o acesso às informações. Em cada linha estão contidas
as informações de um projeto, o qual conta com as seguintes
colunas: Ano; Logradouro; Título; Endereço; Número; C.Q.; Planta;
Proprietário; Tipo e Bairro. Atualmente, essa tabela possui as
informações de quase 50 mil projetos (ver g. 03), que contemplam
os mais variados períodos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
67
Figura 03 - Tabela com informações do acervo.
Fonte: Autores, 2024
POSSIBILIDADES DE INVESTIGAÇÃO DO
ACERVO
Esse acervo, possui possibilidades investigativas para diversas
áreas do conhecimento. Podendo propiciar fonte primária de
consulta para historiadores, conservadores restauradores, dentre
outros prossionais. Tratando-se do campo da arquitetura e
urbanismo, o acervo pode ser utilizado no desenvolvimento de
pesquisas em diferentes níveis da formação acadêmica.
Na graduação, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal de Pelotas (FAUrb-UFPel) oferta, na sua
grade curricular, duas disciplinas de caráter obrigatório, nas quais
a consulta a este acervo compreende uma das etapas de trabalho
durante as disciplinas. Ademais, aqueles alunos que optam por
trabalhar com pré-existências no Trabalho Final de Graduação
também têm a possibilidade de utilizar o acervo como meio de
consulta.
A disciplina de “Teoria e História III - Arquitetura e Urbanismo
Ecléticos e Pré-Industriais”, ofertada no terceiro semestre da
graduação, abrange o campo da história da arquitetura, do
paisagismo, da cidade e do pré-urbanismo na Europa e na América
do Norte – no período entre os anos de 1789 e 1914 – e na
América do Sul, Brasil e Rio Grande do Sul – de 1808 a 1930. A
temática presente na disciplina aborda um estudo das linguagens
arquitetônicas neoclássicas e ecléticas – principalmente através
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
68
da análise da arquitetura local – e da inuência dos imigrantes
europeus, africanos e descendentes (COLEGIADO DO CURSO DE
GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, 2016).
A disciplina de “Projeto de Arquitetura VI”, ofertada no sexto
semestre, consiste no estudo, análise, reexão crítica e proposta de
intervenção no patrimônio edicado. A primeira parte da disciplina
contempla a etapa de “Identicação e o conhecimento do bem” ,
essa importante fase é descrita por Gomide, Silva e Braga (2005),
no Manual de Elaboração de Projetos do Programa Monumenta do
Iphan. Nesse momento, além do levantamento fotográco e métrico-
arquitetônico pormenorizado do bem, são realizadas investigações
históricas acerca do mesmo (PEREIRA; SILVEIRA, 2021), assim o
acervo de projetos da SCGMU têm se mostrado como uma fonte
relevante de consulta.
Ao longo das aulas, são levantadas discussões a respeito da
teoria e da história da conservação e do restauro e também uma
análise da legislação vigente e dos instrumentos de preservação,
com o intuito de formar um arcabouço conceitual para subsidiar as
propostas de intervenção. Por m, é desenvolvida uma proposta de
intervenção na preexistência e de inserção de uma nova construção
anexa (COLEGIADO DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM
ARQUITETURA E URBANISMO, 2016).
Na FAUrb-UFPel os Trabalhos Finais de Graduação acontecem
em duas etapas. Primeiramente, com duração de um semestre, é
solicitada a elaboração de um caderno, que consiste na etapa teórica
do trabalho de conclusão de curso. Neste momento, o aluno deve
escolher e detalhar o tema escolhido, assim como identicar a área
de interesse. A denição da problemática da pesquisa, a bibliograa,
a análise de projetos referenciais, de teorias e estudos acerca do tema
também são compreendidos nesta parte do trabalho. Alunos que
optem por desenvolver um projeto de intervenção no patrimônio
edicado, devem ter uma concentração especial neste estágio.
Para aqueles que optam por essa temática é necessário que um
estudo aprofundado a respeito da pré-existência seja apresentado,
mostrando domínio da técnica e levantamento de informações,
referenciando principalmente, os aprendizados adquiridos nas
disciplinas de Teoria e História III e Projeto de Arquitetura VI.
A segunda, e última etapa do Trabalho Final de Graduação, com
duração também de um semestre letivo, exige que uma proposta
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
69
de intervenção seja feita, assim como, o desenvolvimento de uma
proposta de volume anexo à edicação pré-existente.
No Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Pelotas (PROGRAU-UFPEL), o
acervo tem sido frequentemente utilizado, principalmente nas
pesquisas desenvolvidas na área de concentração “Arquitetura,
Patrimônio e Sistemas Urbanos”, e na linha de pesquisa de “Teoria,
História, Patrimônio e Crítica”. Para este trabalho, são apontadas
as dissertações de Pereira (2021) e Braga (2023), como pesquisas
recentes amplamente embasadas na utilização do acervo da SGCMU
como etapa metodológica de estudo.
A dissertação intitulada “A Arquitetura Feminina: O cotidiano e
os ambientes residenciais nas Villas e Casas de Catálogo em Pelotas-
RS” de Pereira (2021), busca compreender como as mulheres
habitam ou habitaram o espaço da casa, em especial em um tipo
de residências produzidas no início do século XX na cidade de
Pelotas, e para isso, utiliza-se dos projetos arquitetônicos para as
compreensões de suas materialidades. A dissertação de Braga
(2023), cujo título é “Cinema, Cidade e Arquitetura: Pelotas/RS”,
aborda uma análise projetual da arquitetura das salas de cinema da
cidade de Pelotas ao longo do século XX, e da mesma forma, utiliza-
se dos projetos arquitetônicos para o entendimento desses espaços.
É evidente que o acervo de projetos aprovados da SCGMU, pode
abranger outras possibilidades investigativas e novos campos de
conhecimento. A interdisciplinaridade e as múltiplas interpretações
instigadas pelo material foi justamente o que motivou os autores
a apresentar este trabalho no 5º Seminário História e Patrimônio:
diálogos e perspectivas. Acredita-se que o material possa auxiliar no
desenvolvimento de pesquisas no campo da história, arqueologia,
museologia, conservação e restauro, dentre outros.
METODOLOGIA
Nos últimos anos, o acervo vem sendo consultado
esporadicamente a partir das iniciativas investigativas descritas
acima, nas disciplinas de graduação, Trabalhos Finais de Graduação e
pesquisas desenvolvidas na pós-graduação. Observando o potencial
dos documentos, recentemente, no ano de 2023, os pesquisadores
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
70
do Núcleo de Estudos de Arquitetura Brasileira (NEAB) iniciaram
uma abordagem mais pormenorizada junto ao acervo.
O recorte espacial deste estudo, contempla o perímetro urbano
municipal considerado no período de aprovação dos projetos. Isso
porque, apenas esse perímetro necessitava de projetos aprovados
pela intendência, em contrapartida das construções e reconstruções
elaboradas na área rural, por exemplo. Já o recorte temporal da
pesquisa, nesta primeira etapa, contempla os anos de 1920 a 1930,
sendo que o período de 1920 a 1924 já foi contemplado pelas ações
dos pesquisadores.
Semanalmente, os pesquisadores visitam a seção de arquivo de
projetos na SCGMU, momento em que, utilizando luvas e máscaras
descartáveis, acessam os documentos e realizam um registro
fotográco digital de cada uma das pranchas contidas nas caixas.
Esses arquivos digitais são levados para os computadores do NEAB,
e passam por uma etapa de nomeação (ver g. 04). Essa etapa,
visa vincular os projetos descritos no soware de tabelas com os
arquivos de imagem digitais produzidos.
Figura 04 - procedimento de nomeação dos arquivos digitais.
Fonte: Autores, 2024.
Atualmente esse acervo digital em construção é utilizado
como fonte consultiva para diversas pesquisas em andamento do
laboratório. No projeto de pesquisa “Patrimônio cultural na região
sul do Rio Grande do Sul, séculos XIX e XX”, têm sido desenvolvidas
três linhas investigativas: a primeira, que estuda as chamadas Villas
e Casas de Catálogo, dando continuidade à pesquisa de Pereira
(2021), a segunda, que estuda os projetos construtivos da empresa
Xavier Duarte, atuante no recorte estudado, que pode ser sintetizado
no trabalho de Ferreira et al. (2023), e em terceira frente, o trabalho
de Molina et al. (2023), que estuda o surgimento dos Chalet’s,
habitação da classe proletária no período.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
71
O projeto de pesquisa “Cidades de médio porte do extremo do
sul do Brasil e em zona de fronteira: qualicação e proposição de
espaços públicos sensíveis às relações intergeracionais, inclusivas
e sustentáveis”, tem uma de suas frentes de trabalho que busca
identicar os edifícios remanescentes da área de estudo desta
pesquisa. O recorte espacial contempla a área do antigo ramal
que liga a zona portuária à estação férrea. A partir disso, os
pesquisadores trabalham com um cruzamento de informações entre
os documentos de fonte primária e secundária, o que possibilita a
identicação.
RESULTADOS
Buscando apresentar os resultados obtidos a partir de uma das
possibilidades de investigação, exploraremos nesse trabalho as
investigações dos projetos de edifícios remanescentes na área de
estudo da pesquisa “Cidades de médio porte do extremo do sul
do Brasil e em zona de fronteira”, a partir do recorte temporal dos
documentos já fotografados nessa etapa do trabalho (1920-1924)
e a partir do recorte espacial delimitado pela pesquisa (ver g. 05)
Figura 05 - Recorte espacial delimitado.
Fonte: Mapa Urbano Básico (MUB) de Pelotas. Adaptado pelos autores, 2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
72
Além das imagens digitais elaboradas e nomeadas pelos autores,
foi utilizada a planilha digital já desenvolvida pela SCGMU. Esses
arquivos continham informações que auxiliaram nesta identicação,
dentre eles destacam-se: endereço, complemento, cadastro de
quarteirão e plantas de situação.
Antes do efetivo processo de identicação, apresentam-se alguns
desaos. Inicialmente, os pesquisadores puderam observar, que
no recorte estudado, não haviam Códigos de Quarteirão (CQ).
A numeração dos CQs é um cadastro utilizado pela prefeitura
municipal de Pelotas, e que busca orientar-se como uma informação
adicional para a localização deste na cidade. Dessa maneira, cada
quadra do município é única, e recebe o seu número próprio de
CQ. Essa informação que possivelmente ainda não tinha sido
estabelecida no período estudado, seria de grande valia para o
processo de identicação almejado nessa investigação.
O segundo desao diz respeito às mudanças que os nomes das
ruas da cidade passaram ao longo dos anos. Certas ruas do centro
histórico e adjacências já tiveram até quatro nomes diferentes, esse
é o caso, por exemplo, da atual rua Gonçalves Chaves, que recebeu
esse nome a partir de 1909, mas que já se chamou rua Jatahy (1882),
rua Alegre (1835) e rua Coqueiros (1815). Essas transformações
podem ser percebidas através da série cartográca do município,
disponível no acervo digital do laboratório.
Outro desao apresentado, se relaciona ao número do lote.
Observou-se que a cidade já teve numerações diferentes. Para
combater essa problemática, os pesquisadores recorreram a algumas
estratégias. A primeira, diz respeito às informações apresentadas
nos próprios documentos, muitas vezes os projetos implantados nas
esquinas, informaram essa característica de maneira destacada (ver
g. 06).
Figura 06 - Descrição de esquina em peça gráca.
Fonte: SGCMU, 10_1920.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
73
Outra possibilidade, se dá em relação à utilização das plantas de
situação, que por vezes apareciam nos documentos, apesar desse
não ser um item recorrente na totalidade dos projetos. Nesse tipo
de caso, era apontado a distância em metros do lote até a esquina, e
assim, foi possível localizar esse lote, com a ajuda da ferramenta de
medição do Google Earth (ver g 07).
Figura 07 - peça gráca com planta de localização.
Fonte: SGCMU, 117_1921. Modicada pelos autores.
A partir do recorte espacial delimitado pela pesquisa, pode-se
fazer certa seleção na tabela. Dessa forma foram desconsiderados
os projetos que se implantavam nas ruas de sentido leste e oeste ao
norte da Praça Coronel Pedro Osório (ver g 05).
A localização de edifícios emblemáticos encontrados no acervo, e
que apresentavam numeração, foram utilizadas como um importante
meio de investigação. Um exemplo dessa prática foi a identicação
do projeto de construção do Hospital Benecência Portuguesa de
Pelotas, edifício ainda remanescente na malha urbana da cidade.
A referida instituição teve projeto de modicação, registrado na
rua Andrade Neves, número 305. Dessa maneira, os pesquisadores
conseguiram estabelecer através da relação de proximidade nos
números do lote, os edifícios próximos ao Hospital.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
74
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho se apresenta como uma forma de reconhecer o valor
deste acervo e suas múltiplas formas de utilização e investigação.
Apresentamos aqui um exemplo de aplicação junto à uma pesquisa
em desenvolvimento que utiliza o recorte espacial/geográco
referente à zona portuária da cidade de Pelotas, demonstrando a
potencialidade dos documentos para as investigações. A motivação
gerada através deste estudo visa ampliar, em um momento futuro, o
recorte temporal de registro digital dos documentos para todos os
projetos aprovados na década de 1920.
Através desse trabalho, buscou-se demonstrar que, no campo
da arquitetura e urbanismo, o material contido no acervo pôde
contribuir com as mais diversicadas pesquisas neste campo de
conhecimento, da graduação à pós-graduação. As potencialidades da
documentação contida no acervo retratadas neste trabalho visaram
uma melhor compreensão da trajetória construtiva e histórica da
cidade de Pelotas, assim como a divulgação de uma possibilidade de
metodologia proveitosa para futuras pesquisas na área.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de
Amparo à pesquisa do Estado do RS (FAPERGS).
REFERÊNCIAS
BOJANOSKI, Silvana de Fátima; MICHELON, Francisca Ferreira;
BEVILACQUA, Cleci. Os termos preservação, restauração, conservação e
conservação preventiva de bens culturais: uma abordagem terminológica.
Calidoscópio. Vol. 15, n. 3, p. 443-454. Unisinos, 2017.
BRAGA, Natália Toralles dos Santos. CINEMA, CIDADE E ARQUITETURA:
PELOTAS/RS. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas
Biblioteca Depositária: BCS UFPel, 2023. Disponível em: https://sucupira.
capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/
viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=13879434 . Acesso
em: 14 jan. 2024.
COLEGIADO DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO.
Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Arquitetura e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
75
Urbanismo. Pelotas: FAUrb - UFPel, 2016. Disponível em: https://wp.ufpel.
edu.br/faurb/projeto-pedagogico/. Acesso em: 14 jul. 2020.
FERREIRA, Anelise Soares. et al. A construção civil em Pelotas: um estudo
de caso dos projetos da rma Xavier, Duarte & Cia (1920-1924). In: XXXII
CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 2023, Pelotas. Anais da 7a Semana
Integrada da UFPEL. Pelotas: UFPel, 2023. p. 1–4. Disponível em: https://
cti.ufpel.edu.br/siepe/arquivos/2023/SA_02181.pdf. Acesso em: 14 jan.
2023.
GOMIDE, José Hailon; SILVA, Patrícia Reis da; BRAGA, Sylvia Maria Nelo.
Manual de elaboração de projetos de preservação do patrimônio
cultural. Brasília: Ministério da Cultura, Instituto do Programa
Monumenta, 2005. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/publicacoes/
lista?categoria=29&busca=. Acesso em: 15 jan. 2024.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Ata da
88ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – IPHAN.
Brasília: IPHAN, 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/
atas/88_reuniao_ordinaria_do_conselho_consultivo.pdf. Acesso em: 23
ago. 2023.
MATOS, Reginaldo Pereira; OLIVEIRA, Diego Lacerda do C. Apostila
de Processo de Restauração e Materiais Utilizados. Secretaria Geral
Judiciária. Coordenadoria de Gestão Documental e Memória - CGEDM/
SEMEP. Brasília, 2012.
MOLINA, Brunno Melo et al. Chalet’s: A Moradia da Classe Trabalhadora
Pelotense de 1920-1924 e Uma Breve História da Segregação. In: XXXII
CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 2023, Pelotas. Anais da 7a Semana
Integrada da UFPEL. Pelotas: UFPel, 2023. p. 1–4. Disponível em: https://
cti.ufpel.edu.br/siepe/arquivos/2023/SA_02142.pdf. Acesso em: 14 jan.
2023.
PEREIRA, Franciele Fraga. A arquitetura Feminina: O cotidiano e os
ambientes residenciais nas Villas e Casas de Catálogo em Pelotas-RS. 2021.
180 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, 2021. Disponível em: http://guaiaca.ufpel.edu.
br:8080/handle/prex/9266. Acesso em: 7 abr. 2022.
PEREIRA, Franciele Fraga; SILVEIRA, Aline Montagna da. A pesquisa
histórica e suas repercussões no projeto de intervenção no patrimônio
arquitetônico. In: OLIVEIRA, M. F. de; CHICO, M. T.; OGAWA, M. R. A. (org.).
Imagens, trajetórias e poder: pesquisa, escrita e ensino de História.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
76
1. ed. Porto Alegre: Editora Methodus, 2021. p. 573–590. Disponível
em: https://2091a25b-833a-473f-af3e-817630b95c49.lesusr.com/
ugd/4a0b98_c0071b9848284e3a8f7015a678f4f451.pdf. Acesso em: 21 dez.
2021.
PEREIRA, Dr. Gervásio Alves. Projeto de Lei. Código de Posturas Municipais.
Diário Popular, Pelotas, 24 abr. 1895. p.01.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Coleção História
& Reexões. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 3 ed. 2012.
SANT’ANNA, Márcia. A cidade-atração: a norma de preservação de áreas
centrais no Brasil dos anos 1990. Salvador: EDUFBA-PPG-AU FAUFBA, 2017.
ARQUIVO PESSOAL ENILDA
RIBEIRO: DESAFIOS DA
PATRIMONIALIZAÇÃO
ARQUIVÍSTICA
Camila Casarotto Martins1
Anna Paula Moura Canez2
Considerações iniciais
Acervos de Arquitetura e Urbanismo são considerados cada
vez mais importantes para a preservação da memória da prossão.
Projetos, desenhos, maquetes, fotograas, correspondências,
publicações e outros bens produzidos no decorrer das atividades
de arquitetas, arquitetos e urbanistas, mas também de entidades
prossionais da área, testemunharam a sua história e representam
uma potência para atividades de ensino e pesquisa e ações de
difusão cultural. No Brasil, o assunto vem sendo discutido há
décadas, mas ganhou um novo capítulo nos últimos anos, quando
dois importantes conjuntos foram doados para o exterior. Em
2020, o acervo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha foi doado à
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio
(PPGMusPa); Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); camila.casarotto@
gmail.com.
2 Professora Doutora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação
em Museologia e Patrimônio (PPGMusPa); Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); annapaulacanez@yahoo.com.br.
77
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
78
Casa da Arquitectura, instituição cultural localizada na cidade
de Matosinhos, em Portugal (SEGAWA, 2020). No ano seguinte,
a mesma instituição recebeu o espólio do arquiteto e urbanista
Lucio Costa, em doação negociada e efetivada por sua família
(COSTA, 2022). Impulsionados por essas situações, os debates se
aqueceram em torno da preocupação em preservar a memória da
arquitetura brasileira em seu território, mas também da capacidade
das instituições do país de conservar, tratar e disponibilizar esses
acervos, diante do desmonte das políticas culturais.
É neste contexto, portanto, que se insere o arquivo pessoal de
Enilda Ribeiro, objeto de estudo deste trabalho, que é um recorte
de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de
Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PPGMusPa/UFRGS). O arquivo está
guardado pelo Departamento do Rio Grande do Sul do Instituto
de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), no Arquivo Histórico Demétrio
Ribeiro (AHDR), que armazena documentos importantes da
trajetória do Instituto, acumulados ao longo das suas atividades ou
doados por ex-presidentes da entidade, como Enilda Ribeiro. Neste
trabalho, serão apresentados aspectos da vida de Enilda Ribeiro e
os itinerários desse arquivo para embasar uma discussão sobre os
desaos da sua patrimonialização.
Enilda Ribeiro nasceu em Rio Grande (RS), em 1923, e faleceu
em Porto Alegre (RS), em 2010. Teve uma vida dedicada à sua
prossão: arquiteta e urbanista. Em 1948, ingressou no Curso de
Arquitetura do Instituto de Belas Artes (IBA), em Porto Alegre, e foi
a primeira mulher a se formar em curso superior de Arquitetura no
Rio Grande do Sul. Ao longo da sua formação acadêmica, envolveu-
se em discussões sobre o papel de arquitetas e arquitetos na sociedade
e a necessidade de autonomia do campo3 prossional em relação a
outras áreas, principalmente a Engenharia. Esse processo coincide
com a difusão da Arquitetura Moderna no Brasil, inclusive no Rio
Grande do Sul, onde sofreu inuência uruguaia, principalmente
por meio da gura do arquiteto Maurício Cravotto.
3 Compreende-se campo, aqui, na concepção de Pierre Bourdieu (CATANI et al,
2017), como um espaço social em que os agentes se confrontam em torno de um
capital simbólico e adotam estratégias de conservação (dominantes) ou de subversão
(dominados) da relação de forças existente.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
79
Durante o curso, em um momento de armação da Arquitetura
Moderna Brasileira e da autonomia da prossão, Enilda Ribeiro
aderiu ao ideário modernista que se propagava no Rio Grande
do Sul, junto a outros nomes que se destacaram nesse período em
Porto Alegre, como Carlos Fayet, Luis Fernando Corona, Nelson
Souza e os professores Demétrio Ribeiro, Edgar Grae e Edvaldo
Pereira Paiva. Em 1948, o Curso de Arquitetura do IBA recebeu as
visitas ilustres do arquiteto Maurício Cravotto (Figura 1) e, em 1949,
do arquiteto Oscar Niemeyer (Figura 2) — ocasiões amplamente
documentadas pela imprensa que demonstram a inuência dos
arquitetos modernistas naquele momento. Cabe observar que Enilda
Ribeiro é a única mulher presente em ambas as visitas, o que mostra
seu pioneirismo naquele contexto. Entre seus trabalhos, destaca-se
o projeto desenvolvido em conjunto com Demétrio Ribeiro para
o prédio do Colégio Estadual Júlio de Castilhos (o “Julinho”), de
1953, considerado um dos ícones da Arquitetura Moderna em
Porto Alegre (XAVIER; MIZOGUCHI, 1987).
Figura 1 – Maurício Cravotto em meio a alunos e professores do IBA
Fonte: Arquivo Histórico do Instituto de Artes (IA/UFRGS).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
80
Figura 2 – Oscar Niemeyer em meio a alunos e professores do IBA
Fonte: Acervo Sra. Magali Corona (SZEKUT, 2008, p. 22).
O Curso de Arquitetura do IBA, em que Enilda Ribeiro se formou,
era identicado com o espectro político da esquerda comunista,
que polarizava com o Curso de Engenheiros-Arquitetos da Escola
de Engenharia da URGS (atual UFRGS), considerado reacionário e
conservador (NUNES, 2016). Demétrio Ribeiro, que foi professor
de Enilda Ribeiro durante a sua formação e, posteriormente,
companheiro em sua vida pessoal e prossional, foi uma gura de
inuência no seu pensamento e na sua trajetória. Identicados com
o Realismo Socialista, Demétrio Ribeiro, Enilda Ribeiro e Nelson
Souza apresentaram o artigo “Situação da Arquitetura Brasileira”,
em 1958, no IV Congresso Brasileiro de Arquitetos, em que
criticavam a Arquitetura Moderna praticada no Brasil e defendiam
sua aproximação com a realidade social e cultural da população e
sua efetiva democratização (RIBEIRO; RIBEIRO; SOUZA, 2003).
Devido à sua identicação com o comunismo e sua proximidade
com outros nomes desse espectro político, Enilda Ribeiro foi
perseguida na Ditadura Civil-Militar: em 1964, com o decreto do
Ato Institucional Nº 1 pelo Regime Militar, a arquiteta foi expurgada
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde lecionava, e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
81
demitida da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, onde atuava na
Divisão de Urbanismo.
Ainda durante a formação acadêmica, ca evidente o engajamento
de Enilda Ribeiro na luta pela Arquitetura como campo prossional
independente. Em 1948, a partir da federalização da Universidade
(UFRGS), foi anunciada a fusão dos cursos de Arquitetura do IBA
e de Engenheiros-Arquitetos da Escola de Engenharia. No entanto,
o Conselho Universitário votou a favor de anexar a Arquitetura à
Escola de Engenharia. Esse embate, então, deagrou a campanha
Por Uma Faculdade de Arquitetura (PUFA), lançada em 1950,
que tinha Enilda Ribeiro como uma de suas lideranças (RIBEIRO;
CARVALHO, 2022). O movimento, que ocorria também em outras
universidades do país, defendia a criação de uma faculdade especíca
para a Arquitetura, independente das Artes e da Engenharia. A
campanha recebeu apoio de entidades representativas de arquitetos
e estudantes, além de políticos e prossionais de renome, como
Oscar Niemeyer. Em 1952, foi criada a Faculdade de Arquitetura
da UFRGS.
A liderança de Enilda Ribeiro na PUFA representa um dos
primeiros movimentos da sua militância pela prossão, que é um
importante traço ao longo da sua vida. Em 1948, foi fundado o
IAB-RS — o quarto Departamento Estadual mais antigo do IAB
e a primeira entidade exclusiva de arquitetos no Estado (PASSOS;
ORTÁCIO, [2019?]). Ainda como estudante, em 1949, Enilda
Ribeiro vinculou-se ao Instituto como sócia-aspirante, tornando-se
sócia-titular após a sua diplomação. Assim se iniciava a vinculação
da arquiteta com as entidades prossionais de Arquitetura, que
assumiram um importante papel na luta pela autonomia da
prossão.
Em 1979, quando foi sancionada a Lei da Anistia (Lei nº 6.683,
de 28 de agosto de 1979), Enilda Ribeiro poderia voltar às suas
atividades prossionais na UFRGS e na Prefeitura de Porto Alegre.
No entanto, a arquiteta optou por não retornar à Universidade e
solicitou sua aposentadoria pela Prefeitura. Declarou que achava
mais importante lutar pela classe em uma entidade como o IAB
do que voltar às condições atuais do ensino na Universidade
(HOMENAGEM [...], 1980). No ano em que deu essa declaração
ao jornal Arquiteto/RS, Enilda Ribeiro já assumira a presidência do
IAB-RS para o biênio 1980-1981, sendo a primeira mulher a ocupar
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
82
essa posição. Inaugurava, assim, uma década de efervescência da
sua militância nas entidades.
A década de 1980 é o recorte temporal do arquivo pessoal de Enilda
Ribeiro, guardado pelo IAB-RS. São documentos relacionados à sua
atuação nas entidades prossionais de Arquitetura e Urbanismo:
entre 1980 e 1981, foi presidenta do IAB-RS; entre 1983 e 1985, foi
tesoureira da Direção Nacional (IAB-DN); em 1986, concorreu à
vice-presidência da Federação Nacional dos Arquitetos (FNA);
entre 1984 e 1985, foi secretária e, de 1986 a 1988, coordenadora
da Comissão Diretora das Entidades Nacionais (CDEN), entidade
vinculada ao Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia (CONFEA). Naquela década, estavam aquecidas as
discussões sobre a criação de um conselho prossional próprio para
a Arquitetura, a revisão da legislação prossional e a participação
de arquitetas e arquitetos no processo de redemocratização do país.
A atuação de Enilda Ribeiro, bem como os documentos guardados
no seu arquivo pessoal, perpassa esses temas e demonstram como a
arquiteta se envolveu na defesa da prossão.
Em 1979, o X Congresso Brasileiro de Arquitetos resultou em um
Anteprojeto de Lei para substituir a Lei nº 5.194, de 24 de dezembro
de 1966. Essa legislação havia criado o Sistema CONFEA/CREA
e regulava o exercício prossional, mas não contemplava pontos
fundamentais para os arquitetos, sendo questionada por décadas.
O Anteprojeto e o documento nal do X CBA, que evidenciavam
a insatisfação com a legislação e a scalização prossional, deram
a tônica dos movimentos da classe naquela década. Na gestão de
Enilda Ribeiro como presidenta do IAB-RS, a entidade debateu
o assunto em uma comissão formada pelo IAB, o Sindicato e o
Conselho estaduais, além de promover o I Encontro Estadual
de Arquitetos (Figura 3), também com o intuito de discutir a
situação da prossão. Um texto manuscrito pela arquiteta, que
provavelmente foi proferido na abertura daquele evento e está no
seu arquivo pessoal, apresenta as reivindicações de arquitetas e
arquitetos naquele momento:
Nós, os arquitetos estamos engajados numa luta por novas condições
legais do exercício prossional.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
83
Queremos que o nosso campo de atribuições seja respeitado e
consagrado em lei, e que não que na dependência de resoluções de
um conselho.
Queremos que, da mesma forma que as outras prossões, o exercício
da arquitetura seja tarefa dos que estudaram arquitetura.
Queremos um órgão de scalização eleito pelos arquitetos, que possa
lutar por maiores garantias de trabalho. [...]4
Já na gestão do IAB-DN, Enilda Ribeiro foi muito além das
suas atividades de tesouraria e mobilizou um amplo debate sobre
legislação e scalização da prossão em encontros estaduais e
regionais — uma recomendação do documento nal do X CBA.
No entanto, o embate entre Arquitetura e Engenharia novamente
transpareceu: na fase de discussão entre as áreas prossionais do
Sistema CONFEA/CREA, divisões internas entre os engenheiros
inviabilizaram o consenso sobre as mudanças. A discussão se
desenrolou por muitos anos, até que, em 2010, foi criado o
Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/BR), especíco para
a Arquitetura (MORENO; ECHEVERRIA, 2020). Enilda Ribeiro,
falecida em 2010, não testemunhou a concretização dessa luta.
Figura 2 – Enilda Ribeiro em debate no I Encontro Estadual de Arquitetos
Fonte: Jornal do IAB, Porto Alegre, Ano I, nº 8, set. 1980. Arquivo Enilda Ribeiro, Caixa 5
(Jornais e Boletins), AHDR / IAB-RS.
4 Trecho extraído de documento manuscrito por Enilda Ribeiro. Arquivo Enilda
Ribeiro, Caixa 7, AHDR / IAB-RS.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
84
O arquivo de Enilda Ribeiro demonstra a diligência da arquiteta
pela prossão. Constam muitos textos manuscritos e rabiscados,
como anotações de reuniões, rascunhos de pronunciamentos,
releases de imprensa e artigos de jornais e revistas, que denotam o
comportamento de uma pessoa participativa e engajada, atenta às
discussões sobre o papel das entidades e de arquitetas e arquitetos
na sociedade, articuladora da classe para a construção de um campo
prossional próprio, autônomo e democrático. Muitos documentos
escritos à mão apresentam a caligraa de Enilda Ribeiro, mas
nem sempre são textos publicados em seu nome — em muitos
casos, são assinados ou proferidos por outras pessoas ou por uma
coletividade (a direção do IAB-RS, por exemplo). Nesse sentido,
embora sua autoria muitas vezes esteja escondida, sua atuação
como articuladora, mobilizadora e pensadora sobre o exercício
prossional e a autonomia da prossão naquele período transparece
nos documentos do seu arquivo pessoal, o que foi possível perceber
por meio de uma abordagem etnográca na pesquisa, atenta
às relações, contextos e hierarquias por trás do modo como os
documentos foram produzidos (FERREIRA, LOWENKRON,
2020).
Como rastros do passado que convidam a seguir seus caminhos
para saber o que passou por ali (RICOUER, 1997), os documentos do
arquivo Enilda Ribeiro revelam memórias diversas — memórias da
arquiteta, da Arquitetura e Urbanismo, das entidades prossionais
(IAB, CONFEA, FNA), do setor cultural de Porto Alegre, da
Assembleia Nacional Constituinte, da política urbana no país. No
entanto, trata-se de um arquivo ainda com tratamento arquivístico
incipiente, o que diculta a pesquisa e a recuperação da informação
em seus documentos. Os papéis foram acumulados por Enilda
Ribeiro ao longo das suas atividades nas entidades de Arquitetura
e Urbanismo, principalmente durante a década de 1980. Segundo
relato do seu secretário pessoal, Claudio Mendicelli, a arquiteta
tinha um perl “acumulador”, gostava de guardar objetos de família
e uma innidade de papéis decorrentes das suas atividades — o que
se pode vericar no seu arquivo pessoal. Os documentos foram
mantidos na sua residência e, após o seu falecimento, em 2010,
foram reunidos, colocados em 36 caixas-arquivo e doados ao IAB-
RS por iniciativa de Claudio Mendicelli.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
85
Após chegar ao IAB-RS, provavelmente em 2011, o arquivo foi
mantido na entidade, em sua sede atual, no Solar do IAB, localizado
no Centro Histórico de Porto Alegre. Durante anos, não houve
qualquer manuseio dos documentos, nem movimentação das
caixas, muito menos um tratamento técnico. Em 2018, na ocasião
dos 70 anos do Departamento Estadual, a direção do IAB-RS tomou
a iniciativa de organizar e sistematizar os seus acervos (arquivístico,
bibliográco e museológico). Para isso, foi estabelecido um Acordo
de Cooperação Técnica entre o IAB-RS e o Curso de Museologia
da UFRGS, com apoio do CAU/RS, que viabilizou o início do
tratamento arquivístico do arquivo Enilda Ribeiro, a partir de 2019.
Então, uma arquivista iniciou a descrição prévia dos documentos
em quatro caixas do arquivo Enilda Ribeiro — porém, esse trabalho
foi interrompido em 2020, devido à pandemia de Covid-19. Desde
então, nenhum outro prossional trabalhou no arquivo. Atualmente
as caixas estão armazenadas no Solar do IAB, em sala destinada ao
Arquivo Histórico, em mobiliário adequado para a sua conservação,
adquirido com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc
(Lei 14017/2020), durante a pandemia.
O tratamento arquivístico do arquivo pessoal de Enilda Ribeiro
possibilitaria que pesquisadores, estudantes, arquitetas, arquitetos e
urbanistas consultassem os documentos, a m de conhecer e estudar
as memórias ali guardadas. Seria também uma forma de visibilizar e
valorizar a memória de Enilda Ribeiro, já que seu nome muitas vezes
é sombreado pela gura de Demétrio Ribeiro, seu companheiro,
que também teve grande relevância para a prossão. O documento
“Política do CAU para a Equidade de Gênero”, aprovado em 2020,
mostra a urgência das discussões sobre a baixa representatividade
das mulheres na prossão e dene diretrizes para promover a
equidade de gênero em várias esferas: no cotidiano, na formação,
na prática, na política, no Conselho e, no que este trabalho pretende
principalmente contribuir, na história da Arquitetura e Urbanismo
(CAU/BR, [2021]).
Justica-se, com isso, o mérito da preservação do arquivo pessoal
de Enilda Ribeiro, como suporte de memórias de uma coletividade
e de visibilização de uma mulher na história da Arquitetura. No
entanto, este arquivo carece de proteção para ser legado a gerações
futuras, de maneira que seja devidamente conservado e comunicado
ao público. Nesse sentido, a patrimonialização cultural de arquivos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
86
(COUGO JR., 2020) se constitui como um processo em que coisas
comuns são tornadas bens culturais e, com esse status, requerem
políticas e práticas de preservação. No entanto, o arquivo Enilda
Ribeiro, entendido como um bem passível de patrimonialização,
lança desaos para a consolidação desse processo.
O conceito de patrimônio tem sido constantemente revisado
nas últimas décadas. Tradicionalmente associado aos monumentos
consagrados, aos grandes personagens e às classes privilegiadas, o
patrimônio passou a abranger novos suportes de memórias (como
os arquivos) e novos atores (como as mulheres), historicamente
excluídos e marginalizados (CASTRIOTA, 2009). Portanto,
o alargamento do conceito de patrimônio permite pensar na
patrimonialização do arquivo pessoal de Enilda Ribeiro.
No entanto, o patrimônio entendido hoje como um processo,
uma construção coletiva, um fenômeno social e simbólico que
dene o status patrimonial dos bens, carece do cumprimento de
“gestos de patrimonialização” que o consolidem (DAVALLON,
2014): (1) o interesse no objeto por um grupo; (2) o estudo do objeto
e produção de conhecimento sobre ele; (3) a declaração ocial que
reconheça o objeto como patrimônio; (4) o acesso ao objeto pela
comunidade; e (5) a transmissão do objeto patrimonial às gerações
futuras. Destaca-se, nesse processo, a declaração ocial do objeto
como um patrimônio cultural por uma autoridade reconhecida —
o que, no Brasil, ocorre principalmente pelos atos performativos
(COUGO JR., 2020) de Declaração de Interesse Público e Social
(em âmbito federal, estadual ou municipal) e registro no Programa
Memória do Mundo da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), também conhecido
como MoW Brasil.
Embora a patrimonialização só se legitime com a declaração
ocial, as etapas anteriores são cruciais para esse processo. A
pesquisa em andamento pretende contribuir para o estudo do
arquivo e o despertar de interesse da comunidade. Aliado a isso,
o tratamento arquivístico da massa documental seria fundamental
para a avaliação dos documentos e sua valoração pela coletividade,
além da sua posterior disponibilização para acesso ao público.
Assim, lança-se mais um desao para a patrimonialização do
arquivo Enilda Ribeiro: os arquivos pessoais têm se situado em
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
87
posição periférica na Arquivologia devido à especicidade da
acumulação documental por indivíduos (HEYMANN, 2009).
Arquivos pessoais confrontam os princípios tradicionais de
organicidade e proveniência da ciência arquivística, porque se
caracterizam por uma informalidade de organização e se distanciam
da motivação probatória para a acumulação dos documentos.
Verica-se, no arquivo de Enilda Ribeiro, uma grande miscelânea
de papéis, de diferentes espécies e origens, muitos deles de difícil
identicação, acumulados por Enilda Ribeiro e, posteriormente,
rearranjados arbitrariamente por outra pessoa — seu secretário
pessoal — para doação ao IAB-RS. Entre atas, correspondências,
anotações, relatórios, circulares, periódicos etc., misturam-se
documentos pessoais e institucionais, reveladores de cruzamentos
entre as esferas doméstica e organizacional.
Dessa forma, diferentemente dos arquivos institucionais, que
reetem as atividades da instituição, os arquivos pessoais não
apresentam acumulação e organização sistemática que reitam as
atividades do indivíduo. Eles são resultados de um investimento
social no arquivamento desses registros, tal qual ocorreu no
arquivo pessoal de Enilda Ribeiro, que se empenhou na guarda de
documentos, provavelmente atenta à preservação de memórias da
Arquitetura e suas entidades. Nesse sentido, o tratamento técnico
e a avaliação dos documentos de arquivos pessoais demanda
procedimentos especícos, que avancem em relação aos cânones
da Arquivologia e compreendam os contextos de produção e
acumulação dos documentos, bem como os gestos pessoais de
arquivamento (HEYMANN, 2009).
Portanto, a análise dos rastros do passado contidos no arquivo
pessoal de Enilda Ribeiro, guardado pelo IAB-RS, demonstram o
seu valor como patrimônio documental, capaz de dar luz a diferentes
memórias da Arquitetura, das entidades prossionais e de uma
mulher arquiteta nesse contexto. No entanto, a sua patrimonialização
e guarda permanente pela instituição custodiadora dependem da
mirada coletiva sobre esse arquivo, de maneira que se identique a
importância da sua preservação para a comunidade. O tratamento
arquivístico, embora envolto de desaos, é fundamental para a
avaliação dos documentos e a valoração do arquivo pela coletividade,
que precedem o ato performativo da declaração ocial, outro
estágio desaador do processo de patrimonialização. Para isso, a
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
88
instituição custodiadora deve se comprometer com a adoção de
políticas de preservação de Acervos de Arquitetura e Urbanismo, de
maneira que o arquivo Enilda Ribeiro, como suporte de memórias
da coletividade, seja conservado e comunicado ao público e legado
às gerações futuras.
REFERÊNCIAS
ARCHDAILY BRASIL. Acervo de Lucio Costa é doado à Casa da Arquitectura
em Portugal. ArchDaily Brasil, 19 out. 2021. Disponível em: https://www.
archdaily.com.br/br/970467/acervo-de-lucio-costa-e-doado-a-casa-da-
arquitectura-em-portugal. Acesso em 12 jan. 2024.
CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: Conceitos, Políticas,
Instrumentos. Belo Horizonte: Annablume / IEDS, 2009.
CATANI, Afrânio Mendes et al (Orgs.). O Vocabulário Bourdieu. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 400 p.
CAU/BR. Política do CAU para a Equidade de Gênero. Edição digital:
CAU/BR, [2021]. Disponível em: https://www.caubr.gov.br/equidade/wp-
content/uploads/2021/03/politica-do-cau-para-a-equidade-de-genero-7-
compactado.pdf. Acesso em: 15 jan. 2024.
COSTA, Eduardo Augusto. Lucio Costa na Europa: o papel dos acervos e
a arquitetura brasileira. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 41, n.
02, p. 371-386, mai./ago. 2022. DOI: 10.25091/S01013300202200020010.
Disponível em: https://novosestudos.com.br/produto/edicao-123/. Acesso
em: 15 jan. 2024.
COUGO JR., Francisco Alcides. A patrimonialização cultural de arquivos
no Brasil. Orientadora: Renata Ovenhausen Albernaz. 2020. 448 p. Tese
(Doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural) - Instituto de Ciências
Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2020. Disponível em:
http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/handle/prex/7423. Acesso em: 15 jan.
2024.
DAVALLON, Jean. El juego de la patrimonialización. In: ROIGÉ, Xavier;
FRIGOLÉ, Joan; DEL MÁRMOL, Camila (org.). Construyendo el patrimonio
cultural y natural: parques, museos y patrimonio rural. Valencia:
Germania, 2014.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
89
FERREIRA, Letícia; LOWENKRON, Laura (orgs.). Etnograa de documentos:
pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. 1 ed. Rio
de Janeiro: E-papers, 2020.
FIORI, Renato Holmer. Arquitetura moderna e ensino de arquitetura: os
cursos em Porto Alegre de 1945 a 1951. Orientadora: Maria Lúcia Bastos
Kern. 1992. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.
HEYMANN, Luciana Quillet. O indivíduo fora do lugar. In: Revista do
Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 45, n. 2, p. 40-57, jul./dez.
2009. Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/
rapm/brtacervo.php?cid=1094. Acesso em: 12 jan. 2024.
HOMENAGEM aos professores anistiados. Arquiteto/RS - Jornal do
Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul, [Porto Alegre],
n. 15, set. 1980. Arquivo do SAERGS.
MORENO, Júlio; ECHEVERRIA, Leonardo. Memória da luta pela criação do
CAU e do ano de sua fundação. Edição digital: CAU/BR, 2020. Disponível
em: https://www.caubr.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/Memoria_
nal.pdf. Acesso em: 14 jan. 2024.
NUNES, Lívia Fernanda Ribeiro. Os 5 Professores Comunistas: Demetrio
Ribeiro, Edgar A. Grae, Edvaldo P. Paiva, Enilda Ribeiro, Nelson Souza.
Orientador: Fernando de Freitas Fuão. 2016. 252 p. Dissertação (Mestrado
em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://
lume.ufrgs.br/handle/10183/158420. Acesso em: 12 jan. 2024.
PASSOS, Rafael (Coord.); ORTÁCIO, Sabrina (Org.). IAB-RS 70 anos: 1948 -
2018. Porto Alegre: IAB-RS, [2019?]. Disponível em: http://www.iab-rs.org.
br/upload/anexo/1427ad253f5d4c5c.pdf. Acesso em: 12 jun. 2022.
RIBEIRO, Enilda; CARVALHO, Vera Fabrício. Por Uma Faculdade de
Arquitetura - PUFA. In: LICHT, Flávia Boni; CAFRUNI, Salma. Arquitetura
UFRGS – 50 anos de história. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. p. 39-
41.
SEGAWA, Hugo. A fragilidade e o peso dos papéis. Jornal da USP, 17 set.
2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/a-fragilidade-e-o-peso-
dos-papeis/. Acesso em: 15 jan. 2024.
XAVIER, Alberto; MIZOGUCHI, Ivan. Arquitetura Moderna em Porto
Alegre. São Paulo: Pini, 1987.
SOCIABILIDADES EXPRESSAS
NO PACTO EPISTOLAR:
PERCURSO PELOS CONJUNTOS
DE CARTAS DO ACERVO DO
MUSEU MUNICIPAL PARQUE DA
BARONESA
Nathalia Vieira Ribeiro1
Carla Rodrigues Gastaud2
Considerações iniciais
As cartas correspondem a arquivos que são utilizados
como forma de comunicação direta entre, pelo menos, dois
interlocutores: o missivista e o receptor. A prática epistolar está
presente desde a antiguidade, todavia, foi a partir do século XVIII,
e mais predominantemente no século XIX, que esse costume se
difundiu, ainda que como um exercício preponderantemente da
1 Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande e Mestranda
no Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural pela
Universidade Federal de Pelotas. Contato: ribeirovnathalia09@gmail.com.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestra em
História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e graduada em História pela
Universidade Federal de Pelotas. Professora associada da Universidade Federal de
Pelotas no Curso de Museologia e no Programa de Pós-graduação em Memória Social
e Patrimônio Cultural. Contato: crgastaud@gmail.com.
90
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
91
elite (OLIVEIRA, 2013, p. 48). Com sua expansão, a carta passou
a ser considerada uma fonte de informação para o pesquisador
por sua singularidade ao expressar sentimentos e experiências,
subjetividades que em muitos casos evidenciam posicionamentos
políticos, econômicos e sociais, equivalentes ao seu período de
produção.
O hábito de corresponder-se “[...] resultou em conjuntos de
missivas que traduzem um modo de viver, de pensar e de olhar
o mundo” (OLIVEIRA, 2013, p. 49). Esses escritos que, segundo
Malatian (2009, p. 195), originam-se de “atividades solitárias
de introspecção” enunciam atitudes e representações do sujeito
social escrevente, onde o missivista assume uma posição reexiva
em relação à sua história e ao mundo em constante movimento.
Ao expressar a vida privada, segundo as regras de boas maneiras
indicadas pelos manuais (GASTAUD, 2009), os autores apresentam
uma imagem de si controlada ao revelar a própria intimidade ao
correspondente.
Há nas missivas, “[...] um jogo sutil [que] se estabelece entre o
público e o privado, o íntimo e o ostensivo [...] as cartas ocultam e
revelam [...] uma imagem pessoal codicada” (MALATIAN, 2009,
p. 195-196), conforme as exigências de sociabilidade próprias. Elas
guardam sinais, signos que se tornam indícios que se xaram por
meio da experiência no tempo e no espaço (GASTAUD e FRIO,
2018) e que estão traduzidos em pistas capazes de preencher
lacunas referentes aos relacionamentos e fatos enunciados nas
correspondências. São essas as zonas privilegiadas nas leituras da
intimidade, sinais (GINZBURG, 1989), que permitem decifrar os
afetos e desafetos, interesses diversos que contornam o interior e o
exterior ao sujeito.
Para este trabalho, as correspondências em análise se referem a
tipologia de cartas familiares que, em sua grande maioria, reúnem
“[...] os indivíduos ansiosos por receber notícias dizíveis (doenças,
tratamentos de saúde, trabalho, detalhes do cotidiano) e apenas
fazer supor as indizíveis (gravidez, problemas conjugais, dúvidas e
incertezas religiosas, dinheiro, morte, sexo)” (MALATIAN, 2009, p.
197-198). Sustentada por um desejo de reciprocidade, essas missivas
comportam tanto o diálogo, como o silêncio, a ruptura, os interesses,
como também as redes de sociabilidades entremeadas em um uma
civilização de costumes a partir do microcosmos particular.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
92
As cartas pesquisadas pertencem ao epistolário da família
Antunes Maciel3, que integra o acervo do Museu Municipal Parque
da Baronesa, localizado em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Estas
estão divididas em 2 subconjuntos. O primeiro deles se refere às
cartas de viagem pela Europa datadas de 1914, redigidas por Rubens,
um dos netos da Baronesa, totalizando 55 correspondências. O
segundo trata das 34 missivas de Mozart, também neto da Baronesa,
enviadas entre 1927 e 1928.
Essa pesquisa enseja, com isso, compreender os itinerários de
sociabilidades entre interlocutores que se referem aos engajamentos,
disputas e interpretações de dinâmicas políticas e econômicas que
atravessam as narrativas dos envolvidos nas cartas.
“O Brazil está bem avacalhado aqui no “Velho
Mundo”, não passando d’um paiz rico, nas
mãos de selvagens!”
Rubens Antunes Maciel é o neto mais velho da Baronesa. Suas
cartas datadas de 1914 relatam suas experiências vividas no tour
que realizou pela Europa por vários meses. Nesse conjunto não
integram as correspondências passivas do missivista, apenas as
cartas enviadas por Rubens são conhecidas, apesar de ter sido
mencionado pelo autor o recebimento usual de cartas de sua mãe,
D. Sinhá. Ao total, somam-se cinquenta e cinco cartas, das quais
só puderam ser acessadas quarenta, através de sua transcrição.
Isso fez com que várias pistas que integram a materialidade da
correspondência fossem perdidas.
Oliveira (2013, p. 49) infere que a “[...] análise dos brasões,
marcas d’água, estudos de genealogia, assinaturas, caligraa (ao
longo do tempo), emblemas, títulos e cargos, conteúdo (informação
signicativa sobre um detalhe ou especicidade), os sinais de luto,
3 O conjunto total da família é constituído por duzentos e trinta e duas cartas
recebidas por D. Sinhá, lha da Baronesa que dá nome ao Museu, e enviadas por sua
mãe, Amélia e por seus lhos, Rubens e Mozart, entre os anos de 1885 e 1928 (GASTAUD
e FRIO, 2018) e atualmente mais 14 cartas. Estas últimas estão direcionadas a diferentes
receptores, abrangendo uma temporalidade extensa que vai de 1889 até 1937, sendo
8 delas redigidas por Annibal Antunes Maciel, lho do Barão, 2 pela D. Sinhá, lha da
Baronesa e 4 por Rubens.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
93
os enlaces” são importantes rastros que compõem o discurso da
materialidade epistolar. Para Pagès (2017, p. 107)
[...] uma carta comunica sua mensagem não somente pelo texto que
propõe, mas também pela multiplicidade dos signos que acompanham
o texto: a forma da escrita, a ocupação do espaço da página, o número
de folhas, os acréscimos colocados nas margens, a assinatura.
Por esse motivo, a análise aqui proposta se restringe aos
enunciados expressos por Rubens no que concerne aos objetivos da
comunicação. Suas correspondências são constantes e grande parte
de suas missivas relatam suas impressões de modo detalhado sobre
as cidades e passeios, encontros e acontecimentos.
[...] as cartas incluem ainda um relatório breve, sempre positivo, de sua
condição de saúde; um comentário a respeito de suas nanças e um
arrazoado sobre sua necessidade de mais dinheiro; agradecimentos
sobre a oportunidade que a família lhe proporciona com aquela viagem
e o muito que está aproveitando a experiência (GASTAUD, 2009, p. 134).
A saúde, ou a falta dela, é um tema recorrente, não só nas cartas de
Rubens como de todos os outros missivistas que integram o conjunto
da família. O autor descreve em detalhes o tratamento médico que
realiza, o que lhe custou muito dinheiro. Em decorrência, mais
pedidos de recursos são enviados.
Um tema menos frequente refere-se ao mundo não familiar.
Rubens exprime opiniões sobre a política francesa e brasileira,
pontuando sobre as desordens nacional, o estado de sítio e os
desmandos do governo
Pelo serviço telegraphico do “Le Figaro” d’aqui, soube do decreto de
estado de Sitio para o Rio, Nictheroy e Petropolis e das prisões dos
generaes Mendes de Moura e Taummaturgo de Azevedo, mais dois
coroneis e um capitão e dos diretores da “Epoca”, “Noite”, “Imparcial”.
A causa dizem os telegrammas, foi uma reunião regense no Club
Militar, sobre o dever do Hermes, de intervir ou não, no Ceará. Será
o principio da revolução há tanto tempo annunciada, ou mais uma
prepotencia d’este governo desacreditado? Com vocês e familia ahi,
isto naturalmente me preocupa, pois imagino o que não será este povo
revoltado. O Brazil está bem avacalhado aqui no “Velho Mundo”, não
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
94
passando d’um paiz rico, nas mãos de selvagens! A ignorancia dos
parisienses sobre as cousas sul-americanas, chega a ser revoltante.4
Neste pequeno excerto é possível identicar ao menos cinco
aspectos mencionados pelo missivista e que podem ser postos em
análise sobre o contexto brasileiro: o último mandato de Hermes
da Fonseca, fortemente marcado por medidas autoritárias e
desentendimento com as oligarquias através do rompimento da
política do “café com leite”; o fechamento dos jornais como uma
dessas medidas que implica na censura; a violação dos princípios
republicanos; a visão negativa do Brasil no exterior; e a possibilidade
de rebento da intervenção no Ceará.
Os arquivos pessoais, tais como as cartas, não se restringem,
portanto, à vida pessoal e familiar, mas também a cultural e política
(TANNO, 2007, p. 101). A “mistura narrativa” de Rubens trata tanto
de assuntos da ordem privada e íntima partilhada com seus pais,
como também registra “[...] importantes informações sobre a vida
política, a situação econômica do país ou os eventos sociais que
ocorriam” (MARTINY, 2016, p. 79).
São temas externos que circundam à experiência do missivista
e o impactam de modo indireto ou direto, pois se refere a
acontecimentos próximos ou imediatos, como é o caso da crise
econômica que atravessa a Europa e que poderia impedir que seu
tour seguisse seu curso normal;
O que me dizem na de 29, fallando da crise, da falta absoluta de moéda,
etc, imprensionou-me bem, pois como dizem, isto póde forçal-os a
mandarem ordem de embarque para mim. Lastimaria bastante si
chegassem a fazer tal, pois que seria desagradavel ter que partir sem
nem ao menos conhecer as grandes capitaes. Diz-me-hão porque ainda
não as conheço, si ha 4 mezes que aqui estou, na velha Europa5
Além disso, Rubens enuncia seu contentamento com o discurso
de Ruy Barbosa (1914), que desaprovava a censura imposta aos
jornais pelo estado de sítio6. Expressa ainda que, entre o círculo
4 Carta de Paris, 06/03/1914.
5 Carta de Paris, 21/05/1914.
6 Mais informações disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/noticias/
especiais/arquivo-s/ruy-barbosa-usou-tribuna-do-senado-para-mostrar-ao-pais-
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
95
social a que pertence, trata-se de um posicionamento favorável que
é partilhado.
[...] Tenho recebido sempre jornaes caricatos, que peço não mandarem
mais, pois que andando sempre viajando, a correspondencia já é mtº
mais diicil. Tudo chega mtº atrazado. Os discursos do Ruy ainda não
li todos, mas assim que o tiver feito mandal-os-hei ao Edgard. Já tenho
emprestado á mtºs. brasileiros, que caram enthusiasmadissimos.7
Em uma das epístolas, do mês de julho, Rubens declara achar
pouco provável que seja afetado pela iminente eclosão da I Guerra
Mundial. Em suas palavras,
A Europa está ameaçada de guerra, com o ultimatum da Austria á
Servia. A conagração mesmo é bem possível. Dizem que dependerá
da attitude da Russia. Para mim, creio que não haverá nenhum perigo,
mesmo que ella se dê. A Suissa é um paiz neutro, se fôr preciso, carei
por aqui ainda mtº tempo...8
Contudo, ao rebentar o conito um mês depois, as condições
decorrentes do agravamento da situação política e econômica
instáveis se zeram sentir pelo missivista. Este declara, em referência
a uma ocasião em que foi comprar um sorvete e deparou-se com a
falta de troco: “[...] dei uma nota de 50f cs. (suissa). Responderam-
me que não havia [...] e que n’estes 2 dias taes bilhetes não seriam
recebidos. Disseram-me mesmo que preferiam perder o sorvete,
a receber os 50 fcs.! É o reexo da situação grave que atravessa a
Europa, o descredito da moéda papel”9
Cinco dias após o envio desta missiva, Rubens escreve uma carta
preocupante sobre as situações que atravessam o Velho Mundo,
manifestando apoio aos franceses e seu interesse em lutar na guerra
ao lado dos Aliados, não o fazendo pela preocupação que poderia
causar a família:
importancia-da-democracia.
7 Carta de Paris, 20/06/1914.
8 Carta de Lausanne, 25/07/1914.
9 Carta de Paris, 1/08/1914.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
96
A situação esta bem grave. O conicto europeu rebentou! [...] A comida
está mtº. redusida, constando o almoço de dois mtº. ordinarios pratos e
sobremeza. Dinheiro, ninguem tem [...] Todos os dias, é uma verdadeira
avalanche hummana, que se posta na porta d’elles, esperando entrar;
e entram e nada conseguem! [...] É uma calamidade! [...] Os allemães
serão massacrados d’esta vez ...Todas as nações, com excepção da
Austria, são seus inimigos. Mesmo assim, elles não se entregam e
levam a invadir e bombardear cidades! Que loucos! creio ser uma
cousa absurda [...] A guerra começou há tão pouco tempo, e os seus
eeitos já se fazem sentir! [...] eu aqui lhes juro, si não fosse vocês, o
amôr que lhes tenho, já estaria agora “sous le drapeaux français” (sob a
bandeira francesa). A derrota da França, é o anniquilamento completo
da raça latina. O Brasil seria em seguida “uma colonia allemã” [...] A
França é como a patria de todos; italianos, suissos, belgas e talvez sul-
americanos, estão se batendo pela sua honra, é um pesar que eu não
possa fazer o mesmo10.
Em uma de suas últimas cartas, parece car claro que o pacto
epistolar (MALATIAN, 2009, p. 203) está sendo mantido, pois as
missivas alcançam seu destinatário nessa teia de comunicação entre
indivíduos, onde o receptor, neste caso a mãe de Rubens, D. Sinhá,
recebe, lê e responde ao lho, bem como envia jornais para que
ele se mantenha informado. Seu pai responde a somente uma das
missivas, cuja carta Rubens guarda com carinho.
A carta como veículo de comunicação que objetiva acabar
com as distâncias entre interlocutores transporta notícias que são
trocadas de modo regular e que indicam a “[...] a existência de
uma comunidade consensualmente representada pelos serviços
solicitados, às obrigações recorrentes, materiais ou emocionais,
o respeito sublinhado ou exigido do engajamento epistolar”
(OLIVEIRA et al., 2018, p. 4).
Através das cartas de sua mãe, dos dias seis e nove do mês de
agosto, Rubens toma conhecimento da situação brasileira, no que
arma
Por elles vejo que a situação continúa preta ahi, e que graves
acontecimentos são esperados a todo o momento. Póde ser que este
povo agora tome vergonha e que Ruy Barbosa seja collocado no curral
presidencial... Alegrou-me bastante saber que a baixa do cambio não
10 Carta de Paris, 6/08/1914.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
97
lhes prejudicará, e que talvez, ao contrario, venha lhes dar algum lucro.
Antes assim... O Hermes todo poderoso, não póde pois levar o estado a
que levou este pobre paiz.11
Pelas suas missivas contínuas, seguidas de suas constantes
solicitações por respostas, é possível enxergar Rubens como um
jovem preocupado e atento às questões que o circundam. As
correspondências se direcionam aos pais e, portanto, demonstram
ter a intenção de tranquilizá-los. A identidade do escrevente
projetada sobre o papel evidência a relevância de dotar o mundo que
o rodeia ao relacionar esses eventos à própria vida que, conforme
aponta Gomes (2004, p. 11), “de forma alguma precisam ter qualquer
característica excepcional para serem dignas de ser lembradas”. A
questão, portanto, é que nesse processo de escrita de si (GOMES,
2004), o sujeito constrói a própria identidade ao colocar-se como
missivista. Embora essa seja uma atividade introspectiva, sempre se
relaciona com o contexto e grupo social ao qual o sujeito se vincula.
“Me causa mesmo repulsa a politiquice
pequenina”
Assim como seu irmão, Mozart realiza um tour pela Europa que
se inicia em outubro de 1927 até meados de 1928, escrevendo um
total de trinta e quatro cartas12 que chegaram até o acervo. Essas
missivas se destinam somente à mãe dos jovens, D. Sinhá e relatam,
assim como as de seu irmão, suas aventuras pela Europa. Trata-
se de um missivista carinhoso que solicita respostas constantes
o que, conforme a análise das cartas, mostra-se ser algo que não
se concretiza com frequência. Mozart escreve muitas vezes com a
intenção de materializar suas experiências de maneira a compartilhá-
las com seus familiares. Mas não somente isso.
Embora a quantidade de cartas que expressam comentários
sobre a política e a economia nacional e internacional sejam
signicativamente menores do que as de seu irmão, seu
11 Carta de Paris, 25/08/1914.
12 Essas, assim como as do subconjunto de Rubens, só puderam ser acessadas a
partir de sua transcrição.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
98
posicionamento sobre tais tópicos é mais incisivo e enfático. Em
uma de suas correspondências, escreve sobre os italianos:
[...]a minha impressão é pessima. Povo de vagabundos, retrógrados,
entre os quaes o asseio é quasi um mytho. As 2 cidades que visitei,
sobretudo Genova, parecem ter estado deshabitadas por centenas de
annos, até que de repente nellas se despejou um milhão de pessoas.
O único merito dessas cidades, como aliás de todas as outras, são
os monumentos antigos. A Italia, enm, deu-me a impressão de um
paiz que caminha de costas, embevecida no seu passado, de que é,
ainda, como uma photographia vista a distancia; descuidosa do seu
presente, nada tenta nem faz pelo seu futuro. Talvez por isso mesmo,
esteve há pouco quasi a cahir no abysmo do bolshevismo dissolvente
e destruidor13.
Mozart demonstra ser um liberal, o que o faz tecer críticas duras
ao regime socialista, ao que ele atribui como a razão para a aparente
inércia da cidade e do povo italiano. Além disso, o jovem manifesta
um interesse maior do que Rubens sobre os assuntos econômicos da
família. Em uma de suas missivas, escreve sobre estar contente com
a possibilidade de melhora da situação nanceira da família, tema
recorrente em todo o conjunto de epístolas dos Antunes Maciel.
Para Mozart, essa possibilidade reside nos negócios rurais
localizados no Uruguay. Para ele, cabe a Rubens
[...]dedicar os seus esforços á realisação da terceira, promovendo os
arrendamentos, satisfazendo os nossos compromissos bancarios,
scaes, e judiciarios, emm, consolidando a nossa situação, que estava
se tornando um pouco precaria. Si pudessem embarcar em Março,
deixando tudo liquidado e com bôas perspectivas futuras!!...14
É uma constante em suas correspondências o pedido para que
seus familiares viajem à Europa, o que não é possível pela falta de
recursos. As cartas recém doadas ao acervo do museu tratam de
alguns dos temas enunciados por Mozart, indicando que os negócios
rurais referidos pelo missivista não deram conta de solucionar os
problemas nanceiros da família, cuja situação só se agravou com o
passar dos anos.
13 Carta de Paris, 15/10/1927.
14 Carta de Paris, 22/12/1927.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
99
Depois de uma anciosa e longa espera, recebi hoje a tua carta de 4
do mez passado, em resposta ás minhas de Genova e Roma. Plena
de noticias dahi, ella veio dar-me a illusão de estar tambem ahi entre
vocês, [...] o encaminhamento dos nossos negocios no Uruguay, são
todas novas confortadoras que conrmam a nossa visão optimista do
presente e fazem-nos esperançosos no futuro15.
É nesta mesma carta que Mozart tece seus comentários mais
duros sobre o cenário político brasileiro, em um diálogo direto com
sua mãe
[...] Outra noticia que me interessa bastante foi a referente a marcha
da politica no nosso Estado. Jamais te inganaste tão profundamente
commigo como quando escreveste .................. ser esse um assumpto
que não me desperta interesse. A verdade, Mamãesinha querida, é que
eu não só não me interesso mas me causa mesmo repulsa a politiquice
pequenina, de aldeia, baseada no odio intolerante e na cupidez
ambiciosa, que caracteriza a quasi totalidade dos nossos prossionaes
da politica; e, sobretudo, no nosso amado Rio Grande, em que o
nobre e ardente sangue gaucho, traiçoeiramente envenenado por
alguns homens destituidos de qualquer sentimento civico, e ás vezes,
mesmo, moral, - se deixa arrastar ás mais infelizes attitudes. Perdôa, si
achares que é caso para isso, a independencia e franqueza com que te
fallo, mas quando verdadeiras pestes como Mauricio de Lacerda, que
malbarata um talento de escól e uma mocidade vigorosa semeando
o odio entre irmãos para tentar auferir um miseravel provento
pessoal de popularidade, é recebido de braços abertos e festejado
impensadamente, qualquer espirito esclarecido e bem intencionado
não pode deixar de sentir uma onda de revolta crescer em seu interior.
Mesmo com o acesso restrito às transcrições, é possível notar
linhas irritadas (MALATIAN, 2009, p. 197-198) pelas palavras
escritas por Mozart. O escrito reete quem escreve e, na escrita
epistolar, “[...] as folhas de papel podem captar as emoções, seja
através da caligraa mais forte ou mais branda, seja no cuidado de
escrever sem rasurar, seja no modo como a descrição dos fatos é feita,
em suma, as cartas falam de quem escreve” (GASTAUD e FRIO,
2018, p. 14).
15 Carta Londres 03/05/1928.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
100
Ele prossegue em tom de irritação em resposta à mãe:
[...] Como vês, Mamãesinha querida, o que se tinha em vista não era
a felicidade e o progresso do Estado, não era a realisação de ideaes
alevantados, mas tão somente a luta mesquinha, pessoal, contra
um politico, que apesar de todos os pezares (tenhamos a nobreza
de reconhecel-os) estava um milhão de furos acima do nivel moral e
politico da maioria dos seus pares da politica brasileira. Assim, é com o
coração leve que eu venho a saber que o Getulio Vargas está tentando
ensinar aos seus ........................... de ambos os partidos a immensa
dierença que há entre politica e ... Politica. E já agora, Mamãesinha
querida, que conheces mais exactamente as minhas idéas (ideaes,
dirás...), estou certo que “o único ponto em que estamos sempre em
desaccordo”, ter-se-há desvanecido. Concordarás commigo em que
o papel do partido dominante é velar pela felicidade e progresso dos
governados, ao passo que o dos partidos da opposição deve ser de
espectativa, transformando-se em applauso ou repulsa conforme o
caso, sempre dentro da justiça, ou, ao menos, da sinceridade. É esse
o único e decisivo recurso contra a prepotencia de uns, a opposição
systematica de outros, a odiosa intolerancia de todos.
Aqui o escrevente demonstra ser favorável ao Getúlio Vargas e a
hegemonia política do PRR16. Este parece ser um ponto de tensão
entre mãe e lho e cujo assunto demonstra ser delicado. Trata-se
de um diálogo aparentemente difícil, que comporta “[...] silêncios,
rupturas, retomadas ao sabor dos interesses e das afeições”
(MALATIAN, 2009, p. 197-198).
Com estas correspondências, é possível compreender a difusão
das ideias em circulação entre correspondentes que comportam
certas visões como dominantes em sua época, e o peso da afetividade
na sua construção e difusão. Essas cartas, portanto, revelam os
engajamentos, discordâncias e tensões entre os interlocutores, nesse
caso, mãe e lho.
Considerações nais
A carta pessoal congrega uma série de diferentes operações
no intuito de produzir comunicativos com propósitos distintos. Estas
falam de desejos de expressar amizades, dar notícias, dialogar sobre
16 Partido Republicano Rio-Grandense.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
101
política, declarar amores e desamores etc. Trocar cartas expressa,
portanto, formas de se expor, de compartilhar experiências tanto
cotidianas quanto prossionais que falam, por meio do âmbito do
privado, do íntimo, do contexto em que vive o sujeito missivista e o
receptor.
Analisar as dinâmicas e usos desses escritos ordinários contribui
para entender a época de produção da epístola, isso porque a escrita
epistolar é permeada por práticas culturais de um tempo, hábitos
e valores partilhados, recheados de representações de sua época.
O corresponder-se, seus usos, modos de escrita, materiais usados,
objetos e signos que a carta carrega, revelam relações do espaço
social e signicados em que esses atos se produzem.
Nas cartas enviadas por Rubens e seu irmão Mozart ao seus pais
e a sua mãe, respectivamente, há presente tanto a ânsia por encurtar
a distância entre os interlocutores, quanto um desejo de dotar o
mundo que rodeia os missivistas. Trata-se de projetar no papel a
relação entre o mundo social e o mundo privado, pois ao escrever
sobre si, o sujeito escreve sobre o mundo em que vive e a sociedade
a qual pertence.
As correspondências comportam ideias e certas visões
dominantes de seu tempo, o que demonstra a coesão no modo de
pensar e posicionar-se. O estudo das cartas auxilia, nesse caso, a
entender a constituição das redes afetivas no âmbito da intimidade,
entendendo qual é o peso desse aspecto na difusão dessas ideias.
Ainda que as dinâmicas de inuência não estejam tão presentes em
ambos os conjuntos, elas revelam um modo de pensar partilhado
entre um e/ou mais grupos.
Referências
GASTAUD, Carla Rodrigues. De Correspondências e Correspondentes:
Cultura Escrita e Práticas Epistolares no Brasil entre 1880 e 1950. Tese de
doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: 2009.
GASTAUD, Carla; FRIO, Bruna. Apontamentos sobre Cultura Escrita e
Práticas Epistolares. CEM: Cultura, Espaço e Memória, n. 8, p. 13-23, 2018.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
102
GINZBURG, Carlos. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In.
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, Escrita da História: a título de
prólogo. In: Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2004.
MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de. O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009.
MARTINY, Carina. Os usos do escrito no universo familiar: a prática da
escrita no Brasil da segunda metade do século XIX. História UNISINOS,
São Leopoldo, v. 20, n. 1, p. 73-83, 2016.
OLIVEIRA, Lucia Maria de. Descrição arquivística e os arquivos pessoais:
conhecer os arquivos pessoais para compreender a sociedade. Arquivo &
Administração. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros, v.
12, n. 2, p. 28-51, 2013.
OLIVEIRA, Lúcia Maria de; SILVA, José Antonio da; SOBRAL, Camila de.
Repensando as cartas em arquivos pessoais. In: Seminario hispano-
brasileño de investigación em información, documentación y sociedad.
7., 2018, Madri. Anais [...]. Madri: Universidad Complutense de Madrid;
Universidad de Brasília, 2018.
PAGÈS, Alain. A materialidade epistolar: O que nos dizem os manuscritos
autógrafos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 67, p.
106-123, 2017.
TANNO, Janete. Os acervos pessoais: Memória e identidade na produção
e guarda dos registros de si. Patrimônio e Memória. UNESP – FCLAs –
CEDAP, v.3, n.1, p. 101, 2007.
A HISTÓRIA DA QUARTA
COLÔNIA E FAXINAL DO
SOTURNO (RS) ATRAVÉS DAS
LENTES DO IRMÃO ADEMAR DA
ROCHA
Caroline do Nascimento Moraes 1
Tatiana Godinho Martins 2
Considerações iniciais
A
Quarta Colônia de Imigração Italiana está localizada na
porção central do Rio Grande do Sul. A formação desse
território teve início em 1877, com a chegada de imigrantes
russos-alemães que, abandonaram sua região de origem. No início
de 1878, começam a chegar as primeiras famílias de imigrantes
oriundas do norte da Itália (Cruz, 2020). A região da Quarta
Colônia, atualmente corresponde a nove municípios: Agudo, Dona
Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande,
Restinga Seca, São João do Polêsine e Silveira Martins. Seu território,
1 Geografa pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Graduanda do
curso de Arquivologia da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. E-mail:
carolinenmoraes2@gmail.com
2 Arquivista pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM; Técnica em
Processos Fotográcos pelo Instituto Federal do Rio Grande do Sul, IFRS. E-mail:
tatianagodinhomartins@gmail.com
103
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
104
no século XIX, abarcou grande parte do território das colônias de
imigração europeias criadas pelo Império Brasileiro, como a colônia
de Silveira Martins (criada em 1877 como núcleo colonial de Santa
Maria da Boca do Monte), que abrigou imigrantes italianos (Baccin,
2022).
A colônia de imigração italiana localizada na região central do
estado foi a quarta colônia criada pelo governo Imperial na província
do Rio Grande do Sul. O território inicialmente foi dividido em
núcleos coloniais e após divididos em lotes que seriam destinados
aos imigrantes. A então Colônia Silveira Martins foi composta pelos
núcleos: Núcleo Norte (Ivorá), Núcleo Dona Francisca e Núcleo
Soturno (Nova Palma). Mais tarde, novos núcleos foram criados
devido o constante uxo de imigrantes que chegava à região.
Posteriormente, esses núcleos se mobilizaram em busca de
emancipações político-administrativas que propiciassem uma
maior autonomia. Gradualmente, as emancipações ocorreram,
e, assim, esses núcleos evoluíram para municípios (Figura 1), um
processo que durou de 50 até meados dos anos 90 do século XX
(Baccin, 2022).
Figura 1 – Mapa de Localização da Quarta Colônia no estado do Rio Grande do Sul, 2023.
Fonte: Fepam – RS Municípios, 2021.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
105
Faxinal do Soturno é um dos noves municípios que compõe
a região da Quarta Colônia, território integra um consórcio de
desenvolvimento sustentável de nove municípios, criado em 1996,
que se denominou: Consórcio e Desenvolvimento Sustentável da
Quarta Colônia (CONDESUS Quarta Colônia) o território também
é certicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura - UNESCO como Geoparque Quarta Colônia.
Sendo os geoparques uma estratégia de desenvolvimento territorial
sustentável, que alia o conhecimento geocientíco ao turismo e
geração de renda.
O município de Faxinal do Soturno tem seu desenvolvimento
marcado pela implementação do Pré Seminário São José, fundado
em 1949 pelos padres palotinos. Tendo sua identidade inuenciada
pela cultura italiana, oriunda dos imigrantes, a qual está expressa
nos costumes, hábitos, na culinária, nos monumentos históricos,
nas igrejas, na arquitetura típica colonial e na religiosidade, que é
um forte elemento cultural do município.
O Pré Seminário São José (Figura 2) foi uma instituição de
ensino vinculado aos padres palotinos, que chegou a ter mais de
120 alunos internos, vindos das mais diversas cidades e regiões do
estado do Rio Grande do Sul. O método de educação utilizada pelos
sacerdotes prezava pelo respeito, disciplina e responsabilidade, os
alunos tinham uma rotina muito rígida a cumprir. Os dias dos
educandos eram divididos em estudos, rezas e tarefas. Um dos
professores atuantes na instituição foi o Irmão Ademar da Rocha,
que se destacou pelo seu ocio na fotograa.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
106
Figura 2 – Prédio do Pré Seminário São José em Faxinal do Soturno
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha, 1960
O Irmão Ademar da Rocha (Figura 3) nasceu em 20 de agosto
de 1904, na comunidade de São Geraldo, atual Pains, distrito
do município de Santa Maria. Cresceu em uma família com
raízes católicas, onde seus pais Seram Antônio da Rocha e Elisa
Gonçalves da Rocha, mudaram-se para Santa Maria, com mais
três lhas. O sacerdote foi um dos professores atuantes no Pré
Seminário, onde lecionou durante quinze anos, concomitantemente
com sua dedicação a técnica da fotograa e cinema, tornando-se
o pioneiro nesta arte na região, registrando casamentos, batizados,
festas religiosas, missas e ocasiões em geral, inúmeros momentos
importantes para a comunidade faxinalense foram registrados por
sua fotograa, assim originando diversos negativos fotográcos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
107
Figura 3 – Irmão Ademar Gonçalves da Rocha
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha, 1990
No seminário, entre as atividades que desempenhava, além da
fotograa, Ir. Ademar lecionava, cuidava da horta, do jardim e da
tipograa do seminário, preparava suas aulas com muita dedicação
e carinho aos alunos. Desenho, Caligraa, Matemática e Português,
eram suas aulas preferidas (Klein, 2004).
O Sacerdote se dedicava principalmente a fotograa e ao cinema,
foi um dos primeiros fotógrafos da região central do estado. Seu
estúdio fotográco era localizado no subsolo do prédio do Pré
Seminário onde ele registrava fotograas para documentos e
realizados agendamentos para fotos em casamentos, registros
fotográcos de festas religiosas, batizados, entre outros momentos
importantes na época, acontecidos em Faxinal do Soturno e região,
cando registrados através de suas lentes (Leonardi, 2023).
Além dos registros fotográcos o Sacerdote também atuava na
disseminação do cinema da região central do estado, com sessões
de projeção itinerante que iam desde Pinhal Grande até Santa
Maria, percorrendo pelas localidades com seu Chevrolet 1929,
realizado através do Cinema Palotino - CINEPAL. Exibindo lmes
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
108
alugados que vinham de Porto Alegre e eram retirados por ele na
Rodoviária de Santa Maria, sempre reunindo um grande público
de expectadores, Irmão Ademar seguiu com o projeto até o m da
década de 60. O Sacerdote na época cou conhecido na região como
o Irmão do Cinema (Figura 4).
Figura 4 – Recorte de Jornal “Cinema na Estrada por quatro décadas”
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha
É evidente a importância das ações educativas e culturais do
Irmão Ademar da Rocha na Quarta Colônia e região, bem como
seu acervo fotográco deixado após sua morte. O conteúdo
presente no acervo do Sacerdote Palotino evidencia a história do
desenvolvimento regional da Quarta Colônia, diversos momentos
importantes foram capturados pelas suas lentes, preservados e
entregues para a guarda da Prefeitura Municipal. Posteriormente,
a partir de uma iniciativa da Prefeitura Municipal de Faxinal do
Soturno e do Pároco Pe. Valdir Bisognin, se deu a criação do Museu
Fotográco Irmão Ademar da Rocha, alocado no prédio do antigo
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
109
Pré Seminário São José dos Palotinos, que passou, nos anos noventa,
a pertencer à Prefeitura.
O Museu Fotográco em homenagem ao Sacerdote, foi criado
através de projeto legislativo do vereador Ubirajá Falcão da Rocha.
Sendo um projeto de autoria do vereador, do prefeito em exercício na
época, Admir Carlos Ruviaro, juntamente com a professora do curso
de História da Faculdade Franciscana (FAFRA) Maria Medianeira
Padoin, em conjunto com as alunas do curso de História, Rosângela
Trevisan e Elisete Felin, contando com o apoio do designer Giuliano
Cogo e a estudante de Arquitetura Verena Silveira, em 1998,
organizaram um plano museal para a organização, infraestrutura e
design do projeto (Baccin, 2022).
Segundo Leonardi, 2023 o Museu Fotográco Irmão Ademar
da Rocha objetiva resguardar o riquíssimo patrimônio cultural da
região ao qual pertence e ao mesmo tempo, mostrar à população
que o frequenta a importância dos registros fotográcos como
fontes históricas, um símbolo de ligação onde o passado é percebido
no futuro. O acervo do Museu Fotográco conta a história de
Faxinal do Soturno e da Quarta Colônia por meio dos registros do
Irmão Ademar, o sacerdote esteve presente em diversos momentos
importantes da comunidade faxinalense, que hoje se mostram como
registros da história da região. Evidenciando o poder da fotograa
enquanto parte importante da memória local. O Ir. Ademar
registrou fotograas de casamentos (Figura 5), dos mais diversos
cursos (Figura 6), desles cívicos (Figura 7), entre outros.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
110
Figura 5 – Casamento Nileu Cervie e Albina Bianchi Santos Anjos - 26-07-58
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha, 1958
Figura 6 – Imagem Curso de Conservação e Manutenção de Tratores, 1980.
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha, 1980
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
111
Figura 7 – Desle 7 de setembro, Faxinal do Soturno – Ano 1960.
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha, 1960
Com o intuito de preservação desta história e legado que
perpassou por décadas, a Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM) em parceria com a Prefeitura Municipal de Faxinal do
Soturno, atuaram na elaboração de projetos de extensão que
visam a salvaguarda destes materiais. A produção desse artigo está
vinculada ao Projeto de Extensão “Ações em Acervos Arquivísticos
de São João do Polesine e Quarta Colônia”. No desenvolvimento
das atividades foram realizadas as seguintes práticas, como a
preservação dos negativos fotográcos do Museu, passando pela
etapa de digitalização, limpeza e produção de novos álbuns para
armazenamento dos negativos, por meio da encadernação artesanal,
bem como da criação de uma nova expograa (Figura 8 e 9) para o
Museu.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
112
Figura 8 – Expograa do Museu Fotográco Ir Ademar da Rocha, ano 1960.
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha (Martins, 2023)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
113
Figura 9 – Expograa do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha, ano 1970
Fonte: Acervo do Museu Fotográco Ir. Ademar da Rocha (Martins, 2023)
Assim, uniu-se técnica arquivística, conhecimento histórico e
ação de extensão contribuindo para a preservação, valorização do
patrimônio e divulgação da história, principalmente faxinalense e
da região da Quarta Colônia, em que as fotograas, além de serem
fontes históricas, se tornaram uma marca cultural, proporcionando
a comunidade um sentimento de pertencimento à cultura à qual
estão inseridos, bem como um aporte nas ações da educação
patrimonial escolar.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
114
REFERÊNCIAS
BACCIN, Vanessa. “O Pré-Seminário São José de Faxinal do Soturno:
história, memória e patrimônio da Quarta Colônia” - 2022. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Patrimonio Cultural –
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 2023. Disponível em: https://
repositorio.ufsm.br/handle/1/25344
CRUZ, Jorge Alberto Soares. “A identidade e a memória como fatores de
desenvolvimento e integração: a Quarta Colônia de Imigração Italiana
do RS/Brasil e o desenvolvimento regional (1955-2020)” - 2020. Tese
de Doutorado. Programa de Pós Graduação em História. Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Disponível em: https://repositorio.ufsm.
br/handle/1/23266
KLEIN, Eloísa. Vida de Projeção. Santa Maria: Editora Palotti, 2004.
LEONARDI, Rosangela. “Divulgação do Museu Fotográco Irmão Ademar
da Rocha do Município de Faxinal do Soturno/RS” - 2023. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Patrimonio Cultural –
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Disponível em: https://
repositorio.ufsm.br/handle/1/30522
MARTINS, Tatiana Godinho. Expograa Museu Fotográco Irmão Ademar
da Rocha 1910 - 2023. Faxinal do Soturno. Produção Técnica. 2023
ACERVOS E A DISPUTA POR
NARRATIVAS: A FRONTEIRA
A PARTIR DO ACERVO
HISTÓRICO DA AGÊNCIA DE
DESENVOLVIMENTO DA BACIA
DA LAGOA MIRIM
Bethânia Luisa Lessa Werner1
Nathalia Lima Estevam2
Introdução
Criada com o objetivo de estabelecer diálogos entre Brasil
e Uruguai, a Comissão Mista Brasileiro-Uruguaia para o
Desenvolvimento da Lagoa Mirim (CLM), foi instaurada em
1963. Composta pela Seção Brasileira e pela Delegacia Uruguaia,
a CLM promoveu acordos referentes às fronteiras ao sul do Brasil
e norte do Uruguai. Sob os governos de João Goulart, no Brasil, e
de Daniel Fernández Crespo, no Uruguai, foi declarado pelos dois
países em 1964 o apoio ao Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) e à Food and Agriculture Organization
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pelotas. E-mail: bethaniawerner@hotmail.com
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pelotas. E-mail: nathaliaestevaml@hotmail.com
115
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
116
(FAO), estreitando os laços entre os estados para a elaboração do
projeto CLM/FAO/PNUD e para o Desenvolvimento da Bacia da
Lagoa Mirim (ALM, 2021).
A partir de 1971, no entanto, a Seção brasileira da CLM foi
transferida à Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul
(SUDESUL), que formou o departamento da Lagoa Mirim com o
objetivo de executar o plano de desenvolvimento promovido pela
FAO. Sob a gestão da SUDESUL foram assinados os Tratado para o
Aproveitamento dos Recursos Naturais e para o Desenvolvimento
da Bacia da Lagoa Mirim, o que ainda nos anos 1970 promoveu
a construção do Distrito de Irrigação do Chasqueiro, da
Barragem Eclusa do São Gonçalo e do sistema de Irrigação do Rio
Jaguarão. Embora as instituições ainda realizassem ações voltadas
principalmente as comunidades presentes na Lagoa Mirim, por
questões administrativas a SUDESUL é dissolvida em 1990, e toda
sua administração, assim como seu acervo histórico passam a ser
geridos pela Universidade Federal de Pelotas. A partir disso, é criada
a Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (ALM),
que compõe atualmente a Seção Brasileira ao lado de representantes
do Ministério do Desenvolvimento Regional, do Ministério das
Relações Exteriores e do Meio Ambiente (ALM, 2021).
Atualmente, a ALM realiza, para além das atividades diplomáticas
desenvolvidas anteriormente a sua criação, o acompanhamento
sanitário das comunidades banhadas pela bacia hidrográca da
Lagoa Mirim. Esse acompanhamento é realizado através da análise
da qualidade da água em diferentes regiões da bacia e informa sobre
a situação da água para o consumo. A agência também monitora o
Canal São Gonçalo, onde existe uma barragem eclusa, responsável
por conter águas salinizadas vindas do mar na conexão entre a lagoa
e o oceano. Neste canal são realizados estudos para a medição da
salinidade, que são relevantes medidores para as culturas agrícola
e pecuária da região. Dessa forma, o monitoramento dessas águas
visa preservar a biodiversidade da área, assim como manter a
distribuição de água na região.
Muito atuantes durante os anos que compreenderam a ditadura
civil-militar brasileira, os acervos da CLM, SUDESUL e ALM
presentes atualmente na Universidade Federal de Pelotas, tem
relevantes documentos sobre acordos e trabalhos realizados pelo
governo brasileiro na região sul do país. E embora muitos desses
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
117
documentos tragam mais que dados técnicos, pouquíssimos
trabalhos referentes às relações históricas da instituição foram
realizados3. O acervo técnico/histórico da ALM é composto por
mapas, livros de campo, fotograas, livros de divulgação, entre
outros documentos, e está localizado no campus Anglo da UFPel4.
Organizado pelas autoras do presente artigo, enquanto bolsistas
de iniciação cientíca e extensão, o acervo tem como objetivo
possibilitar pesquisas nas áreas das ciências exatas, humanas e
biológicas, pois usufrui de uma vasta diversidade documental.
Dessa maneira, o presente trabalho visa elencar algumas das
possibilidades sobre este espaço de preservação cujas narrativas são
por muitas vezes disputadas.
Nesse sentido, iniciaremos a discussão a partir da apresentação
do acervo, relacionando os materiais presentes no espaço, as
experiências das autoras em sua organização e algumas reexões
sobre o trabalho do historiador em espaços de preservação.
Posteriormente, elencamos algumas das possibilidades de pesquisa
no acervo, destacando alguns conjuntos documentais que permitem
a historização de acontecimentos relacionados à instituição. E em
um último momento, pretendemos apresentar uma breve análise
sobre a necessidade e a importância do trabalho interdisciplinar
para a construção de um saber plural e democrático.
Acervo ALM: Fronteiras e narrativas
Atualmente instalado no prédio da biblioteca do campus Anglo
da UFPel, o acervo técnico/histórico da ALM já foi acondicionado
em outros espaços. Passando pelas antigas instalações de
suas instituições de origem até o prédio atual da Agência de
Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim5, no centro da cidade
de Pelotas, o acervo só pode receber acondicionamento adequado
às suas características em 2019, quando foi transferido para uma
das bibliotecas da universidade. Quando sua mudança foi realizada,
o material perdeu boa parte de sua organização primária, e
3 Veja mais em: WERNER, ESTEVAM, 2021.
4 O campus Anglo localiza-se na Rua Gomes Carneiro, 01 no bairro Balsa, na cidade
de Pelotas - RS, e o acervo encontra-se anexo à Biblioteca deste.
5 A sede da ALM, atualmente, encontra-se localizada na rua Lôbo da Costa, 447 -
Centro, Pelotas.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
118
precisou de uma nova organização. Assim, neste mesmo ano foram
contratados bibliotecários que iniciaram o processo de organização
das documentações nesse espaço, começando seu trabalho pelos
numerosos mapas presentes no acervo. A partir do que foi realizado
por ao menos três prossionais, foram criadas e organizadas física
e digitalmente as mapotecas do acervo, apresentadas nas imagens 1
e 2. Esta organização foi fundamental para o desenvolvimento da
organização do espaço posteriormente.
Imagem 1 - Organização digital das mapotecas
Fonte: Acervo Histórico da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim Autoral
(2023)
Imagem 2 - Organização física das mapotecas
Fonte: Acervo Histórico da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim Autoral
(2023)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
119
A partir do contexto de pandemia da Covid-19 a organização
do acervo precisou ser paralisada e o trabalho só pode recomeçar
em 2021. Neste ano, as autoras foram contratadas como bolsistas da
instituição em parceria com a universidade para organizar o acervo
e, para iniciar os trabalhos, o contato com os antigos funcionários
do acervo foi essencial. Após algumas tentativas foi possível acessar
a organização das mapotecas, possibilitando a continuidade do
processo já iniciado e, daí em diante, diferentes desaos foram
traçados. Nesse momento, encontrar organicidade nos documentos
que estavam espalhados sem qualquer sistematização e diminuir
expressivo número de materiais repetidos foi a principal meta.
Como estudantes do curso de bacharelado em História, a
organização tomou rumos diferentes dos traçados pelos antigos
funcionários, prossionais da biblioteconomia. Respeitando o
princípio da proveniência (Bellotto, 2004) a organização dos livros
se iniciou a partir da divisão por empresa responsável, projeto e
datação. Seguindo esta mesma lógica, os livros de campo também
foram organizados. Outros fundos, que requereram organização
individual relativa às suas demandas, como as fotograas, também
tiveram catalogação digital e física, sobre o qual discorreremos
adiante. Outro conjunto inicialmente organizado foi o de mapas,
cujo seu expressivo número fora das mapotecas dicultava o
desenvolvimento físico de outras atividades. Após o contato com
os antigos funcionários, logo percebeu-se a repetição dos materiais
presentes nas mapotecas e fora delas, sinalizando que os antigos
funcionários já haviam separado o material para descarte.
O acervo da ALM é um importante espaço de salvaguarda para
documentações referentes à região sul do Brasil e as áreas fronteiriças.
No Uruguai, um acervo “irmão” também foi criado respeitando
critérios semelhantes de organização e serve como um importante
recurso para pesquisas na região. O trabalho aqui apresentado
visa ampliar os horizontes de análise sobre o acervo na tentativa
de possibilitar um maior acesso de historiadores e prossionais
das ciências humanas a locais de salvaguarda de documentações
sobre regiões de disputa narrativas. A seguir elencamos algumas
possibilidades de análise sobre os materiais presentes no acervo e
que podem ser analisados a partir da ótica das ciências humanas.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
120
Algumas possibilidades
Enquanto uma instituição formada a partir de vínculos,
relações, acordos e colaborações internacionais, a Agência
de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim possui em seu
histórico uma forte conexão com o campo de estudos das
relações internacionais. Seja através de análises sobre a política
externa ou sobre acordos para o desenvolvimento e integração
regionais (CARVALHO, SCHIMANSKI, 2022; SCHIMANSKI,
2021; SILVEIRA, SCHIERHOLT, 2021), pesquisas demonstram
a importância dessa cooperação para a manutenção das ações de
preservação desse território.
Ao analisar o conjunto dessas relações percebe-se que “o
desenvolvimento de uma visão comum sobre o território [...] tem um
impacto direto no desenvolvimento regional e no adensamento das
relações sociais e econômicas entre Brasil e Uruguai” (FERNANDES,
COLLARES, CORTELETTI, 2021, p. 59). Da mesma forma,
desde sua criação, a Comissão Mista Brasileiro-Uruguaia para o
Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (CLM) “fortaleceu
o ideal da água como elemento integrador e potencializador do
desenvolvimento conjunto das sociedades da faixa de fronteira”
(FERNANDES, COLLARES, CORTELETTI, 2021, p. 65). Ou seja,
a região e as instituições que são responsáveis pela sua preservação
constituíram-se com base na cooperação nacional e regional.
Essa perspectiva, por sua vez, reete-se na leitura de documentos
que constituem o acervo histórico da instituição no lado brasileiro,
o qual encontra-se sob coordenação da ALM, como o conjunto de
fotograas. O fundo de fotograas é composto por documentos que
estão dispostos no total de nove caixas, já organizadas e catalogadas.
Caracterizada pela ausência ou reduzida quantidade de informações
sobre as fotograas, após a organização e catalogação do conjunto, foi
possível identicar que o mesmo compreende o período da década
de 1970 até os nos 2000, sendo as fotograas mais antigas, possíveis
de serem identicadas, do ano de 1975, e as mais recentes, de 2004.
Dada a diculdade no encontro de informações sobre o conteúdo
desses documentos, que encontravam-se dispersos em vários locais
diferentes, enquanto bolsistas a organização possível foi realizada a
partir de temáticas que apareciam nas imagens. Nessa perspectiva,
as fotograas foram divididas nas categorias: Barragem e Eclusa,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
121
Projeto Centurião, Prédios, Santa Vitória do Palmar, SUDESUL,
Projeto Chasqueiro, CLM, Açudagem, Sem identicação, Rincão
dos Maia, Jaguarão, Rio Piratini, Taim, Camping Olho d’água,
Pelotas, São Lourenço do Sul, Barragem Santa Bárbara, UFPEL e
Diversos, totalizando 19 séries.
A partir dessa divisão, as fotograas foram organizadas em
subséries e foram catalogadas informações como o número do
envelope, a quantidade de fotos em cada conjunto, a data e possíveis
observações – esse campo destinou-se a descrever algumas das
anotações, por exemplo, contidas no verso das imagens. Dentre as
diferentes séries, portanto, para esse artigo escolheu-se apresentar
e discutir a subsérie 5.22, intitulada “Encontro dos presidentes
– (Brasil e Uruguai)”. Para isso, compreendemos o conceito de
fronteira a partir da caracterização do seu dinamismo, considerando
que “é da ‘natureza’ da fronteira que por ela ocorra a passagem,
o uxo ou a interdição” (SILVEIRA, 2005, p. 18). Esses uxos,
sejam de pessoas, ideias ou objetos, são observados nesta série de
documentos composta por 19 fotograas referentes ao ano de 1975.
À época, o Brasil vivenciava o contexto da ditadura civil-
militar e na presidência encontrava-se o General Ernesto Geisel,
cujo mandato foi de 1974 a 1979. Na presidência, Geisel realizou
visitas ao Uruguai em diferentes momentos, sendo alguns desses
documentados pela Assessoria de Relações Públicas da Presidência
da República (1978). Da mesma forma, o Uruguai encontrava-se no
contexto de ditadura civil-militar naquele período sob o governo de
Juan María Bordaberry. Assim, estreitando relações e rearmando
acordos bilaterais, em 1975 foi realizado o encontro entre os
presidentes na cidade de Rivera, no Uruguai, o qual é apresentado
nas fotograas do conjunto escolhido.
Dentre esses registros, optamos por destacar, nesse artigo, a
possibilidade de investigação sobre a gura das primeiras-damas
a partir dessa documentação. Acompanhando seus respectivos
maridos em cerimônias, reuniões e encontros nacionais ou
internacionais, “o papel de primeira-dama, enquanto colaboradora
das ações governamentais tanto pode ser entendido enquanto
forma de protagonismo, tanto quanto de coadjuvante” e, assim,
“sua participação no jogo político é incontestável” (RODRIGUES,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
122
2019, p. 190). Ou seja, ainda que pouco exploradas6, suas atuações
políticas existiram.
Nessa perspectiva, observamos nas imagens 3, 4 e 5 a presença
das primeiras-damas brasileira e uruguaia no encontro de
presidentes realizado em 1975, Lucy Geisel e Josena Herrán Puig.
Em uma observação mais atenta, percebemos que a primeira-dama
brasileira aparece em mais registros, possibilitando a leitura de
uma atuação política presente tanto quanto a do presidente naquele
momento. Além disso, emergem discussões não apenas sobre as
prováveis atuações políticas dessas mulheres, mas também padrões
femininos, moda, costumes e cultura.
Imagem 3 – Encontro de presidentes
Fonte: Acervo Histórico da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim Autoral
(2023)
6 Em relação à atuação e às trajetórias políticas de primeiras-damas ver os trabalhos:
TORRES, 2002; SIMILI, 2008; RODRIGUES, 2019; WERNER, 2022.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
123
Imagem 4 – Encontro de presidentes
Fonte: Acervo Histórico da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim Autoral
(2023)
Imagem 5 – Encontro de presidentes
Fonte: Acervo Histórico da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim Autoral
(2023)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
124
A partir dessas documentações, portanto, também é possível
levantar questionamentos acerca da importância desses encontros
e reuniões internacionais, bem como acerca da importância do
papel político exercido pelas primeiras-damas. Esse aspecto é
reforçado como quando, já em 1978, em outra visita ao Uruguai,
Ernesto Geisel tem suas atividades documentadas pela Assessoria
de Relações Públicas da Presidência. Nesse documento foram
descritos de modo geral os encontros, almoços, reuniões e passeios
previstos na agenda presidencial para aquela viagem. No entanto,
não restringindo-se apenas à gura de Geisel, no mesmo documento
encontram-se detalhes sobre algumas das rotinas e atividades
previstas às primeiras-damas na seção intitulada “A agenda das
primeiras damas” (Repercussões, 1978, p. 25), evidenciando suas
participações políticas e atuações para além das guras masculinas.
Ainda que não faça parte do acervo em questão desse artigo, a
partir do cruzamento entre essas documentações apresentam-
se possibilidades e usos de diferentes fontes para a pesquisa em
história, diversicando as narrativas sobre o político.
Nessa perspectiva, outros documentos no acervo apresentam
possibilidades de leituras e análises a partir de diferentes áreas
do conhecimento, como o conjunto de Atas da Subcomissão
Permanente da Lagoa Mirim. Novamente inserem-se as discussões
sobre as relações internacionais entre Brasil e Uruguai e, destacamos,
a m de atender o objetivo do nosso artigo, a possibilidade de leitura
conjunta de diferentes tipos documentais, dada a convergência de
datas entre os mesmos. O conjunto de atas faz parte do acervo
da CLM, o qual constitui-se de materiais como documentos
sobre projetos relacionados à fronteira, à integração regional e a
construção de hidrovias, atas da subcomissão permanente, atas da
seção brasileira da CLM, correspondências, legislações internas da
instituição e documentos diversos.
Assim, buscando estabelecer uma aproximação com o primeiro
conjunto apresentado, a intersecção entre as documentações torna-
se possível a partir do recorte temporal em que estão localizadas
as atas da Subcomissão Permanente da Lagoa Mirim, por exemplo,
abrangendo toda a década de 1970. Numeradas, o acervo possui
sequências relativamente íntegras, das atas e conta com uma cópia
em português e outra em espanhol – uma destinada a cada seção da
instituição nos dois países – para a maioria dos casos. Os assuntos
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
125
mais recorrentes nesta documentação são os projetos Centurião,
Talavera e Jaguarão, descrevendo temas de reuniões, apresentação
de projetos, relatórios sobre o andamento e situação das obras,
tratados, sistemas de construções e informes de assuntos gerais
relacionados à CLM.
Ou seja, observando as atas de 1975 – ano do encontro entre
os presidentes documentado nas fotograas – da Subcomissão
Permanente da Lagoa Mirim, encontramos discussões sobre temas
como: considerações sobre o transcurso do Projeto Regional da
Lagoa Mirim (Ata nº 25), plano de operações do sistema do Passo
de Talavera e do Sistema do Centurião (Ata nº 26), Relatório atual
do Projeto Centurião e ligação rodoviária (Ata nº 27), Novas obras
na Bacia da Lagoa Mirim e fontes de nanciamento para obras
binacionais (Ata nº 28) e situação do Projeto Talavera e Centurião
(Ata nº 30). Nesse sentido, emergem possibilidades de pesquisa tanto
sobre as relações entre Brasil e Uruguai e a gestão compartilhada
sobre a região, quanto sobre o próprio histórico da CLM e suas
transformações ao longo dos anos.
Assim, as Notas Reversais7 de 1963, ao proporcionarem
“continuidade à institucionalização da cooperação bilateral na
região, mediante a criação de uma comissão mista responsável
[...]” (FERNANDES, COLLARES, CORTELETTI, 2021, p. 65)
zeram parte dos processos de consolidação da CLM. Marcada
por diferentes momentos, a trajetória da instituição, as ações sobre
as regiões sob as quais possui responsabilidade e os reexos de
suas atividades podem, portanto, ser objeto de estudo a partir dos
documentos presentes no acervo histórico da ALM, espaço que se
constitui, por conta disso, enquanto rico cultural e historicamente
para diversos grupos sociais.
Considerações nais
A partir das discussões e documentos apresentados acima, esse
artigo buscou evidenciar a importância de aspectos como o trabalho
interdisciplinar para a constituição de acervos mais acessíveis e as
7 Instituem a Comissão Mista e dão providências sobre suas ações e funcionamento
em ambos os países. Disponível para leitura completa em: https://wp.ufpel.edu.br/
alm/files/2019/06/Notas-Reversais-entre-Brasil-e-Uruguai-estabelece-a-CLM-1963.
pdf Acesso realizado em: 06/01/2024.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
126
diferentes possibilidades de pesquisas a partir dos materiais que
compõem o acervo ALM. Buscou-se, a partir da apresentação
do acervo histórico da Agência de Desenvolvimento da Bacia da
Lagoa Mirim, contribuir na divulgação de espaços de pesquisa
e acervos dentro das universidades públicas, demonstrando o
desenvolvimento de ações e projetos dentro desses espaços para ns
de preservação.
Na mesma perspectiva, ao descrever brevemente algumas das
atividades realizadas pelas autoras do presente texto enquanto
bolsistas no referido acervo, objetivamos apresentar um relato
de experiência que, ao longo da graduação, possibilitou trocas e
aprendizados entre diferentes áreas do conhecimento. Ao longo do
processo de organização, catalogação e higienização dos mais diversos
documentos durante o período de atuação enquanto bolsistas, foi
possível perceber múltiplas possibilidades de olhares para cada
fonte, apresentando novas abordagens, recortes e problemas para
cada uma. Nesse sentido, portanto, a partir desse artigo buscamos
contribuir com os debates acerca da democratização do acesso ao
passado em espaços como o acervo aqui apresentado, considerando
as disputas narrativas e as fronteiras nas quais as mesmas são
constituídas, sejam elas geográcas, políticas ou sociais.
Referências
ALM. Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim. UFPEL,
Pelotas. Disponível em: https://agencialagoamirim.com.br/ Acesso
realizado em 06/01/2023.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes. Tratamento
documental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
CARVALHO, Bruno Hammes de; SCHIMANSKI, Silvana. INTEGRAÇÃO
REGIONAL: AS NEGOCIAÇÕES ENTRE URUGUAI E BRASIL PARA A HIDROVIA
DA LAGOA MIRIM. In: Anais do Seminário de Graduação e Pós-graduação
em Relações Internacionais. Anais. São Paulo (SP) IRI-USP, 2022.
COMISSÃO MISTA BRASILEIRO-URUGUAIA. (CLM). Notas Reversais de 26 de
abril de 1963. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/alm/les/2019/06/
Notas-Reversais-entre-Brasil-e-Uruguai-estabelece-a-CLM-1963.pdf
Acesso realizado em: 06/01/2024.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
127
FERNANDES, Fernanda de Moura. COLLARES, Gilberto Loguercio.
CORTELETTI, Rafael. A água como elemento de integração transfronteiriça:
o caso da Bacia Hidrográca Mirim-São Gonçalo. Estudos Avançados. 35
(102), p. 59-77, 2021.
REPERCUSSÕES, Registro Histórico. Viagem do presidente Geisel ao
Uruguai. Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República -
Fevereiro de 1978.
RODRIGUES, Dayanny Deyse Leite. Ser coadjuvante ou protagonista no
cenário político: o impasse das primeiras-damas. Sæculum – Revista de
História, v. 24, nº 41, p. 176-195, 2019.
SCHIMANSKI, Silvana. Cooperação Internacional para o Desenvolvimento:
o papel da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (ALM).
In: COLLARES, Gilberto Loguercio (coord.). Anais da I Jornada Integrada
de Pesquisa e Extensão. Universidade Federal de Pelotas. Agência de
Desenvolvimento da Lagoa Mirim. Pelotas: UFPEL, ALM, 2021, p. 331-342.
SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da. As Complexidades da noção de fronteira,
algumas reexões. Caderno Pós Ciências Sociais, São Luís, 2 (3): 17-38,
2005.
SILVEIRA, Letícia Alves. SCHIERHOLT, Kássia Paola. Bacias hidrográcas e a
governança de águas internacionais: uma análise dos marcos normativos.
In: COLLARES, Gilberto Loguercio (coord.). Anais da I Jornada Integrada
de Pesquisa e Extensão. Universidade Federal de Pelotas. Agência de
Desenvolvimento da Lagoa Mirim. Pelotas: UFPEL, ALM, 2021, p. 448-463.
SIMILI, Ivana Guilherme. Mulher e política: a trajetória da primeira-dama
Darcy Vargas (1930-1945). São Paulo: Editora UNESP, 2008.
TORRES, Iraildes Caldas. As primeiras damas e a assistência social:
relações de gênero e poder. São Paulo: Cortez, 2002.
WERNER, Bethânia Luisa Lessa. “Eu serei uma senhora importante. Vou
ser muito importante”: a trajetória política de Nair de Teé na Primeira
República (1910- 1922). Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL), Pelotas, 2022.
WERNER, Bethânia Luisa Lessa; ESTEVAM, Nathalia Lima. Patrimônio
histórico e natural: preservação e divulgação do acervo histórico da
Agência de Desenvolvimento da Lagoa Mirim. In: SCHIAVON, Carmem G.
Burgert; NERY, Olivia Silva; CARDOZO, José Carlos da Silva; FELONIUK,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
128
Wagner; SILVEIRA, Laiana Pereira da. (Org.). Patrimônios em perspectivas:
histórias, memórias e identidades. 1ed. Porto Alegre: CasaLetras, 2021,
v. , p. 231-238.
ORGANIZAÇÃO DO ACERVO
DA FLORESTA NACIONAL DE
CHAPECÓ/SC: CONSTRUINDO A
HISTÓRIA AMBIENTAL LOCAL
Rafael Pinheiro de Almeida1
Fernanda de Sales2
1. INTRODUÇÃO
O século XXI vem sendo marcado por grandes desastres
ambientais, decorrentes de séculos de uso desenfreado de recursos
naturais e da falta de ações humanas sustentáveis. No Brasil, esses
1 Possui Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Gestão da Informação-PPGInfo,
da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC- 2023). Especialização em Gestão
de Documentos e Informações, pela AVM Faculdade Integrada (2015); graduação
em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM - 2012). E-mail:
rafaelalmeida600@hotmail.com
2 Fernanda de Sales possui graduação em Biblioteconomia pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (1998), mestrado em Educação pela Universidade Federal
de Santa Catarina (2004) e doutorado em Educação pela Universidade do Estado de
Santa Catarina (2016). É professora da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC), lotada no Departamento de Biblioteconomia e Gestão da Informação - DBI.
Membro do GPINFO - Grupo de Pesquisa em Informação (Cultura Impressa e Digital).
Linha de Pesquisa Informação, Sociedade e Memória. Membro do Grupo de Pesquisa
Educação, Comunicação e Tecnologia. Especial Interesse em pesquisas sobre música
como fontes de informação, e sobre bibliotecas escolares. Coordenadora do Instituto
de Documentação e Investigação em Ciências Humanas (IDCH/FAED/UDESC) desde
fevereiro de 2017.
129
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
130
fenômenos parecem acontecer com uma frequência cada vez maior.
Nos últimos sete anos, assistimos a dois rompimentos de barragens
de rejeitos advindos de atividades de mineração: barragem Fundão,
no município de Mariana, estado de Minas Gerais (2015) e o da
Mina do Feijão (2019), no município de Brumadinho, também
em Minas Gerais. Ainda, um incêndio de grandes proporções da
Chapada dos Veadeiros (GO, 2017) e a um vazamento de óleo de
proporções absurdas, que atingiu o litoral de estados do Sudeste e
do Nordeste brasileiros (2019).
As Flonas caracterizam-se como espaços orestais de conservação
de espécies nativas, que visam a preservação dos recursos naturais.
“A partir da década de 90, as orestas nacionais passam a ser
utilizadas para pesquisa, conservação e uso da biodiversidade, e
manutenção de populações locais”. (BRASIL, 2004).
Segundo o decreto federal no. 1.298 de 27 de outubro de 1994:
Florestas Nacionais Flonas são áreas de domínio público, provida de
cobertura vegetal nativa ou plantada, estabelecidas com os seguintes
objetivos:
I - promover o manejo dos recursos naturais, com ênfase na produção
de madeira e outros produtos vegetais;
II - garantir a proteção dos recursos hídricos, das belezas cênicas, e dos
sítios históricos e arqueológicos;
III - fomentar o desenvolvimento da pesquisa cientíca básica e
aplicada, da educação ambiental e das atividades de recreação, lazer e
turismo (Brasil, 1994).
Com base nesta denição, pode-se observar que uma Flona,
vai além de um ecossistema. É uma organização, com regimento
estabelecido pelo IBAMA. O ano 2000 foi um marco no que diz
respeito a preservação ambiental. Neste ano foi promulgada a Lei
nº 9.985, que criou e instituiu o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza (SNUC) que tem como missão
potencializar o papel das unidades de conservação de maneira
planejada e integrada. Na prática, as Flonas ganham uma
estrutura organizacional com apoio do Estado, da sociedade e de
pesquisadores.
Essa estrutura organizacional e o espaço aberto para pesquisas
cientícas estabelece uma nova realidade nas Flonas: a produção de
documentos, relatórios, teses e outros tipos de registros advindos dos
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
131
resultados das investigações cientícas e da rotina administrativa.
Além disso, cresce também o interesse por materiais bibliográcos
que deem apoio a todas estas atividades, o que leva a constituição
de acervos especializados que se tornam importantes fontes de
informação que fomentam trabalhos como o presente.
Neste contexto, considera-se que a organização do acervo da
Floresta Nacional de Chapecó/SC (FLONA), além de beneciar a
toda a comunidade envolvida com ela, pode também servir como
modelo, ou método, para a organização de outros acervos com
as mesmas características, bem como servir para o resguardo
da memória dessa documentação encontrada sem tratamento
adequado.
O laboratório Fronteiras: Laboratório de História Ambiental da
Universidade Federal da Fronteiras Sul, vem realizando pesquisas
cientícas para entender a importância da Flona Chapecó/SC para
a conservação e preservação do meio natural da região. Foi a partir
deste laboratório que esta pesquisa ganhou os primeiros contornos.
2. A HISTÓRIA AMBIENTAL NO BRASIL: UM
BREVE HISTÓRICO
A história ambiental é um tema relevante, e dialoga, com
frequência, com a vivência do ser humano e suas relações no
cotidiano. De acordo com Duarte (2005, p. 32), “os primeiros
a cunharem o termo “história ambiental” foram historiadores
norte-americanos, reunidos em 1977, em torno da fundação da
Sociedade Americana de História Ambiental (American Society
for Environmental History) e da revista Environmental History,
especializada no tema, além dos congressos anuais organizados...”.
Esse movimento, envolvendo a história do meio ambiente, tornou-
se bastante relevante para dialogar com as situações atuais referente
as causas ambientais.
Ainda em busca de compreender a história ambiental, recorremos
a Martinez (2006, p. 20) que arma que:
A história ambiental é uma abordagem das questões ambientais no
tempo e que encontra no meio ambiente o seu objeto de investigação.
Contudo, o meio ambiente não constitui um objeto exclusivo da
História e demais ciências sociais, como Geograa ou Antropologia,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
132
mas comporta múltiplas abordagens disciplinares, um domínio do
conhecimento comum também às ciências físicas e biológicas.
Nesta armação, vê-se a amplitude relacionada ao tema e suas
variantes no meio cientíco, por meio do diálogo e as reexões
entre diversos campos do conhecimento.
Para além da natureza, no Brasil, por conta do contexto de
formação social e econômica e as características físicas de seu território,
a natureza foi objeto e presença incontornável na historiograa. Uma
peculiar visão social da natureza, inerente aos espaços e tempos que
marcaram a história do país, ainda que a referência europeia tenha
perdurado como contraponto principal, foi elaborada e sedimentada
ao longo desses quinhentos e tantos anos de registros da terra e da
gente dessa porção do globo (Martinez, 2006, p. 29-30 apud Belluzzo e
Moraes, 2000).
Portanto, nesta relação de ‘descoberta’ e colonização do Brasil
pelos portugueses, é importante frisar que:
O momento do descobrimento, apresentou um caráter explorador
e predatório da natureza. Os colonizadores estabeleceram com a
nova terra uma relação meramente utilitária. E, “como já dizia o mais
antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não como
senhores, mas como usufrutuários, ‘só para desfrutarem e a deixarem
destruída” (Marcondes, 2005, p. 27).
Observa-se como a natureza, que antes era usufruída somente
para sobrevivência dos índios, começou a ser explorada de forma
desordenada pelos colonizadores, e assim, dando início a uma
história de destruição que vem se alastrando até hoje com maiores
proporções.
Todo esse cenário aponta a importância da conservação ambiental
para a própria existencia da raça humana. É urgente que se tenha
um olhar sério e comprometido direcionado ao meio ambiente.
De fato, os problemas ambientais, não são vistos somente ao dias
atuais, ao longo da história estas condições são efetivadas muito pelas
atividades do ser humano, que age em prol do desenvolvimento e
do progresso, sem preocupações em avaliar se essas ações destroem
a natureza. Ou seja, os problemas ambientais (geral e biológico), são
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
133
decorrentes de um desequilíbrio entre a espécie e suas possibilidades
de adaptação ao meio ambiente.
Acredita-se que, além da criação de políticas de conservação e
preservação ambientais por parte do governo, das leis e campanhas
ambientais, é preciso também a compreensão da sociedade acerca
desses espaços e mecanismos que visam ao cuidado e à gestão do
meio ambiente. Até porque essas Unidades de conservação, podem
qualicar a economia baseada na sustentabilidade, podem ser
utilizadas para lazer, educação ambiental, e, também como fonte de
estudos e pesquisas para área ambiental.
2.1 A História da Floresta Nacional de Chapecó/
SC
A Floresta Nacional (Flona), possui uma área repleta com mata
nativa, e seu meio ambiente é protegido pelo Estado em que a
mesma se encontra situada. A intenção governamental é manter
a sua preservação, servindo-se do seu ambiente para pesquisas,
explorando sua sustentabilidade e resguardando suas orestas
nativas.
O conceito das Florestas Nacionais nasceu com o Código
Florestal de 1934, que institui quatro tipos de orestas especialmente
protegidas em: protetoras, remanescentes, modelo e de rendimento.
Mais tarde, o Código Florestal de 1965 (Lei no 4771/65) sancionou
no “Art. 1° As orestas existentes no território nacional e as demais
formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que
revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do
País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que
a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem (BRASIL,
1965, não paginado)”.
A Floresta Nacional, possui uma grande importância com o
processo de sustentabilidade do país, assim preservando:
[...] uma área com cobertura orestal de espécies predominantemente
nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos
recursos orestais e a pesquisa cientíca, com ênfase em métodos para
exploração sustentável de orestas nativas (Brasil, 2000).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
134
Em sua origem, a Floresta Nacional de Chapecó era conhecida
como Parque Florestal João Goulart. Somente em 1968, a partir
da portaria 560/1968 do Instituto Brasileiro de desenvolvimento
Florestal, ele passa à categoria de Floresta, passando a chamar-se
Floresta Nacional de Chapecó/SC, que está localizada no município
de Guatambu, antigo distrito de Chapecó.
Historicamente, a origem da Flona Chapecó/SC é contada a
partir:
... dos anos 1900 até meados da década de 1960, [período em que]
esteve ligada ao ciclo econômico da madeira na região. Em 1965, a
área da atual Flona de Chapecó foi instituída em Parque Florestal
pelo então Instituto Nacional do Pinho (INP), “destinada ao plantio
de Araucaria angustifolia com o objetivo de estudar seu crescimento e
comportamento, sob diferentes condições silviculturais, mas, também
à implantação de espécies exóticas como o Pinus elliottii e o Pinus
taeda” (ICMBio, 2013, p.10 apud Gre et al, 2019, p. 4).
A Flona Chapecó/SC atualmente está dividida em três glebas,
sendo que a 1 e a 3 estão localizadas no município de Guatambu, e a
gleba 2, no distrito de Marechal Bormann, município de Chapecó/
SC. No total, a área da Floresta Nacional de Chapecó corresponde
a 1.590,60 hectares. Do ponto de vista organizacional, mesmo antes
da implementação do Parque Florestal João Goulart, Chapecó já
contava com uma agência da Flona Chapecó/SC que era utilizada
somente para cultivo e com presença de áreas de araucária. Mais
tarde tornou-se uma grande área de estudo e plantação de espécies
nativas e exóticas de várias plantas.
3. IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO E
CONSERVAÇÃO DOCUMENTAL PARA A
MEMÓRIA DAS ORGANIZAÇÕES
Com o domínio e o desenvolvimento da escrita, a humanidade
deu um grande passo no sentido da preservação de importantes
elementos, como os registros da evolução cultural, cientíca e social.
Esta ferramenta foi utilizada para os mais diversos ns da vida em
sociedade, inclusive para as manifestações culturais e literárias de
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
135
um povo, às suas crendices religiosas, entre outras. Dessa forma a
escrita passou a integrar vida humana.
Neste trabalho abordamos as atividades realizadas com a
documentação encontrada na Flona Chapecó/SC, de maneira que
todo esse trabalho desenvolvido nessa instituição, possa contribuir
para a disseminação da história do meio ambiente local e enfatizar
a relevância da preservação documental para a história e memória
da Floresta.
A memória cientíca é um meio importante para a preservação
e conservação de arquivos e documentos históricos, visto que, isso
concretiza o enredo histórico da nossa sociedade. Necessita-se que,
através da preservação desses materiais, as instituições resguardem
sua história e mantenham viva sua memória, assim, mantendo um
ambiente organizado e acessível para sua disseminação e resguardo.
Nesse sentido, vimos que o esforço de termos uma estrutura
organizacional física e digital para torna-se público o acervo
encontrado na Flona, venha surtir efeito, pois o material que
antigamente foi encontrado sem sua organização, possuía desde
sempre, um interesse em ser fonte de pesquisa para a comunidade
acadêmica que utiliza dessa temática para seus estudos e pesquisas.
Além de ser uma fonte de pesquisa, também constrói uma história
relevante da história ambiental local.
Com a necessidade previa do resguardo da memória e história
do material encontrado na Flona Chapecó/SC, Moreno, Lopes
e Di Chiara (2011, p. 3) apontam que “O resgate da memória de
uma organização é sempre um desao em razão da complexidade
do tema e da diculdade em escolher uma metodologia capaz de
recolher os fatos de uma trajetória de forma completa, sem lacunas
ou ênfases intencionais. ”
Levando em consideração a relevância das informações contidas
sobre a memória das organizações, sendo ela pública ou privada,
é necessário a busca de variados suportes para a disseminação
e guarda desse material. Com isso, observou-se a necessidade da
preservação e conservação dos documentos encontrados na Flona,
pois, uma vez destruída ou má alocada, a recuperação desses
materiais torna-se inviável, e assim, inibindo a construção de uma
memória da Flona Chapecó/SC. Diante dessas abordagens, coloca-
se que:
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
136
É obrigação das instituições, principalmente das universidades,
preservar e organizar os documentos produzidos no decorrer da
sua trajetória, disponibilizando-os para consulta dos seus gestores,
de modo a auxiliá-los na tomada de decisão, bem como para a
consulta do público interno e externo, viabilizando a realização de
pesquisas cientícas. A preservação do patrimônio documental,
por meio de técnicas adequadas, facilita o acesso universal a esse
patrimônio documental e, ainda, propicia condições para uma maior
conscientização do ser humano sobre a importância desse mesmo
patrimônio para as atuais e futuras gerações (Moreno; Lopes; Di Chiara,
2011, p. 9).
Esse trabalho dialoga bastante com a importância do patrimônio
documental, e com isso, a necessidade de realizar um projeto
voltado para a preservação e conservação desse material encontrado
sem tratamento nessa organização. Com base nisso, o trabalho
compreendeu também pela falta de reconhecimento e importância
dos materiais ao que se liga a visibilidade e acontecimentos do
passado.
4. ORGANIZAÇÃO DO ACERVO DA
FLORESTA NACIONAL DE CHAPECÓ/SC: UM
BREVE RELATO
4.1 Metodologia
O objetivo deste trabalho visou a organização do material físico
existente e a disponibilização do acervo bibliográco e documental
do Laboratório de História Ambiental da UFFS em um ambiente
digital, para a preservação e conservação da história e memória da
Floresta Nacional de Chapecó/SC. Por esta característica, a natureza
do estudo foi aplicada, ao passo que buscou práticas e soluções
para melhor preservação do material referido acima, para o acesso
oferecido à comunidade acadêmica e sociedade em geral.
A partir disso, o estudo, que propôs-se à construção e
organização do acervo da Flona Chapecó/SC, sob o ponto de vista
dos objetivos, caracterizou-se como pesquisa explicativa. De acordo
com Prodanov (2013, p. 54):
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
137
A pesquisa explicativa apresenta como objetivo primordial a
necessidade de aprofundamento da realidade, por meio da
manipulação e do controle de variáveis, com o escopo de identicar
qual a variável independente ou aquela que determina a causa da
variável dependente do fenômeno em estudo para, em seguida,
estudá-lo em profundidade.
Para a elaboração deste trabalho o método de estudo de caso
foi importante para denir e organizar a unidade de informação
da Flona Chapecó/SC. Essa decisão foi tomada de acordo com o
processo proposto para a construção do acervo e para a análise
de implantação de um sistema digital para informatização desta
biblioteca.
O procedimento metodológico utilizado foi o estudo de caso,
considerando a investigação de “[...] um fenômeno contemporâneo
dentro de seu contexto da vida real”. (YIN, 2005, p. 32). Ainda que
existam limitações, segundo Yin (2005), o estudo de caso permite
conhecer com mais detalhes as distinções de um fenômeno.
Este procedimento metodológico favoreceu a compreensão
do contexto, origem e dinâmica de sua ocorrência, o que requer
um estudo minucioso que favoreça o seu amplo e detalhado
conhecimento (Gil, 2007).
Com o objetivo principal de responder à questão central do
trabalho, foram exploradas diversas formas de abordagem para
que esta pesquisa tivesse um método que abrangesse seu objeto.
A partir disso, entendeu-se que o estudo de caso, com todos seus
procedimentos e técnicas, enquadrava-se melhor para o tema do
trabalho. Conforme Yin (2015, p. 20) quando descreve que:
Embora o estudo de caso seja uma forma diferenciada de investigação
empírica, muitos pesquisadores desprezam a estratégia. Em outras
palavras, como empreendimento de pesquisa, os estudos de caso têm
sido considerados como uma forma menos desejável de investigação
do que os experimentos ou os levantamentos.
Nos baseamos nas premissas do estudo de caso, por caracterizar-
se pela coleta e registro de informações de um determinado objeto.
Utilizando métodos observacionais ligados à pesquisa qualitativa e
participante, utilizando-se em alta escala a observação.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
138
Com base nesta característica, observou-se o laboratório e seu
acervo bibliográco e documental, e fez-se um exame do que que
foi recolhido a parir do observado, para que fosse possível decidir se
a criação do acervo em ambiente digital seria a melhor solução para
o resguardo dos materiais bibliográcos e documentais. (Sampieri;
Collado; Lucio, 2013).
Utilizou-se como instrumento de pesquisa a observação
participante, permitindo o registro de fatos importantes ocorridos
durante a presença do pesquisador no campo. O estudo de caso,
considerado mais vantajoso por abranger um número maior de
documentos bibliográcos em curto espaço de tempo, facilitando
no tratamento dos dados obtidos. E, para complementar, foi usado a
técnica de pesquisa bibliográca para melhor desenvolvimento das
reexões.
4.1 Organização do acervo: breve relato
No primeiro momento foram analisados quais materiais
comporiam o corpus do trabalho. A partir das reuniões e conversas
com orientadora e Coordenadora do Projeto, decidiu-se que os
materiais iniciais seriam os bibliográcos e documentais, pois, os
mesmos demandavam maior tratamento e análise minuciosa sobre
seu conteúdo e relevância para a Flona Chapecó/SC.
No segundo momento, depois de decididos os materiais a serem
analisados (Corpus) e o trabalho que seria feito, todos os materiais
foram transportados da Flona Chapecó/SC, para a sala de trabalho
localizado no Campus Chapecó/SC da UFFS, no Bloco da Biblioteca.
Na terceira fase, com todas as atividades denidas iniciou-
se a fase de recebimento e organização dos materiais no local de
trabalho, higienização e levantamento dos materiais bibliográcos
e documentais.
A partir das etapas descritas acima, o estudo e análise do acervo
começou pelo processo de levantamento dos materiais bibliográcos.
Foi criada uma planilha para o primeiro passo de vericação do que
tínhamos de materiais bibliográcos. A partir do preenchimento
da planilha, foram identicados 61 títulos, entre eles anais, artigo,
folhetos, livros, periódicos e relatórios técnicos.
Com a nalização do acervo bibliográco, seguimos para o
acervo documental. No primeiro momento, depois do início
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
139
da higienização, deu-se o processo de análise de documentos
arquivísticos, o que estabelece os prazos de guarda e a destinação
de acordo com os valores intrínsecos. Porém, como os documentos
não estavam sob responsabilidade da Universidade, mas possuem
valor histórico para memória da Flona Chapecó/SC, decidimos que
todos seriam guardados de forma permanente.
Nesta fase, foi realizada uma tabulação das pastas dos documentos
arquivísticos que estavam sendo higienizadas e digitalizadas.
Criou-se uma planilha, com os seguintes itens: o número da pasta,
ano da documentação, assunto da pasta e número de documentos
digitalizados
Na segunda fase, realizamos a escolha da Tabela de temporalidade
de documentos, e que órgão possuía maior compatibilidade com
os assuntos relacionados aos materiais Flona Chapecó/SC. Como
trata-se de documentos de um órgão público da área ambiental,
decidiu-se por escolher duas tabelas de temporalidade da mesma
área. A primeira tabela escolhida, foi o Código de Classicação e
Tabela de temporalidade e destinação de documentos de arquivos
relativos às atividades-m do Ministério do Meio Ambiente (2022),
relacionada somente ao meio ambiente. A segunda, foi o código de
classicação e tabela de temporalidade e destinação de documentos
relativos às atividades-meio do Poder Executivo Federal (2020),
relacionada aos processos administrativos da Flona Chapecó/SC.
Na terceira fase, os documentos que foram higienizados e
digitalizados, no período entre março de 2022 até maio de 2023. Em
seguida, começaram a ser classicados de acordo com as tabelas de
temporalidade selecionadas. A partir da classicação de documentos,
foi realizada a digitalização de 84 pastas, com quantitativo entre 100
e 500 laudas. As datas de produção de documentos variam entre
1980 até 2013. Sua classicação maior é entre relatórios diversos,
autuações, setores nanceiros, setores administrativos de recursos
humanos, controle e uso de automóveis, criação e autuações
ambientais, atas de reunião e conselhos institucionais e recursos
ambientais.
Partindo do pressuposto dos benefícios do uso das tecnologias da
informação, começamos a discutir a utilização de um soware para
automação do acervo, com uma aquisição sem custo, o que facilitou
a guarda de informações e organização e, consequentemente, a
preservação de toda documentação que está em formato impresso.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
140
O mais viável foi a escolha de um soware livre, sem custo para a
UFFS e para Flona Chapecó/SC.
Entendeu-se que os sistemas elencados possuem vários
benefícios em comum, quanto sua qualidade, agilidade, acesso
e informatização para acervos no geral. A partir desta análise, foi
escolhido o Biblivre, por este permitir a geração de relatórios, que
são importantes instrumentos para os gerenciamentos de acervos e
serviços bibliotecários.
As fases acima mostraram que as atividades de tratamento
técnico do acervo, bem como da disponibilização de seus dados,
estavam concernentes com os objetivos deste estudo, que envolvem
o diagnóstico da situação dos materiais da Floresta Nacional de
Chapecó/SC; a identicação dos materiais, quanto ao seu estado
de conservação; o planejamento para o tratamento do acervo, bem
como sua disseminação; e a disponibilização digital de conteúdo.
A primeira parte para execução do soware do Biblivre, foi
realizar a instalação do programa. Como o Laboratório Fronteiras,
não possuía nenhum computador disponível, foi solicitado um
empréstimo de um notebook para a biblioteca, e assim, instalado
o programa de acordo com o manual disponibilizado pelo Biblivre.
A partir do momento em que acessamos o sistema como usuário
administrador, conseguimos ter acesso a todos as funcionalidades
do Biblivre. Então, passamos a explorar as possibilidades para a
catalogação.
Na catalogação, o sistema permite o cadastro dos seguintes
materiais: livros, panetos, manuscritos, teses, periódicos, artigos,
arquivo de computador, mapa, foto, lme, partitura, música, som não
musical, objeto 3D. Como o trabalho contempla somente materiais
bibliográcos e arquivísticos, foram cadastrados os documentos nos
seguintes itens: livros, periódicos, artigos e panetos. Para o acervo
arquivístico, foi escolhido o item paneto, pois, era o conceito
aproximado que contemplava essa categoria.
Apesar de o soware ter a função disponibilizada para acesso on-
line de forma automática, optou-se pelo processo manual, pois até a
execução desta pesquisa, não houve uma resolução sobre como será
administrado e disponibilizado o sistema nas instituições. De toda
forma, tão logo os responsáveis pelos trâmites denam questões
burocráticas, a conversão para o acesso on-line pode ser efetivada.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
141
Quanto à instalação e acesso ao manual, observou-se que a
funcionalidade é básica e prática, que todas as demandas foram
contempladas por esse soware. Outro ponto importante é o suporte
que o Biblivre oferece através de seus fóruns, dando assim todo
suporte técnico das instituições que utilizam o serviço oferecido
por este sistema livre.
No entanto, cumpre-nos frisar que, além de acesso ao suporte
técnico do Biblivre, precisa-se também de suporte técnico das
instituições que o utilizam, para melhor andamento das atividades,
visto que, a utilização de computadores demanda atualizações
e manutenções que vão além das competências de um gestor da
unidade de informação, no caso do ambiente onde se desenvolveu
este estudo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma unidade de informação, seja ela pública, particular,
universitária ou especializada, possui grande relevância na
comunidade em que está inserida, pois, ao exercer seu papel
social, promove a formação dos indivíduos. Além desse papel
social, esses lugares de conhecimento, disseminam a informação e
disponibilizam a comunidade o conhecimento e potencializam o
processo de fomento e acesso à informação e à pesquisa cientíca.
Para além da importância dessas unidades de informação, é
inquestionável a importância da preservação e conservação deste
ambiente para a sociedade. Com isso, este trabalho foi pensado,
com a nalidade de organizar o acervo da Flona Chapecó/SC, para
ampliar a disseminação do conhecimento por meio dos conteúdos
registrados nos materiais bibliográcos e arquivísticos.
Neste ponto, uma vez mais recorremos à literatura especializada
para enfatizar que “a necessidade de ser conservar documentos de
arquivos e outros tipos de documentos deve ser um aspecto que deve
ser levado em consideração (...) Os mesmos são prova da existência
e das atividades realizadas por estas instituições.” (Pembele, 2020, p.
22). A partir disso, é recomendável que as Florestas Nacionais abram
diálogos acerca dessa necessidade e que este projeto, desenvolvido
na Flona Chapecó/SC, possa ser usado de modelo para isso.
Acredita-se que a realização deste trabalho possa contribuir para
as outras Flonas, como modelo para de tratamento adequado de
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
142
acervos. Entende-se também, que são necessárias mais discussões
voltadas para à temática, de forma que proporcione a construção de
relações entre as unidades de conservação, com a comunidade onde
está inserida, estreitando laços entre a documentação, a história e a
memória destes lugares.
REFERÊNCIAS
BIBLIVRE. Programa de biblioteca livre. Disponível em: www.biblilivre.
org.br. Acesso em: 03 jul. 2022.
BORINELLI, Benilson. Problemas ambientais e os limites da política
ambiental. Serv. Soc. Rev., Londrina. V13, n. 2, p.-63-84, jan./jun.
2011. Disponível em: https://scholar.google.com.br/citations?view_
op=view_citation&hl=pt-BR&user=3BlWVCEAAAAJ&citation_for_
view=3BlWVCEAAAAJ:YsMSGLbcyi4C. Acesso em: 03 jul. 2023.
BRASIL. Decreto Nº 1.298, de 27 de outubro de 1994. [recurso
eletrônico]. Brasília: Subchea para assuntos jurídicos, 1994. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d1298.
htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%201.298%2C%20DE%20
27,vista%20o%20disposto%20nos%20arts. Acesso em: 03 jul. 2023.
BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. § 1°,
incisos I, II, III, e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
Acesso em: 03 jul. 2023
DUARTE, Regina Horta. História & natureza. Belo Horizonte: Autêntica,
2005. 111 p. (História & Reexões.)
GIL, A. C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2007.
GREFF, Ademar et al. Floresta Nacional de Chapecó (SC): aproximações
entre o trabalho de campo e o ensino de biogeograa. In: Simpósio
Brasileiro de Geograa Aplicada, 18, 2019, Fortaleza. Disponível em:
https://imprensa.ufc.br/wp-content/uploads/2021/12/07-metodologias-
para-o-ensino-da-geograa-sica-no-ambiente-escolar.pdf. Acesso em:
03 jul. 2023.
MARCONDES, Sandra. Brasil, amor à primeira vista!: viagem ambiental
no Brasil do século XVI ao XXI. São Paulo: Peirópolis, 2005. Disponível
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
143
em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=YmiM3NC
2ZBcC&oi=fnd&pg=PA19&dq=como+surgiu+a+historia+ambiental+n
o+brasil&ots=Cz98dOEneT&sig=G4AQrTTJevq87dT7CpVLpZsKZ3Y#v=-
onepage&q=como%20surgiu%20a%20historia%20ambiental%20no%20
brasil&f=false. Acesso em: 28 jun. 2023.
MARTINEZ, Paulo Henrique. História ambiental no Brasil: pesquisa e
ensino. São Paulo: Cortez, 2006. 119 p. (Questões da nossa época; v. 130).
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Código de classicação e tabela de
temporalidade e destinação de documentos de arquivo relativos às
atividades-m do ministério do meio ambiente. Brasília: Ministério do
Meio Ambiente, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/arquivonacional/
pt-br/servicos/gestao-de-documentos/orientacao-tecnica-1/codigo-de-
classicacao-e-tabela-de-temporalidade-e-destinacao-de-documentos-
de-arquivo. Acesso em: 03 jul. 2023.
MORENO, Nadina A.; LOPES, Maria Aparecida; DI CHIARA, Ivone
Guerreiro. A contribuição da preservação de documentos e a (re)
construção da memória. Biblionline, João Pessoa, v. 7, n. 2, p. 3-11,
2011. Disponível em: https://www.brapci.inf.br/_repositorio/2011/12/
pdf_691a270b4f_0019727.pdf. Acesso em: 29 jun. 2023.
PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Estudos
avançados, v. 24, p. 81-101, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
ea/a/Q4JBvrMMzw6gBvWhsshnKXN/abstract/?lang=pt. Acesso em: 28 jun.
2023.
PEMBELE, Celma da Conceição Santana et al. Reexões teóricas e
conceituais sobre conservação e preservação de documentos de
arquivo. Revista Publicando, 7 (24), 21-38. Disponível em: https://
revistapublicando.org/revista/index.php/crv/article/view/2051. Acesso
em: 03 jul. 2023.
PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia
do trabalho cientíco: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho
acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013.
SAMPIERI, Roberto Hernández; COLLADO, Carlos Fernández; LUCIO, María
del Pilar Baptista. Metodologia de Pesquisa. 5. ed. Porto Alegre: Penso,
2013
YIN. R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre:
Bookman, 2005.
ARQUIVO PESSOAL DE ALBERTO
PASQUALINI - A INTERVENÇÃO
ARQUIVÍSTICA E A BUSCA PELA
MANUTENÇÃO DA NARRATIVA
DE SI PRESENTE NO ACERVO
Augusto César Luiz Britto1
INTRODUÇÃO
Este artigo discorre sobre as atividades de extensão promovidas
pelo “Projeto de Organização e Difusão de Arquivos Pessoais na
região da Quarta Colônia de Imigração Italiana”. Sob a coordenação
do Professor Augusto Britto (Arquivologia/UFSM), o projeto é
parte integrante do “Programa Patrimônio Histórico-Cultural,
Memória, Educação e Preservação”, concebido pela Professora Maria
Medianeira Padoin (História/UFSM) e está em desenvolvimento
desde 2019. Destaca-se que ambas as iniciativas compõem o “Projeto
Geoparque – Região da Quarta Colônia de Imigração Italiana” da
UFSM.
1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM.
Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura pela Universidade da Amazônia/
UNAMA. Especialista em Gestão de Arquivos pela UFSM. Graduado em História pela
Universidade Franciscana/UFN e em Arquivologia pela UFSM. Docente do curso de
Arquivologia da UFSM. Coordena o Programa de Arquivos Pessoais da UFSM. E-mail:
augusto.britto@ufsm.br
144
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
145
O mencionado projeto tem por nalidade a organização e
disseminação de acervos de personalidades de relevância social e
cultural na região da Quarta Colônia de Imigração Italiana, visando
à preservação dos documentos neles contidos. Dessa maneira,
a comunidade local poderá utilizar as informações presentes no
acervo para a construção, consolidação e/ou revisão da memória,
identidade, cultura e história locais. A comunidade cientíca
também gura entre os públicos-alvo do projeto, beneciando-se
do acesso a documentos com considerável potencial como subsídios
para uma variedade de pesquisas de natureza acadêmica.
O acervo pessoal do ex-senador da República, Alberto
Pasqualini, mantido na Prefeitura Municipal de Ivorá/RS, foi o
primeiro conjunto documental escolhido para o desenvolvimento
das atividades. Alberto Pasqualini, reconhecido como o principal
teórico do trabalhismo brasileiro no período de 1945 a 1960,
originário de Ivorá, graduou-se em Direito pela Faculdade Livre
de Direito de Porto Alegre, laureando-se em 1929. Participou da
Revolução de 1930 em Porto Alegre, desempenhando a função
de Major do Batalhão João Pessoa. Exerceu cargos de Vereador
em Porto Alegre (1936-1937), no Departamento Administrativo
do Rio Grande do Sul (1939 a 1943) e na Secretaria do Interior e
Justiça (1943 a 1944). O cargo preponderante que ocupou foi o de
Senador da República (1951 a 1958), destacando-se pela defesa das
reformas de base e do monopólio estatal do petróleo. Concorreu
duas vezes ao cargo de Governador do Estado do Rio Grande do Sul
pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, em 1947 e 1954, sendo
derrotado em ambas as ocasiões. Casou-se com Suzana ompson
Flores Pasqualini em dezembro de 1950, e seu falecimento ocorreu
em 1960, no Rio de Janeiro/RJ.
Alberto Pasqualini acumulou documentos referentes à sua
graduação em 1929, aos cargos políticos e partidários que ocupou,
às eleições em que participou e documentos relacionados à sua
produção doutrinária. Após seu falecimento, Suzana Pasqualini
herdou a custódia do acervo, o qual organizou em 1987 após sua
aposentadoria do Ministério do Trabalho e Previdência Social.
Suzana Pasqualini manifestou preocupação com o destino do
acervo após seu falecimento. Inicialmente, os acervos arquivístico,
biblioteconômico e museológico foram cedidos ao Estado do Rio
Grande do Sul mediante a assinatura, em 2 de abril de 1990, do
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
146
Protocolo de Intenções (RIO GRANDE DO SUL, 1990). Esse
ato formalizou a doação entre Suzana Pasqualini, Pedro Simon
(Governador do Estado) e Carlos Jorge Appel (Secretário Executivo
do Conselho de Desenvolvimento Cultural do Rio Grande do Sul).
Em 1991, Suzana Pasqualini contratou a empresa “Walter A. Cunha
Livraria” para realizar uma análise do acervo de seu esposo, avaliado
em U$ 185 mil dólares.
A doação do acervo para o município de Ivorá foi efetivada
graças às iniciativas do Prefeito da época, Sr. Irineo Mariotti, no
ano de 1991. Ele viajou ao Rio de Janeiro para se reunir com Suzana
Pasqualini, apresentando o projeto elaborado pela Prefeitura
que tinha como objetivo de “resgatar a memória de Alberto
Pasqualini”. Irineo Mariotti persuadiu Suzana Pasqualini a visitar
Ivorá e participar da I Semana Cultural do município. Durante o
evento, Suzana Pasqualini comprometeu-se a doar o acervo para o
município, contando com o apoio do Governador Alceu Collares.
Em uma sessão solene em sua homenagem e ao Governador do
Estado, ela declarou que estar em Ivorá “era como voltar a um lugar
conhecido, onde sinto a presença de Alberto Pasqualini, mas, acima
de tudo, saber que esta terra deu ao Brasil uma de suas guras mais
ilustres, inteligentes e serenas” (1993, p. 316).
Suzana Pasqualini faleceu em 1993, deixando a custódia do
acervo aos cuidados de Moema Martins Ferreira e omaz Osório
ompson Flores. Em 1999, estes autorizaram a transferência do
acervo patrimonial do Rio de Janeiro para Ivorá. A Prefeitura, por
sua vez, formalizou a recepção do acervo por meio da Lei municipal
nº 409/1999 (IVORÁ, 1999).
A seguir, serão apresentadas as ações até então desenvolvidas
pela equipe do Projeto em parceria com a Prefeitura do município.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO ACERVO
As atividades tiveram início em julho de 2019, ou seja, duas
décadas após a chegada do acervo a Ivorá. A primeira ação consistiu
no levantamento de contextualização do acervo. Os documentos e
o acervo biblioteconômico estavam acondicionados em caixas de
papelão (caixas de supermercado), as quais precisaram ser abertas
para determinar o volume correspondente do acervo arquivístico,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
147
avaliar o estado de conservação dos documentos e identicar
os tipos documentais presentes. Durante esse processo, foi
identicado o instrumento de pesquisa intitulado “Sumário Vida e
Obra de Alberto Pasqualini”, elaborado por Suzana Pasqualini. Este
sumário indicava que o acervo já possuía uma organização prévia,
fornecendo informações gerais sobre os documentos existentes no
acervo.
A seleção de documentos em arquivos pessoais, conforme
Artières (1998), resulta da impossibilidade de preservar todos os
documentos recebidos e produzidos ao longo da vida do titular
do acervo. Os documentos selecionados são aqueles considerados
pelo titular como importantes para preservar sua memória para a
posteridade, constituindo assim uma narrativa sobre si mesmo. No
caso do arquivo de Alberto Pasqualini, a seleção foi realizada por
sua esposa, sendo ela a responsável por elaborar a narrativa sobre
Alberto Pasqualini por meio de seu acervo. Esta abordagem não é
atípica, como salientado por Meehan (2018), que, ao discutir a cadeia
de custódia em arquivos pessoais, destaca a inuência das demais
instâncias (custodiadores ulteriores e instituição arquivística) nas
narrativas presentes nos arquivos pessoais. Nesse sentido, Heymann
(1997) ressalta a importância de estudar o contexto de acumulação
documental em arquivos pessoais, não apenas o contexto de
produção, pois os signicados atribuídos aos documentos podem
ser compreendidos de maneira mais precisa.
As ações empreendidas pelo projeto visaram preservar ao máximo
a narrativa existente no acervo elaborada por Suzana Pasqualini.
No entanto, é fundamental reconhecer que não há neutralidade nas
atividades arquivísticas e que a intervenção em si, mesmo que não
altere e/ou elimine a narrativa original, inevitavelmente produzirá
uma nova narrativa.
Os documentos do acervo, conforme o sumário elaborado por
Suzana Pasqualini, foram organizados em 28 séries que reetiam a
trajetória política e intelectual de Alberto Pasqualini, além de três
séries sobre sua vida pessoal, e uma série referente a uma coletânea
sobre Getúlio Vargas e Jânio Quadros.
No entanto, foram identicados documentos no acervo que
não estavam previstos nas 32 séries totais idealizadas por Suzana
Pasqualini, carecendo, portanto, de uma organização mínima entre
eles. Para ns de organização, esses documentos foram agrupados
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
148
de acordo com a semelhança de assuntos presentes entre eles e
pelo acondicionamento em que se encontravam. No total, foram
estabelecidos 07 conjuntos documentais denominados como
“complementares”. A presença desses documentos evidencia que,
durante o processo de elaboração de uma memória em arquivos por
meio da seleção documental, simultaneamente está ocorrendo um
processo de esquecimento. Derrida (1997) conceitua esse fenômeno
como “Mal de Arquivo”, argumentando que este é algo intrínseco
e indissociável dos arquivos, e, por essa razão, a memória e/ou
discurso existente são subjetivos.
HIGIENIZAÇÃO DAS PEÇAS DOCUMENTAIS
O acondicionamento dos documentos, conforme mencionado
anteriormente, contribuiu para comprometer a estrutura física
de diversas séries, prejudicando sua preservação. Os plásticos
nos quais os documentos estavam armazenados não permitiam
a adequada ventilação, resultando na fragilização ou até mesmo
na ruptura das bras presentes no suporte documental. Em razão
do inadequado acondicionamento das pastas A-Z em caixas de
papelão de supermercado, o ar no interior dessas pastas foi inibido,
levando à aderência total entre os plásticos e os documentos que
deveriam proteger. Como resultado, alguns documentos tiveram
suas informações comprometidas devido à migração da tinta para
os plásticos, enquanto praticamente todas as pastas A-Z perderam
estabilidade.
Os documentos de menores dimensões, majoritariamente
telegramas e recortes de jornais, eram grampeados em folhas
suplementares para mantê-los xos nos plásticos. No entanto, a
presença de grampos causou oxidação nos elementos metálicos,
resultando em manchas de ferrugem. O dano causado pelos
grampos foi tão signicativo que contribuiu para rasgos e rupturas
nos cantos dos documentos onde estavam xados.
Uma porção do conjunto documental não protegida pelas pastas
A-Z apresentava manchas que não apenas afetaram a integridade
física dos documentos, mas também a sua aparência estética. A
presença de umidade, colas e tas adesivas nos documentos são
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
149
fatores que, ao serem analisados, podem ser associados a essas
manchas.
Além disso, as caixas de papelão, por não receberem higienização
periódica, acumularam poeira em suas superfícies, e, em algumas
delas, a poeira penetrou no interior, afetando os documentos. A
poeira, em contato com a umidade, facilita o desenvolvimento
de microrganismos e a contaminação do ambiente do acervo,
propiciando o surgimento de acidicações e oxidações. Observou-
se também a presença de auréolas em alguns documentos,
presumivelmente devido ao armazenamento em ambientes úmidos.
Documentos encadernados ou com múltiplas páginas
apresentaram “foxing”, ou seja, manchas de cor castanha na
superfície do suporte documental. As causas do “foxing” são
atribuídas à oxidação de impurezas metálicas presentes no papel
e/ou documentos que foram emoldurados com materiais de baixa
qualidade arquivística.
A incidência de fungos nos documentos foi rara, e insetos não
foram encontrados. Algumas traças foram identicadas no acervo
bibliográco, e em setembro de 2019, o piso do ambiente onde o
acervo estava custodiado apresentou indícios de uma infestação de
cupins, prontamente solucionada pela equipe da Prefeitura de Ivorá.
A higienização dos documentos visou minimizar os efeitos
da deterioração causada pelo inadequado acondicionamento
descrito anteriormente. Inicialmente, procedeu-se à retirada dos
documentos dos plásticos, seguida pela remoção dos grampos e
outras estruturas metálicas que prejudicavam a integridade física
dos suportes documentais, além da remoção de sujidades presentes
na superfície de cada documento utilizando trincha.
Ações mais complexas de higienização ou mesmo de restauração
de algumas peças documentais não foram viáveis devido à falta
de equipamento, material e, principalmente, ao tempo limitado
disponível para a execução do projeto.
ARRANJO E ORDENAÇÃO DAS SÉRIES
DOCUMENTAIS
O quadro de arranjo não foi elaborado, conforme anteriormente
mencionado, uma vez que o sumário produzido por Suzana
Pasqualini já delineava a organização pretendida para o acervo.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
150
Optou-se por manter a ordem estabelecida por ela, considerando
que a disposição sequencial das séries e dos documentos constitui
um discurso sobre seu esposo, que ela desejava preservar para
a posteridade. Essa decisão foi respaldada pelos argumentos de
Brothman (2018), que sustenta que a combinação da seleção e
disposição dos documentos reproduz narrativas que conferem
sentido ao arquivo daqueles que realizaram tais ações.
Assim, ao concluir a higienização dos documentos de uma
série, a presença destes era vericada com base nas informações
contidas no sumário. Simultaneamente, eram ordenados de acordo
com a numeração apresentada no instrumento de pesquisa ou
dispostos em ordem cronológica quando não havia uma sequência
estabelecida para a série correspondente.
As fotograas não foram descritas no sumário e tampouco
estavam organizadas segundo algum método de arranjo ou
ordenação. A discente Cleonice Schio realizou a disciplina de
“Estágio supervisionado em Arquivologia”, focando nas fotograas
do acervo como objeto de intervenção. Ao vericar o estado dessa
espécie documental, a equipe do Projeto observou que a discente
não as organizou, limitando-se a digitalizar as fotograas e tentar
descrevê-las diretamente, o que contraria as práticas estabelecidas
na literatura da área. Optou-se, então, por organizar e ordenar
as fotograas de acordo com as séries estabelecidas no sumário,
visando facilitar a recuperação da informação. Consequentemente,
a numeração aplicada pela discente na descrição foi perdida.
ACONDICIONAMENTO
Os documentos de cada série, após passarem pelo processo
de higienização, arranjo e ordenação, foram acondicionados
em invólucros de cartolina, visando sua proteção para ns de
armazenamento. Em casos em que o volume de uma série era
signicativo, os documentos eram subdivididos em outros
invólucros, garantindo assim um manuseio adequado. Cada
invólucro recebeu uma numeração especíca, respeitando o sumário
elaborado por Suzana Pasqualini. Adicionalmente, as pastas foram
equipadas com um espelho que identicava a série e subsérie à qual
o conjunto pertencia, a ordem interna da pasta dentro da série e/ou
subsérie, e a data limite.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
151
Com o intuito de evitar que os documentos se soltassem durante
futuros manuseios humanos, as pastas foram amarradas com
barbantes de algodão cru, sendo cuidadosos para não prejudicar
os itens documentais que extrapolavam as dimensões das pastas.
Essas pastas asseguram que os documentos possam ser retirados
das caixas de arquivo sem sofrer danos causados pelo atrito entre os
documentos, mantendo a ordem estabelecida na série e/ou subsérie,
facilitando assim a recuperação da informação.
Da mesma forma, as cartolinas foram utilizadas para acondicionar
as fotograas do acervo. Conforme mencionado anteriormente, as
fotograas foram organizadas conforme a ordem estabelecida pelo
sumário, resultando em séries que foram acondicionadas em forma
de cruz. Esse método garante a proteção das fotograas quando
as extremidades das cruzes do acondicionador estão fechadas. As
caixas de arquivo também receberam um espelho identicando as
séries contidas na mesma e sua numeração correspondente.
DIGITALIZAÇÃO DO ACERVO
O término do acondicionamento de cada série deixou os
documentos prontos para o processo de digitalização do acervo.
Essa etapa foi conduzida por uma estagiária do ensino médio da
Prefeitura. A digitalização teve início somente em agosto de 2020,
pois a Prefeitura teve que adquirir um scanner exclusivo para a
equipe do Projeto.
No primeiro mês, a estagiária Karine Jovanovith Fellipen iniciou
a ação, mas não pôde dar continuidade, sendo substituída pela
estagiária Jamile Buligon Peripolli. Os documentos estão sendo
digitalizados conforme as “Recomendações para Digitalização de
Documentos Arquivísticos Permanentes” publicadas pelo Conselho
Nacional de Arquivos – CONARQ. A numeração segue a ordem
documental dentro de cada série e/ou subsérie, além das divisões
das pastas internas de acondicionamento.
Após a numeração dos documentos digitalizados, eles foram
transferidos para o Google Drive nos pers “acervoivora” e
“acervoivora2” e organizados em pastas de acordo com o arranjo
estabelecido no sumário.
A migração para o Google Drive teve como objetivo inicial
disponibilizar o acervo digital para que fosse descrito pelos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
152
estudantes do Curso de Arquivologia da UFSM e para possibilitar
o acesso futuro de pesquisadores interessados nesses documentos.
DESCRIÇÃO DOCUMENTAL
Entre os objetivos do Projeto, destaca-se a promoção do acesso
aos documentos do arquivo pessoal de Alberto Pasqualini por
meio da elaboração de um instrumento de pesquisa. Inicialmente,
planejou-se que esta etapa fosse realizada desde o início do Projeto.
No entanto, devido à aquisição do scanner apenas na metade de
2020, tanto as digitalizações quanto a descrição tiveram que ser
adiadas.
A elaboração da descrição cou a cargo dos acadêmicos do
Curso de Arquivologia da UFSM. No período de setembro de 2020 a
dezembro de 2021, a discente Ana Beatriz Brandão foi contemplada
com uma bolsa do Fundo de Incentivo de Extensão – FIEX para
executar essa atividade. Os alunos das disciplinas “Prática em
Arranjo e Descrição” e “Estágio Supervisionado em Arquivologia”
tiveram a oportunidade de realizar as descrições dos documentos
do Projeto como uma das atividades práticas.
Essa atividade demandou um considerável tempo, pois o nível de
descrição escolhido foi o de item documental, ou seja, os documentos
foram descritos individualmente, produzindo, consequentemente,
um catálogo. As informações básicas dos documentos foram
inseridas em uma planilha Excel, e ao término de cada série,
realizou-se a descrição dos níveis série e subsérie conforme a Norma
Brasileira de Descrição Arquivística – NOBRADE. A previsão é que
o catálogo seja publicado nos primeiros meses de 2024.
DIFUSÃO DOCUMENTAL
O Projeto está programado para ser concluído até agosto de 2024,
podendo ser renovado por mais cinco anos. A etapa de difusão
documental está planejada para ser desenvolvida nos anos de 2024 e
2025. Nesse período, será necessário realizar um levantamento para
identicar as demandas da sociedade de Ivorá e da comunidade
acadêmica em relação ao acervo.
As ações de difusão previstas incluem a publicação do catálogo
e dos representantes digitais. Além disso, espera-se que a Prefeitura
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
153
Municipal de Ivorá consiga implementar o Centro de Turismo,
projetado para ser construído na entrada do município, com um
dos módulos destinados a custodiar os acervos arquivístico e
biblioteconômico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os diversos custodiadores do arquivo pessoal de Alberto
Pasqualini, ao longo da cadeia de custódia do acervo, empenharam-
se em estabelecer uma narrativa sobre o titular do acervo, destacando
especialmente sua atuação política e produção doutrinária. Essa
narrativa é resultante do processo de seleção e disposição das peças
documentais que compõem o acervo.
Este artigo buscou demonstrar as ações de um projeto de
extensão que tinha como objetivo organizar e difundir arquivos
pessoais, procurando interferir o mínimo possível na narrativa já
existente. A produção de um novo instrumento de pesquisa, assim
como a substituição dos acondicionadores, são ações que também
geram narrativas. A execução dessas etapas do projeto, assim
como as demais, visou, pelo menos, não interferir nas narrativas
previamente estabelecidas, mantendo o arranjo, ordenação e lógica
do sumário elaborado por Suzana Pasqualini. A própria necessidade
de contextualizar o processo de acumulação proporciona uma
compreensão mais profunda de como foi concebida e elaborada a
narrativa dela sobre seu esposo por meio do arquivo pessoal dele.
Assim, o relato das ações empreendidas pelo projeto serve como
modelo de aplicação para aqueles que lidam com esse tipo de acervo,
ao mesmo tempo em que estimula debates para aprofundar o tema
no campo da arquivologia.
REFERÊNCIAS
ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Rio de Janeiro.
V.11, n.21, 1998.
BELLINASO, S. Ivorá, 100 anos de história (1883-1983): berço de Alberto
Pasqualini. Santa Maria: Palotti, 1993.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
154
BROTMAN, B. Ordens de valor: questionando os termos teóricos da prática
arquivística HEYMANN, L; NEDEL, L. (organizadores). Pensar os arquivos.
Rio de Janeiro: FGV, 2018.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. NOBRADE: Norma Brasileira de
Descrição Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Recomendações para Digitalização
de Documentos Arquivísticos Permanentes. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2010.
DERRIDA, J. Mal de archivo: uma impresión freudiana. Valladolid
(Espanha): Simancas Ediciones, 1997
HEYMANN, L. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reexão sobre
arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Revista Estudos Históricos. Rio
de Janeiro, 1997.
IVORÁ. Lei nº 409/99. Autoriza o poder executivo municipal a receber em
doação o acervo bibliográco e mobiliário do Senador Alberto Pasqualini.
Ivorá. 09 de fevereiro de 1999.
MEEHAN, J. Novas considerações sobre a ordem original e documentos
pessoais. In: HEYMANN, L; NEDEL, L (Org). Pensar os arquivos. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2018.
PASQUALINI, S. Vida e obra de Alberto Pasqualini. Rio de Janeiro: [s. n.],
([entre 1987 e 1991.
RIO GRANDE DO SUL. Protocolo de intenções. Termo que rmam o Estado
do Rio Grande do Sul e Suzana Pasqualini. Porto Alegre: Diário Ocial do
Estado do Rio Grande do Sul, 1990.
WALTER A. CUNHA LIVRARIA. Ofício s/nº. Rio de Janeiro, RJ, 14 de janeiro
de 1991. Assunto: auto de avaliação a biblioteca e documentos do Senador
Alberto Pasqualini.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
155
PARTE II
PATRIMÔNIO
CULTURAL: CULTURA
AFRO-BRASILEIRA,
DECOLONIALIDADE,
ENSINO E
EXPERIMENTAÇÕES
O ESPAÇO PÚBLICO COMO
SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA:
“LARGO JOÃO MULUNGU”
Ana Carla de Jesus1
Considerações iniciais
O espaço público desempenha um papel vital como símbolo
de resistência. Ele oferece uma plataforma para a liberdade de
expressão, a visibilidade de questões sociais, a reapropriação
simbólica e a preservação da memória coletiva. Ao ocupar esses
espaços, as pessoas podem desaar o status quo, promover mudanças
e rearmar sua determinação em resistir às injustiças.
Importante ressaltar, como bem arma Figueira e Miranda, a
história local é aquela que não vê o território como ponto inerte e
imutável, mas sim como elemento vivo que participa da experiência
histórica de diferentes grupos sociais (FIGUEIRA; MIRANDA,
2012, p. 102).
Algumas ruas e avenidas, por exemplo, podem ser renomeadas
ou receber placas comemorativas para homenagear eventos
históricos de resistência. Essa prática é uma forma de preservar a
memória coletiva e reforçar a importância da luta por direitos e
justiça. Ao dar o nome de ativistas ou eventos emblemáticos a esses
logradouros, eles se tornam símbolos duradouros da resistência.
1 Graduada em História (UFS) e discente do mestrado prossional em história (UFS).
E-mail: anacarladjesus@hotmail.com
156
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
157
A partir de tais constatações buscarei analisar a importância da
mudança do nome de um logradouro para Largo João Mulungu. No
entanto, precisamos a princípio entender quem foi João Mulungu.
O crioulo João, lho da escravizada Maria, nasceu no engenho
Piedade, situado em Itabaiana, provavelmente entre a segunda
metade da década de 1840 e início de 1850. João foi um dentre os
inúmeros casos de escravizados exportados daquela região. Ainda
muito jovem ele foi vendido a João Pinheiro de Mendonça, dono do
engenho Mulungu, no Termo de Laranjeiras. Por isso, “Mulungu”
foi o nome com o qual João passou a ser identicado ao longo de
sua vida.2
Por volta do ano de 1868, João Mulungu decidiu fugir das
amarras do seu senhor, tornando-se um quilombola. Ele passou
a ser tido pelas autoridades locais como o mais audaz, chefe dos
quilombolas sergipanos; esse título lhe foi dado pelo Presidente
João Ferreira de Araújo Pinho, em 1876.3 Talvez tal denição
explique o porquê desse quilombola ser um dos escravos fugidos
mais procurados, chegando a ser cogitado pelas autoridades que sua
prisão representaria o m dos quilombos na Província de Sergipe
Del Rey. Fato que não foi comprovado, pois mesmo após sua prisão,
os quilombos sergipanos continuaram a existir.
Mulungu passou por volta de oito anos fugido, sendo capturado
em 1876. O presidente da Província, João Pinheiro, chegou a divulgar
em março em 1876 que Mulungu preferiu ser enforcado em praça
pública, do que voltar a servir seu antigo senhor. Contudo, até o
nal daquele ano a documentação nos revela que Mulungu estava
vivo, respondendo processos em algumas regiões da Província.4
Segundo informações obtidas a partir do mapa de crimes
perpetrados por escravos, João Mulungu foi condenado em 12
de abril de 1876 a um ano de galés.5 Após sua condenação os
documentos silenciam acerca de Mulungu, não sabemos se ele
2 As informações expostas têm como base documental as transcrições dos autos de
perguntas feitos ao escravo João Mulungu, quando este foi preso. Essas transcrições
foram consultadas no acervo da Casa de Cultura Afro-Sergipana.
3 Relatório do Presidente de Província João Ferreira de Araújo Pinho, em 1º de março
de 1876.
4 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 – pacotilhas 575, 585 e 636.
5 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 – pacotilha 378.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
158
chegou a cumprir toda a pena, e se a cumpriu o que ocorreu com
ele posteriormente.
O historiador Petrônio Domingues (2015) apresenta a seguinte
reexão:
o enigma em torno da morte de Mulungu dá margem a interpretações
especulativas e imaginações férteis, que vem alimentando a utopia
de setores dos movimentos sociais. Mulungu teria morrido como
emblema de um sonho, de um ideal nobre e magnânimo (...). Nessa
espécie de auréola arquetípica de Mulungu, todos os afro-sergipanos
podem se identicar; ele solda a unidade política da cidadania negra,
fomenta o ímpeto de participação e união em torno de um ideal: seja
a liberdade, no passado; seja a igualdade racial, no presente (p.254).
Dois séculos depois o que vericamos é o debate em torno da
gura de João Mulungu. O Movimento Negro, através da Casa
de Cultura Afro-Sergipana, tendo a frente Severo D’Acelino, vem
tentando resgatar a imagem desse quilombola como símbolo da
resistência negra.
O que vem a ser o movimento negro? Recorro ao conceito
utilizado por Regina Pahim Pinto, que o dene como sendo a luta
dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade
abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das
discriminações raciais, que o marginalizam no mercado de trabalho,
no sistema educacional, político, social e cultural (DOMINGUES,
2007).
Uma importante conquista ocorreu em 21 de novembro de 1989,
através da lei municipal 1.571, que em seu artigo 1º estabeleceu: Fica
denominado “LARGO JOÃO MULUNGU” o logradouro situado
ao fundo do Colégio Francisco Rosa, entre as Ruas “A” e “A 1” no
conjunto Assis Chateubriand (Bugio). Nesta Capital.
Em 1989, a Câmara de Vereadores de Aracaju aprovou e o Prefeito
Wellington da Mota Paixão sancionou uma lei que designava “Largo
João Mulungu” o logradouro situado ao fundo do Colégio Francisco
Rosa, no bairro Bugio, exatamente na área de acesso à ponte que
ligaria aquele conjunto ao bairro Santos Dumont. Na justicativa
do projeto de lei, o vereador Jorge Araújo argumentava que “João
Mulungu, em sua trajetória de luta pela libertação de sua raça, foi a
ponte de mobilização, ligando de norte a sul toda comunidade negra
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
159
da província em constante mobilização contra o cativeiro”. Mulungu
teria sido um “símbolo de resistência contra o cativeiro, e o mais
expressivo líder negro em luta na Província de Sergipe” (DOMINGUES,
2015, p. 239).
O termo “ponte de mobilização” revela a importância do
papel desempenhado por João Mulungu. Ele não apenas lutou
individualmente contra a opressão, mas também agiu como um
elo vital que uniu quilombolas. A mobilização, nesse contexto,
representa a capacidade de se organizar e agir coletivamente na
busca pela liberdade.
De acordo com Barros (2005, p.113), “demarcar território é
demarcar poder”. Tal armação instiga uma reexão profunda sobre
a interseção entre espaço e inuência, revelando a complexidade
subjacente às relações de poder em diversas esferas da sociedade.
A apropriação e delimitação de territórios têm sido uma constante
ao longo da história, transcendendo fronteiras geográcas para se
tornar um reexo claro das dinâmicas de poder que moldam as
relações humanas.
Ao demarcar um território, seja ele físico, cultural ou simbólico,
indivíduos ou grupos não apenas estabelecem uma presença visível,
mas também reivindicam uma parcela de controle e inuência
sobre esse espaço. Essa ação vai além da simples ocupação física; ela
simboliza a expressão do domínio, da autoridade e, muitas vezes, da
armação identitária.
Nas esferas sociais e políticas, indivíduos também buscam
demarcar território ao armar suas posições e ideologias. A
expressão de opiniões, a defesa de direitos e a participação ativa em
debates são formas de reivindicar espaços simbólicos de inuência,
onde o poder é moldado e contestado.
No caso do Largo João Mulungu, temos a mudança de nome de
um logradouro para homenagear um símbolo de resistência negra.
Tal fato pode ter reetido uma tomada de posicionamento em meio
a uma disputa de narrativa histórica; na qual o Movimento Negro
teve seu posicionamento reconhecido pelo poder público.
Podemos ainda reetir a relação do local citado com a construção
de uma identidade social. O Largo João Mulungu evoca a memória
histórica e serve como ponto de referência simbólico. Ao preservar
e celebrar lugares como esse, a identidade social é enriquecida
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
160
e reforçada. Para as autoras Figueira e Miranda, atualmente a
construção da identidade tornou-se aspecto central dos objetivos
e da missão do ensino de história (FIGUEIRA; MIRANDA, 2012,
p. 101).
Evocar a memória histórica é uma poderosa ferramenta para
conectar gerações, resgatando as raízes que sustentam o presente. O
Largo João Mulungu, ao levar o nome de uma gura signicativa na
luta pela liberdade, converte-se em um espelho temporal que reete
não apenas as pedras e calçamentos, mas as pegadas de resistência,
sofrimento e triunfo que ecoam ao longo dos anos.
Ao se tornar um símbolo, o Largo João Mulungu transcende
sua função física para se transformar em um local de consciência
coletiva. Ele representa a resistência contra a opressão, a busca
pela justiça e a armação da identidade. Esse ponto de referência
simbólico não apenas conta uma história; ele a celebra, mantendo
viva a chama da memória para inspirar as gerações futuras.
É crucial reconhecer que o poder de um ponto de referência
como o Largo João Mulungu vai além da estética urbana. Ele se
enraíza na capacidade de provocar reexão, despertar diálogos e
alimentar o senso de pertencimento. Ao contemplar esse espaço,
somos desaados a questionar nossa compreensão da história, a
explorar as nuances da resistência e a reconhecer a complexidade
das lutas passadas que moldam o presente.
Segundo Paul Gilroy (2001), a formação da identidade assume
um caráter anti-essencialista, se estabelecendo através de um
processo histórico e político. O autor questiona o chamado
absolutismo étnico e busca explorar as relações entre raça, nação,
nacionalidade e etnia, visando desmisticar a ideia de identidade
étnica e de unidade nacional. Gilroy vem de encontro à ideia de
pureza racial que se encontra em circulação dentro e fora da política
negra; segundo ele, as identidades estão sempre inacabadas, sempre
sendo refeitas.
Essa perspectiva desaa as narrativas essencialistas que tentam
xar a identidade em categorias rígidas e predenidas. Reconhece
a multiplicidade de facetas que compõem uma identidade e a
importância de reconhecer a diversidade e a complexidade inerentes
a cada indivíduo, a cada grupo.
A questão identitária também é abordada por Stuart Hall
(2006), que enfoca seu caráter transitório, mutável e contraditório,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
161
resultante das relações sociais entre os sujeitos; contrariando assim,
a imagem que muitas vezes se tem de que a identidade possui uma
essência xa e imutável ou uma substância inerente ao sujeito.
É possível também considerar a memória como uma fonte
constituinte do sentimento de identidade, seja ela individual
ou coletiva. Segundo o historiador Francisco José Alves (2000),
aplicado a pessoas ou a coletividade, identidade é a reunião dos
traços próprios e exclusivos de um ser individual ou coletivo.
Neste sentido, a memória e a identidade são valores disputados em
conitos sociais, e particularmente em conitos que opõem grupos
políticos diversos.
A construção de uma narrativa compartilhada, que respeite a
multiplicidade de experiências e identidades, pode ser uma chave
para a transformação e a construção de sociedades mais inclusivas
e resilientes.
A memória pode ser compreendida como sendo o processo
de lembrar; todavia, não se trata de um fenômeno puramente
individual. Como defende Pollak (1992), ela deve ser entendida
também como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um
fenômeno construído coletivamente e submetido a transformações
constantes.
Para Ulpiano Bezerra (1992), a memória é um processo
permanente de construção e reconstrução, pois possui um caráter
uido e mutável, sendo que sua elaboração se dá no presente e para
responder a solicitações do presente, possuindo como referencial o
passado.
Sendo assim, a existência de um espaço público que faz
referência a um símbolo de resistência negra, traz um signicado
importante como elemento simbólico para resgate de uma memória
e construção e/ou consolidação de uma identidade coletiva.
A memória, nesse contexto, não é apenas um ato de recordar
eventos passados, mas um processo ativo de dar signicado a essas
experiências e transmiti-las às gerações futuras. O espaço público
torna-se um repositório de histórias, um local onde as narrativas de
resistência são preservadas e celebradas. Ele oferece um lembrete
tangível do preço pago pelos antepassados na busca por justiça e
igualdade, proporcionando uma base sólida para a construção da
identidade coletiva.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
162
Além disso, o espaço público serve como um ponto de encontro e
celebração para a comunidade. Ao se reunirem nesse local simbólico,
os membros da comunidade rearmam seu senso de pertencimento
e solidariedade. O espaço não é apenas um monumento estático,
mas um ambiente dinâmico onde as pessoas podem se conectar,
compartilhar experiências e fortalecer os laços que formam a base
de uma identidade coletiva resiliente.
Como arma Gonçalves, a história local constitui-se um
campo privilegiado de investigação do traçado e da conguração
das relações de poder entre grupo, instituições de indivíduos e,
por conseguinte, dos processos movediços de sedimentação das
identidades sociais (GONÇALVES, 2012, p. 181).
É importante lembrar que os Parâmetros Curriculares Nacionais
enfatizavam a importância de relacionar os conteúdos históricos
com a realidade e o contexto dos alunos, promovendo uma conexão
entre o passado e o presente. Os PCNs encorajavam a realização
de pesquisas e investigações sobre a história local como uma
forma de envolver os alunos de maneira signicativa e ampliar sua
compreensão da história.
Essa abordagem pedagógica reconhece que a história não é
apenas um conjunto de fatos distantes, mas um tecido que se
entrelaça com as experiências locais, as transformações sociais e
as memórias comunitárias. Investigar a história local proporciona
aos alunos a oportunidade de descobrir como eventos históricos
moldaram suas próprias comunidades, criando uma ligação mais
profunda entre o passado e o presente.
Como bem defende Fonseca, o local e o cotidiano como locais
de memória são constitutivos, ricos de possibilidades educativas,
formativas. A autora apoia aqueles que defendem o estudo da
história local na educação básica obrigatória, uma vez que a história
local pode ter um papel decisivo na construção de memórias
(FONSECA, 2006, p.127-132).
Os espaços públicos, portanto, podem ser vistos como
arenas fundamentais para a expressão de resistência, oferecendo
oportunidades para se trazer à tona vozes de grupos até então
marginalizados, memórias subterrâneas, histórias de luta, bem
como fomentar a ideia de pertencimento e identidade social.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
163
A história de João Mulungu ressoa como um lembrete poderoso
de que a luta pela libertação não é apenas uma jornada individual,
mas uma busca coletiva por justiça e emancipação.
REFERÊNCIAS
ALVES, Francisco José. O historiador é um inventor de identidades.
Informe UFS, São Cristovão, 2 fev.2000.
BARROS, José D’Assunção. História, região e espacialidade. Revista de
História Regional 10 (1), 2005, p. 95-129.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos
históricos. Revista Tempo, Niterói, v.12, n.23, 2007.
______. João Mulungu: a invenção de um herói negro afro-brasileiro.
História: questões e debates, Curitiba, v.63, n.2, Editora UFPR, jul./dez.
2015.p. 211-255.
FIGUEIRA, Cristina; MIRANDA, Lilian. História local, identidade e patrimônio
cultural. Educação patrimonial no ensino de história nos anos nais do
ensino fundamental: conceitos e práticas. São Paulo: Editora SM, 2012, p.
101-119.
FONSECA, Selva Guimarães. História local e fontes orais: uma reexão
sobre saberes e práticas de ensino de história. História Oral, v. 9, n. 1, jan.-
jun. 2006, p. 125-141.
GILROY, Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência. São
Paulo: Editora 34. Trad. Cid Knipel Moreira.2001.
GONÇALVES, Márcia de Almeida. História local: o reconhecimento da
identidade pelo campo da insignicância. Ensino de história: sujeitos,
saberes, e práticas. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 3ª ed, 2012, p. 175-
185.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: Editora UFMG. Trad. Adelaine Le Guardia Resende. 2006, p. 317-
330.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória? Para um
mapeamento da memória no campo das ciências sociais. Revista do
Instituto Histórico e Geográco Brasileiro: São Paulo, n. 34 ,1992, p. 9-24.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
164
NEVES, Joana. História local e construção da identidade social. Saeculum.
Jan/Dez/ 1997. p. 14-27.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos: Rio de
Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
CULTIVANDO MEMÓRIAS E
PRESERVANDO A DIVERSIDADE
CULTURAL: A VALORIZAÇÃO DA
HISTÓRIA AFRODIASPÓRICAS
POR MEIO DO MUSEU VISCONDE
DE MAUÁ, ARROIO GRANDE/RS
Franciéle Gonçalves Soares1
Heron Moreira2
Maristela Machado Corrêa3
INTRODUÇÃO
Cultivando memórias e preservando a diversidade cultural4 é
uma ação museológica da Rede de Museus, Memória e Patrimônio
1 Graduada em Tecnologia em Gestão do Turismo - Universidade Federal do Pampa;
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural -
UFPEL; Coordenadora de Memória e Patrimônio do município de Arroio Grande, atua
no Museu Visconde de Mauá e Memorial do Carnaval, Arroio Grande/RS.
2 Graduado em Museologia - UFPEL; Museólogo do Museu Visconde de Mauá e da
Rede de Museus, Memória e Patrimônio em Arroio Grande/RS. Conselheiro do Conselho
Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Arroio Grande. Conselheiro Tesoureiro
do Conselho Regional de Museologia do RS (COREM 3R).
3 Graduada em Letras - UFPEL; especialista em alfabetização e letramento - UFPEL;
pós graduada em africanidades - UNOPAR; Membro do MABSUL (Museu Afro Brasil
Sul), Conselheira do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Arroio
Grande, Ubuntu-Movimento Negro de Arroio Grande. e autora da revista “Memória e
lembranças da Vó Vigica”.
4 A frase é o título do processo museológico que resultou na reformulação da
165
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
166
da Secretaria de Cultura de Arroio Grande coordenada pelo Museu
Visconde de Mauá. O objetivo é fomentar o processo de interação
comunitária com o museu, ou do museu com as comunidades, e
assim qualicar o discurso relativo à diversidade etnoracial na
formação do município.
Arroio Grande está localizado no extremo sul do Rio Grande do
Sul, e de acordo com o IBGE5, possui cerca de 17.558 habitantes.
Emancipou-se de Jaguarão em 1873, e em 2023 completa 150
anos de independência política e econômica, e o tema norteador
da data natalícia foi a diversidade étnico racial que contempla o
formação cultural e histórica do município, mais especicamente
a contribuição dos povos originários e formadores, indígenas,
açorianos e africanos.
Nesse sentido, o Museu Municipal Visconde de Mauá buscou
através da sua exposição museológica também contemplar essa
temática. Assim, passou por um processo de reformulação da sua
exposição permanente, que foi intitulada: “Cultivando memórias e
preservando a diversidade cultural de Arroio Grande”.
A nova formulação expositiva teve como objetivo principal
contemplar as três etnias formadoras, dentre elas, o acervo referente
à história, cultura e identidade afrodiaspórica, que é o tema central
desta pesquisa. É importante salientar que nos anos de 2022 e 2023
o museu municipal voltou-se a uma perspectiva comunitária, isto é,
de um museu que possuía apenas representações majoritariamente
brancas, masculinas e elitistas, através de um processo complexo
de pesquisa e interação com a comunidade vem buscando tornar-
se mais representativo, através de momentos que buscam valorizar
a memória e a história dos povos historicamente excluídos da
sociedade e consequentemente de espaços museais.
Ao longo da curadoria da exposição iniciou-se um processo de
pesquisa e busca pela materialidade que representasse a cultura afro-
brasileira. Os bens culturais coletados referem-se principalmente ao
período pós abolição e contemplam práticas de resistência e busca
por inserção social da comunidade negra arroio-grandense. Vale
salientar que o perl do público frequentador do museu municipal
é composto majoritariamente por estudantes da rede pública de
exposição coordenado por Franciele Soares e Heron Moreira.
5 Instituto Brasileiro de Geograa e Estatística.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
167
ensino, portanto, a equipe desenvolve atividades diretamente
ligadas à educação e à difusão do conhecimento.
O acervo que representa os povos africanos compreende os
seguintes objetos: cha de associados e Ata do Clube Guarani;
instrumento de sopro típico da Banda Farroupilha; indumentária
do certame de beleza Miss Mulata; obras de arte do artista Zé Darci;
máscaras africanas; obra literária Ela é Onilé; Coroa e mastro do
Rei momo Tuíca; quadro da Dona Serana; por m, artefatos de
religião de Matriz Africana do terreiro da Mãe Preta. Alguns dos
objetos citados contemplam parte do acervo do Museu Visconde de
Mauá, no entanto, outros foram concedidos temporariamente para
a exposição, como é o caso das obras do Zé Darci, Ata e cha de
associados do Clube Guarani e quadro da Dona Serana. A ligação
desses objetos com práticas de resistência será esclarecida ao longo
do texto.
É nessa perspectiva que a presente pesquisa pretende apresentar
o acervo que compõe a exposição que representa os afro-
brasileiros, contextualizando cada objeto de brevemente, além
disso, iremos expor as dinâmicas e as práticas educativas realizadas
no Museu Visconde de Mauá, no que se refere a história e cultura
da comunidade negra em Arroio Grande, e por m, apontar a
relevância de exposições representativas no ambiente museal.
Sendo assim, para alcançar os objetivos, utilizou-se pesquisa
bibliográca, a qual, conforme GIL (2002), é formulada a partir
de livros e artigos cientícos, além de ser um método utilizado na
maior parte das pesquisas. Também aplicou-se a pesquisa descritiva:
“As pesquisas descritivas têm como objetivo primordial a descrição
das características de determinada população ou fenômeno” (GIL,
2002, p. 42).
A estrutura da pesquisa está organizada da seguinte forma:
primeiramente realizamos uma contextualização sobre o acervo
que compõem a exposição, enfatizando sua ligação com a história
e cultura local; depois, apresentamos as duas principais ações no
museu em 2023, o lançamento do livreto em homenagem a Dona
Serana e a celebração dos 90 anos da Banda Farroupilha; por m,
abordamos a literatura sobre museologia social, decolonialidade e
a importância dessa abordagem no ambiente museal e a interação
para/com a comunidade.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
168
REFLEXÕES SOBRE A MUSOLOGIA
ANTIRRACISTA, COMUNITÁRIA E
REFLEXIVA
Novas interpretações sobre o papel social dos museus surgiram
no nal século XX, alicerçados na Mesa Redonda de Santiago do
Chile, organizada pela Unesco, em 1972, e pelo “museu integral”,
elaborada em um contexto particular das ditaduras latino-
americanas, novas experiências museológicas com viés educativo e
ligado a comunicação ensaiavam uma virada decolonial inédita na
museologia.
Nos anos 1980 se inicia um processo de redemocratização dos
museus, impulsionado pelo movimento da Nova Museologia, a
qual potencializou a visibilidade de práticas museais comunitárias
e participativas, vinculadas ao desenvolvimento local e baseados no
patrimônio e na ressignicação do território, atuando, assim, para o
fortalecimento dos laços identitários.
A museologia comunitária, reexo dessas mudanças
paradigmáticas, tem como o propósito principal o desenvolvimento
dos processos coletivos que tem como propósito fundamental
desenvolver processos de organização comunitária em torno
do planejamento e operação de espaços educativos e culturais
dedicados à pesquisa, proteção, conservação, valorização e difusão
do patrimônio cultural e natural de uma comunidade, cuja a “missão
é promover e instrumentalizar processos de ensino-aprendizagem
que contribuam no desenvolvimento integral para o melhoramento
da qualidade de vida da população” (LUGO, 2011, p. 30).
Entendendo que as estruturas do colonialismo se consolidaram
em monologismos epistêmicos, que acabaram por reproduzirem
estruturas machistas e racistas sustentadas por sujeitos denidos como
homens, brancos e europeus, buscamos neste trabalho apresentar
bases teóricas que nos possibilitem pensar em novas perspectivas
epistêmicas para com os museus e a Museologia. (MELO, 2020, p.1)
Mario Chagas reconhece que o museu “seja compreendido como
espaço de relação entre pessoas, entre bens culturais, e entre pessoas
e bens culturais e também como uma prática que tende a romper
fronteiras entre arte, magia, ciência, técnica e política...” onde “ele
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
169
pode ser diferente de tudo o que já foi dito” (CHAGAS, 2017, p.
122) e assim burlando os controles sociais.
Entrevista concedida por Valdemar de Assis Lima, conhecido por
Vavá entre os amigos, atua como professor do curso de graduação
em Museologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC,
tem sua militância no mundo dos museus marcada pela defesa de
um patrimônio contra-hegemônico e antirracista. Para ele:
Os corpos pretos (ou negros) nos museus, hoje, deveriam estar no
lugar de todas os públicos (internos e externos) dos museus: o lugar
do acolhimento, do incentivo, do empoderamento social e no caso
especíco das pessoas pretas, o lugar do respeito a um grupo que
historicamente sofre ataques e violências de diferentes naturezas.
Pessoas negras são, antes de tudo, pessoas! São sujeitas de memória,
são demandas sociais e os museus têm a obrigação de atender a
essas demandas sociais, porquanto espaços de interesse público.
(TOLENTINO et al, 2022, p. 468)
Valdemar ainda reete que os museus devem entender que estão
incluídos sob a Lei 11.604 (obrigatoriedade da abordagem da história
e cultura negra e indígena no ensino) e deve b desenvolver uma
educação museal comprometida com as demandas comunitárias
que sofrem tentativas de desqualicação para a subordinação. “Nos
museus de um país que estrutura as relações de poder a partir do
racismo, a educação museal, acredito eu, ou é antirracista ou é
racista: não existe meio termo!” (TOLENTINO et al, 2022, p. 469)
A ação museológica foi pautada na educação antirracista e
nas relações etnico-raciais na perspectiva da decolonialidade,
tomada como um pensamento caráterizado como de produção
de conhecimento concretizado através do princípio ético visando
estratégias para a superação do racismo estrutural e das relações de
poder vigentes.
Os museus são percebidos como lugares para o debate da
decolonialidade e insurgência ao modelo hegemônico de existência.
Podemos relacionar a decolonialidade como agência política,
assertiva na busca pelo rompimento com um paradigma moderno/
colonial de compreensão hegemônica de mundo. (LIMA, 2022,
P.2).
A ação museológica “Cultivando memórias e preservando a
Diversidade Cultural” buscou reimaginar os sujeitos museais e os
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
170
corpos passíveis de musealização, tentando desnaturalizar os bens
museológicos para imaginar outras materializações possíveis, mais
além dos regimes normativos que engendraram a museologia e os
museus.
REPRESENTAÇÃO DA DIÁSPORA
AFRICANA: CONTEXTUALIZAÇÃO DOS
OBJETOS QUE COMPÕEM A EXPOSIÇÃO
Neste momento, iremos apresentar parte da exposição do Museu
Visconde de Mauá, mais especicamente o acervo que representa os
povos africanos e seus descendentes, na formação do município. Essa
exposição é uma importante ferramenta de educação antirracista
para o público frequentador do museu, já que por meio das visitas
guiadas adentramos em diversas pautas, diálogos e debates a respeito
do tema junto à comunidade frequentadora.
Primeiramente, temos duas telas do Zé Darci, arroio-grandense,
artista plástico referência no Rio Grande do sul. Suas obras valorizam
de forma ímpar a história, memória e cultura negra. A primeira obra
que consta no museu é intitulada “Mauá sonho construído”, que faz
uma alusão às estradas de ferro implantadas no Brasil por Visconde
de Mauá6, e a outra, “Mauá sonho em construção”, ilustra negros
escravizados construindo as estradas de ferro, e possibilita uma
importante reexão, já que apesar de Visconde de Mauá ter recebido
o mérito pela implantação das ferrovias no Brasil, quem de fato
ergueu as estradas de ferro foram negros escravizados juntamente
com outros indivíduos também explorados (LAMOUNIER, 2008).
A arte, além de dialogar com diferentes saberes, é um contributo
positivamente relevante que estimula a nossa reexão e provoca
nosso olhar para a construção de novas narrativas pautadas pelo
protagonismo negro no âmbito social e cultural.
Já, a Coroa e o Mastro do Rei Momo são acessórios de carnaval
que pertenceram ao Sr. Júlio Antônio, popularmente conhecido
como Tuíca, quem representa o carnaval do município há mais
6 Em 1813, nasce em território arroio-grandense Irineu Evangelista de Souza, o
Visconde de Mauá, considerado um dos homens mais importantes do Brasil Imperial.
Ao longo do século XX a cidade natalícia lhe dedicou inúmeras homenagens, dentre
elas, o nome dado ao museu municipal.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
171
de 25 anos. Além disso, o acervo nos permite fazer referência ao
protagonismo negro na história do carnaval em Arroio Grande, já
que datam de 1890 os primeiros registros no Jornal “O Progressista”
da população negra festejando carnaval no entorno da Praça Matriz.
Ela, inclusive, foi responsável pela formação dos primeiros blocos de
rua e cordões, demonstrando a forte ligação com a festa popular7.
Outro destaque na história do carnaval, especialmente através
dos bailes de salão, foi o Clube Guarani, fundado em 1920, a partir
da organização social e política de famílias negras arroio-grandenses
que eram impedidas de frequentar os clubes sociais gestados pelos
não-negros. O clube foi fechado em 2006, devido a uma denúncia
que registrou seu descontentamento devido ao som das festas e
circulação de pessoas no seu entorno. Em 2011 a sede retomou a suas
atividades, desta vez, como Ponto de Cultura Axé Raízes (SOARES;
FARINHA, 2022). A Ata da década de 1990 e chas de associados
integram a exposição como documentos cedidos temporariamente
pela atual gestão do Ponto de Cultura.
No museu incluímos também um instrumento de sopro que
representa a Banda Farroupilha. Trata-se de um objeto que faz
alusão aos instrumentos utilizados pelos membros do grupo e isso
é especicado durante as visitas. O acervo do grupo é conservado
pelos próprios familiares dos ex-membros da banda, que dispõe dos
instrumentos de forma afetiva. A Banda Farroupilha foi formada por
alguns dos mesmos fundadores do Clube Guarani, no ano de 1933,
conforme o Sr. Gustavo Lúcio (entrevista concedida a Maristela
Machado Corrêa em 20 de outubro). O grupo foi instaurado com o
intuito de animar os carnavais de clube e as festividades ociais no
município, foi continuada pelos descendentes dos seus fundadores
e manteve-se em plena atividade até meados da década de 1990.
Inclusive, foi através da banda que os membros conseguiram adentrar
espaços que eram extremamente limitados para a população negra,
já que tocavam nas festas do Clube Caixeiral e Clube do Comércio
7 Informações contidas em material gráco que faz parte do acervo do Memorial
do Carnaval, museu itinerante idealizado em 2017 por Lizandro Araújo, carnavalesco,
professor e pesquisador. Em 2022, o acervo foi concedido de forma temporária à
Secretaria de Cultura de Arroio Grande. Além de trajes e adereços, o acervo também
possui materiais grácos produzidos pelo pesquisador, com informações sobre a
trajetória do carnaval de Arroio Grande.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
172
(clubes racistas que só permitiam a entrada de pessoas negras para
a prestação de serviços).
Na exposição, temos, além disso, o quadro com a gura de
Oscarina de Souza Barros, popularmente chamada de Dona Serana,
nascida em 1911, e falecida em 2016, quando completou 104 anos.
Dona Serana cou conhecida no município por sua relação
com a prática de benzedura e pela fundação de um bloco mirim
carnavalesco que posteriormente veio a se tornar a Escola de Samba
no Pé (SERPA, 2023). Trata-se de uma mulher negra que nasceu
no período pós-abolição, e que além de simbolizar a resistência
de mulheres racializadas, também expressa o protagonismo negro
através da sua relação com o carnaval e a prática da benzedura.
As Máscaras africanas foram produzidas pela professora Maristela
Corrêa nas ocinas de máscaras, que tem o objetivo de valorizar
e dar visibilidade à cultura africana, além de instruir professores
no cumprimento da Lei n° 10.6398. Oliveira (2014) ressalta que
as máscaras africanos dão foco ao rosto, portanto, salientam
características de indivíduos negros, diferenciados dos traços
europeus. É nesse sentido que destacar os atributos faciais permite
evidenciar as especicidades dos povos africanos justamente pela
oposição aos atributos ocidentais.
Além disso, no museu consta também a indumentária do
certame de beleza Miss Mulata, que pertenceu a Nathiele Lima em
seu reinado na década de 90, conforme se vê no dossiê organizado
por Maristela Corrêa. O certame teve início em 1969 e perdurou
até 2003, e tinha como objetivo valorizar a beleza da mulher negra,
reunindo jovens de todo Rio Grande do Sul para concorrer ao
título. Além de sublinhar os certames de beleza como instrumento
de valorização e empoderamento da mulher, também é uma
oportunidade de enfatizar sobre a utilização do termo “Mulata”,
que possui tom depreciativo, advindo de mula (cruza entre éguas
e jumentos) para referir-se a mulheres descendentes de negros e
brancos, portanto, utilizamos a terminologia para reetir sobre o
racismo e sexualização de mulheres negras (QUADRADO, 2015).
A partir da redenição do discurso expositivo e museológico,
potencializou-se a interação com a comunidade, propiciando
novas possibilidades de bens culturais a serem incorporados ao
8 Lei que estabelece a abordagem da história e cultura afro-brasileira na rede de
ensino.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
173
acervo do Museu. A doação de bens culturais representativos da
religiosidade de Matriz Africana, elementos de uso ritual que ao
serem musealizados reetem uma cosmologia dissonante da que se
apresenta em museus.
Cabe destacar as doações realizadas pela Ialorixá Mãe Preta
de Ogum, que representam não só sua história, mas uma história
coletival, ligada à afro, além do pesquisador Lizandro Araújo, doador
de bens culturais representativos ligados também a religiosidade de
matriz africana.
Figura 01: Acervo que representa os afro-brasileiros
Fonte: Acervo dos autores
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
174
AÇÕES COMUNITÁRIAS: BUSCA PELA
PARTICIPAÇÃO E INSERÇÃO DA
POPULAÇÃO NEGRA NO ESPAÇO MUSEAL
O lançamento do folheto “Ao avesso da tristeza vai a negra
Serana9” foi um material produzido por Bruna Serpa, discente do
curso de História - Licenciatura, pela Universidade Federal do Pampa,
campus Jaguarão. A estudante realizou seu estágio institucional no
Museu Visconde de Mauá, e como atividade avaliativa exigida pela
instituição propôs o lançamento de um material gráco sobre a
história da Dona Serana. A pesquisa para produção do folheto foi
feita em parceria com a equipe do museu, composta por Franciéle
Soares e Heron Moreira, e orientada pela Profa. Dra. Giane Vargas
Escobar. O lançamento do material ocorreu no dia 19 de julho de
2023 nas dependências do Museu Visconde de Mauá junto a família
da Dona Serana, que abrilhantou o momento ao som de músicas
carnavalescas, demonstrando a relação da Serana com o carnaval,
paixão que também transparece em toda sua família.
Figura 02: Livreto “Ao avesso da tristeza vai a Negra Serana” - 19 de julho de 2023
Fonte: acervo do Museu Visconde de Mauá
9 O folheto está disponível no Museu Visconde de Mauá.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
175
Em 2023, o museu municipal propôs a celebração dos 90 anos
da primeira formação da Banda Farroupilha, que aconteceu no dia
16 de novembro de 2023, no interior da Praça Matriz. O evento
“Memória, música e protagonismo negro” reuniu ex-membros do
grupo, seus familiares e apreciadores da banda. Foi uma importante
oportunidade de reetir e celebrar sobre a memória e a história desse
grupo, que além de ter marcado a história dos carnavais de clube,
também foi um marco na busca por inserção social da população
negra no período pós abolição. Na oportunidade, foi apresentado
a pesquisa sobre a trajetória do conjunto musical elaborada por
Maristela Corrêa, posteriormente formou-se uma roda de memória
e, por m, a Banda Municipal fez uma apresentação alusiva a Banda
Farroupilha, com roupas, instrumentos e músicas características.
Durante o evento, Mica Lúcio, familiar de um ex membro da banda,
diz que “A Banda Farroupilha era um ícone daquela época, hoje
fazer parte desta homenagem dos 90 anos da banda é extremamente
gracamente, é um momento emocionante, acredito que lá no céu
eles estão em festa”.
Figura 02: Evento em celebração aos 90 anos da Banda Farroupilha - 16 de novembro de
2023.
Fonte: acervo do Museu Visconde de Mauá
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
176
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A equipe do Museu Visconde de Mauá tem buscado, mais do
que fazer uma exposição de africanidades, mas proporcionar a
interação e participação ativa da comunidade na construção dessas
ações expositivas. A comunidade reagiu e vem reagindo de forma
positiva diante dessas transformações propostas pela instituição, se
mostrado participativos diante das atividades propostas e dispostos
a colaborar, seja através da história oral, já que o museu busca
desenvolver pesquisas relacionadas ao tema, ou por meio da doação
de acervos que auxiliam na ampliação da exposição.
REFERÊNCIAS
BRULON, B.. (2020). Descolonizar o pensamento museológico:
reintegrando a matéria para re-pensar os museus. Anais Do Museu
Paulista: História E Cultura Material, 28, e1. https://doi.org/10.1590/1982-
02672020v28e1
DE ASSIS LIMA, V. Pensamento decolonial: fundamento ético-
epistemológico para a luta antirracista na construção de um sistema-
mundo biólo. Museologia & Interdisciplinaridade, [S. l.], v. 11, n. 22, p. 64–
78, 2022. DOI: 10.26512/museologia.v11i22.43498. Disponível em: https://
periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/43498. Acesso em:
10 jan. 2024.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisas sociais. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 2008. 220 p.
IBGE. Instituto Brasileiros de Geograa e Estatística. Disponível em:
<https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rs/arroio-grande.html>
Acesso em: 24 de dezembro de 2023;
LAMOUNIER, Maria Lúcia. Entre a Escravidão e o Trabalho Livre. Escravos
e Imigrantes nas Obras de Construção das Ferrovias no Brasil no Século
XIX. Revista Economia, p. 216-245, dez. 2008.
MACHADO, Corrêa Maristela. Dossiê negras memórias: A trajetória
histórica do concurso Miss Mulata. Lei de incentivo Aldir Blanc, 2020.
OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. Das Máscaras Africanas Ao Romance
Brasileiro Do Século XX - trajetórias, usos e sentidos do negrismo.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
177
Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, p. 8-28,
jul. 2014.
QUADRADO, Beatriz Floôr. Estética e política: a relação da mulher negra e
um concurso de Miss Mulata na desconstrução do racismo. XVIII Simpósio
Nacional de História, Florianópolis SC, p. 1-14, jul. 2015.
SERPA, Bruna Teles Mena. DONA SERAFINA, ENTRE A FÉ E A FOLIA: a
trajetória de uma mulher negra benzedeira em arroio grande/rs (1911-
2016). 2023. 103 f. TCC (Doutorado) - Curso de Licenciatura em História,
Universidade Federal do Pampa, Jaguarão, 2023.
SOARES, Franciéle Gonçalves; FARINHA, Alessandra Buriol. “A Primeira
Fantasia a Gente Nunca Esquece”: memórias de antigos carnavais no
Clube Guarani de Arroio Grande/RS. Memória em Rede, Pelotas, v. 14, n.
27, p. 335-360, 2022.
TOLENTINO, Átila Bezerra; PINHEIRO, A. R. S. ; GIL, C. Z. V. . UM DIÁLOGO
DECOLONIAL E ANTIRRACISTA: ENTREVISTA COM VALDEMAR DE ASSIS
LIMA. Revista Sillogés - Dossiê Educação patrimonial em contextos:
cartograas e cosmopercepções, v. 5, p. 463-474, 2022.
LITERATURA INFANTIL
AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA
NA E.M.E.F. FRANÇA PINTO (RIO
GRANDE /RS), (RE)SIGNIFICANDO
A EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL
Míriam Couto Ferreira1
1. INTRODUÇÃO
Discutir as questões étnicas-raciais no contexto educacional,
requer posicionamentos críticos e humanísticos por parte dos
prossionais da educação. Requer também com certa urgência a
aproporiação de conhecimentos históricos e cientícos, com o
objetivo de pensar metodologias e currículos escolares pautados
na desconstrução de preconceitos e atitudes que revelam a
discriminação racial.
Busca-se valorizar, neste trabalho, o uso da literatura infantil
africana e afro- brasileira na Escola Municipal de Ensino
Fundamental França, localizada em Pinto-Rio Grande /RS, como
potente fonte histórica e, como forma de dar visibilidade à história
e à cultura africana, contribuindo assim para o combate ao racismo,
1 Professora da Rede Municipal do Rio Grande–RS. Graduada em Pedagogia-
Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Mestranda pelo PPGH-
FURG. E-mail: profmiriam6@gmail.com
178
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
179
na medida em que oportuniza a eliminação de estereótipos e atitudes
preconceituosas, existentes no espaço escolar.
Neste traballho, a própria pesquisadora atuou junto às turmas
participantes da pesquisa, fazendo as intervenções, tendo em vista
que é docente na hora atividade dos professores com a literatura.
Foram apresentadas aos alunos as literaturas infantis africanas e afro-
brasileiras, que continham as narrativas orais assim evidenciando,
a importância da tradição oral propondo reexões e diálogos, bem
como atividades signicativas inspiradas nas literaturas trabalhadas.
Essas atividades envolveram, pintura, dança, teatro, entre outras.
Como aporte teórico que sustentou esta pesquisa trazemos os
autores: Kabengele Munanga, Amadou Hampatê Bâ, Paulo Freire,
Michael Pollack, Celso Sisto Silva , Jörn Rüsen e demais autores que
corroboraram para estruturação e fundamentação desta discussão.
Portanto, o objetivo geral deste estudo consistiu em apresentar
aos alunos e comunidade escolar a Literatura Infantil africana e
afro-brasileira, contendo narrativas orais, como contos e lendas,
como meio para um maior conhecimento da cultura negra e sua
história, promovendo a valorização dessa cultura como combate ao
racismo.
Conforme Kabengele Munanga,
A educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a
possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e
inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela
cultura racista na qual foram socializados. (MUNANGA, 2005, p. 17).
Partindo desse objetivo, trilhei o caminho da pesquisa traçando
algumas metas especícas:
1. Apresentar aos alunos de 2º e 3º anos, contos africanos,
lendas e histórias oriundas de narrativas orais africanas e
afro-brasileiras.
2. Contextualizar os alunos acerca dos lugares que originaram
estas narrativas, trazendo conhecimentos históricos sobre
o país em questão, falando sobre as suas especicidades
culturais.
3. Promover debates e rodas de conversa, pois serão momentos
importantes de trocas de ideias e opiniões entre os alunos e
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
180
professores na construção do conhecimento e crescimento
pessoal.
4. Preparar junto com os alunos uma “Mostra Cultural” como
produto da pesquisa, este será o momento de reexões junto
à comunidade escolar sobre as vivências e aprendizagens
durante o desenvolvimento da pesquisa. Público-alvo:
comunidade escolar e local.
As etapas de observação do campo de pesquisa, até a culminância
deste estudo com a mostra cultural, foram intensas de signicado e
aprendizagens, tornando esta pesquisa e seu desenvolvimento uma
leitura prazerosa. Dessa maneira, o leitor tem acesso a uma visão
bem ampla e denida desse percurso construído na perspectiva da
pesquisa-ação. Sendo fundamental temática desta pesquisa, será
abordado a seguir algumas considerações sobre a Tradição oral
africana.
2. TRADIÇÃO ORAL AFRICANA
Fundada na Iniciação e na experiência, a Tradição Oral, conduz o homem
a sua totalidade, e em virtude disso, pode-se dizer que contribui para
criar um tipo de homem particular para esculpir a alma africana (BÂ,
2010, p. 169).
Contendo narrativas orais, sendo transcritas por seus autores
africanos ou não, a Literatura Infantil africana e afro-brasileira
traz, em seu contexto, conhecimentos sobre a história diversicada
da África que, de uma maneira geral, é interpretada sem suas
especicidades locais e históricas na escola, especicamente nos
Anos Iniciais. Quanto à importância da tradição oral como uma
forma de trabalho com a memória coletiva e como fonte histórica,
Pollak aponta que
Podemos portando dizer que a memória é um elemento constituinte
do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na
medida em que ela é também um fator extremamente importante do
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
181
Na escola, no Ensino Fundamental, o trabalho com a Literatura
Infantil pode se tornar um instrumento potente de autoarmação
e reconhecimento da cultura e história da África. As lendas
africanas e as histórias contadas pelos Griots e as Griotes — nomes
concernentes a esses guardiões da cultura — que são homens e
mulheres considerados mestres na arte das palavras e detentores
das memórias de seu povo, podem ser exploradas e descobertas na
sala de aula.
A literatura está composta de diversos títulos que trazem em
seu texto narrativas orais, resgatadas pelos autores em um processo
de pesquisa, que objetivam trazer a história da ancestralidade de
vários grupos africanos. Vemos isso na descrição dos personagens,
dos lugares de origem destas narrativas, e no conhecimento cultural
que objetivam propagar.
A linguagem e a oralidade sempre foram uma via de comunicação
para transmissão de conhecimento e saberes entre as gerações, assim
que a humanidade iniciou a comunicação pela fala. Seus aspectos
teóricos e metodológicos, como importante fonte histórica, se dão
no seu valor por retratarem as identidades, realidades, experiências,
modos de vida de uma comunidade, em cada contexto e nas mais
variadas relações sociais. Assim, as narrativas são elementos
fundantes da tradição oral que compõe os fundamentos das
memórias. Pollak contribui ao armar que:
Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação
também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita
e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer,
deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse
ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita.
Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta.
(POLLAK, 1992, p. 207).
Portanto, como cita com propriedade o autor, a história oral
compõe um conjunto das diversas fontes históricas, utilizadas
pela historiograa e reconhecidas em sua importância na pesquisa
histórica.
Os livros de Literatura Infantil, em grande parte, trazem histórias
orais que são transcritas pelos autores, passando da oralidade para
o papel, trazendo a gura do contador de histórias tradicional.
Essas narrativas transmitem aos leitores infantis, a tradição cultural
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
182
africana, se tornando um elo importante entre o Brasil e a África,
continente que deu origem às tradições da cultura negra no Brasil.
A temporalidade e o entendimento do passado como o lugar
da história são elementos importantes a serem entendidos na
educação histórica. “São as situações genéricas e elementares da
vida prática dos homens (experiências e interpretações do tempo),
que conhecemos como consciência histórica” (RÜSEN, 2001, p. 54).
Formar sentidos acerca da experiência temporal de cada
sujeito é colocar seu saber em evidência. Esse é um dos atributos
do historiador que atua junto aos alunos. Logo, faz-se necessário
informá-los que as suas vivências têm sentido histórico, pois elas
ocorrem no espaço/tempo. Portanto, os sujeitos constroem seu
conhecimento histórico, compreendendo que, ao trazer fatos
passados que ocorreram na sociedade, reetem-se no presente, sem
que sejam desconsideraos pela distância temporal que se sucederam
e pelos diferentes contextos nos quais aconteceram.
3. DISCUSSÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
O presente capítulo traz aspectos iniciais referentes ao trabalho
realizado em uma escola da rede municipal do Rio Grande/RS,
a E. M. E. F. França Pinto, em turmas do 2º e 3º anos do Ensino
Fundamental.
Escola Municipal de Ensino Fundamental França Pinto
Fonte: Míriam Couto Ferreira-2022
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
183
Não obstante, é necessário mencionar que esta pesquisa é de cunho
qualitativo, e que as aulas foram ministradas pela pesquisadora, pois
essa atuava nas turmas citadas como professora. A pesquisadora,
além de emergir no espaço da pesquisa, provocou as ações que
pretendia analisar. A cada aula, foi apresentado aos alunos um conto
ou uma lenda africana, assim como outras histórias que contenham
as narrativas orais. Motivadas e inspiradas pelas literaturas africana
e afro-brasileiras, utilizadas durante o desenvolvimento da pesquisa,
foram propostas ocinas e demais atividades artísticas signicativas
que contemplaram o desenvolvimento da pesquisa.
“Para este estudo, o método qualitativo é o que melhor se
aplica, pois, ao ingressar no campo com objetivo exploratório, o
pesquisador aumenta sua experiência em torno de determinado
problema” (TRIVIÑOS, 1987, p. 109). Ademais, vale mencionar que
consiste, também, em um estudo descritivo, pois o conhecimento
dos sujeitos e as características do campo de pesquisa fornecem ao
pesquisador informações a m de que possa conhecer os fatos da
realidade pesquisada.
A pesquisa qualitativa é essencialmente descritiva, visto que a descrição
dos fenômenos está impregnada dos signicados que o ambiente lhes
outorga, e como aquelas são produtos de uma visão subjetiva, rejeita
toda expressão quantitativa, numérica, toda medida. (TRIVIÑOS, 1987,
p. 128).
Inicialmente, os cinco docentes participantes deste estudo
responderam a perguntas sobre as histórias infantis africanas
que utilizam em sua prática, bem como trabalham. Este estudo
exploratório foi fundamental, pois “O pesquisador deseja delimitar
ou manejar com segurança uma teoria cujo enunciado resulta
demasiado amplo para os objetivos da pesquisa que tem em mente
realizar” (TRIVIÑOS, 1995, p. 109).
Ao permitir a fala do professor por meio da entrevista
semiestruturada, a pesquisadora, a partir da dialogicidade, incluiu
os docentes que têm a regência da turma nesta proposta de
pesquisa, além de fornecer à pesquisadora dados importantes para
um maior conhecimento da turma em questão. As perguntas foram
oportunidades para reetir sobre sua vivência, quanto aos saberes e
práticas como alunas do Ensino Fundamental, referentes à cultura
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
184
negra, como também reetir sobre sua prática como docente quanto
ao combate ao racismo. Desse modo, verica-se uma interação
social na qual professor e pesquisador, em atitudes de reciprocidade
trabalharam de uma forma integrada.
Antes do início das ocinas, a pesquisadora procurou manter
o olhar atento às crianças sobre os relacionamentos estabelecidos
entre os seus pares nas salas que participariam deste estudo. Por
meio do método de observação participante, foram provocadas
nas crianças reexões sobre as diferentes constituições dos corpos,
as variações étnicas existentes, destacando também a pluralidade
cultural. As crianças trouxeram as suas vivências em sociedade, o
que ouviam e viam em seu entorno, na mídia, nas redes sociais,
no que se referia ao preconceito e à discriminação que as pessoas
negras sofrem.
3.1 Desenvovimento das ocinas e Mostra
Cultural
Após a inserção no campo e observação estruturada, com os
objetivos denidos de preparo e delimitação da pesquisa, após
as entrevistas coletadas e rodas de conversa com as professoras
participantes, foi feito o cronograma das ocinas juntamente com
as professoras e coordenação, iniciando, então, a pesquisa. Como
explicado anteriormente neste trabalho, a pesquisadora, por ja estar
em contato com os sujeitos da pesquisa desde o início do ano, tinha
os horários que estariam nas turmas já denidos, e o trabalho de
observação já tinha sido concluído. Dessa forma, possibilitou-se
o levantamennto de dados necessários que puderam fornecer à
pesquisadora os traços especícos do fenômeno a ser estudado. A
seguir, apresenta-se a descrição das ocinas e a análise feita pela
pesquisadora.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
185
Tabela 1- Cronograma das ocinas
OFICINA CONTO, LENDA OU
HISTÓRIA DATA
1Todos dependem da boca 28/03/2022
2O segredos de nossa
casa 04/04/2022
3 O casamento da princesa 11/04/2022
4 A lenda do tambor 13/05/2022
5 A lenda do Baobá- 20/05/2022
6 A Lenda do Boi-Bumbá 24/06/2022
7Bruna e a galinha
D’Angola 27/06/2022
Fonte: Míriam Couto Ferreira-2022
Início das ocinas
Ocina 1 - Data: 28/03/2022
Título do conto: Todos dependem da Boca2
Tema: Respeito ao corpo
Aprendizagens e vivências: apresentar e denir o que é um conto
e aspectos lúdicos desses, dramatização. Cuidado com o corpo, ter
uma alimentação saudável; cada um tem um papel importante na
sociedade, não devemos menosprezar ninguém.
2 Disponível em: http://graasnegras.blogspot.com/2015/11/conto-africano-todos-
dependem-da-boca.html
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
186
Fantoches de vara feito pela pesquisadora para contar o conto
Fonte: Míriam Couto ferreira- 2022
Ocina 2 - Data: 04/04/2022.
Conto: “Os segredos de nossa casa”3
Temática: Respeito à privacidade da família
Aprendizagens e vivências: devemos ser prudentes com o que
falamos fora de nossa casa, dramatização, autoria e oralidade
Pesquisadora utilizando um recurso para dramatizar oconto
Fonte: Gisleia Otero-2022
3 Disponível em: https://xapuri.info/o-segredo-de-nossa-casa-uma-fabula-africana/
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
187
Ocina 3 - Data 11/04/2022.
Título: Conto: “O casamento da princesa”. Adaptação de: Celso
Sisto
Aprendizagens e vivências: respeito aos mais velhos, importância
da palavra. Na África, existem monarquias, o que é uma aldeia,
vestimenta africana, arte africana.
Ocina 4 - Data 13/05/2022.
Título: A lenda do tambor
Aprendizagens e vivências: importância deste instrumento
musical na cultura africana, musicalidade.
Ocina 5 - Data: 20/05/2022.
Título: A Lenda do Baobá. Extraído do livro: Histórias encantadas
africanas. Recontada por Ingrid Biesemeyer.
Aprendizagens e vivências: conhecimento do espaço natural da
África. Valorizar a natureza e as características dos elementos.
Ocina 6 - Data:
Título: A lenda do Boi-numbá
Aprendizagens e vivências: Respeito a todos independente de
sua cor, respeitando a diversidade cultural.
Ocina 7 - Data: 27/06/2022.
Título: Bruna e a Galinha D’Angola Autora: Gercilga de Almeida
Aprendizagens e vivências: respeito aos mais velhos, respeito à
religião de matriz africana, ancestralidade.
Ocina 8 - Data: 09/08/2022.
Ministrada pela Prof. Margareth Teixeira, do Núcleo de Temas
Transversais, da Secretaria Municipal de Educação (SMED)
O tema dessa ocina feita na escola a convite da professora
pesquisadora foi muito graticante. Todos puderam voltar no
tempo e conhecer uma tradição bem antiga da Tribo “Ndebele”.
Por meio de fotos em slides, a Prof.ª convidada para qualicar esta
pesquisa, Margareth Teixeira, que trabalha na SMED (Secretaria
Municipal de Educação) da cidade de Rio Grande, promovendo
e dando a conhecer a cultura africana na Educação.A professora
exibiu a beleza das pinturas que eram feitas nas fachadas das casas
dessa tribo.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
188
3.2 Mostra Cultural- África e Brasil:
redescobrindo valores -Produto da pesquisa
Foto- convite da Mostra Cultural entregue à comunidade
Fonte: Míriam Couto Ferreira
Ao som de uma música em um dos dialetos africanos, a faixa foi
aberta, dando início à Mostra Cultural. Ao exibir a faixa, também
foram exibidos os trabalhos artísticos das crianças, que compuseram
as letras da faixa inspirados na arte africana, trabalhada durante o
projeto de pesquisa. A composição da faixa foi explicada às famílias
e ao público presente.
Além de apresentações de teatro e dança inspirados nos contos e
lendas vivenciados pelas crianças, nesse mesmo espaço do ginásio,
tivemos a exposicão interativa, ou seja, foram disponibilizados
materiais para que os visitantes, crianças e adultos presentes
pudessem experenciar algumas ocinas que as crianças vivenciaram
durante o projeto. Foram elas o método de carimbo da arte
africana, utilizando rolos de papael, tinta têmpera, e a ocina de
desenho utilizando galhos de árvore. Ao nalizar as atividades de
apresentação, as crianças foram convidadas a junto com sua famílias
interagirem nas ocinas.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
189
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após este percurso, esta trajetória repletas de emoções e
surpresas, é o momento de analisar a sua importãncia e o que
signicou para as pessoas envolvidas: pesquisadora, sujeitos da
pesquisa e comunidade escolar.
Compreender a importância da Literatura africana e afro-
brasileira, sobretudo as obras que contenham a tradição oral,
representada neste estudo pelos contos e lendas, pode-se dizer que
foi um desao e objetivo maior desta pesquisa aqui proposta para o
ensino de História.
Essas obras foram utilizadas como potente fonte histórica.
Discorremos, então, sobre a importância dessas para aproximar os
alunos (as) da história da África, com o objetivo de desconstruir
estereótipos associados à cultura negra, que são entraves para a
compreensão da ancestralidade e reconhecimento identitários
pelas pessoas negras.
A cada ocina realizada, era nítido, na fala das crianças e no
comportamento em aula, o quanto estavam felizes em descobrir
o “novo”, o que estava ainda velado. Várias foram as perguntas,
as colocações com entusiamo e alegria, as quais nem todas foram
transcritas aqui, mas caram retidas na mente e no pensamento
de cada um, como é a tradição oral, cujo conteúdo e forma são
impossíveis de transcrever para o papel, com todos os detalhes e
emoções do momento vivenciado! O escritor utiliza os recursos
linguísticos, aproximando um pouco o leitor do que realmente
aconteceu na vivência, na experiência. A trajetória da construção
deste projeto de pesquisa é importante ser lembrada aqui, nesse
momento em que considero ter alcançado os objetivos que me
propus a vivenciar com meus alunos. Que seja uma premissa no
processo dialógico, para que o espaço escolar possa se constituir
como um lugar de encontro, de respeito às diferenças e por uma
educação integradora e inclusiva, porque é neste espaço que o
racismo e preconceitos estruturados serão desconstruídos.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
190
REFERÊNCIAS
ALMEIDA. Gercilga. Bruna e galinha D’Angola.Ed. Pallas, Rio de
Janeiro,2011.
BÂ, Hampaté Amadou. A Tradição viva.In História Geral da África:
Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.
BELLINGHAUSEN, Biesemeyer Ingrid Histórias encantadas africanas.
RHJ Ed.2011
MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade. Brasília, 2005
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol 5, nº 10,1992, p. 200-212.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da História: Fundamentos da
ciência histórica. Brasilia: Editora Universidade de Brasília, 2001.
SILVA, Celso Sisto. O casamento da princesa. Rio de janeiro: Prumo, 2010.
TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em Ciências
Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA:
A ESCOLA ESTADUAL DELFIM
MOREIRA E SUA CONEXÃO COM O
PATRIMÔNIO
Mariana Cunha de Faria1
INTRODUÇÃO
O casarão do colégio Delm Moreira ou Grupos Centrais é uma
edicação da segunda metade do século XIX de características
remanescentes da arquitetura tradicional da época de elementos
classicizantes do século XIX, construído pelo proeminente
fazendeiro e político da cidade, o Comendador Manuel do Valle
Amado para presentear ao Imperador Dom Pedro II.
Durante o levantamento de fontes para a pesquisa de mestrado
que tinha por objetivo trabalhar as relações de sociabilidades que
estão envoltas a história da construção do Palacete Santa Mafalda,
também expuseram as novas relações que não são somente de
sociabilidades que se estabeleceram com o desdobrar da história
do casarão com o seu novo uso como escola, uso esse que trouxe
valor de patrimônio cultural ao palacete que é tombado, essas
relações foram se estabelecendo ciclicamente com o passar dos
1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em História pela Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: faria.mary62@gmail.com / marianacunhadefaria@
gmail.com
191
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
192
anos2, as relações de afetividade combinadas com o sentimento de
pertencimento são a base para que o antigo palacete fosse protegido
de maiores deteriorações e da especulação imobiliária.
Após o casarão passar por uma intensa reforma e processo de
restauração a obra foi entregue em julho de 2023 com um certo
atraso pois foi prometido que as obras seriam ndadas até janeiro de
2023. O imóvel tem cerca de 163 anos de história que perpassaram
entre os séculos XIX e XXI após passar por processo de inventario
e a necessidade de seu tombamento ser demonstrada mesmo assim
os órgãos superiores não acolheram o pedido, entretanto a memória
falou mais alto o sentimento de pertencimento de todos que por ali
passaram foi atendido por meio do tombado via decreto municipal
Processo:3.936/82-Decreto 2.864/19.1.1983, na década de 1980,
durante o exercício do Prefeito Francisco Antônio de Mello Reis.
O casarão que esteve envolto em tramas e peculiaridades políticas
da época do império que fazem parte das relações de sociabilidades
que deram origem ao casarão, mas não determinaram o seu trajeto,
o Palacete Santa Mafalda passou por várias mudanças, intervenções
internas e das épocas com o passar dos anos, junto com a cidade,
uma das mudanças presentes é a forma como atualmente é
conhecido o imóvel, como Grupos Centrais ou colégio Central
estando localizado em uma movimentada avenida, chamada Barão
do Rio Branco no centro da cidade em espaço nobre, de fronte a
igreja Matriz.
O casarão recebeu o nome de Palacete Santa Mafalda ainda no
século XIX, fazendo menção ao antigo proprietário, o Barão de
Santa Mafalda, mas hoje nada lembra o passado no império, com
o passar de mais de cem anos em funcionamento como escola, se
tornou conhecido pelo funcionamento de três grupos escolares em
três turnos diferentes3, mais tarde, na década de 1980, somente
a Escola Estadual Delm Moreira continuou como único grupo
escolar a habitar o imóvel até meados de 2013 em funcionamento no
mesmo local, assim perpetuando a memória deste lugar enquanto
escola, abandonando o seu passado como presente a D. Pedro II,
dando voz a outras narrativas, que surgiram através do uso deste
2 Valor utilitário ou de uso (Gebrauchswert): o valor que um monumento preserva
mantendo-se apto para uso. (RIEGL, 2014, p. 25)
3 Escola de meninos José Rangel, Escola Estadual Estevão de Oliveira e Escola
Estadual Delm Moreira.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
193
local como fonte de instrução e saber , a partir da primeira década
do século passado.
Ao longo de seus 163 anos de edicação, 106 anos foram em
funcionamento na área do saber como escola o que justica as novas
narrativas e desconstruções do passado imperial, demostrando
que o casarão ocupa lugar na memória coletiva da população
juiz-forana pela qual os indivíduos que usufruíram do local como
escola carregam as memórias que o espaço escolar pôde prover
para a coletividade e seus indivíduos, como ponto de encontro e
todos os outros tipos de confraternizações, que possam haver
dentro de um ambiente escolar e todas as outras confraternizações,
que surjam dentro deste ambiente que podem se externar para a
vida, havendo uma ressignicação desse espaço enquanto seu uso,
voltado para a educação, que pelo mesmo motivo pôde resistir a
especulação imobiliária, entre as décadas de 60/70, até chegar em
seu tombado por meio de decreto municipal citado acima, e não
por conta do objetivo de sua construção deste modo corroborando
com o sentimento de pertencimento e memória coletiva Halbwachs
dispõe:
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que
eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não
tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante
pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos
recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. Não é
suciente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento
do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta
reconstrução se opere a partir de’ dados ou de noções comuns que se
encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas
passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o
que só é possível se zeram e continuam a fazer parte de uma mesma
sociedade. (HALBWACHS, 2004, p.34)
De acordo com a história do casarão do Colégio Central,
passaram pelo imóvel diversos sujeitos históricos, que não podem
ser esquecidos como o seu idealizador o Comendador Manoel do
Valle Amado e seu herdeiro, o Barão de Santa Mafalda, a antiga Santa
Casa de Misericórdia de Juiz de Fora também esteve envolvida no
desenrolar da história desde imóvel, quando recebe o Palacete por
meio do testamento do Barão de Santa Mafalda e depois o negocia
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
194
por intermédio do senhor José Rangel para que o Estado de Minas
Gerais pudesse efetuar a compra do imóvel para instalação de um
grupo escolar, e em 1907 foi instalada no local a Escola Estadual
José Rangel, a escola Delm Moreira e posteriormente os Grupos
Centrais foram tomando forma4.
Analisando os atores citados, o que se relaciona por mais tempo
na história do Palacete, é o Estado de Minas Gerais, representado na
gura das escolas que por ele passaram de 1907 a 2013. No álbum
do município feito por Albino Esteves, aparecem informações
sobre os grupos escolares situados no Palacete durante o século
passado em que Esteves, cita que o primeiro Grupo Escolar a ser
utilizado foi o José Rangel que funcionava no período da manhã foi
instalado em 04/23 de fevereiro 1907 era frequentado somente por
meninos, (ESTEVES, 1915, p. 261) havendo uma boa adesão por
parte da população, a escola acabou atraindo a população carente
que antes não via perspectiva de se formar, se não estivesse acesso
à escola particular, em seu primeiro ano de funcionamento obteve
o número de 470 matrículas alcançadas juntamente, com o Grupo
Escolar Delm Moreira que foi instalado para funcionar no horário
da tarde.
O Grupo Escolar Estevam de Oliveira foi criado em parte para
atender a classe operaria que vinha tendo que se adequar perante as
novidades que o advento da industrialização demandava. A escola
atendia ao público que precisava estudar no horário noturno de
modo que atendesse ao interesse da população em questão que em
suma se tratava de pessoas do sexo feminino, o grupo escolar foi
instalado em 15 de janeiro de 1927.
O Casarão passou pelas mudanças de ideias que a virada para o
século XX, trouxe para o país e para a população de Juiz de Fora, no
que se refere à educação, outras mudanças são na área da política,
de paisagens construídas e humana. A industrialização trouxe
modicações necessárias acarretando uma certa luz a necessidades
básicas do trabalhador como o saber ler e compreender o que foi lido,
até mesmo para evitar acidentes dentro das fábricas e tecelagens,
para ser ativo na vida política a educação pontuava com peso como
a autora COHN expressa neste trecho de seu artigo:
4 Escola de meninos José Rangel, Escola Estadual Estevão de Oliveira e Escola
Estadual Delm Moreira.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
195
O regime republicano criou uma nova esperança de melhoria de vida
dos cidadãos. A escravatura havia sido abolida, surgia um novo regime.
A República é conrmada pela constituição de 1891 sendo lhe dado o
caráter federativo, representativo e presidencialista. O voto passa a
exigir a imposição de letramento como condição de votar e ser votado
(COHN, 2008, p. 308).
A migração do campo para as cidades demonstra que a evolução
que se precisa passa pela educação básica que muitos antes não
tinham acesso por vários motivos. E os Grupos Escolares instalados
no Palacete de certa forma lançaram luz para as pessoas que
buscavam instrução, pois não se tratavam somente de meninos com
idade escolar como os garotos do Grupo José Rangel, mas também os
adultos de ambos os sexos que enfrentavam uma segunda jornada,
após um dia cansativo de trabalho nas salas de aula que foram
adaptadas da “Casa do Imperador “ que virou uma “Casa do Saber”
de acordo com os dizeres de COHN “O ensinou transformou-se em
um elemento fundamental para formar os cidadãos republicanos,
patriotas que viriam atuar no mundo urbano, participando da
vida pública e construindo-se, em um povo civilizado (COHN,
2008, p. 307-324). Para essas pessoas que utilizaram o local para se
prepararem paras uma nova empreitada na vida, não importava se
o Palacete foi oferecido ao Imperador tanto quanto, quem foi o “tal”
que mandou construir, o importante para essas pessoas era que o
Palacete era o local onde podiam sanar a falta de instrução para o
trabalho.
Analisando as memórias construídas no âmbito escolar nas
dependências dos Grupos Centrais, se torna claro o motivo dele
fazer parte da memória afetiva e coletiva da população juiz-forana,
tendo em vista o conhecimento do pensamento de Halbwachs
sobre o conceito de memória de que, se o sujeito se recorda de
algo que o insere no corpo social no qual sempre possui um ou
mais grupos de referências, por tal fato a memória é então sempre
construída em grupos, por mais que as experiências possam ser
sentidas e entendidas de formas distintas a memória é um veículo
de socialização dos indivíduos.
Então, quando o casarão é inserido como lugar de memória ele
sofre a ação da ressignicação e assume a identidade dos Grupos
Centrais perpassando por grupos diferentes, que rememoram a sua
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
196
relação com o Palacete desde sua ocupação como escola, em 1907,
até os dias atuais quando a sociedade cobrou por sua preservação ao
governo do estado de Minas Gerais.
Observa-se que a essência da vivência de cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, como se
pode ver, o trabalho do sujeito no processo de rememoração não é
descartado posto que, as lembranças permanecem coletivas e nos
são lembradas por outros de modo particular sem perder a forma
coletiva ainda que, trate de eventos em que somente um indivíduo
tenha tido contato direto com os objetos que somente outro
indivíduo teve tal contato este fenômeno acontece somente porque
jamais estamos isolados pois somos seres políticos, e vivemos em
uma sociedade coletiva mesmo dentro de nossa individualidade.
Consequentemente, a lembrança enquanto memória é o produto
de um todo, de um processo coletivo, estando estabelecida em um
contexto social ou particular onde espontaneamente há troca de
experiências como as manifestações pela reforma do Palacete.
As lembranças mesmo sendo coletivas também podem ser
lembradas por outros indivíduos, mesmo que os indivíduos que
rememoram não estejam diretamente envolvidos e tenham contato
com a memória em questão somente por meio da oralidade no seio
de sua família como pode ser constatado na ocupação do casarão
por meio das escolas que por ali passaram, com a entrega do casarão
reformado para a comunidade escolar em julho de 2023, os alunos
que vão ocupar o local não são os mesmos que estudavam lá na época
de seu fechamento, não são os memos sujeitos que marcharam,
pela Av. Rio Branco pedindo por respeito ao casarão pedindo sua
reforma, os alunos que vão utiliza-lo não tem vínculos de memória
ou afetividade com o casarão, mas tem parentes e amigos que já
passaram pelo local e compartilharam suas histórias e vivencias
para essa geração que vão poder criar suas próprias memorias com
o casarão segundo entrevista realizada em 05/09 do corrente ano,
com a Diretora da Escola Delm Moreira.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
197
Imagem 02 – Foto da reforma da Escola Estadual Delm Moreira (Colégio Central).
Acervo pessoal Mariana Faria
Utilizando o entendimento de locais de memória por Nora, são
lugares em todos os sentidos do termo, vão do objeto material e
concreto, ao mais abstrato, simbólico e funcional, simultaneamente e
em graus diversos, esses aspectos devem coexistir sempre analisando
o antigo colégio sob a ótica imposta por Pierre Nora por conter
uma pequena parcela da história imponente da cidade, e história
do Estado de Minas Gerais no que tange a história da educação.
O Imóvel dos Grupos Centrais é importante para a memória não
somente da cidade de Juiz de Fora, enquanto um bem tombado, mas
conjuntamente por seu valor histórico ao Estado de Minas Gerais
e região pois nele foi instalado o primeiro Grupo Escolar de Minas
Gerais em fevereiro de 1907 segundo relatório realizado pelo autor
Dormevilly Nobrega sobre a história do antigo Palacete.
Quando se expõe as desconstruções pela qual a história do
casarão passou, mesmo que que inconscientemente como local
de memória, rearmando o seu papel perante a memória afetiva
dos indivíduos que perpassam por ele. O que outrora foi símbolo
de poder em várias esferas como a política e econômica de um
rico fazendeiro, como pode ser visto na descrição do decreto de
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
198
tombamento do imóvel que exalta sua volumetria da fachada e a
distribuição das janelas, modo de construção que indica que só um
indivíduo com poder aquisitivo seria capaz de nanciar esse tipo
de edicação, entretanto, agora esse mesmo imóvel se tornou um
símbolo de educação quase que com uma cultura própria.
Ao longo dos 106 anos do casarão enquanto escola, o bem se
tornou um símbolo de educação ao olhar da população, a antiga
escola que é carinhosamente conhecida como Colégio Central é
um marco na história da cidade de Juiz de Fora, o primeiro grupo
escolar de Minas Gerais, pioneiro na região em funcionamento em
três turnos. A desconstrução deste símbolo do império pelo uso e
enraizamento da memória pelo valor de uso como escola, passando
pela memória popular já não permitindo que a memória política de
seu idealizador se sobressaia a memória que o seu uso perpetuou no
cenário da educação em Juiz de Fora.
CONCLUSÃO
Em 1987, a Escola Estadual José Rangel deixa de prestar
seus serviços à comunidade juiz-forana pois foi desativada em
consequência disto a Escola Estadual Delm Moreira assumiu os
alunos da escola José Rangel, em 1992 a Escola Estadual Estevam de
Oliveira saí do imóvel tornando a Escola Delm Moreira tornando-
a única escola a ocupar o espaço e assim acabou por ampliar os seus
serviços.
Compreendo sua importância no tocante a memória coletiva e
patrimônio foi um dos pontos que o ajudaram a afugentar ameaças
de demolições durante os anos 60 e 70, como Dormevilly traz em seu
texto intitulado a “A Casa do Imperador” citando os movimentos de
estudantes e intelectuais que pediam pela preservação do casarão
em uma época que vários outros imóveis da mesma época ou até
mais novos os casarões e sobrados estavam sendo demolidos como
é o caso da casa do Barão de Ibertioga.
Então a ressignicação do imóvel dos Grupos Centrais pela
população como um lugar de memória e patrimônio cultivados no
seio do meio escolar, desconstrói e ressignica o antigo palacete
para a população juiz-forana pois ele não é mais lembrado como o
presente rejeitado por D. Pedro II e sim a escola pública que rendeu
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
199
bons frutos para cidade e região, o primeiro grupo escolar de Minas
Gerais e uma das mais antigas escolas públicas do estado.
Imagem 03 – Representação da Escola Estadual Delm Moreira em tela.
Acervo da Escola Estadual Delm Moreira
Foto realizada por Mariana Faria
Apesar da separação dos Grupos Escolares e a Escola Estadual
Delm Moreira continuar seus trabalhos no imóvel até meados de
2013, a escola voltou ao local original, os grupos escolares voltaram
a car juntos de forma peculiar por meio de sua documentação,
pois a documentação do extinto José Rangel cou sob guarda da
Escola Delm Moreira e com a extinção do Estevam de Oliveira,
em 2021, a documentação foi entregue a direção da Escola Delm
Moreira, fechando um ciclo simbólico para os grupos escolares.
O Colégio Central faz parte da vida de muitas pessoas da cidade
de Juiz de Fora, que buscaram sua preservação tanto nas décadas de
1960, 70 quanto no ano 2013, quando o palacete foi fechado para
aguardar as obras de restauração e reforma, anteriormente no texto
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
200
tratei das desconstruções de memórias que o palacete sofreu por
meio da ressignicação popular, e notasse uma observação, que
o trajeto percorrido ao longo dos anos demonstra que a memória
atribuída ao Palacete não foi alvo de disputas, pois não houve intrigas
de quais memórias deveriam ser ou não serem lembradas, nem de
memórias impostas para uma suposta validação da população, a
validação veio espontaneamente por parte da comunidade pelas
manifestações de alunos e outros populares, professores e outros
interessados na reforma do antigo Palacete, as manifestações
ganharam as ruas, as páginas de jornais e outros veículos de mídia
que de certa forma o protegeu.
REFERÊNCIAS
COHN, Maria Aparecida Figueiredo. O surgimento de uma escola noturna
pública em Juiz de Fora-MG: o grupo escolar Estevam de Oliveira.
EDUCAÇÃO EM FOCO: Revista de educação. Universidade Federal de Juiz
de Fora: Ed Especial, 2008.
ESTEVES, Albino; LAGE Oscar Vidal Barbosa. Album do Município de Juiz
de Fora. Belo Horizonte. Imprensa Ocial do Estado de Minas. 1915.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP Editora da UNICAMP,
1990.
NOBREGA, Dormevelly. A casa do Imperador: - Escola Normal - Grupos
Centrais. Juiz de Fora: Edições Caminho Novo, 1997.
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História da PUC - SP, n. 10. São Paulo, dez.-
1993.
PEIXOTO, Ana Maria Casasanta. Barão do Rio Branco: De 1° grupo escolar
a Escola Estadual-Marcos de um educandário de Belo Horizonte.
EDUCAÇÃO EM FOCO: Revista de educação. Universidade Federal de Juiz
de Fora: Ed Especial, 2008
RANGEL, José. Como o tempo Passa. Rio de Janeiro: A encadernadora S.A.
1940.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
201
___________. Escola Normal: Relatório apresentado ao Dr. Secretário do
interior, pelo diretor da Escola Normal, Jornal Correio de Minas, Juiz de
Fora, dias 28, 29, 30 e 31 de maio de 1904.
RIEGL, Alois. O Culto Moderno dos monumentos: a sua essência e a sua
origem. Anat Falbel. I. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
BRINCAR E APRENDER
HISTÓRIA: REINVENTANDO
JOGOS TRADICIONAIS-
POPULARES COM A TEMÁTICA
DO PATRIMÔNIO CULTURAL
Milca Fontenele de Sousa1
Introdução
A educação patrimonial apresenta-se como uma possibilidade
de ressignicar a aula de história criando relações de pertencimento
e reconhecimento dos estudantes com a cultura histórica da
cidade. As percepções de patrimônio e educação patrimonial que
norteiam este estudo tem caráter interdisciplinar e construtivista,
o que propicia diferentes possibilidades de abordagem a partir do
Conjunto Histórico e Paisagístico de Piracuruca (Piauí), propiciando
diálogos com diversos campos do conhecimento, além de andar
lado a lado com a História Local, tornando o ensino de História
mais signicativo. Para além dessa perspectiva, abarca ações de
cidadania, sentimentos de pertencimento e interação família/escola.
1 Professora do componente curricular de História na Secretaria de Educação
do Estado do Piauí (SEDUC-PI) e discente do Mestrado Prossional em Ensino de
História (ProfHistória), no núcleo da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-mail:
milcafontenele@hotmail.com
202
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
203
Considerando os estudantes como crianças e jovens, a
aprendizagem histórica é facilitada quando se utiliza metodologias
e recursos didáticos que aproximem o conteúdo de suas vivências.
O professor ao fazer uso de exemplos ou levar para a sala de aula
fontes históricas traduz numa linguagem própria do aluno aquilo
que por uma sequência de páginas do livro didático não conseguiu
repassar. A afetividade aos locais, aos personagens, as vivências
diárias fazem o estudante perceber-se como sujeito da história e não
apenas como objeto.
O Conjunto Histórico e Paisagístico de Piracuruca, também
conhecido por centro histórico, é composto por exemplares
arquitetônicos representativos de períodos importantes do
desenvolvimento da cidade, desde a colonização do território até
construções posteriores ao ciclo da carnaúba, por volta de 1950
e 1960. Além das construções arquitetônicas, o rio Piracuruca é
incluído como parte do cenário histórico e paisagístico, o que ajuda
a proteger sua biodiversidade e sua historicidade.
A partir do método da pesquisa-ação desenvolve-se ocinas
de educação patrimonial com estudantes do 6º ano do ensino
fundamental de uma escola pública localizada em Piracuruca,
no estado do Piauí. As reexões e discussões apresentadas neste
trabalho partem da análise dos dados obtidos durante a realização
das ocinas e visita ao centro histórico da cidade. As experiências
obtidas por meio da realização de atividades de educação patrimonial
possibilitaram a adaptação de jogos tradicionais-populares à
temática do patrimônio cultural como meio de favorecera a
aprendizagem histórica.
1. O patrimônio cultural como estratégia para
o ensino de História Local
A possibilidade de abordagem do patrimônio cultural nas aulas
de história parte das concepções de fonte histórica apresentadas pelo
movimento dos Annales (1929) que propõem sua ampliação para
além dos documentos escritos, abarcando diversas manifestações
discursivas e possibilitando o estudo de outros grupos e sujeitos
históricos.
Além das mudanças historiográcas, a redemocratização ocorrida
na década de 1980 e a posterior elaboração dos do Parâmetros
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
204
Curriculares Nacionais (PCNs) trouxeram para o ensino de história
mudanças signicativas, dentre as quais a percepção do estudante
como sujeito social, capaz de construir seu próprio conhecimento.
Portanto, a utilização de variados documentos históricos surge como
uma das opções viáveis para o desenvolvimento de uma consciência
crítica das diferentes narrativas históricas. Nesse sentido, os PCNs
defendem que “o trabalho com documentos históricos é um recurso
didático que favorece o acesso dos alunos a inúmeras informações,
interrogações, confrontações e construção de relações históricas”
(BRASIL, 1997, p. 89).
Articuladas a nova perspectiva de ensino/aprendizagem
desenvolvem-se novas metodologias como meio de alcançar os
objetivos propostos. Assim, a partir de novas fontes, metodologias e
concepções pedagógicas, ganha força no Brasil práticas de educação
patrimonial, que reetem o novo conceito de patrimônio cultural e
o contexto de lutas sociais por direito à memória e a história.
Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material
e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de
expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações cientícas,
artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edicações
e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V -
os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e cientíco (BRASIL, 1988).
A partir da Constituição de 1988, pode-se falar de um patrimônio
para além da “pedra e cal”, contemplando uma diversidade de saberes
e fazeres da cultura imaterial que revelam a pluralidade de raízes e
matrizes étnicas brasileiras. O novo conceito de patrimônio cultural,
pautado numa memória plural, propiciou o desenvolvimento de
uma nova política de patrimonialização realizada pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), possibilitando
o tombamento e a salvaguarda de bens culturais antes silenciados
ou apagados historicamente.
Entre 2006 e 2013, o IPHAN realizou o tombamento dos
Conjuntos Urbanos Históricos e Paisagísticos de Parnaíba, Oeiras
e Piracuruca. Os três conjuntos históricos tombados neste período
relacionam-se ao processo de ocupação do território por meio da
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
205
atividade agropecuária. Neste sentido, a narrativa histórica é escrita
na perspectiva de macroprocessos, que possibilitam a reconstrução
de um tempo histórico. Lopes (2020, p.181) esclarece que “a seleção
de Conjuntos Urbanos ao longo do tempo perpassa diversas
narrativas, trazendo-nos modos de ler as cidades pela miríade
de valores que os constituem, tornando leituras de conjuntos
urbanos para além da concepção estética”. Segundo a proposta de
patrimonialização do espaço apresentada pelo Departamento de
Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM):
O que se busca com o tombamento de Piracuruca não é apenas
preservar o acervo arquitetônico, mas um espaço urbano privilegiado
e pleno de signicados. Assim, a população local poderá dele se
apropriar e ali continuar a praticar seus ritos, conhecer sua história e
reconhecer seu papel na história do Brasil. (IPHAN, 2008, p. 6)
Assim, a ideia de patrimônio cultural, ultrapassa percepção do
“belo e velho” utilizada pelo Iphan nas primeiras décadas de atuação,
assumindo múltiplas possiblidades de interpretação, fortalecendo
identidades e desenvolvendo sentimentos de pertencimento,
possibilitando o desenvolvimento de nova pedagogia do patrimônio,
nas palavras de Scifoni (2022, p. 2), em que “entende a educação
na perspectiva do diálogo e do fortalecimento da autonomia dos
sujeito, que se dá pela produção de conhecimento sobre as próprias
cultura e memória, bom como pela problematização do que já se
encontra instituído”.
O Conjunto Histórico e Paisagístico de Piracuruca apresenta
inúmeras possibilidades de utilização para o ensino de História.
Apesar de apresentar à primeira vista um discurso hegemônico,
constituído a partir da lenda de construção da igreja2, a interpretação
dos bens patrimoniais e do conjunto como um todo possibilitam
2 É ensinamento comum que as origens mais remotas de Piracuruca datam do
início do século XVII, quando dois ricos portugueses, os irmãos Manuel e José Dantas
Correia, empreenderam a aventura de descobrimentos de terras. Quase à costa,
bem próxima dos silvícolas, para chantarem um curral. Atacados pelos índios que
infestavam a região, foram aprisionados e temendo a morte, zeram uma promessa à
Virgem do Monte do Carmelo de “edicarem um suntuoso templo, no próprio lugar em
que se achavam presos, se os livrasse das mãos dos bárbaros indígenas”. Salvos, logo
se dispuseram a cumprir o prometido. Voltaram a Portugal e, segundo uma tradição,
de lá trouxeram mestres de obras, peritos no talhar das pedras e marceneiros, logo
deram início à mais bela obra colonial do Piauí (MELO, 2019, p. 557).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
206
um ensino de abordagem renovada, de viés decolonial, favorecendo
reexões, debates e o surgimento de novas narrativas.
A História Local, por meio da utilização do patrimônio cultural
local, apresenta-se como uma possibilidade teórico-metodológica
de superar as barreiras impostas pela história quadripartite,
excludente, de viés colonizador que permeia os livros didáticos
e por que não dizer as instituições ociais de ensino e suas
normativas. Mas até que ponto o patrimônio cultural local pode
ser considerado como mediador para o ensino de História? Se por
vezes a História Geral questionou a credibilidade da História Local,
atualmente o discurso é de defesa por uma intersecção entre as
mesmas. Sendo interdependentes estes estudos se complementam,
sem se sobreporem. Em relação à escrita e estudo da História Local,
é necessário buscar relações com outras perspectivas históricas,
além de desenvolver conceitos, temporalidades e demarcar escalas
de estudos que se adequem à realidade dos alunos.
Vilma Melo (2015) defende que a História Local sem
interação com o cenário nacional e internacional mais amplo
leva o historiador a cometer um erro equivalente ao da história
nacional homogeneizante/homogeneizadora/absoluta, qual seja,
o particularismo/localismo/ singularidade. Portanto, é necessário
relacionar patrimônio cultural local a histórias de maior abrangência
no cenário nacional ou mundial.
2. Construção e aplicação da Caixa Lúdica do
Patrimônio
Esta pesquisa desenvolve-se a partir de pesquisa-ação
desenvolvida com 29 estudantes do 6º ano do ensino fundamental,
com faixa etária entre 11 e 12 anos. O local da pesquisa é uma escola
pública do município de Piracuruca, Piauí. A escola é referência em
educação no município, apresentando excelentes resultados em
avaliações externas. Como professora titular da disciplina História,
assumo nesta pesquisa a condição de pesquisadora e participante
da pesquisa.
A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social de base empírica,
concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com
a resolução de um problema coletivo, no qual os pesquisadores e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
207
os participantes representativos da situação ou do problema estão
envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2011, p.
20).
A pesquisa-ação teve início com a aplicação de um diagnóstico
participativo, no formato de um questionário impresso, onde os
participantes puderam reetir e expressar suas opiniões a respeito
da sua aprendizagem escolar e sobre o patrimônio cultural local. Os
resultados obtidos por meio da análise das respostas permitiram
concluir que a metodologia é o principal responsável por favorecer
ou não o interesse dos estudantes pelas aulas.
Percebe-se que na faixa etária em que se encontram os participantes
são necessárias atividades metodológicas onde haja maior interação
entre eles e os espaços educativos da cidade, contribuindo para um
ensino mais dinâmico. Nesse sentido, constata-se que a aparente
falta de interesse pelas aulas não se dá em razão dos conteúdos
propostos, mas das metodologias utilizadas no processo de ensino-
aprendizagem. Os resultados do diagnóstico participativo foram
fundamentais para o planejamento e organização das ocinas de
educação patrimonial e visita ao centro histórico, propostas na
pesquisa.
As ocinas de educação patrimonial partiram do pressuposto que
considerando - se, crianças, os participantes da pesquisa a inserção
do lúdico seria fundamental no planejamento e desenvolvimento
das ocinas, visando sua contribuição para a formação cognitiva
do educando, a partir de um aprendizado mais natural e prazeroso.
As atividades desenvolvidas nas quatro ocinas propostas partiram
da sensibilização da história de cada um, da percepção do aluno
como sujeito histórico até a discussão do patrimônio como campo
de disputas e silenciamentos.
Atualmente estamos cercados por uma diversidade de
atividades lúdicas, desde as tradicionais até as mais sosticadas
tecnologicamente. Os jogos e brincadeiras podem ser utilizados
como instrumentos pedagógicos de grande potencial, à medida que
[...] facilitam o processo de autoconhecimento e autoconsciência, e
o aprendizado a partir de seus próprios erros, da observação e da
integração com o grupo; denitivamente, este processo é o desao
da educação deste século, que exige a competência de: Aprender a
aprender. (SANJAUME, 2016, p. 21)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
208
Em relação ao jogo e aprendizagem Kishimoto (2011, p.41)
arma que:
Quando as situações lúdicas são intencionalmente criadas pelo adulto
com vistas a estimular certos tipos de aprendizagem, surge a dimensão
educativa. Desde que mantidas as condições para a expressão do jogo,
ou seja, a ação intencional da criança para o brincar, o educador está
potencializado as situações de aprendizagem.
A proposta de pesquisa não buscou criar um jogo ou brincadeira
nova, mas adaptar jogos tradicionais-populares à temática do
patrimônio cultural local de forma a incentivar outros professores
a recriarem jogos populares já conhecidos pelos estudantes à
temática do patrimônio cultural local. Assim, jogos de caça-
palavras, quebra-cabeça, memória, dominó, e outras atividades
lúdicas como produção de desenhos, árvore genealógica e mapa
afetivo, associadas à temática do patrimônio cultural local foram
utilizadas para despertar o interesse e contribuir pelo aprendizado
de História.
A organização do material que compõe o recurso pedagógico
foi feita por meio de uma caixa denominada Caixa Lúdica do
Patrimônio, composta por 4 jogos diferentes tendo como material
básico de confecção o papel. Para além dos objetivos pedagógicos
da disciplina, buscou-se a interação entre os participantes, em um
contexto pós-pandemia Covid-19 o desenvolvimento de habilidades
sociais de cooperação, compartilhamento, expressão e respeito são
essenciais para o desenvolvimento de crianças e jovens.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
209
Figura 1- Aplicação dos jogos tradicionais populares com os participantes da pesquisa.
Fonte: A autora, 2023.
A opção por utilizar jogos tradicionais populares parte da carência
de um laboratório de informática na escola, por tanto, a utilização
de jogos analógicos apresentou-se como uma possibilidade de
desenvolver um recurso pedagógico de fácil replicação para todos
os alunos. Assim, foi possível que todos os 29 estudantes da turma
em que se desenvolveu a pesquisa, pudessem participar da mesma
atividade lúdica ao mesmo tempo. Dessa forma a Caixa Lúdica do
Patrimônio foi composta por 10 dominós com 36 peças cada;15
quebra cabeças diferentes; 15 jogos da memória: brincar e aprender
história, com 10 pares de peças; 10 jogos da memória: ontem e hoje,
com 13 pares de peças e um manual de aplicação e confecção dos
jogos para professores.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
210
Considerações nais
A pesquisa-ação apresentada une pesquisa, prática pedagógica
e produção de conhecimento a partir de propostas de utilização
do Conjunto Histórico e Paisagístico de Piracuruca para o ensino
de História. A utilização do patrimônio cultural local por meio de
atividades lúdicas surge como meio de tornar o ensino de História
mais signicativo, favorecendo a construção do saber.
A aplicação de jogos tradicionais-populares com os participantes
demonstrou que mesmo envolvidos numa realidade permeada por
aparelhos tecnológicos, onde a diversão ocorre por meio de telas,
simples peças ou cartas confeccionadas com papel conseguiram
atrair a atenção dos participantes e estimulá-los a participar de todas
as atividades educativas. Embora os jogos tradicionais-populares não
estejam presentes no cotidiano da maioria deles, todos conheciam o
desenvolvimento e as regras dos jogos apresentados, sendo possível
alcançar os objetivos propostos para cada um deles.
O método da pesquisa-ação ao favorecer uma maior interação
entre participantes e professora-pesquisadora trouxe novas
perspectivas para o fazer docente, de forma a perceber os estudantes
em suas singularidades e como sujeitos capazes de construir seu
conhecimento.
A produção de um material didático a partir de técnicas e recursos
simples mostraram o quanto é possível realizar transformações
no fazer pedagógico e consequentemente na aprendizagem dos
estudantes. Dentre os resultados obtidos, pode-se perceber os
participantes mais motivados em participar das aulas, assim como
uma relação mais afetiva entre professor e alunos.
Pretende-se apresentar a Caixa Lúdica do Patrimônio para
professores da cidade de Piracuruca em encontros pedagógicos
nas escolas, assim como disponibilizar os arquivos utilizados para
produção dos jogos e o manual de aplicação e confecção de forma
online como forma de incentivar professores de outros lugares a
adaptarem jogos tradicionais-populares à temática do Patrimônio
cultural da realidade em que se inserem.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
211
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,
DF: Presidência da República. Disponível em: Constituição (planalto.gov.
br). Acesso em: 23 jul. 2023.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais: história, geograa. Secretaria de Brasília: MEC/SEF, 1997, 166p.
CAIMI, Flávia Eloisa. Fontes históricas na sala de aula: uma possibilidade
de produção de conhecimento histórico escolar? Anos 90, Porto Alegre,
v. 15, n. 28, p. 129-150, dez. 2008.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Cidades
do Piauí testemunhas da ocupação do interior do Brasil durante o
século XVIII: Conjunto Histórico e Paisagístico de Piracuruca. Dossiê de
tombamento. Teresina: IPHAN/PI, 2008.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida (org.). O jogo, brinquedo, brincadeira e a
educação. 4 Ed. São Paulo: Cortez, 2011.
LOPES, Daniel Barreto. Conjuntos Urbanos Históricos e Paisagísticos
de Parnaíba, Oeiras e Piracuruca: reexões a partir de uma escrita do
patrimônio no Piauí. 2020, Revista Escripturas, v. 4, n. 1, p. 178-196.
MELO, Cláudio, Padre. Obra reunida. / Padre Cláudio Melo. – Teresina:
Academia Piauiense de Letras, 2019. Coleção Centenário; 103.
MELO, Vilma de Lurdes Barbosa e. História local: contribuições para
pensar, fazer e ensinar. João Pessoa: Editora da UFPB, 2015.
SANJAUME, Núria Guzmán. Neuroeducação e jogos de mesa. São Paulo:
Devir, 2016. Disponível em: https://devir.com.br/escolas/arquivos/
Neuroeducacao.pdf. Acesso em 13 jan. 2024.
SCIFONI, Simone. Patrimônio e educação no Brasil: O que há de novo?.
Educação & Sociedade, v.43, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
es/a/zK7BLX6XmXMX5QnZFhLbRBS/abstract/?lang=pt#ModalHowcite.
Acesso em: 19 maio 2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
212
THIOLLENT, Michel. Metodologia a pesquisa-ação. 18.ed. – São Paulo:
Cortez, 2011.
OS PATRIMÔNIOS DE BAGÉ –
ALGUMAS EXPERIMENTAÇÕES
EM SALA DE AULA
Natália Centeno Rodrigues1
Considerações iniciais
Este artigo surge a partir de uma experiência realizada junto
à turma do segundo semestre do Curso Técnico Integrado em
Informática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sul-rio-grandense – IFSul Câmpus Bagé, no ano de 2023. O relato
basilar provém do Projeto Interdisciplinar “Concepções possíveis
sobre os patrimônios em Bagé”, que objetivava compreender
o patrimônio municipal em uma perspectiva múltipla, não
estando restrito as edicações reconhecidas pela sua arquitetura.
As atividades foram aplicadas junto a uma turma de quatorze
estudantes com idade média de dezesseis anos. Para ns da escrita
do artigo, focaremos nas reexões tecidas junto à disciplina de
História. A metodologia do projeto consistiu na realização de duas
saídas de campo, seguidas por momentos reexivos que visaram
abordar as dimensões culturais, sociais, políticas e pedagógicas dos
patrimônios.
1 Professora Substituta do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-
rio-grandense – IFSul no Câmpus Bagé, na área de História. Doutoranda em Memória
Social e Patrimônio Cultural (UFPel), Mestra em Direito e Justiça Social (FURG),
Bacharela em Direito e História (FURG) e licenciada em História. Contato: naticenteno@
gmail.com
213
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
214
O presente escrito, além das considerações iniciais, é composto
por uma explanação teórica que fundamenta a realização do projeto
e a formulação deste artigo. Assim as concepções pedagógicas e
patrimoniais foram apresentadas. Posteriormente, abordamos os
meios protetivos do patrimônio e os locais que foram pensados
para a execução do projeto. Por m, explanamos sobre as saídas
de campo e a execução efetiva do projeto. As considerações nais
encerram o texto, evidenciando que o projeto alcançou os objetivos
estabelecidos.
Concepções teóricas e costuras com o projeto
Este item textual visa apresentar de forma objetiva o projeto e
as bases teóricas para a sua construção e realização. O projeto se
caracterizou pela realização de duas saídas de campo ao centro
histórico de Bagé. Os locais selecionados foram o Palacete Coronel
Pedro Osório, a Galeria de Arte Edmundo Rodrigues, a Praça de
Desportos, o Museu Dom Diogo de Souza, a Catedral São Sebastião
e o calçadão. Nas saídas de campo, foram abordadas as noções de
patrimônios edicados, suas concepções e elaborações, seus usos.
Visando que os educandos desenvolvam o senso de comunidade e
pertencimento.
O sentido de educação adotado no projeto parte de um fazer
constitutivo, que nos faz ser e nos possibilita conviver, pois a
educação faz parte da vida e é conectada e interrelacionada com
os outros fatores das vivências (BRANDÃO, 1981). Adotamos uma
perspectiva de educação problematizadora, que parte de Paulo
Freire (1987) e visa à libertação e se assenta na dialogicidade, de
cunho reexivo, situando os educandos como seres no mundo.
Temos como base a criticidade, situando os sujeitos em suas
relações com o mundo e desvelando a realidade social. Assim, a
educação problematizadora representa uma tentativa constante
pela qual os sujeitos se constituem e compreendem criticamente o
mundo. A curiosidade é um elemento fundamental nesse processo
de indagação, transformando-se em sujeitos que questionam e
perguntam (FREIRE, 1987). Dentro do projeto, os educandos
aqui são entendidos como sujeitos sócio-históricos. Tal percepção
dialoga com as palavras de Eric Hobsbawm, que nos ensina que o
“passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
215
humana, um componente inevitável das instituições, valores e
outros padrões da sociedade humana” (2013, p. 25).
A compreensão da historicidade humana reside na ideia de que os
seres humanos são seres históricos, que se constituem socialmente e
possuem uma capacidade constante de aprendizado. A partir dessas
premissas, a educação é concebida como um processo dialógico
(FREIRE, 1996).
O ensino não deve ser monótono, com o educador como
único protagonista. Na visão freiriana, “ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as condições para sua produção ou
construção” (FREIRE, 1996, p. 22). Nesse diálogo constante, a
aprendizagem ocorre, onde quem ensina também aprende, e quem
aprende assume o papel de ensinar. Os educandos são sujeitos
históricos com capacidade crítica. Portanto, o educador tem a
responsabilidade de conhecer, debater, analisar e incentivar a
curiosidade, conforme propõe Paulo Freire (2018).
Os patrimônios são pontos de referência em relação ao passado e
adotam o mesmo como referência e não cam restritos a esse tempo
(SILVA, 2015). Assim, vemos que os patrimônios não se relacionam
apenas com o passado, e sim, que obedece a uma temporalidade
uída composta de passado, presente e futuro. O patrimônio
se conecta com o presente através da interação que os sujeitos
realizam para e com eles, por isso o projeto se assentou na ideia
dos educandos interagirem e construírem seus signicados com o
patrimônio. É fundamental lembrarmos que o patrimônio possuí
uma origem, uma historicidade. Outro ponto importante é que os
patrimônios existem dentro dos seus contextos e atendem aos seus
ritmos. “Quanto aos ritmos, ou ao menos aos ritmos endógenos,
eles são produto e resultado do patrimônio” (VARINE, 2012, p. 20).
Os patrimônios fazem parte da vivência local, e neles podemos
perceber três esferas: o meio ambiente como local de pertencimento,
saberes e fazeres das comunidades que habitam o lugar e objetos
considerando tudo aqui que foi feito pelo humano (VARINE, 2012).
O projeto de ensino objetivava possibilitar a compreensão
de patrimônio e todas as nuances que compõem esse conceito
interdisciplinar, demonstrando como os diferentes patrimônios de
Bagé podem ser pensados. Assim, vimos que os objetivos consistiram
em aprofundar o conhecimento da história local, perceber a relação
entre patrimônio, memória e história, sensibilizar o olhar dos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
216
educandos para os patrimônios e sua diversidade e perceber que o
patrimônio consiste em uma múltipla possibilidade de relações de
ensino.
Cada saída de campo buscou abordar patrimônios reconhecidos
por diversos usos sociais. As visitações foram pensadas como
ações de transmissão e estímulo ao respeito, buscando aproximar e
fomentar o interesse pelo patrimônio cultural dos educandos. Dessa
forma, foi proporcionada aos educandos uma experimentação
dos patrimônios, incentivando a apreciação, análise e descobertas
por meio da vivência. Isso incluiu a saída do ambiente escolar,
convidando-os a explorar a cidade e experimentar as diferentes
sensações e vivências diante desses patrimônios (HORTA, 1999).
As saídas de campo realizadas ao longo do projeto buscaram fazer
do caminhar o instrumento de sensibilidade e um meio capaz de
ampliar o repertório cultural dos educandos.
(...) educar é levar os noviços para o mundo lá fora, ao invés de – como é
convencional hoje – inculcar o conhecimento dentro das suas mentes.
Signica, literalmente, convidar o aprendiz para dar uma volta lá fora.
Que tipo de educação é essa, que se dá durante o caminhar? (INGOLD,
2015, p. 23).
O ato de caminhar faz com que os educandos experienciem e
criem conexões com os patrimônios, vivenciando experiências
singulares junto aos patrimônios, e assim
propiciam aos alunos perceber a História como experiência. E a história
das cidades parece-nos ser de enorme potencial para que os alunos
reitam sobre sua própria experiência histórica no lugar em que vivem,
sobre suas responsabilidades no presente e na construção do futuro
(SIMAN, 2008, p. 266).
Logo, o contato e a experiência junto ao patrimônio propiciam
a formulação de questionamentos, instigam a curiosidade e
sensibilizam o olhar para o patrimônio e a sua importância. Na
medida em que o pertencimento e o conhecimento histórico-
patrimonial são elementos fortalecedores da cidadania, criam
vinculações entre os sujeitos, os locais, suas utilizações e abordam
as múltiplas dimensões patrimoniais – social, pedagógica, cultural e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
217
política. Evidencia-se a perspectiva emancipadora e transformadora
da educação patrimonial.
As saídas de campo do projeto buscaram envolver os educandos
em um engajamento ativo com o conhecimento, a apropriação e a
valorização de sua herança cultural, congurando-se como ações de
educação patrimonial. Essas ações visavam habilitar os educandos
para um melhor uso desses bens patrimoniais, formular novos
conhecimentos e estimular a elaboração de novos saberes, por meio
de um processo constante de criação cultural (HORTA, 1999).
Sendo assim, essa tomada de consciência é importante para que o
estudante, conhecendo os processos históricos, se sinta pertencente
à cidade.
A concepção de educação patrimonial adotada no projeto vincula-
se às “possibilidades de pensar e articular de maneira complexa
sobre os lugares em que estamos, nos quais circulamos e atribuímos
sentidos” (TORRES, 2021, p. 13). Por isso, as ações do projeto visam
“(re)inventar patrimônios, signicados são construídos e atribuídos
a partir de experiências coletivas e relacionais entre os sujeitos
que agem, por exemplo, nos espaços escolares em que operamos
pedagógica e politicamente” (TORRES, 2021, p. 13). Assim, vemos
que as identicações culturais são construídas de modo relacional.
Rompendo com o conceito tradicional de patrimônio, vinculado
aos valores históricos e estáticos, ao longo do projeto compreendemos
que o patrimônio é “dinâmico e mobilizador de diferentes atitudes e
reexões acerca da memória, do poder, da política, da cultura, logo
das relações sociais” (TORRES, 2021, p. 14). Essas ações educativas
servem para questionar e problematizar os conceitos, valores,
memórias, identidades e identicações, dessa forma que o projeto
foi pensado e articulado. No próximo item textual, vamos abordar
os meios protetivos do patrimônio e os locais que foram pensados
para a execução do projeto.
Os Patrimônios e o projeto
A proteção ao patrimônio nacional começou a ser organizada
institucionalmente durante o governo do Estado Novo de Getúlio
Vargas. Foi criado, através do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro
de 1937, o Serviço Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), que estabeleceu regras para a proteção,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
218
preservação, conservação e tombamento do patrimônio artístico
e histórico nacional. O decreto possui pontos considerados
progressistas, como atribuir que o patrimônio é composto por bens
imóveis e móveis, levando em consideração o valor etnográco,
arqueológico, artístico ou bibliográco (BRASIL, 1937). O SPHAN
tornou-se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), denominação que foi utilizada em dois momentos de
nossa história: de 1970 a 1979; e a partir de 1994 (REZENDE, 2015).
Internacionalmente, destaca-se a atuação da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO),
que dene o Patrimônio Cultural na Convenção para a Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972. Essa convenção
determina que os monumentos, conjuntos e locais de interesse
apresentem um valor universal do ponto de vista histórico, cientíco,
antropológico, estético ou etnológico.
No âmbito pátrio, a Constituição Federal, em seu artigo 216,
aborda que o patrimônio cultural brasileiro é composto por bens
materiais e imateriais, sendo estes individuais ou coletivos, que se
referem à identidade e à memória de diversos grupos. Esses bens são
múltiplos, compostos pelas formas de expressão, modos de viver,
manifestações artísticas, obras, documentos, conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico e artístico. Cabe ao poder público promover
e proteger esse patrimônio por meio de diversos instrumentos,
como inventários, tombamentos e desapropriações, criando formas
diversas de preservação. Importante ressaltar que todos os entes
da administração pública – União, Estados e Municípios – devem
promover a proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico,
turístico e paisagístico (BRASIL, 1988).
Os locais escolhidos para as saídas de campo mesclaram os
patrimônios reconhecidos pelos entes estatais brasileiros, ou
seja, prédio que foram tombados no âmbito nacional, estadual e
municipal, mas também escolhemos locais que são simbólicos por
seus usos e funções sociais que desempenham junto ao município.
Todos os bens cam localizados no Centro Histórico de Bagé.
O Palacete Pedro Osório foi um prédio construído no começo
do século passado; muitos atribuem a sua autoria ao Pedro Obino.
O prédio foi construindo em estilo neoclássico - eclético, composto
por mármore, ferro e vitrais, e destaca-se pelos seus detalhes
arquitetônicos que até hoje chamam atenção. Junto ao prédio,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
219
Dr. Pedro Luiz Osório Filho, apaixonado por árvores começou a
construir um bosque, que posteriormente recebeu o nome de Bosque
Eduardo Contreiras Rodrigues (FAGUNDES, 2012). O seu processo
de tombamento deu-se junto ao Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Estadual do Rio Grande do Sul – IPHAERS, através da
Portaria 028 de 2006, e o número do processo consiste em 002294-
1100/06-6. Além da proteção estadual o Palacete Pedro Osório, sede
atual da Secretaria Municipal de Cultura, onde funciona a Galeria
de Arte Edmundo Rodrigues e está localizado o Bosque Eduardo
Contreiras Rodrigues, foi declarado como Patrimônio Cultural e
Histórico municipal, por força do inciso XVI, do artigo 3º da Lei
municipal nº 4.836 de 2010 (BAGÉ, 2010).
Figura 1(esq.): Vista externa do Palacete Pedro Osório e seus detalhes arquitetônicos.
Figura 2 (dir.): Vista interna do Palacete Pedro Osório e a entrada para a Galeria de Arte.
Fonte: Natália Centeno Rodrigues (2023).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
220
Figura 3: Vista do Bosque localizado na parte interna do Palacete Pedro Osório.
Fonte: Natália Centeno Rodrigues (2023).
A Praça de Desportos é uma das principais praças da cidade,
antigamente conhecida como Praça da Constituição e Praça Rio
Branco, local signicativo para a vida da sociedade bajeense e até
hoje ocupa esse local de destaque no município (FAGUNDES, 2012).
O Centro Histórico de Bagé teve seu processo de tombamento junto
ao IPHAERS através da Portaria 62 de 2012, número do processo
consiste em 001351-1100/11-8.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
221
Figura 4: Praça de Despostes visão central ao fundo a concha acústica
Fonte: Natália Centeno Rodrigues (2023).
Já o Museu Dom Diogo de Souza foi fundado em 1955 por
Tarcísio Taborda e, em 1975, mudou-se para o prédio atual, sede
da Sociedade de Benecência Portuguesa, um prédio histórico que
data do nal do século XIX e esteve vinculado a diversos episódios
históricos da cidade (FAGUNDES, 2012). O prédio da Sociedade
Portuguesa de Benecência, localizada na Avenida Emílio Guilain,
nº 759, onde funciona atualmente o Museu, foi declarado como
Patrimônio Cultural e Histórico municipal, por força do inciso
XVII, do artigo 3º da Lei municipal nº 4.836 de 2010 (BAGÉ, 2010).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
222
Figura 5: Museu Dom Diogo de Souza, prédio da Sociedade Benecência Portuguesa.
Fonte: Natália Centeno Rodrigues (2023).
A Catedral de São Sebastião, conhecida como a Igreja Matriz
de São Sebastião da cidade, data do nal do século XIX. Tem uma
planta central com nave única e duas torres com forma de bulbo. A
obra é atribuída ao arquiteto José Obino, italiano que, após formar-
se em arquitetura, veio morar no Brasil e xou residência no Rio
Grande do Sul, tendo morado em Pelotas, Bagé e Porto Alegre
(FAGUNDES, 2012). O tombamento foi realizado junto à União,
com o número de processo 337-T-1944, no livro tombo inscrição nº
306, de 17/01/1955.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
223
Figura 6: Catedral de São Sebastião.
Fonte: Natália Centeno Rodrigues (2023).
Sobre o calçadão municipal, antigamente, nesse local, funcionava
o Mercado Público, que foi demolido no meio da década de 1950.
Para a destruição do imponente prédio, dois argumentos foram
elencados: o mercado ocupava uma zona nobre da cidade, e essa
merecia ser mais bem aproveitada; e o segundo ponto é que a
prefeitura necessitava de recursos, e a venda seria uma forma prática
de levantar fundos (FAGUNDES, 2012). O espaço foi negociado, e
o relógio do antigo mercado, de fabricação francesa que datava de
1917, foi preservado e, em setembro de 1983, foi instalado na Praça
da Bandeira, hoje local do calçadão municipal de Bagé.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
224
Apresentados os locais que foram elencados para essa edição
do projeto, nela tivemos visitas a locais que atendem a seleção
patrimonial realizada pelos entes estatais e outros que foram
pensados pelos usos e as relações estabelecidas para com os
educandos. Agora passaremos a abordar a execução das saídas de
campo do projeto.
As saídas de campo e a execução do projeto
O projeto foi executado por meio de duas saídas de campo,
nas quais os estudantes foram convidados a experienciar diversos
locais da cidade, os quais foram caracterizados no item anterior do
texto. O projeto se pautou nas visitas, estas consistiam em processos
educativos e pautados pela construção coletiva e democrática dos
conhecimentos.
A primeira saída de campo ocorreu em abril de 2023 e consistiu
na ida ao Centro Histórico. Visitamos o Palacete Pedro Osório,
construção datada de 1901 de arquitetura eclética, sede da secretaria
de cultura municipal. Os estudantes conheceram a estrutura
interna do prédio, analisaram a arquitetura e usos históricos que a
edicação desempenhou ao longo dos anos. No subsolo do Palacete,
está sediada a Galeria de Arte Edmundo Rodrigues, na qual estava a
exposição “Retalhos de mim” da artista plástica Marcela Meirelles.
A visitação foi acompanhada pela artista, que tirou dúvidas e
contou criava suas obras. Ainda no Palacete, no pátio externo, os
educandos exploraram o Bosque Eduardo Contreiras Rodrigues,
espaço arborizado repleto de arvores diversas, algumas com mais de
um século de existência. O espaço do Bosque contém identicação
das árvores e espaços para descanso e se constituiu em uma
oportunidade signicativa para os educandos, já que normalmente
o bosque está fechado para a visitação. Após, nos dirigimos à
Praça de Desportos, espaço central da cidade, com espaço para a
prática de diversas modalidades esportivas, espaço que consta com
playground, concha acústica e algumas estátuas.
Ao retornarmos da saída de campo, os estudantes foram
indagados e convidados e versarem sobre os usos distintos que
observaram, sobre as diferenças arquitetônicas dos locais. Foram
convidados a discorrer sobre o que haviam aprendido e se voltariam
nos locais visitados e dentre as impressões os educandos relataram
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
225
que não conheciam o local e não sabiam que a visitação era gratuita.
Inclusive ao longo do ano letivo, tivemos relatos dos estudantes
visitando a galeria de arte, por conta própria.
Em julho, foi realizada a segunda saída de campo, nessa fomos
ao Museu Dom Diogo de Souza que está sediado em um prédio
histórico, sede da Sociedade Portuguesa de Benecência, que
data do nal do século XIX. No museu, foram problematizadas
as personagens históricas de Bagé, analisados artefatos culturais
municipais. Os educandos visitaram todas as salas do museu,
inclusive a que versava sobre a formação do município, trazendo
os artefatos restantes do Forte Santa Tecla e a sala que guarda os
artefatos pessoas de Emílio Garrastazu Médici, ex-presidente do
Brasil durante a ditadura cívico-militar. O segundo local visitado
foi a Catedral de São Sebastião, momento que analisamos sua
arquitetura, fachada, relevância histórica e abordamos as lendas da
fundação de Bagé. O nal da saída consistiu em uma ida ao calçadão
municipal, momento que os educandos foram apreciar uma iguaria
gastronômica famosa na cidade, o pastel do calçadão.
Após essa saída, em nosso encontro seguinte em sala de
aula, conversamos sobre o que os educandos entenderam como
patrimônio. Buscamos conversar sobre o museu e a forma como a
história e a memória municipal são pensadas e articuladas dentro
desse dispositivo. Além disso, conversamos sobre a importância da
região da Catedral na fundação de Bagé e não menos importante
abordamos os usos do calçadão municipal como o espaço onde
ocorre a feira livre, local nos quais cam os quiosques, espaço onde
os pastéis são vendidos e consumidos e está localizado o relógio
inglês centenário. Nesse momento, os educandos puderam explicar
o que entendem como patrimônio e como as suas percepções foram
alteradas. Dentre as falas dos educandos, surge a percepção de que
o patrimônio não são apenas os prédios e os artefatos históricos, e
sim, houve um alargamento da noção de patrimônio para os usos e
para as práticas sociais existentes.
Considerações nais
O projeto buscou, através das saídas de campo, realizar junto aos
estudantes experiências que objetivaram enraizar a compreensão
do patrimônio, demonstrando que vai além de edicações,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
226
abrangendo usos sociais e relevância para a comunidade, foram
esses os resultados obtidos. As reexões sobre a história municipal e
a indagação “o que é patrimônio?” foram os pontos que moveram as
reexões da disciplina de História. Assim, os estudantes entenderam
que o patrimônio não é apenas o patrimônio material e ampliaram a
percepção sobre patrimônios.
Assim, vemos que os objetivos do projeto foram alcançados, pois
os educandos conseguiram aprofundar o conhecimento da história
local, perceber a relação entre patrimônio, memória e história,
sensibilizar o olhar dos educandos para os patrimônios e sua
diversidade e perceber que o patrimônio consiste em uma múltipla
possibilidade de relações de ensino.
À guisa de conclusão, observamos que os estudantes
estabeleceram uma conexão entre a cidade, o patrimônio, a memória
e sua percepção, reconhecendo que o patrimônio transcende as
construções físicas e passaram a reetir sobre a importância desse
patrimônio na comunidade.
Referências
BAGÉ. Lei nº 4836, de 06/01/2010. Consolida a legislação municipal
sobre Patrimônio Cultural Histórico do Município. Disponível em: http://
leismunicipa.is/dhk. Acesso em: 08 jan. 2024.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense,
1981.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto
promulgado em de 05 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08
jan. 2024.
BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm. Acesso
em: 08 jan. 2024.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
227
FAGUNDES, Elizabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um
passeio pela história. Porto Alegre: Praça da Matriz/Evangraf. 2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática
educativa. 30. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do compromisso: América Latina e Educação
Popular. Organização e notas de Ana Maria Araújo Freire. 1. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
HORTA, Maria de Lourdes; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane
Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a
atenção. Horizontes antropológicos. Porto Alegre. 2015, vol.21, n.44,
pp.21-36.
REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON,
Analucia. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. In:
__________. (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de
Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015.
SILVA, Rodrigo Manoel Dias da. Educação patrimonial e a dissolução
das monoidentidades. Educar em Revista, n. 56, p. 207-224, jun. 2015.
Fap UNIFESP (SciELO). Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0104-
4060.38374. Acesso em: 06 jan. 2024.
SIMAN, Lana. Memórias sobre a história de uma cidade: a História como
labirinto. Educação em Revista. Belo Horizonte, nº 47, pp. 241-270, 2008.
TORRES, Wagner Nobrega. Por uma Educação Patrimonial inventiva e
pedagogicamente potente. In: Wagner Nobrega Torres, Simonne Teixeira,
Aline Portilho dos Santos. (Org.). Por uma educação patrimonial
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
228
inventiva e pedagogicamente potente. 1ª ed. Campos dos Goytacazes:
EdUENF, 2021, v. 1, p. 10-15.
UNESCO. Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural. 1972. Disponível em: https://whc.unesco.org/archive/
convention-pt.pdf. Acesso em: 06 jan. 2024.
VARINE, Hugues Bohan. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do
desenvolvimento local. Porto Alegre: Medianiz, 2012.
AS FOTOGRAFIAS DA VILA
FRATERNIDADE DE LONDRINA-
PR E SUA RELAÇÃO ENTRE
A MEMÓRIA E O ENSINO DE
HISTÓRIA (1960-2023)1
Giovanna Barboza da Cruz2
Introdução
A experiência de viver em uma cidade constitui-se em
emaranhados de sentimentos, pois ao caminhar por ela,
notamos suas nuances, seu crescimento, suas particularidades, as
construções, as pessoas que a frequentam e sua materialidade. Nelas,
as representações sociais ganham cores, sentidos e constituem-se
em labirintos de subjetividades que trazem signicados à realidade
urbana.
Em Londrina, cidade do norte do Paraná, notamos sua
materialidade nos prédios históricos, nos novos empreendimentos
cada vez maiores e que crescem aceleradamente por toda a cidade.
A paisagem muda todos os dias; o antigo e novo se cruza. Fundada
1 O trabalho parte de uma pesquisa de dissertação de Mestrado em História Social
da Universidade Estadual de Londrina e supervisionada pela Profa. Dra. Cláudia Eliane
Parreiras Marques Martinez (UEL-Londrina-PR).
2 Mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail:
giodacruz@gmail.com.
229
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
230
em 1934, a cidade cresceu de forma intensa, a Companhia de Terras
do Norte do Paraná, a CTNP, de origem inglesa, comprou terras
do Governo para lucrar com a venda, dividindo-a em vários lotes e
planejando o seu ordenamento espacial.
Ela tinha como objetivo, a princípio, a construção de uma cidade
que atenderia as regiões rurais, como uma vila de abastecimento,
controlando o seu crescimento e número de habitantes de forma
racional, o que muitos autores como Marcos Barnabé (1989),
atribuíram as inspirações às “cidades-jardim”, desenvolvida do
Ebnezer Howard (1850-1928), comuns na Europa do século XIX e
XX:
Cidades novas com limites populacionais e espaciais precisos, o
emprego de ferrovia como meio de transporte, relação da cidade com o
entorno rural e o estabelecimento de uma rede de cidades com artifício
capaz de controlar a densidade populacional foram os principais
elementos apresentados por HAWARD (sic) como componentes de seu
modelo de organização do território (BARNABÉ, 1989, p. 112).
Com o m do monopólio da CIA em 1944 e sua nacionalização,
passando a chamar-se de Companhia Melhoramentos Norte do
Paraná, as vendas de terras da região foram realizadas por outros
agentes, sem seguir uma organização previamente elaborada,
ultrapassando as linhas e traçados estabelecidos pela Companhia
(ADUM, 1991). Não somente isto, mas, a partir dos anos 1940
o café tornou-se a principal economia do norte do Paraná; não
pelos valores quantitativos de produção, mas sim, pelo lucro que
oferecia e pelas representações que foram construídas a partir dele
(ARIAS NETO, 2008, p. 103-104), como o símbolo de “ouro verde”
e “capital mundial do café”, que se faz presente em muitos espaços e
na memória pública sobre o seu auge.
Dessa maneira, ao analisar as múltiplas fontes relacionadas à
memória da região, como as fotograas, panetos e jornais, as
publicações propagandísticas da Companhia de Terras Norte do
Paraná, a beleza da terra era ressaltada, como uma oportunidade
de investimento rentável, com condições exíveis de pagamento.
Segundo José Miguel Arias Neto (2008), esse discurso foi responsável
pela formação do imaginário de uma terra de “Promissão” e
“Eldorado”, atraindo imigrantes, migrantes e trabalhadores em
busca de trabalho e melhores condições de vida.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
231
Com a produção de café e a necessidade de mão-de-obra no
campo, as décadas de 1940-1950 estão marcadas pelos uxos de
trabalhadores em busca de condições de trabalho. Entretanto, entre
o nal dos anos 1950 e décadas de 1960-1970 — devido a uma série
de fatores como as instabilidades no campo: seja com as geadas, a
mecanização, transformações na produção (plantações mais práticas
e com ciclos menores) e as mudanças relacionadas às leis trabalhistas,
conforme colocado por autores como Arias Neto (2008) e Souza
(2021) —, a cidade cresceu para além das comunidades no entorno
do centro urbano, com as ocupações semilegais. Com isso, nesse
período há o aparecimento das primeiras favelas, a concentração
da riqueza, a modernização da cidade e um discurso higienizador,
buscando apagar marcas rurais e com vistas a nos colocar no mapa
do desenvolvimento.
Diante disso, a linha férrea foi uma barreira física de segregação
desse espaço urbano, sendo considerado no imaginário da cidade
que vivia “acima” dela e as que estavam “abaixo”, sendo consideradas
“Vilas” e que estavam além da cidade e na marginalização dos
moradores (SOUZA, 2021, p. 87).
A Vila Fraternidade é um bairro da Zona Leste da cidade,
próxima ao centro. Sua formação vem de uma união de vilas e teve
o seu desfavelamento em 1971, pois até então era conhecida como
Vila do Grilo, por conta da ocupação irregular, dos sistemas de
grilagem de terra e uma das primeiras favelas da cidade.
Na década de 1970 o bairro passou pelo processo de
desfavelamento, que junto à Prefeitura, à Companhia de Habitação
de Londrina, a COHAB, e o Banco Nacional de Habitação (BNH),
ofereciam subsídios para a construção de casas próprias ou o
nanciamento do governo para casas construídas nos conjuntos,
alocando a população em outros espaços, em vazios urbanos,
enquanto havia também os desfavelamentos. O projeto foi colocado
em prática e realizadas a construção de ruas, saneamento básico,
nanciamento de casas e a construção de um Centro Comunitário.
Deste processo, é importante destacar o interesse político e
rentável: o fortalecimento da construção civil e da especulação
imobiliária, junto ao contexto nacional de controle geográco das
cidades com vistas ao seu desenvolvimento econômico e ações
sociais voltadas especialmente com o objetivo de “educar” para
aquele ideal social que era defendido, especialmente na década
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
232
de 1970, em que os cursos voltavam-se para o artesanato, costura,
higiene pessoal e que reetem o período da Ditadura como no
personagem Sujismundo, criado por Ruy Perotti e que protagonizou
campanhas do “Povo desenvolvido é povo limpo”, divulgadas por
todo país.
Sendo assim, o presente trabalho trata-se de um estudo sobre
a memória e o ensino de História, especialmente sobre a Vila
Fraternidade, bairro localizado em Londrina, no Norte do Paraná. A
pesquisa foi realizada a partir da interação entre o uso das fotograas
com a memória da cidade e tem como objetivo geral compreender
a sua relevância na ampliação do debate acerca de outros sujeitos e
narrativas sobre a sua constituição.
Favela do Grilo: memória, fotograa e ensino
de História
As transformações teóricas da pesquisa histórica, desde o
movimento dos Annales, no nal dos anos 1920, e posteriormente,
com as gerações de teóricos e intelectuais, possibilitaram a pluralidade
de ideias sobre a ciência histórica. Sendo assim, o clássico trabalho
do historiador Marc Bloch em “Apologia da História, ou, o ofício do
historiador”, nos explica que a História é “ciência dos homens”, mas
também, “dos homens no tempo” (2001, p. 55). Logo, “[...], são os
homens que a história quer capturar. [...]. Já o bom historiador se
parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que
ali está sua caça” (BLOCH, 2001, p. 54, grifo nosso).
Essas reexões impulsionaram uma variedade de fontes e
possibilidades aos pesquisadores, a partir de novos objetos de estudos
e temáticas, documentos e personagens, aproveitando-se de novas
abordagens e métodos de registros da História, como a História
Oral, História Cultural, das mentalidades, das representações e das
imagens.
Historiadores como Roger Chartier, Peter Burke, Carlo
Ginzburg, Robert Darnton e Pierre Bourdieu são exemplos da Nova
História. Em seus trabalhos foi possível observar a partir da prática
da leitura a sua relação com a cultura e a política; a construção de
uma análise da micro-história; a cultura popular e suas articulações
com a antropologia; uma Nova História Política a partir da cultura,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
233
das representações e poder simbólico; entre tantos outros ensaios
ligados às particularidades das fontes.
É a partir disso que compreendemos as imagens como fontes de
estudos da História. De acordo com o pesquisador Peter Burke (2004,
p. 17-18), elas constituem-se numa forma importante de evidência
histórica, sendo difícil traduzir em palavras o seu testemunho, pois,
“elas registram atos de testemunho ocular”.
À vista disso, compreendemos que as imagens não falam por si
só, elas devem ser lidas, contextualizadas e analisadas. Em especial,
as fotograas constituem importantes documentos de acesso ao
passado. Conforme análise de Boris Kossoy (2012, p. 47- 48), elas
contêm em si um fragmento da realidade e “o artefato fotográco,
através da matéria (que lhe dá corpo) e de sua expressão (o registro
visual nele contido), constitui uma fonte.
Em relação ao Ensino de História, a autora Maria Auxiliadora
Schmidt, analisando os manuais didáticos produzidos para o ensino
da disciplina, nos explica que entre os anos de 1971 e 1984, os
estudos sociais tendem a substituir o ensino de Geograa e História
durante o período da Ditadura Militar no Brasil e possuíam noções
como:
[...] pátria, nação, igualdade, liberdade, bem como a valorização
dos heróis nacionais dentro de uma ótica que tentava legitimar,
pelo controle do ensino, a política do Estado e da classe dominante,
anulando a liberdade de formação e de pensamento (URBAN, 2011
apud SCHMIDT, 2012).
No âmbito das Universidades, em um artigo publicado pelos
pesquisadores Gilmar Arruda e Wander de Lara Proença intitulado
“Conitos no campo do saber: universidades, historiadores e usos
do passado na fronteira - Londrina 1970-1980” (2020) eles falam
sobre essa trajetória acadêmica na região.
Nesse trabalho, eles mencionam que nos anos 1970 houve uma
interiorização do ensino superior com a criação de universidades
estaduais e federais e o oferecimento do curso de História e isso
alterou o lugar de produção historiográca, que antes era restrito
aos grandes centros.
Assim, eles analisaram como se estabeleceram os campos de
produção de conhecimento sobre o passado: primeiro, o que já
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
234
estava estabelecido na cidade e criado por memorialistas, cronistas
e jornalistas, e a universidade como um campo de produção de
pesquisas.
Chegaram à conclusão de que a produção da primeira geração
da década de 1970, há uma assimilação com o já estabelecido no
campo da crônica. Dessa forma, com a origem da universidade, esses
agentes acompanhavam e defendiam a interpretação do passado da
cidade a partir do campo do cronista.
Nesta perspectiva, isso fazia parte de um discurso daqueles
que tinham o poder econômico da região e havia uma referência
gloriosa do passado, representados pela insígnia dos “pioneiros”,
enalteceram a riqueza da cidade, reproduzindo o discurso de que
aqueles que migraram para o Norte do Paraná enriqueceram, sob
a defesa de uma “verdadeira” história e que trazem consigo as
“origens” desse passado. É válido mencionar que Marc Bloch (2001)
já nos alertava dos riscos da busca das “origens”, porque isso nos
limita e não permite espaço para novas reorientações da pesquisa
histórica.
Analisando os trabalhos produzidos para o Jubileu de Prata
da cidade, comemorado em 1959, Arias Neto considera que nos
documentos de festejos é perceptível a produção de locais de
memórias e de uma tradição inventada; buscando cunhar a própria
identidade desses grupos: “[...] buscavam legitimar e reproduzir
a identidade de Londrina cunhada pela retrospectiva histórica
cristalizada nos lugares de memória — e promover, em torno delas,
uma coesão social” (2008, p. 155).
O sociólogo Michael Pollak (1989, p. 9) nos explica que a
memória coletiva se integra em tentativas de denir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre os grupos
e que a referência ao passado serve para manter a coesão das
instituições que compõem uma sociedade.
Por conseguinte, da mesma forma que o ensino de História no
Brasil esteve ligado ao poder e às disputas de memória, as primeiras
referências e estudos sobre Londrina e o Norte do Paraná idealizaram
os campos da crônica e das memórias, reproduzindo, portanto,
os discursos de grupos privilegiados e construindo para si uma
memória coletiva sobre seu passado. Foi apenas nos últimos anos do
século XX que passamos a repensar conceitos e formas de aplicar o
conhecimento histórico em sala de aula, espaços de memória como
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
235
museus e patrimônios, advindos das questões sociais em debates, a
formação continuada de professores, produção de trabalhos sobre a
temática e a necessidade de adaptação em um mundo cada vez mais
globalizado.
Estruturas de relação entre Vila Fraternidade,
ensino de História e Fotograa
A Base Nacional Comum Curricular, homologada em 2017,
aborda temas ligados à cultura, interdisciplinaridade, na relação
entre os sujeitos, no tratamento com as fontes nas mais variadas
tipologias. Além de estabelecer o diálogo entre o Eu, do Outro e
do Nós, o qual redimensiona o olhar para diversos agentes sociais,
portanto, “estimula o pensamento crítico, a autonomia e a formação
para a cidadania” (BRASIL, 2017, p. 400).
Em complemento a essa percepção da pluralidade, a História é
concebida como uma correlação de forças, de enfrentamentos e da
batalha para a produção de sentidos que são reinterpretados por
diferentes grupos sociais e suas demandas (BRASIL, 2017, p. 397).
Dessa maneira, ela aponta para diferentes maneiras de entender e
reetir sobre a história. Essa interpretação vai depender das relações
entre o tempo, espaço e a cultura de um grupo. Se analisarmos o
norte do Paraná, por exemplo, perceberemos que há diferenças de
narrativas sobre a fundação e memória da cidade, inclusive um
conito entre elas.
Dessa forma, devemos instigar a investigação do passado, a
resolução de conitos e o impacto que ela tem no presente e no
meio em que vivemos. Quanto a isso, na BNCC
[...] espera-se que o conhecimento histórico seja tratado como uma
forma de pensar, entre várias; uma forma de indagar sobre as coisas do
passado e do presente, de construir explicações, desvendar signicados,
compor e decompor interpretações, em movimento contínuo ao longo
do tempo e do espaço. Enm, trata-se de transformar a história em
ferramenta a serviço de um discernimento maior sobre as experiências
humanas e as sociedades em que se vive (BRASIL, 2017, p. 401).
A partir dessas concepções, a abordagem perpassa do micro
ao macro, para que a criança/adolescente compreenda os
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
236
acontecimentos históricos, as relações de poder e as transformações
sociais, políticas, econômicas e culturais, ligados ao exercício da
cidadania (BRASIL, 2017, p. 403).
Na análise dos pesquisadores Lucimar da Luz e Cristina Pátaro,
o uso de fotograas em sala de aula é um recurso de grande
proeminência e indispensável, pois representa uma função histórica
e compreensão de parte de determinado contexto, representando
uma situação vivenciada e permitindo leituras próprias de mundo,
carregadas de intencionalidades e é importante que os professores
trabalhem com as imagens, no intuito de desenvolver a consciência
histórica dos estudantes.
Nesse sentido, ao trabalhar as possibilidades das fotograas
sobre a Vila Fraternidade de Londrina, o professor proporciona a
dinamização das suas fontes em sala de aula e em conjunto com
o estudo do Patrimônio, as fotograas podem traçar novos rumos
do conteúdo, instigando o discente a reetir sobre esses outros
contextos, outras memórias e histórias. Não apenas no contexto
regional, mas também nacional e internacional: as questões urbanas
no Brasil do século XX, a pobreza urbana, a ditadura militar, os
programas sociais do período e analisando a produção imagética
desse passado.
Abaixo selecionamos uma fotograa sobre a Vila Fraternidade
de Londrina (Figura 1) durante o processo de desfavelamento para
analisarmos as possibilidades de seu impacto no estudo sobre a
região:
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
237
Figura 1 - Vista parcial do bairro e desfavelamento
Fotógrafo: autor desconhecido.
Fonte: Coleção José Divino Gonzaga - Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (UEL).
Na Vila Fraternidade não havia saneamento, asfalto e o acesso
a outras regiões da cidade eram difíceis. Segundo a pesquisadora
Jolinda Alves (2002, p. 370), o desfavelamento teve como incentivo
o trabalho lantrópico e destaca a gura de Frei Nereu do Vale ao
observar a diculdade que os éis enfrentavam para acessar à igreja
e à creche construídas por ele em um bairro vizinho, assim, realizou
uma série de ações como a abertura de estradas para facilitar a
locomoção.
Posteriormente, conforme comentamos anteriormente, com a
criação da COHAB – Londrina, sob o comando de Milton Gavetti,
e os incentivos do BNH, temos os primeiros desfavelamentos e
a criação de conjuntos habitacionais em várias áreas da cidade e
ordenação do espaço. Apesar disso, é importante ressaltar que nesse
processo houve mudanças profundas no cotidiano dessas famílias,
como critérios que não seguiam organizações por laços de amizade,
mas sim de forma aleatória, impactando também na experiência
delas, separando-as em espaços mais afastados do que viviam
(SOUZA 2021, p. 87).
Na Figura 1 temos uma visão parcial do bairro dividida em
três planos: no primeiro, à esquerda, crianças, junto a elas alguns
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
238
entulhos (como o vaso sanitário) e ao lado material de construção
(telhas e tábuas). Em segundo plano, da esquerda para a direita,
uma casa de madeira e muitos entulhos. Por m, no último plano,
fumaça, algumas pessoas caminhando entre os entulhos, árvores e
mais casas.
À primeira vista, por mais que a fotograa possa parecer “inocente”,
apenas como um breve registro do cotidiano, elas expressam nas
entrelinhas da história uma memória e um recorte sobre o passado,
pois, o fotógrafo escolhe seus recortes, o enquadramento, os jogos
de luz; conscientemente ele faz essas escolhas. Sendo o recorte a
atitude do fotógrafo diante da realidade (KOSSOY, 2012, p. 45).
Na Figura 1 há muitos eventos acontecendo ao mesmo tempo,
no entanto, o primeiro que destacamos são as crianças do lado
esquerdo da foto: com roupas simples e os pés descalços parecem
estar brincando. Não é possível identicar objetos, porém, a criança
ao fundo parece estar carregando uma boneca de pano, enquanto as
outras crianças estão viradas para ela.
A gura da criança é explorada em várias áreas do conhecimento.
No fotojornalismo, por exemplo, outro suporte técnico de imagem, a
utilização da criança para compor a matéria jornalística é essencial,
visto que dentro de uma ótica para defesa de interesses políticos ela
é o futuro pelo qual a comunidade deve zelar.
A fotograa pertence a arquivos relacionados à Prefeitura
Municipal de Londrina. Logo, sabendo a origem e o percurso
realizado pela fotograa até chegar a nós é possível delimitar parte
de suas intenções. No caso, o interesse da Prefeitura da cidade em
promover a cobertura do desfavelamento e posteriormente a sua
exibição, uma vez que muitos desses arquivos foram utilizados por
prefeitos para promoverem seus feitos (FROZONI, 2013, p. 67).
87). Isso também é evidente na coleção como um todo, em que
há elementos com legenda que indicam e direcionam o olhar do
espectador a uma ideia.
Deste modo, há por trás dessas fotograas interesses ligados
à política, a ideia de novas transformações e melhoramentos na
cidade, com o objetivo de “prestar contas” e até mesmo propagando
política. Sob este ponto de vista, Eder Souza (2021, p. 64) explica
que em muitos casos é evidente que o trabalho de lantropia tinha
um caráter político e social ligados à publicidade política, com
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
239
reconhecimentos dos agentes “beneméritos” que aproveitavam para
divulgar a sua imagem.
Em relação à gura das crianças, nos aproveitando da análise de
Edinaldo Lima (2018) sobre sua imagem em fotograas, podemos
pensá-la como um apelo fotográco à inocência de um ser em
formação a quem se deve olhar (2018, p. 210). Todavia, junto com
a campanha política, a fotograa passa pela conotação de um
incentivo às ações da Prefeitura como uma maneira demonstrar sua
importância e do trabalho desenvolvido na cidade. Uma maneira de
prestar contas e incentivar as ações da Prefeitura.
Não é possível comprovar a identidade do fotógrafo, mas, por se
tratar do acervo da Prefeitura, possivelmente corresponde à coleção
do Departamento de Obras e Planejamento. Um dos principais
responsáveis pela coleção foi Oswaldo Leite, servidor da Prefeitura.
Segundo Fernanda Cequalini Frozoni, em entrevista com o lho
de Leite, Otacílio Leite, suas fotograas tinham como objetivo a
curiosidade e a m de auxiliar em suas tarefas dentro da Secretaria
de Obras, porém, os prefeitos se interessavam pelas imagens e as
utilizavam em jornais, fazendo propagandas para sua administração
(2014, p. 67).
Além de trabalhar a fotograa em vários âmbitos da cultura
material, é possível fazer comparações com outros registros de
outras regiões da cidade nesse mesmo período. Assim, podemos
perceber as variações culturais como a vestimenta, brinquedos,
casas, ruas e veículos. No registro, as crianças andam descalças na
terra batida, as pessoas com roupas brancas ao fundo se destacam,
em relação às do centro da foto, que estão sem camisetas ou com
roupas mais simples.
No Museu Histórico de Londrina há um espaço em sua última
sala relacionado ao cotidiano. Ao analisar a sua materialidade,
temos uma parte importante: os brinquedos. Nela, de um lado,
carros e um navio em miniatura, bonecas de porcelana e outros
brinquedos que indicam uma maior condição econômica do
doador. Em contrapartida, à frente desta exposição há uma gaveta
com objetos de uma outra infância: o estilingue, as bolinhas de
gude, e brinquedos caseiros.
Ao confrontar essas fontes, temos no registro visual e no
museológico dois recortes distintos, mas que estão em sintonia: a
criança da cidade, localizada “acima da linha” que morava bem e
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
240
com acesso à bens de consumo, enquanto, do outro lado, “abaixo da
linha”, uma comunidade em que as crianças não tinham condições
dignas de alimentação, moradia, roupas e brinquedos.
Em relação a Figura 1, no fundo, à direita da foto, várias pessoas
aparecem na imagem. Elas parecem estar trabalhando junto com a
prefeitura para desocupar e limpar a região, hábito comum quando
comparado com as outras fotograas. Assim, homens, mulheres
e crianças aparecem ativas no trabalho da região. No fundo há
também um foco de incêndio provocado por eles a m de queimar
os entulhos das antigas construções.
A pesquisadora Ana Heloísa Molina nos lembra que a cidade
reete tensões e conitos, assim como espaço de práticas sociais e
representações, memórias e silêncios (2016, p. 360-361). Portanto,
por meio do espaço urbano é possível perceber as desigualdades
de atuação do poder público e a própria organização das cidades.
Assim, as casas sem infraestrutura expressam parte dessa realidade.
Em síntese, a partir das fotograas podemos reetir e analisar o
processo de desfavelamento da Vila Fraternidade de Londrina, pois
uma parte da população experienciou péssimas condições de saúde,
sem saneamento básico e moradias dignas, enquanto os discursos
instigam as ideias acerca da “Terra de Riquezas”. Por esse motivo,
torna-se instigante reetir e analisar, por outras perspectivas e
fontes, as transformações urbanas nas regiões periféricas da cidade.
A partir da fotograa foi possível compreender parte do interesse
político daqueles que ocupavam cargos públicos e de poder, uma
vez que os defavelamentos e melhorias implementadas na cidade
ofereciam suporte às campanhas políticas. Apesar disso, na fotograa
é possível localizar uma contradição nos discursos que prevaleceram
sobre a cidade e seu passado. O pesquisador Boris Kossoy (2020, p.
38), referência nos estudos da imagem, articula que a fotograa tem
uma realidade própria, que foi construída e codicada, por isso, o
uso das fotograas em sala de aula e no ensino da História, além de
oferecer o contato com as fontes, com o bom direcionamento das
ferramentas necessárias para análise, cumpre parte dos objetivos
propostos em currículos e no ensino de História.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
241
REFERÊNCIAS
Fonte
NDPH — Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica da Universidade
Estadual de Londrina. Coleção do Desfavelamento da Vila Fraternidade de
Londrina.
Bibliograas
ADUM, Sonia Maria Sperandio Lopes. Imagens do Progresso: Civilização
e Barbárie em Londrina 1930/1960. Dissertação (Mestrado em História) –
Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista - UNESP/
Assis, SP. Assis, 259p., 1991.
ALVES, Jolinda de Moraes. História da Assistência Social aos pobres
em Londrina: 1940- 1980. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis, SP.
Assis, 544p., 2002.
ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: representações da política em
Londrina (1930-1975). 2º Ed. Londrina: EDUEL, 2008.
BARNABÉ, Marcos Fagundes. Organização espacial do território e o
projeto da cidade: o caso da Companhia de Terras Norte do Paraná.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Escola de Engenharia de São
Carlos - São Carlos, SP, 142p., 1989
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, o ofício do
historiador. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução: Vera
Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004. E-book.
FROZONI, F. C. ‘Dois anos de um governo que realiza!’: as fotograas de
Oswaldo Leite e sua relação com o poder público em Londrina (PR). In:
VII Seminário de pesquisa do programa de pós-graduação em História
Social., 2013, Londrina. Teorias e práticas do fazer histórico: Anais do VII
Seminário de pesquisa do programa de pós-graduação em História Social.,
2013. p. 384-395.
______. Oswaldo Leite em Londrina (1950): Pequena Biograa. In: VII
Seminário de Pesquisa em Ciência Humanas - SEPECH, 2014, LONDRINA.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
242
Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas. LONDRINA: Eduel,
2014. Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/sepech/arqtxt/
ARTIGOSANAIS_SEPECH/fernandacfrozoni.pdf>. Acesso em dezembro de
2023.
KOSSOY, Boris. Fotograa e história. 4º ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2012.
LIMA, Edinaldo Aparecido Santos de. Preparar, apontar, foto! A construção
da imagem fotográca dos camponeses cubanos nos periódicos
Revolución e Campo de Revolución (1959-1961). Dissertação (mestrado
em História) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista (UNESP). Assis, p. 284. 2018. Disponível em: <https://repositorio.
unesp.br/handle/11449/158300 >. Acesso em: 13 de janeiro de 2024.
MOLINA, Ana Heloisa. Registros da paisagem urbana em algumas leituras
visuais e escritas: capturas sensíveis e os espaços da(s) cidade(s). Revista
História: Debates e Tendências, v. 16, p. 359-377, 2016. Disponível em:
<http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/6924 >. Acesso em: 13 de
janeiro de 2024.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: < https://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278>. Acesso em:
15 de dezembro de 2023.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. História do ensino
de história no Brasil: uma proposta de periodização. Revista História
da Educação – RHE, Porto Alegre, v. 16, n. 37, p. 73-91, maio/agosto,
2012. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/
view/24245>. Acesso em: novembro de 2023.
SOUZA, Éder Cristiano de. Excluídos do café: Planejamento urbano e
conitos sociais em Londrina nas décadas de 1950 e 1960. Londrina:
EDUEL, 2021.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
243
O ENSINO DE HISTÓRIA
NO MUSEU: PRÁTICAS E
DESLOCAMENTOS EM BUSCA DO
TEMPO PERDIDO
Júlio César Virgínio da Costa1
Os museus são instituições sociais e de memória. São também,
instituições aprendentes, pois oferecem múltiplas possibilidades de
leitura do mundo e das realidades sociais, podendo, por isso, conhecer,
inventar e criar esse mundo. Se os museus são, então, ambientes de
formação – tanto para aqueles que nele atuam prossionalmente,
quanto para aqueles que os visitam e dele fazem uso – eles também
podem educar comunidades, potencializar suas maneiras de se
relacionar com a memória social e com seu patrimônio.
Júnia Sales Pereira e Lana Mara de Castro Siman
Introdução
Este texto aborda o ensino da Pré-história de Minas Gerais e de
um Brasil antigo a partir de um recorte da tese: Da prática educativa
a uma educação pela prática: o ensino de história com o museu e
com a literatura orientada pela professora Dra. Júnia Sales Pereira
na Faculdade de Educação da UFMG.
1 Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, Centro Pedagógico e
Promestre/FaE da UFMG. E-mail: jcvc@ufmg.br
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
244
O tema principal da tese foi a análise das narrativas elaboradas
pelos docentes de história da educação básica a partir de práticas
educativas desenvolvidas na relação da escola com o museu
interconectada com as idéias de Pereira e Siman (2009, p. 3)
acima sinalizadas. Porém, nos objetivos especícos, focamos na
documentação do educativo do museu também.
Busquei identicar como essas práticas foram desenvolvidas,
reetidas e mobilizadas em salas de aula na dinâmica que envolve
a pré-visita e o pós-visita em duas escolas – uma pública e outro
particular da cidade de Belo Horizonte.
Foram analisadas as perspectivas que orientaram os docentes de
história a abordar o museu em sua prática educativa e fundamentaram
suas ações no processo de preparação e realização para a atividade.
A pesquisa elucidou aspectos da relação escola-museu colocando
em discussão a relação entre as práticas e os saberes docentes no
campo do conhecimento histórico. A análise se dá a partir dos
dados coletados em entrevistas semi-estruturadas feitas com os
sujeitos diretos da pesquisa (docentes) e prossionais do museu de
Ciências Naturais da PUC Minas, de uma entrevista caminhante
realizada com um grupo de professores de uma das escolas, das
práticas gravadas e transcritas no pós-visita e das atividades (com
os sujeitos indiretos: estudantes), além da análise de documentos e
práticas estabelecidas no ambiente museal e do caderno de campo
que foi utilizado em diversos momentos: museu (setor Educativo e
expositivo), escolas (salas de aula e visita ao museu).
O ensino de história e a educação museal
Penso que é possível entender e investigar esse espaço de memória
e também de esquecimento, para além do mero complemento
ou conrmação do que foi visto em aula. Acredito que possa ser
uma experiência/travessia e uma prática pedagógica que também,
não exclusivamente, venha a promover uma educação para a
sensibilidade, para uma postura mais crítica e reexiva de nossa
presença no tempo ou nos tempos históricos.
Adoto, em sintonia com os pressupostos de um ensino de
história que dialogue com outros ambientes de aprendizagem e
com outros suportes informativos, como por exemplo, a literatura
de divulgação cientíca e uma educação museal, propiciadora
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
245
de múltiplas experiências e vivências que possam estabelecer ou
provocar deslocamentos em relação à aprendizagem das grandezas
temporais a noção de “museu-fórum”.
Em linhas gerais, esse conceito trazido a baila por Ulpiano B.
de Meneses (1994, 2005), em especial, em relação à travessia de
uma concepção museal, nos quais o predomínio seria o do museu
enquanto “teatro da memória” para outra gramática, o do “laboratório
da História” em discussão também formulada por Ramos (2004),
no tocante ao ensino de história através de “objetos geradores”.
Laboratório de história que teria, diferentemente da escola, uma
linguagem essencialmente espacial e visual e de trabalho sobre a
memória não como objetivo, mas como objeto de conhecimento
e, que, segundo Meneses (1994,2005), não ignorando as tarefas
educacionais do museu incluindo na mesma a fruição estética, o
lúdico, o afetivo, o devaneio, os sonhos, a mística da comunicação,
isto tudo, sem perdermos de vista a curiosidade. Nesse sentido,
Costa (2016) nos esclarece que,
Nessa perspectiva postulada por Meneses (2005), haveria outra postura
de trabalho nos museus com a história. Não seria mais a adoção
ou concepção de museus como locais de salvaguarda e memória
canonizadas ou rememorativas, sem elementos críticos. Não seria
mais o trabalho com a memória enquanto objetivo.
A proposta de “museu-fórum” viria na direção contrária e estabeleceria
uma gramática que recusa um modelo único de museu e seria um
museu que trabalharia com problemáticas históricas na perspectiva
dialética. Seria a possibilidade de não trabalhar com as perguntas que
solicitam dados ou informes sobre datas, fatos ou nomes de certas
personalidades. Operar com problemas históricos signicaria um
trabalho com questões postas pela dinâmica social. (COSTA, 2016, p.
25)
Sendo assim, z um recorte com três aspectos da tese e que tratam
de como o ensino de história, as ações educativas do museu e as
percepções de professores/as sobre o museu nos ajudam a entender
qual o tempo se está buscando e para quê.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
246
O Educativo e algumas ações
O espaço do educador do Museu Natural e de Ciências Humanas
da PUC Minas foi formulado e idealizado para atrair o professor e,
assim, possibilitar um trabalho mais profícuo. Antes, a recepcionista
é quem mostrava o museu para os professores e a partir daí, eles,
escolhiam o roteiro. A “nova” coordenação do educativo rompe
com essa estrutura e passa a criar roteiros mais livres para a escolha
do professor.
A minha “menina dos olhos”. Sem esse espaço não ocorre aprendizagem
pelos alunos. O museu não sabe as expectativas do professor da Escola.
É o momento de conversa entre as duas instituições. O professor muitas
das vezes não sabe como o museu funciona. No espaço do educador,
ele é levado a repensar e entender melhor como funciona o ambiente.
O professor pode falar sobre suas demandas. Faz o diferencial na hora
da visita. É nítida a diferença entre quem frequentou o Espaço e não
frequentou. (Trecho de relato/conversa – caderno de campo com a
coordenadora do setor educativo/manhã em 26/03/2013, p. 1)
É claro que esses dados coletados foram confrontados com muitas
horas de observação, análise documental e, claro, estando em mais
de um “dia do educador”. Mas, o que ca explícito é que temos um
educativo e um museu que pensa e age em busca de ações e soluções
para proporcionar um ambiente de aprendizagem, mais acolhedor
e, principalmente, que houve as demandas dos docentes e passa a
conhecer mais de perto a visita que vai ocorrer. Ou seja, como já
salientado, é um museu aprendente porque ouve e se estrutura para
receber cada visita e aprende ao fazê-lo.
Este já pode ser um elemento estruturador da idéia de um museu-
fórum, e não um museu templo. Por que me parece que esta ação, o
espaço/dia do educador que vai na direção contrária e estabeleceria
uma gramática que recusa um modelo único de museu e seria um
museu que trabalharia com problemáticas históricas na perspectiva
dialética.
Selecionei algumas imagens/fotos que tirei das minhas estadas
no museu e que buscam auxiliar ao leitor a ter uma mínima idéia
do local ao qual nos referimos neste texto. Com essa primeira
reexão sobre o museu podemos dialogar com epígrafe de abertura
quando nesses poucos, mas signicativos elementos nos é possível
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
247
identicar que “[...] os museus são, então, ambientes de formação
– tanto para aqueles que nele atuam prossionalmente, quanto
para aqueles que os visitam e dele fazem uso – eles também podem
educar comunidades [...]” (PEREIRA E SIMAN (2009, p. 3)
Figura 1: Figura 3 – Fotograa retirada por Júlio César V. da Costa da representação de Aur e
Nia (personagens do livro: Os meninos da planície) na entrada do Museu da PUC Minas.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
As imagens (fotograas) são fontes/documentos que podem
nos auxiliar a visualizar alguns elementos do espaço museal e
nos permitem ter uma noção de algumas ações do educativo que
aconteceram no período da pesquisa (2012-2016).
Já, na primeira foto, vemos os dois personagens do livro: Os
meninos da planície que é do professor Cástor Cartelle, curador
da coleção de paleontologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.Nesse livro, o autor retrata uma história ctícia com
fundo de realidade/verdade. Ou seja, é uma história de divulgação
cientíca, onde você através de uma cção, conta, ensina uma
“verdade”.
Os personagens do livro, a região, suas caracteristicas e a história
de um Brasil antigo estão todos retratados no museu com os fósseis
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
248
encontrados pelo pesquisador. Assim, muitas escolas trabalham
com o livro e vão ao museu para conhecer, visualizar as peças, os
fósseis dessa aventura vivida pelas duas crianças da foto.
Figura 2: Foto retirada por Júlio César V. da Costa da exposição Machados pré-históricos da
coleção Laborne/Museu PUC Minas.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
Na seqüência vemos uma foto da exposição que trata de objetos
da pré-história de Minas Gerais que veio se somar aos outros objetos
do museu e foi inaugurada em 2013. Espaço que cava bem na
entrada do museu e que já fazia parte da estratégia do aguçamento
da imaginação, da curiosidade dos visitantes.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
249
Figura 3: Fotograa da professora “Margarida”2 dos alunos no tanque de areia do museu da
PUC Minas realizando a ocina de escavação de réplicas de fósseis.
Fonte: álbum de foto elaborado pela professora Margarida (escola B) em seu Facebook.
2014.
2 Margarida é um nome ctício escolhido por mim por determinação do CEP da
UFMG.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
250
Figura 4: Foto de Júlio Cesar V. da Costa dos trabalhos nais da ocina de pintura rupestre
realizada por uma das escolas acompanhadas ao museu da PUC Minas em 2014.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2014.
Por m, as fotos 3 e 4 mostram opções de atividades desenvolvidas
pelo educativo para tornar a visita mais dinâmica, e permitir um
exercício de fruição e empatia pelos pesquisadores e pelos próprios
habitantes desse Brasil antigo com suas pinturas rupestres e com os
artefatos por eles produzidos.
Creio que esses poucos, mas elucidativos exemplos podem
ajudar a pensar como esse museu busca trabalhar com a temática
de uma história antiga, mas tão próxima. Próxima porque o sítio
arqueológico que dá origem aos fósseis e artefatos do museu cam
a pouco mais de 45 km de distância. Ou seja, não se trata de uma
história que não nos pertence. É sobre o Brasil, sobre Minas que
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
251
esse museu fala. Sendo assim, eles podem deslocar por tempos e
distâncias pouco pensados pelos visitantes.
Entrevista caminhante
Essa metodologia me foi proposta por minha orientadora
e desenvolvida por ela. Consiste em andar pelo museu com os
professores que zeram parte da minha pesquisa e entrevistá-los
nessa caminhada.
A pergunta geradora aqui foi: o que você trabalharia nesse nicho?
Professora 2: Para fechar, o que mais legal (sic) é a gente compreender
a importância da história mesmo para formação de nós brasileiros,
para o ser humano em geral, no caso especial do Peter Lund, trazer
essa história, clarear para nós a questão da nossa memória da Pré-
história, a construção dos sujeitos históricos a partir quem foi (sic) esses
habitantes, quem construiu esse Brasil antes da Europa, dá para pegar
a importância do sujeito histórico a partir da Pré-história. (Entrevista
caminhante, 2013, p. 5) (Grifos nossos).
Professor 2: Eu imaginei também, como se construiu sobre (sic) o
conhecimento do Brasil, a partir do olhar do Europeu. No século XIX o
conhecimento do Brasil é muito das pinturas, das escritas naturalistas,
e isso ajudou a mostrar na Europa como era o Brasil. (Entrevista
caminhante, 2013, p. 4) (Grifo nosso).
Professora: A primeira coisa que eu pego com os meninos no 6º ano é
alguma coisa que há uma interligação entres as ciências vamos chamar
assim, nenhuma ciência pode car sozinha. Mesmo se for pensar a
medicina em algum momento vai resgatar a história que é a nossa
área, para estudar a história eu preciso de outras ciências, nessa fase
especíca a gente ainda tem especialidades que são indispensáveis
para entender, então de cara a gente vai nisso, quais as ciências estão
ligadas aqui. Tem a linha de tempo. (Entrevista caminhante, 2013, p. 4)
Professora 2: Investigação, a questão da ciência mesmo. A investigação,
da coleta, do estudo de cada objeto. A persistência, porque o que a
gente sabe de história hoje, o conhecimento que a gente tem é parte
de pessoa como Peter Lund, desbravou. (Entrevista caminhante, 2013,
p. 5)
Penso que esses trechos podem ser muito elucidativos de como
os professores se apropriam do ambiente museal indo além, pois, o
nicho, em questão, era uma reprodução do escritório de Peter Lund
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
252
em Vespasiano. Não havia nenhuma placa, nenhum totem que
pudesse auxiliar aos professores em suas repostas.
É possível perceber como os docentes extrapolam a própria
exposição e potencializam suas maneiras de se relacionar com a
memória social e com seu patrimônio e como é possível observar
apropriações deferentes do espaço museal. O museu se torna plural
abrindo espaço para práticas diferentes, provocativas e inovadoras.
Muitas vezes podendo ser subvertidas pelos professores que levam
seus estudantes a esse espaço educativo.
Figura 5: Foto de Júlio César V. da Costa da reprodução do escritório de Peter Lund
No museu da PUC Minas.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
O que os professores/as pensam sobre o museu
Nesta última seção eu separei alguns dos vários mapas mentais
que encontrei no arquivo do educativo do museu. Fui informado
que em um determinado período o espaço do educador solicitava
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
253
aos professores/as que zessem um mapa mental que representasse
para eles/as o museu. Seguem as imagens por mim escaneadas.
Figura 6: Mapa mental escaneado por Júlio César v. da Costa do arquivo do setor educativo
do Museu da PUC Minas. Sem título.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012. (legenda: memórias, conhecimento e
descobertas)
Figura 7: Mapa mental escaneado por Júlio César V. da Costa do
arquivo do setor educativo do Museu da PUC Minas. Sem título.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
254
Figura 8: Mapa mental escaneado por Júlio César v. da Costa do
arquivo do setor educativo do Museu da PUC Minas. Sem título.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
Figura 9: Mapa mental escaneado por Júlio César v. da Costa do arquivo do setor educativo
do Museu da PUC Minas. Sem título.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
255
Figura 10: Mapa mental escaneado por Júlio César v. da Costa do arquivo do setor educativo
do Museu da PUC Minas. Sem título.
Fonte: acervo do autor. Novembro de 2012.
Considerações nais
As principais contribuições da pesquisa dizem respeito à
relação estabelecida entre os docentes, os ambientes culturalmente
estruturados (como os museus) e os processos pedagógicos por
eles desenvolvidos com vistas à promoção de um ensino de história
que considere os usos do passado e as formas de percepção das
temporalidades pelos estudantes, por meio da promoção de
uma prática pedagógica signicativa mediada pelo patrimônio
musealizado e como este museu pode ser considerado um
museu aprendende. Um espaço onde memórias, conhecimento
e descobertas se entrelaçam e se juntam conforme as imagens da
última seção do texto nos apresentam.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
256
Também por ser um ambiente educativo onde memória, tempo
e investigação nos levem a pensar por outros prismas, a ver o
patrimônio/história de nossa sociedade em uma experiência que
me permite escavar, reproduzir pinturas rupestres e ver como o
trabalho do conhecimento é produzido.
Penso que os documentos e as vivências me puderam descortinar
o quanto o museu impactam seus visitantes, no caso, escolares, e
como os professores podem pensar além das paredes do museu.
Foi também muito interessante perceber como no imaginário de
cada docente, o museu se apresentou de maneira tão diferente, mas,
ao mesmo tempo na mesma percepção de que ele pode deslocar,
produzir conhecimento, mas que também pode ser interpretado
como local de prática e a escola local da teoria. Seria isso mesmo?
Seria uma visão romântica ou ingênua desses espaços educativos?
Fica também perceptível que o museu quer ouvir e não apenas
ser ouvido. Uma postura bem freiriana, na minha humilde opinião.
E justamente por isso, penso que Pereira e Siman (2009) foram
muito felizes ao armarem que “os museus são instituições sociais
e de memória. São [...] instituições aprendentes, pois oferecem
múltiplas possibilidades de leitura do mundo e das realidades
sociais, podendo, por isso, conhecer, inventar e criar esse mundo”, e
acrescento, ser um “museu-fórum” e não “museu-tempo”.
Referências
CARTELLE, Cástor. Os meninos da planície: história de um Brasil Antigo.
Ilustração Sandra Bianchi. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.
COSTA, Júlio César Virgínio da. Da prática educativa a uma educação
pela prática :o ensino de história com o museu e com a literatura. 2016.
177 f. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade
de Educação. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1843/BUBD-AA2J8L>.
Acesso em: 17 maio 2016.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Do Teatro da memória ao laboratório da
História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do
Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V. p.9-42 jan./dez. 1994.
__________________________. Do teatro da memória ao laboratório
da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. In:
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
257
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL Diana Gonçalves. (Orgs.). Museus:
do gabinete de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte:
Argvmentum; Brasília: DF, 2005. p 15-84.
PEREIRA, Júnia Sales; SIMAN, Lana Mara de Castro. Educadores em zonas
de fronteira - Limiares da relação museu-escola. In: NASCIMENTO,
Silvania Souza, FERRETI, Carla Santiago. (Org.) Cdroom Museu e Escola. 1
ed. Belo Horizonte: Puc Minas/UFMG, 2009, v. 1 p. 1-15.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu e o ensino
de História. Chapecó: Argos, 2004.
A CIDADE DE MARIANA E O
ENSINO DE HISTÓRIA: LEITURA
DAS PAISAGENS URBANAS NA
EDUCAÇÃO BÁSICA
Mayara Pacces Vicente1
Considerações iniciais
Esta pesquisa emerge da experiência prossional com educação
patrimonial voltada à educação básica. Na academia a partir de
2019 surgiu o interesse em pesquisar a educação patrimonial na
cidade de Mariana e o desao de ampliar esse estudo para o Ensino
de História. Buscamos, nesse sentido, reetir acerca da importância
de se estruturar atividades fora dos muros escolares, utilizando a
própria cidade como sala de aula, compreendendo o seu potencial
pedagógico sobretudo para o Ensino de História.
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a observação
participativa. Por meio dela pude observar diferentes atividades
de leitura de paisagens urbanas realizadas por alunos da educação
básica na cidade Mariana durante os anos de 2022 e 2023. Foram
observadas as seguintes atividades conduzidas por mim enquanto
educadora patrimonial na cidade de Mariana: (a) Estudos do meio
realizados na cidade de Mariana com escolas particulares de Belo
1 Mestranda em história, Universidade Federal de Ouro Preto. E-mails: mayara.
vicente@aluno.ufop.edu.br / maypacces@gmail.com
258
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
259
Horizonte e São Paulo; (b) Leitura de paisagens do centro e do bairro
de Santo Antônio com alunos da escola pública Wilson Pimenta; e
(c) Leituras da paisagem da praça de Minas Gerais com alunos das
escolas públicas e particulares de Mariana durante um projeto de
Educação Patrimonial na Igreja de São Francisco de Assis e na Casa
do Conde de Assumar.
Na experiência em campo, percebi que, por vezes, alguns alunos
tinham insights sobre a cidade a partir da observação do meio urbano,
no sentido de dissecar a paisagem e debater sobre suas camadas. Em
2019, comecei a trabalhar como educadora e mediadora em estudos
do meio nas cidades de Mariana com escolas de Belo Horizonte e São
Paulo. O Estudo do Meio implica em estar no meio, aprender com o
meio e a partir do meio, sensibilizar os alunos a questionarem o seu
entorno, pensarem sobre a sociedade e a reetirem sobre a história
que se apresenta nas paisagens: no caminhar, nas construções, nas
formações geológicas, nos sons e nos encantos do cotidiano. Ele
tem o potencial de mostrar a especicidade de cada lugar.
O Estudo do Meio pode ser compreendido como um método de ensino
interdisciplinar que visa proporcionar para alunos e professores o
contato direto com determinada realidade, um meio qualquer, rural ou
urbano, que se decida estudar. Esta atividade pedagógica se concretiza
pela imersão orientada na complexidade de um determinado espaço
geográco, do estabelecimento de um diálogo inteligente com o
mundo, com o intuito de vericar e de produzir novos conhecimentos
(LOPES; PONTUSCHKA, 2009).
Os alunos dessas escolas, a maioria do 7º ao 9º ano, vinham
com uma concepção preestabelecida sobre essas cidades baseados
sobretudo nos estudos realizados em sala de aula sobre o Brasil
colonial. Nesse momento, apresentou-se um desao: como
apresentar as cidades de Mariana e Ouro Preto a partir das paisagens
urbanas compreendendo suas múltiplas facetas? Foi então que
passei a pensar em perguntas disparadoras para fazer para os
grupos durante a leitura de paisagens de determinados pontos das
cidades com o objetivo deles olharem outros aspectos das formações
urbanas, suas complexidades e temporalidades.
Enquanto educadora patrimonial em uma escola municipal
do Bairro de Santo Antônio, conhecido como Prainha, além do
desenvolvimento de atividades em sala de aula, promovi junto à
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
260
escola e aos estudantes do Ensino Fundamental I saídas pedagógicas
nos arredores da escola e em alguns espaços do centro da cidade. Foi
possível conviver a partir de outra perspectiva com a comunidade
local, pesquisar um pouco sobre sua história, conversar com os
moradores e questionar sobre sua relação com o centro da cidade
(cuja distância em metros é muito próxima) e suas dimensões
históricas, sociais, culturais e econômicas. A partir de então foi
possível perceber o quão potente eram as paisagens que aquele
espaço em comunhão com seus habitantes produzia.
A vivência na Prainha foi muito diferente da experiência como
coordenadora em um projeto de Educação Patrimonial na Praça
Minas Gerais, na Igreja de São Francisco de Assis e na Casa do Conde
de Assumar (onde está instalado o Museu de Mariana), pois as
visitas foram direcionadas para um público mais amplo: estudantes
de todas as etapas da educação básica, de escolas particulares e
públicas e de diferentes regiões de Mariana.
Essa experiência em conjunto com a vivência na Prainha
direcionaram a pesquisa para além do centro histórico de Mariana.
Houve a compreensão de que a partir da observação da paisagem
ao caminhar na cidade é possível reetir sobre as relações entre
periferia e centro e para o entendimento dos contrastes presentes em
ambientes tão próximos. Como esses espaços foram construídos?
Quais os silenciamentos expostos nessas paisagens?
Diante dessas experiências, o objetivo da pesquisa é reetir
sobre a possibilidade de trabalhar na educação básica a dimensão
patrimonial da cidade de Mariana, com suas diversas tensões
e pensar em como instigar os alunos a observar as paisagens
urbanas produzidas no centro da cidade e na sua periferia mais
imediata a partir de um olhar direcionado ao caminhar de seus
habitantes enquanto componentes da própria paisagem. Pensar em
como direcionar determinados caminhos para que os estudantes
consigam: observar, reetir e vivenciar a cidade; aprofundar
os conhecimentos sobre a história local; entender como suas
experiências estão impressas na cidade; e estabelecer relações com
os demais habitantes.
O desao é, a partir da educação patrimonial, dar conta então
dos muitos ritmos de conguração de transformação da realidade
que se processam simultaneamente: alguns lentos, alguns rápidos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
261
Eles conversam e estabelecem entre si hierarquias, sentidos e
signicados.
Descobrir esta rede de signicados, relações, processos de criação,
fabricação, trocas, comercialização e usos diferenciados, que dão
sentido às evidências culturais e nos informam sobre o modo de vida
das pessoas no passado e no presente, em um ciclo constante de
continuidade, transformação e reutilização é a tarefa especíca da
Educação Patrimonial. (HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 1999)
Observando a cidade de Mariana, toda a dimensão patrimonial
que a envolve, a relação que existe com o patrimônio colonial e
principalmente a ação da mineração no decorrer de sua história e
sua interferência na paisagem urbana, ocorreu a reexão sobre a
importância de se construir junto aos alunos diferentes metodologias
para ler as paisagens urbanas da cidade, de alavancar os olhares e
direcioná-los para as relações estabelecidas entre os habitantes desta
urbes. Nas experiências brevemente relatadas, cada qual com suas
particularidades, houve a seleção de espaços para serem observados
e lidos em conjunto com as respectivas turmas, todas vinculadas a
uma instituição de ensino regular.
Diante de um leque de possibilidades temáticas presentes
na cidade, o tema-eixo escolhido para análise foi a atividade
mineradora e seus impactos na cidade. A mineração fez parte
da formação dessa sociedade e ainda está presente por meio de
empresas privadas. Por um viés sociológico é possível constatar
que diversos uxos migratórios ocorreram devido a essa atividade
econômica - a princípio vinculados à extração do ouro e a ocupação
do território a partir do século XVIII e, posteriormente, à extração
do ferro e à instalação das mineradoras, a partir da segunda metade
do século XX.
A pesquisa não se concentra apenas em analisar a cidade do ponto
de vista dos planejadores e gestores urbanos, embora compreender
esse aspecto seja crucial, já que a partir dele são desenvolvidas as
estratégias dominantes. O que realmente nos interessa, conforme
Certeau (CERTEAU, 2011) destaca, são as manobras daqueles que
ocupam a base da cidade. O nosso objetivo é examinar como as
pessoas na base da sociedade urbana experimentam e observam
as paisagens que se formam em espaços especícos. Dessa forma,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
262
podemos identicar vislumbres de narrativas criadas e muitas vezes
ocultadas por indivíduos, tanto no presente quanto no passado.
Por essa ótica, há em Mariana a existência de um “discurso
utópico urbanístico” (CERTEAU, 2011, p. 172). Ao inverter essa
lógica, por meio da implementação de uma educação patrimonial,
é possível lançar luz àquilo que estrategicamente os opressores
tentam excluir ou escamotear. Se existe um poder panóptico há
igualmente movimentação táticas que se formam às margens desse
poder. Esses movimentos são ao mesmo tempo contraditórios e
complementares. Em um percurso orientado é possível que os
alunos e habitantes da cidade entendam quem são os construtores
dessas novas estruturas, muitas vezes invisibilizados, que trazem
novos signicados às formações geográcas. Daí a importância de
proporcionar aos alunos uma experiência espacial na cidade.
A experiência está relacionada com o mundo; no sonho e na
percepção, e é anterior à sua diferenciação, ela exprime “a mesma
estrutura essencial do nosso ser como ser situado em relação com
um meio” - um ser situado por um desejo, indissociável de uma
“direção da existência” e plantado no espaço de uma paisagem
(CERTEAU, 1994. p.202). O objetivo está em a partir das paisagens
urbanas pensar nas ferramentas capazes de criar desvios. Certeau
(2011) pensa em possibilidades de trilhar novos caminhos diante
do que está dado, ou seja, reetir sobre as táticas de sobrevivência e
resistência de determinadas parcelas da sociedade.
A proposta de explorar a cidade, sob a perspectiva de Michel de
Certeau, está intrinsecamente ligada à ideia de promover encontros
temporais por meio da observação, leitura e interpretação dos espaços
urbanos onde ocorrem ações sociais dinâmicas e multifacetadas.
A cidade está em constante transformação, exigindo uma análise
cuidadosa dos signos e signicantes identicados pelos alunos e
como eles reinterpretam e reelaborem essas informações. Durante
as atividades de leitura da paisagem alguns assuntos permearam os
debates realizados com os alunos. Aqui farei uma breve apresentação
de alguns temas discutidos que envolvem a cidade de Mariana, suas
paisagens e alguns agentes históricos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
263
As Múltiplas Facetas da Cidade de Mariana:
Narrativas, Práticas e Resistências
Um espaço amplamente analisado durante as três atividades
relatadas foi a Praça Minas Gerais. Trata-se de um local central
em que é possível observar o centro histórico e suas periferias
adjacentes. Após uma observação livre dos elementos presentes na
praça é importante fazer uma contextualização da cidade a partir
dos símbolos de poder e resistências.
Figura 1 – Praça Minas Gerais, 2019.
Fonte: Portal da cidade de Mariana
Sob uma perspectiva de leitura dominante, a cidade de Mariana
é conhecida como a Primaz de Minas, por ser considerada a
primeira cidade de Minas Gerais e teve grande relevância no
período setecentista. Na Praça Minas Gerais se observa uma
paisagem urbana ressaltando a arquitetura barroca, mesclando as
construções recentes espalhadas por entre os morros, o que denota
que no decorrer do tempo a cidade foi transformada e a sua urbes
sofreu mudanças econômicas sociais e culturais.
A história da mineração está vinculada com a formação da
cidade de Mariana e de suas paisagens urbanas. No século XVIII,
a atividade na região foi fundamental para a economia aurífera
e, posteriormente, no século XX Mariana foi um dos palcos da
modernização com a exploração de novos minerais e a instalação
de grandes indústrias mineradoras, o que moldou a economia, a
geograa, a arquitetura e as paisagens locais. A atividade mineradora
no estado de Minas Gerais, foi iniciada no século XVII, e gerou
uma mudança nas formações urbanas, pois inverteu uma lógica
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
264
predominante na colônia lusitana, onde a formação do espaço rural
antecedia a formação do espaço urbano (CUNHA, 2009).
A invasão do território que hoje compreende a cidade de Mariana
ocorreu no nal do século XVII na ocasião em que as bandeiras
paulistas de Miguel Garcia e do Coronel Salvador Fernandes
Furtado iniciaram a exploração do ouro nas margens do Ribeirão
do Carmo (FONSECA, 1998, p. 28). A partir daí a comitiva tomou
posse do Ribeirão dando início a um arraial que recebeu o nome de
Mata-Cavalos2.
Em 1711, quando a região transformou-se em Vila, iniciou-se um
processo de planejamento progressivo que alterou a conguração
de sua paisagem. Foi necessário a inserção de novas construções
em uma área menos propícia a alagamentos, o que possibilitou
uma expansão da estrutura urbana com o propósito de estabelecer
na região símbolos de poder que conferissem o status de sede, em
consonância com as diretrizes do governo Português.
No nal do século XVIII, após 1745 - quando a vila de Nossa
Senhora do Carmo foi escolhida para sediar o bispado em Minas
Gerais, elevada a condição de cidade e recebeu o nome de Mariana -
foram construídas na Praça Minas Gerais as igrejas de São Francisco
de Assis e de Nossa Senhora do Carmo e a Casa de Câmara e Cadeia.
O Pelourinho foi inserido na praça apenas no século XX, durante a
ditadura militar.
O centro de Mariana, com seus monumentos preservados,
emerge, desde meados do século XX, como um modelo de cidade
ideal: o passado colonial insiste em se preservar constantemente.
Porém, essa visão idílica sobre o centro gera uma problemáticas,
incluindo a exclusão de classes menos privilegiadas. O centro
da cidade não está congelado no tempo e, no que diz respeito às
relações sociais, não se perpetuou um “estilo de vida original”
(CHOAY, 2017, p. 191) pois trata-se de um organismo vivo. Ele é
estruturado em torno de uma categoria monumental que mantém,
teoricamente, uma herança colonial preservada.
O próprio status de Centro Histórico faz com ele esteja em
perigo na medida em que ele não é um passado encerrado, não
é possível pensar em sua conservação de forma isolada, o que
gera uma série de consequências que afetam principalmente a
população tradicionalmente ocupante deste território, causando
2 Atualmente, esse território compõe o bairro de Santo Antônio e de São Gonçalo.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
265
uma “diáspora, inclusive voluntária, da população” (ARGAN, 1979,
p. 79). É um passado que não se resigna ao esquecimento.
O centro histórico da cidade de Mariana não está aquém
do processo de modernização. No século XX, além de novas
construções que ocuparam uma porção nova da cidade, houve no
centro a instalação da luz elétrica e a inserção de prédios fora do
padrão colonial, um exemplo é o Cine eatro Municipal de estilo
eclético em frente à praça Gomes Freire, próximas da praça Minas
Gerais e da Praça da Sé.
Figura 2 – Rua Frei Durão, 2019.
Fonte: Portal da cidade de Mariana.
O centro de Mariana preserva também uma circulação intensa
de pessoas, na medida em que possui comércios, mercados,
bancos e restaurantes, muitos destes instalados em ambientes
patrimonializados. Sua paisagem não se congura em um espaço
paralisado.
Porém, a construção da cidade só existe devido ao esforço das
populações indígenas que conheciam região interiorana brasileira
e das populações africanas e de seus descendentes que ao serem
sequestrados, separados de suas terras e escravizados em terras
brasileiras trouxeram também o seu vasto conhecimento de
mineralogia, botânica, metalurgia e técnicas construtivas. Então,
mesmo ao construírem edifícios dos quais eles não poderiam fazer
uso, está impresso na cidade e nas suas construções esses saberes.
Logo, diante de ambiguidades a paisagem é constituída também
por atores caminhantes que na mobilidade resistem e experienciam
alteridades. Se o som dos sinos e das procissões católicas não se
limitam ao espaço reservado a eles, outras culturas menos arcaicas
também invadem espaços hegemônicos. Um exemplo é o movimento
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
266
Batalha das Gerais em que os jovens se reúnem nas praças centrais
para uma batalha de Hip Hop.
Não deve existir um local de disputa de sentido mais forte que a famosa
Praça MG. No coração do lugar onde o estado foi embrionado, a história
se impõe e coloca em voga temas como o passado escravagista,
religião, política, turismo e agora novamente: a cena do rap. Entre 2015
e 2019, a Batalha era o grande ponto de encontro dos jovens da cidade.
E de diversas localidades, tanto universitários quanto moradores de
bairros mais afastados do centro histórico. Seja na Praça Gomes Freire
ou no cruzamento das ruas Dom Silvério e São Francisco, a “BDG” se
transformou em mais um monumento, desta vez urbano, da histórica
cidade (VAREJANO, 2023).
A praça Minas Gerais possui símbolos de poder coloniais,
tem na sua composição as igrejas de São Francisco de Assis e de
Nossa Senhora do Carmo, representando o poder da igreja; a Casa
de Câmara e Cadeia, representando o governo; e o Pelourinho
representando a opressão sobretudo contra corpos negros. Ocupar
é resistir a séculos de exploração. O grupo de hip hop TT1,
formado no bairro do cabanas majoritariamente por jovens negros,
frequentemente se apresenta no centro da cidade, promove suas
batalhas e se presentica em eventos ociais da prefeitura. Não se
deixa paralisar, imprimindo a sua presença em um espaço hostil.
Como eles manifestam “quem ca parado está morto” (VAREJANO,
2023).
Figura 3 – Evento BDG na Praça Minas Gerais.
Fonte: Galilé, Igor Varejano.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
267
Richard Sennett (2003), em sua obra Corpo e Pedra o Corpo e a
Cidade na Civilização ocidental, utiliza o exemplo da Grécia Antiga
para ilustrar como as cidades são projetadas de forma seletiva,
atendendo a determinados grupos de cidadãos em detrimento de
outros. A cidade grega de Atenas era concebida como um espaço
destinado aos cidadãos gregos livres e politicamente ativos, reetindo
essa visão em suas estruturas públicas, monumentos, locais de
memória e áreas de exercício. Esses corpos se adaptaram à cidade
projetada para eles, enquanto outros grupos eram invisibilizados no
cenário urbano.
Em suas análises de cidades subsequentes, Sennett destaca como
esses ambientes urbanos se moldam de acordo com o poder e a
inuência das elites, privilegiando aqueles que detêm o controle.
Isso se manifesta em aspectos como a infraestrutura viária, onde
proprietários de carros desfrutam de vantagens, e na segregação,
que mantém a população mais pobre distante dos centros urbanos.
No entanto, Sennett também ressalta, em consonância com Certeau,
que os corpos excluídos encontram maneiras de se tornar visíveis
e reivindicar sua presença na cidade, como exemplicado na festa
das mulheres gregas, quando elas temporariamente dominavam
o espaço público. Esse entendimento lança luz sobre a questão
da exclusão e da desigualdade nas cidades, abrangendo desde sua
organização física até suas políticas urbanas e arquitetura.
As paisagens urbanas de Mariana reetem essa exclusão com
suas calçadas pequenas, construções sem abrigo e sem recuos nas
calçadas, estabelecimentos com produtos de alto custo, etc. Porém,
a população marginalizada consegue habitar a cidade a despeito
dessa arquitetura hostil desde o Brasil colônia, bem como demonstra
Laura de Mello no livro Desclassicados do Ouro (SOUZA, 1986).
O cerne da análise da autora é a abordagem das chamadas “práticas
sociais” protagonizadas por grupos sociais marginalizados ou
“desclassicados” pela estrutura colonial vigente. Esses eram
compostos por uma gama diversicada de indivíduos: vadios,
vagabundos, desertores, padres infratores, negras quitandeiras,
prostitutas, praticantes de feitiçaria, ladrões, entre outros.
Atualmente estes e outros grupos marginalizados habitam o centro
da cidade e interferem nas suas estruturas.
Movimentos como o BDG suscitam a reexão, a partir de um
olhar antropológico, sobre esses corpos que possuem outras chaves
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
268
para lidar com o que está posto e portanto abrem portas que aqueles
que detêm o poder, do alto de suas grandes estruturas, muitas vezes
não conseguem enxergar e consequentemente cam incapazes de
controlar ou programar determinadas operações, uma vez que
os repertórios desses corpos móveis são variados, adaptáveis e
resistentes à eliminação.
Portanto, as histórias e as rotas traçadas pelas pessoas na cidade de
Mariana cam impressas nos espaços que elas ocupam. As fábulas,
os sons e os corpos delas invadem barreiras que se pretendiam
intactas. Segundo Certeau (1994) o espaço traz à tona essa leitura
da cidade praticada e das astúcias dos indivíduos e coletivos que a
praticam.
Outro ponto que se coloca na atualidade é que o projeto
intencional de crescimento desenfreado da cidade devido às
demandas da mineração geraram a gentricação, o que causou a
especulação imobiliária e impediu a permanência de determinadas
pessoas no centro, na medida em que apenas as pessoas que possuem
condições nanceiras para manter essas estruturas preservadas
ou para pagar os aluguéis exorbitantes podem permanecer nesse
território, expulsando as demais para áreas periféricas como São
Gonçalo, Cabanas, Santo Antônio ou até distritos mais distantes da
sede do município.
Souza Junior (2003, p. 68) constatou que Cabanas e Santo Antônio,
em que “os números quanto à renda, violência e escolaridade não
são favoráveis” e “têm sua população formada quase que em sua
maioria por pessoas vindas da zona rural ou de pequenos municípios
da região”. Com a instalação das mineradoras de ferro no século
XX foram construídas casas em lugares insalubres e abandonados
pelo poder público, o bairro pulsa e os habitantes seguem criando
desvios perante a grande máquina que pretende eliminá-los.
Não precisa caminhar muito para chegar à plaquinha escrita
“bairro Santo Antônio”, dez minutos separam a placa da praça Minas
Gerais. À esquerda é possível visualizar a primeira capela da cidade
de Mariana3. A comunidade que marca a tão famigerada origem4
3 “Construída em 1701 a pedido do bandeirante Salvador Fernandes Furtado.”
(ARQUIDIOCESE…, 2022).
4 Embora a discussão sobre a ideia de origem tenha sido problematizada nas
produções das áreas humanas desde o século passado, como demonstra a tese
desenvolvida por Marc Bloch sobre o Ídolo das Origens (2001), no que diz respeito
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
269
ca às margens do Rio do Carmo e, apesar de sua importância, é
silenciada e estigmatizada. Anal, a quem interessa que suas vozes
cheguem ao centro? Mas são essas as margens que o sustentam:
as do Rio, das ruas, das casas e das subjetividades humanas. Suas
narrativas, apesar da tentativa de silenciamento, são construídas
diariamente.
Figura 4 –Vista do bairro de Santo Antônio.
Fonte: Laene Andreata
Trata-se de uma região com grande potencial turístico e
econômico, que possui resquícios da atividade mineradora, com
traços da mineração do século XVIII, túneis abandonados e
homens no Rio do Carmo com suas bateias a m de garantirem a
subsistência. Atualmente, a capela e o Largo de Santo Antônio estão
passando por um processo de restauro5, a obra que demorou para
começar já está causando transtornos para a população local, visto
que a lama da construção está invadindo as ruas e algumas casas
da vizinhança (TRUOCCHIO, 2023). A obra não tem o mesmo
glamour que se construiu em torno dos restauros das edicações
ao desenvolvimento das cidades, a concepção de origem absoluta ou o interesse
em buscar espaços que marcam o início de uma determinada civilização ainda está
presente na sociedade, inclusive na historiograa e no Ensino de História, a exemplo
da idolatria ao suposto pioneirismo Bandeirante e às construções que surgiram nesse
processo.
5 A obra está incluída na lista de obras do PAC Cidades Históricas - Mariana MG,
IPHAN, 2023. Disponível em: Página - IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
270
centrais, como ocorreu com a Casa de Câmara e Cadeia, com a Igreja
de São Francisco de Assis e com a Catedral da Sé dedicada a Nossa
Senhora da Assunção. Trata-se de um descaso com a população e
com o próprio patrimônio da cidade.
Em conversa com as crianças da escola municipal do bairro
Santo Antônio durante as leituras de paisagens, observei que elas
apresentam muitas vezes uma imagem negativa do território,
quando o associam à violência e a poluição. A educação patrimonial
se coloca como ferramenta para desconstruir esse imaginário onde
o território habitado é sentido a partir de estereótipos construídos
pelo outro, sendo esse outro, um ser distante do próprio bairro.
Esses territórios fazem parte da cidade de Mariana tanto quanto
o centro e, mesmo com a falta de políticas públicas e de ações que
visam a preservação de suas estruturas, a vida segue com funções
determinadas, usos diversicados e constituições de procedimentos
que fogem da dicotomia entre preservar ou modernizar.
É um grande desao ver a Prainha para além desse panorama.
Porém, também é uma estratégia das estruturas de poder manter
a região diante desse imaginário de guerra. Certeau aponta novas
formas de enxergar as congurações urbanas que não somente pelo
ponto de vista daqueles que detém o poder e portanto administram
e criam estratégias e redes de vigilância para o funcionamento desta
grande máquina.
Os procedimentos que organizam a cidade estão desgastados
na medida em que a polarização entre a tradição e a ideia xa de
progresso e de funcionalidade impossibilita essa leitura da cidade
em movimento (CERTEAU, 2011, p. 172). Diante disso, quais são as
contingências que fogem dos discursos universais e se apresentam
nas paisagens que se formam nos espaços de Mariana enquanto
lugares praticados? Como os habitantes da cidade vivenciam os
espaços que circulam, usam suas estruturas e pensam sobre elas?
Perante as normas expostas as pessoas se adaptam e criam
mecanismos próprios, ou seja, formas outras de fazer uso do espaço
urbano. Trata-se de um jogo de apropriações capaz de formar
diferentes programações e traçados que apresenta no caminhar
uma forma de enunciar e criar desvios diante das leis impostas
(CERTEAU, 2011).
É um desao que se coloca não apenas na educação básica
e no Ensino de História, mas também nas leituras da cidade
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
271
realizadas por instituições que estruturam o meio urbano e seus
patrimônios. Tanto na academia como nos órgãos públicos muitas
vezes as análises ociais são feitas a partir de um olhar de cima
dessas estruturas. São diagnósticos restritos que desconsideram as
continuidades que constituem esses espaços e os rastros deixados
pelos sujeitos, formam imagens xas e imutáveis de algo que está
sempre em transformação.
Importante ressaltar que as escolhas dos patrimônios e de
circuitos turísticos são permeadas de violências e sempre excluem
narrativas, bem como ocorre na cidade de Mariana em que a Capela
de Santo Antônio, a despeito da sua importância histórica, não está
inserida nos guias da cidade, muito menos a história do seu bairro.
O próprio termo “planejamento urbano e estratégico” consta
nos programas de patrimônio e urbanismo. Porém, os planos
estratégicos estão repletos de relações hegemônicas no que diz
respeito às formas de olhar para a cidade. Tratam-se de diagnósticos
que falam de uma série de elementos apenas do ponto de vista
formal (do uso do solo, das atividades comerciais, dos patrimônios,
da memória, etc).
Considerações nais
As leituras aqui apresentadas foram desenvolvidas a partir das
leituras das paisagens marianenses realizadas com os alunos da
educação básica. Trata-se também de encontrar subsídios, ou seja,
ferramentas para pensar a paisagem a partir das possibilidades de
despertar para o(s) outro(s) para além das análises preconcebidas.
Entender como e onde as táticas do cotidiano estão impressas
no traçado urbano e nas construções, superando as estratégias
hegemônicas e formando uma poética relacionada com as formas
de movimento.
Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. Sob esse
ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses
“sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade”, mas “não
cêm nenhum receptáculo físico”. Elas não se localizam, mas são elas
que espacializam (CERTEAU, 2011, p. 172).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
272
Assim como os indivíduos e coletivos têm particularidades,
os espaços percorridos por eles também possuem singularidades,
nesse ato de caminhar existem impressões moldadas nos lugares
praticados que se transformam em espaços repletos de signicados.
É, portanto, no espaço que as relações são criadas e as experiências
construídas, daí a importância de se ler um espaço. O lugar praticado
no cotidiano é moldado por essas relações.
O foco então está em desenvolver uma leitura da cidade de
Mariana a partir dessa concepção, ou seja, observando as paisagens
da cidade e suas congurações: as relações formadas no decorrer
dos anos pelos habitantes ordinários da cidade de Mariana; a ação
da máquina mineradora; as edicações e as técnicas construtivas
desenvolvidas e aplicadas por africanos e seus descendentes
escravizados no decorrer do século XVIII; ou mesmo as construções
das casas e dos barracos alocados em bairros estigmatizados que
foram urbanizados a partir da segunda metade do século XX,
com o crescimento do neoliberalismo, da mineração de ferro e da
instalação de empresas mineradoras na região.
Se “a narração criou a humanidade” (CERTEAU, 2011, p. 199),
logo a linguagem falada tem potência criadora da própria estrutura
urbana. Pensando desse modo, a própria estrutura espacial é
intrínseca à linguagem e se recria a partir dela. Portanto, os
próprios procedimentos de bricolagens vieram à superfície diante
das experiências de cada participante dessas caminhada coletiva.
Os sentidos criados através do percurso foram permeados de
deslocamentos tanto por parte do observador quanto do observado,
os relatos criados tem potência pois são individuais e coletivos o que
forma entrecruzamentos das histórias e dos signicados atribuídos
aos espaços. Nesse sentido, novas narrativas podem ser criadas e as
experiências individuais repensadas e lançadas ao coletivo.
A caminhada arma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeita etc.,
as trajetórias que “fala”. Todas as modalidades entram aí em jogo,
mudando a cada passo, e repartidas em proporções, em sucessões, e
com intensidades que variam conforme os momentos, os percursos, os
caminhantes. Indenida diversidade dessas operações enunciadoras.
Não seria portanto possível reduzi-las ao seu traçado gráco (CERTEAU,
2011, p. 179).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
273
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo:
Martins Fontes 1992.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 2011.
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. 6ª. ed. São Paulo: UNESP, 2017.
CUNHA, Alexandre Mendes. O urbano e o rural em Minas Gerais entre
os séculos 18 e 19. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte:
Assembleia Legislativa de Minas Gerais, v. 11, n. 16, 2009, p. 57-70.
FONSECA, Cláudia Damasceno. O Espaço Urbano de Mariana: sua
formação e suas representações. In: Termo de Mariana: história e
documentação.Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998. 27-66p.
HORTA, M.L.P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A.Q. Guia Básico de Educação
Patrimonial. Brasília, IPHAN, Museu Imperial, 1999
LOPES, Claudivan S.; PONTUSCHKA, Nídia N. Estudo do meio: teoria e
prática. Geograa (Londrina) v. 18, n. 2, 2009.
PAC Cidades Históricas. Mariana MG, IPHAN, 2023.
TRUOCCHIO, Bruna. Moradores denunciam atraso na entrega da reforma
da Capela de Santo Antônio em Mariana e prefeitura responde. Itatiaia.
Ouro Preto, MG. 2023.
SENNETT, Richard. O carne e a pedra: o corpo e a cidade na civilização
ocidental. Tradução de Marcos Aarão Reis. 3 ed., Rio de Janeiro, Record,
2003.
SOUZA JÚNIOR. Paulo Gracino de. “Barracões Barrocos”: memória, poder
e adesão religiosa em Mariana-MG. Rio de Janeiro: Dissertação (Programa
de Pós-Graduação em Memória Social). Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro. UNIRIO. 2003.
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassicados do ouro. 2.ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1986.
VAREJANO, Igor. A batalha pela ‘Gerais’: Mariana segue sua vocação Hip
Hop. Galilé. 2023.
RECURSOS EDUCACIONAIS DE
UM PATRIMÔNIO MUNDIAL DA
HUMANIDADE: O MUSEO SITIO DE
MEMORIA ESMA E A EDUCAÇÃO
MUSEAL
Lucas Antoszczyszyn1
Poliana Fabíula Cardozo2
Introdução
Dado o reconhecimento da importância dos museus e espaços
similares como educativos e educacionais, cabe a esse escrito
evidenciar uma avaliação dos papéis de um museu em sua prática, a
partir da realidade vivenciada. É possível levar em pauta que dentre
esses modelos de instituição, estão aqueles preocupados com a
manutenção de narrativas sobre um passado, ou seja, museus de
memória.
A Educação Museal, segundo o Museu da Vida (FIOCRUZ,
2020, n.p), é “um processo educativo, focado no indivíduo e sua
1 Mestre em História, Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação
pela Universidade Estadual do Centro-Oeste, bolsista CAPES. E-mail: antoszczyszyn98@
outlook.com
2 Doutora, Colegiado de Licenciatura em Música Unespar - Curitiba campus
I & Programa de Pós-Graduação em Educação Unicentro – Paraná. E-mail:
polianacardozo@yahoo.com.br
274
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
275
interação com a sociedade, que valoriza suas formas de fazer e viver
a cultura, a política, a história”.
Reetir sobre educação museal e sobre como ela poderia ajudar
a construir uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva,
é relevante por vários motivos. Dentre os principais, está a
preocupação sobre quais conteúdos e sob quais formas a educação
museal acontece nos museus e espaços de memória, uma vez
que a maneira como a história e as memórias são apresentadas e
interpretadas inuencia diretamente na compreensão do público
sobre o tema.
Outro motivo da relevância das reexões sobre educação museal,
diz respeito à avaliação da efetividade dos museus e espaços de
memória em alcançar seus objetivos educacionais (pressupondo
que os mesmos se preocupem efetivamente). Pelas abordagens
comunicativas presentes na educação museal, permeiam exibições
permanentes e temporárias, programas educacionais, atividades
interativas, visitas guiadas, entre outros. Levantar esses dados a
m de compreender como esses conteúdos são apresentados e
interpretados, pode ajudar a identicar a efetividade dos museus e
espaços de memória em alcançar seus objetivos educacionais.
Dessa forma, analisar técnicas e recursos de interpretação
patrimonial de museus e espaços de memória traumática é
importante para entender como o processo comunicativo acontece e
como isso pode afetar o público. Anal, a interpretação patrimonial
pode ser usada para fornecer contexto histórico, apoiar narrativas
inclusivas e oferecer diferentes perspectivas sobre o passado. Ao
analisar as técnicas e recursos de interpretação patrimonial, é possível
identicar se o museu está apresentando uma abordagem crítica e
inclusiva ou perpetuando narrativas excludentes e dominantes.
Por essa perspectiva, museus e espaços de memória traumática
podem ser considerados locais dedicados à preservação e exposição
de memórias coletivas ligadas a eventos traumáticos da história.
Eles desempenham um papel crucial na educação, conscientização
e reexão sobre acontecimentos marcantes, como genocídios,
ditaduras, guerras e outras formas de violência. Esses espaços
oferecem testemunhos tangíveis, como artefatos, documentos,
fotograas e relatos pessoais, que dão voz às vítimas e buscam
promover a compreensão e a empatia. Ao confrontar o passado
doloroso, os museus e espaços de memória traumática desaam a
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
276
amnésia coletiva, promovendo a justiça, a cura e a prevenção de
atrocidades futuras.
Buenos Aires e o Museo Sitio de Memoria Esma
Pelo seu histórico de ditaduras, guerras, escravização, a América
do Sul possui uma innidade de museus e espaços de memória cujos
objetivos são os de educar, rememorar e promover a prevenção
contra o esquecimento de verdadeiras feridas abertas das sociedades.
Capital e maior centro urbano populacional da Argentina, Buenos
Aires coleciona museus e espaços de memória que preservam
reexões acerca do conturbado passado do país, que enfrentou
períodos de ditadura militar, violações dos direitos humanos e
desaparecimentos forçados durante a segunda metade do século XX.
Buenos Aires foi um centro importante para esses acontecimentos
e, como resultado, testemunhou uma forte demanda por locais que
preservam e exponham essas memórias dolorosas.
Dentre essas iniciativas, destaca-se o Espacio Memoria y
Derechos Humanos, composto pelo Museo Sitio de Memoria
ESMA, Monumento a la Memoria, o Centro Cultural de Memoria
Haroldo Conti e diversas outras edicações nos seus arredores, que
têm como razão de ser a preservação das memórias dos períodos
de regimes ditatoriais na Argentina, ocorridos entre 1966-1973 e
1976-1983.
Fora desse espaço, localizado no bairro San Telmo, está o Museo
Penitenciario Argentino Antonio Ballve, inaugurado em 1980,
cujo edifício data do século XVIII e preserva as dependências que
abrigavam, dentre outras instituições, um conjunto de instituições
prisionais ao longo do tempo.
Como o foco desse trabalho é evidenciar e analisar os recursos
educacionais empregados pelo Museo Sitio de Memoria Esma,
permitam-nos uma contextualização desse espaço.
ESMA é a sigla para Escola de Mecânica da Armada, que
funcionava em meados do século XX como uma unidade da
Marinha da Argentina, sobretudo destinada à formação dos
ociais especialistas em áreas como a engenharia de navegação e
a mecânica… ao menos no papel. O que ocorre é que, durante o
período ditatorial argentino, mais especicamente entre 1976 e
1983, a ESMA foi palco de torturas, funcionando como um centro
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
277
clandestino destinado à detenção de pessoas consideradas rebeldes
ou subversivas ao regime antidemocrático. É difícil mensurar a
quantidade de pessoas que passaram pela ESMA que sofreram
tortura, dado o estado de clandestinidade, porém, estima-se por
fontes ociais que mais de 5000 pessoas passaram por detenção,
tortura e, posteriormente, desaparecimentos, somando “militantes
políticos e sociais, de organizações revolucionárias armadas e não
armadas, trabalhadores e sindicalistas, estudantes, prossionais,
artistas, religiosos e religiosas” (MUSEO SITIO ESMA, c2023).
Após décadas que caracterizavam um passado pendente, que
recusava o silenciamento pela história argentina, em 2004 a antiga
sede da ESMA foi convertida, na forma da lei nº 1412/04, em um
centro de memória que pauta a história da repressão, do terrorismo
de estado, de forma a promover a rememoração e objetivar o
respeito aos Direitos Humanos.
Foi só em 2015, que foi inaugurado o Museu Sitio de Memória da
ESMA, que dispõe permanentemente de exposições museográcas.
O argumento museal, bem como o roteiro, baseiam-se nos
depoimentos coletados dos sobreviventes ao terrorismo de estado a
partir do julgamento das Juntas Militares, ocorrido em 1985, e nos
julgamentos contra a humanidade, 2004. (MUSEO SITIO ESMA,
c2023).
Educação Museal no Museo Sitio ESMA
À luz do conceito de Educação Museal (MHN, 2020), vericamos
os recursos, iniciativas e abordagens educacionais empregadas
no âmbito do Museo Sitio de Memoria ESMA, em Buenos Aires,
reconhecido pela UNESCO em 2023 como Patrimônio Mundial da
Humanidade.
Os materiais coletados e analisados nesse escrito foram
disponibilizados pela instituição após uma visita em 2023. Nessa
visita, os funcionários do museu foram consultados e foi solicitado
envio dos materiais via e-mail. Cabe sinalizar que essas pessoas
demonstraram-se prestativas a colaborar com a pesquisa e
disponibilizaram uma série de dados sobre a ESMA e os recursos
educacionais.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
278
Posteriormente, ocorreu o levantamento das formas educacionais,
que podem ser dispostas nesse trabalho em (1) recursos educacionais
e (2) iniciativas/abordagens educacionais.
Recursos Educacionais
São entendidos como recursos educacionais os materiais que
encontram-se em estado físico ou digital, preparados com intuito
educativo e disponibilizados, de forma analógica ou online, para
os educandos. Nessa seara, o Museo Sitio ESMA interpreta o papel
de intermediador entre seu público e prossionais da educação,
audiovisual, arquivistas e historiadores/as, bem como instituições
que atuam em parceria, isso porque o museu em si não produz os
materiais, mas os disponibiliza, apresenta, divulga, como forma de
complementação às visitas ao espaço físico.
Anal, como enunciado o espaço virtual “Recursero” do
museu, disposto no site institucional, são “materiais didáticos de
diferentes espaços e instituições para trabalhar antes e depois das
visitas guiadas ao Museu do Sítio” (MUSEO SITIO ESMA, c2023,
tradução própria), proporcionando assim um “enquadramento
teórico adequado para reetir sobre o Terrorismo de Estado e
aproveitar ao máximo a visita guiada a um dos Centros Clandestinos
mais emblemáticos do nosso país” (MUSEO SITIO ESMA, c2023,
tradução própria).
Iniciamos pelo ebook “Pensar la dictadura: terrorismo de
Estado en Argentina. Preguntas, respuestas y propuestas para su
enseñanza”, de 192 páginas, disponibilizado desde 2013 e elaborado
pelo Ministério de Educação argentino, que partiu das diretrizes
do programa “Educación y Memoria”, coordenado por Ma. Celeste
Adamoli.
El Programa “Educación y Memoria” del Ministerio de Educación de
la Nación tiene como objetivo consolidar una política educativa que
promueva la enseñanza del pasado reciente en las aulas como un
aporte a la construcción de una nueva ciudadanía política. Inscribe sus
acciones en el marco general de la Ley de Educación Nacional N° 26.206
que en su artículo 3° señala que “la educación es una prioridad nacional
y se constituye como política de Estado para construir una sociedad
justa, rearmar la soberanía e identidad nacional, profundizar el
ejercicio de la ciudadanía democrática, respetar los Derechos Humanos
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
279
y libertades fundamentales y fortalecer el desarrollo económico-social
de la Nación (ADAMOLI, 2014, p. 11).
Esse material contém 4 capítulos, cada um dedicado às diferentes
interfaces da ditadura argentina, que podem ser considerados
temas guarda chuva. O primeiro, trata do terrorismo de estado,
o segundo, aborda as relações entre a ditadura e a sociedade, o
terceiro, a ditadura no mundo e o quarto, faz um apanhado entre
o que tem sido feito nos dias atuais para rememorar os ocorridos.
Todos os capítulos são estruturados da mesma forma: iniciam com
explicações divididas em eixos temáticos que se correlacionam,
posteriormente, disponibilizam fontes para a análise apurada e
também para justicar o que foi anteriormente argumentado, uma
galeria de imagens e fotograas para enriquecer a experiência visual
e, por m, propostas para trabalhar em sala de aula.
Outro recurso disponibilizado pelo museu é o link para o site
da sociedade civil organizada Abuelas de Plaza de Mayo, criada em
1977 (ou seja, durante o período ditatorial), cujo objetivo está em
“devolver a identidade às lhas e lhos de desaparecidos que foram
apropriados durante a última ditadura civil-militar”. (ABUELAS,
c2023). Nesse site, na guia educacional, está presente uma série de
recursos e propostas pedagógicas destinadas aos professores, desde
o ensino primário até o universitário, à comunidade acadêmica
e ao público em geral. Destacam-se livros, vídeos, cartilhas para
professores e textos destinados ao trabalho em salas de aula desde
os primeiros anos de escolaridade, palestras, seminários e materiais
elaborados especialmente para a formação em direitos humanos,
memória e identidade, publicações, documentos, recomendações e
vias de acesso para solicitação de informações, para pesquisadores
e acadêmicos.
Na contenda dos recursos audiovisuais, estão três séries
documentais disponibilizadas na íntegra no youtube, sendo elas,
“Ex Esma, retratos de una recuperación” e “Historia de un país” e
“Retratos de un genocidio: ciclo de entrevistas a Madres de Plaza
de Mayo”, todas produzidas pelo canal Encuentro. São séries curtas,
repletas de depoimentos, fontes históricas e seus argumentos
contam com a colaboração de especialistas. Como são idealizadas
para o público de sala de aula, algumas possuem episódios de até 3
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
280
minutos, as mais extensas possuem até 30 minutos de duração em
cada episódio.
É o caso de “Historia de un país”, que detalha os acontecimentos
que levaram à ditadura militar argentina de 1976, incluindo o
sequestro e assassinato da diplomata Elena Holmberg, a crise
econômica e a violência política que precedeu o golpe do governo
da junta militar, e a subsequente repressão e violações dos direitos
humanos. O enredo conta com explicações sobre as pressões
globais de grupos de direitos humanos e do governo dos EUA, a
Copa do Mundo FIFA de 1978 a ser usada como encobrimento
das atrocidades governamentais, e as marcas da ditadura na crise
econômica, turbulência política e ativismo da sociedade civil. Como
formas de sensibilização, nos momentos nais de cada episódio são
apresentadas manifestações culturais, como uma música no m do
episódio 2, que destaca a importância de relembrar o passado e a
dor e a perda sofridas pelas pessoas.
No que diz respeito aos recursos históricos, as fontes, o museu
disponibiliza o acesso para duas organizações. A primeira é a
Memória Abierta, responsável por catalogar e expor inúmeras
fontes, separadas por temas ou possibilitadas por um mecanismo
eletrônico de busca precisa. São documentos históricos, materiais
de leitura, depoimentos, audiovisuais, imagens e datas importantes,
organizados de forma dinâmica. Além de tudo, disponibiliza um
guia de arquivo e sugestões de lmes sobre a ditadura. Outra
iniciativa é o CELS (Centro de Estudios Legales y Sociales), que dá
acesso a estatísticas e documentos relacionados com julgamentos
contra a humanidade.
De forma geral, destacamos os formatos acessíveis e versáteis de
todos esses recursos, que além de serem disponibilizados online, são
gratuitos. O trabalho apurado de prossionais da gestão educacional
do museu permite um vislumbre das questões relacionadas aos
seus temas chave quando os recursos são acessados em diferentes
formatos.
No entanto, como é parte da análise, mencionamos as falhas
nesse processo, para ns de aprimoramento. Apesar de versáteis
e gratuitos, muitos desses materiais não são atualizados, alguns já
marcam 10 anos de produção, como é o caso do ebook e das séries
documentais, e como bem sabemos, a cada dia novas descobertas
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
281
são feitas na ciência, inclusive nas perspectivas historiográcas e
educacionais.
Em contraposição, um ponto positivo é a disponibilização direta
via link para as organizações, que atualizam na medida do possível
os seus sites institucionais, o que torna o museu um verdadeiro canal
de comunicação. Porém, o mesmo ponto parece ter sua fragilidade,
uma vez que alguns desses links encontram-se “quebrados”, não
levam a site algum, dada a desatualização dos endereços, o que
nos leva a necessidade de atualização do museu na lista de links do
Recursero.
Iniciativas e Abordagens Educacionais
Apesar de parecerem pleonazes, iniciativas e abordagens
acusam diferentes aspectos de ação dos museus. Isso porque as
iniciativas dizem respeito à produção, elaboração e execução de
projetos, programas e direcionamentos forjados pela própria
organização, distanciando o emprego de organizações externas no
planejamento e execução.
As abordagens, por sua vez, indicam o não emprego necessário
de recursos educacionais propriamente materiais ou digitais, como
os livros, vídeos e fontes históricas e focam mais na forma de
comunicar, abordar, construir conhecimento.
Na contenda de iniciativas e abordagens educacionais, estão
os seminários, mesas redondas, rodas de conversa, palestras,
comunicações, formações continuadas para professores/as, ações.
No que diz respeito aos 12 eventos encontrados que conguram
iniciativas e abordagens, estão aniversários, palestras, debates,
mesas redondas e a integração com eventos regionais como a “noite
dos museus” realizada por vários museus de Buenos Aires, e ações
no 24/03, Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça.
Por outro lado, sobre as jornadas de formação para professores/as,
foram disponibilizadas informações sobre três, ocorridas em 2017,
2018 e 2019. São elas “Encuentro Docente” (2017), “Seminarios
intensivos de reexión e intercambio con docentes: “Los Museos
y Sitios de Memoria como desafío pedagógico” (2018) e “Escuela y
Memoria, debates para la enseñanza” (2019).
“Encuentro Docente” promoveu a aproximação entre o museu e
mais de 400 professores/as de ensino secundário de Buenos Aires
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
282
e região, que foram conduzidos por visitas guiadas para explorar
a proposta museográca, permitindo-lhes elucidar dúvidas
pertinentes à preparação da visita com estudantes e experimentar
o percurso pelo espaço. Posteriormente, participam de sessões
reexivas, cujos formatos variam de acordo com cada encontro,
abordando distintos focos temáticos que ampliam o conhecimento
sobre o Sítio da Memória.
Um exemplo de cooperação entre instituições está a iniciativa
“Seminarios intensivos de reexión e intercambio con docentes:
“Los Museos y Sitios de Memoria como desafío pedagógico”, que
contempla a parceria com o Ministério da Educação, a Cátedra Livre
de Direitos Humanos Filo Uba e o Museu do Holocausto de Buenos
Aires. Os/as mais de 300 professores/as visitaram lugares como La
Perla, o próprio Museu Sítio de Memória ESMA e La Escuelita de
Famaillá. Durante esses encontros, discutiu-se a importância de
conectar o Holocausto com o passado recente do país, abordando
os processos genocidas, com os Sítios de Memória desempenhando
um papel central para ensinar isso em sala de aula.
Podemos constatar que o Museo Sitio ESMA possui um leque
de iniciativas e abordagens em processo de consolidação. Desde
2017 até o presente momento, mapeamos pelo menos 3 jornadas de
formação para professores/as e 12 eventos especiais.
Considerações nais
A orientação predominante dos recursos educativos para o
ensino formal, como ocorre em muitos museus, reete a ênfase
histórica na integração desses materiais nos currículos escolares.
Essa abordagem tradicional visa fornecer apoio aos educadores
formais, como professores e instrutores, ao alinhar os conteúdos
dos museus com os objetivos educacionais estabelecidos nos planos
de ensino.
No entanto, considerando a evolução do cenário educacional e
as transformações no modo como as pessoas buscam e adquirem
conhecimento por meio da comunicação, surge a oportunidade
de repensar essa orientação quase que exclusiva ao ensino formal.
Anal, visitantes que não pertencem a gama escolar também
aprendem, em contextos informais, como aprendizado autodirigido
e podem alinhar o conhecimento adquirido às necessidades da
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
283
sociedade contemporânea. O que pode ser destacado nesse sentido
é a versatilidade de recursos, iniciativas e abordagens que o Museo
Sitio ESMA possui, que atendem aos diversos públicos.
Tanto as iniciativas e abordagens do museu quanto os formatos
diversicados dos recursos educacionais disponibilizados pelo
Museo Sitio ESMA (bibliograa complementar, recursos didáticos,
séries documentais etc), que são destinados a vários públicos
(educadores/as e educandos/as em níveis escolares/universitários
ou não) e que dizem respeito a vários temas, como o terrorismo
de estado, genocídio, história nacional argentina e resistência,
demonstram as suas preocupações, que por certo correspondem
a facilitação da aprendizagem, contextualização, engajamento
interativo e apoio aos educadores.
À guisa conclusiva, as iniciativas e abordagens educacionais
do Museo Sitio ESMA, aliadas aos diversos formatos de recursos
educacionais oferecidos, reetem um compromisso notável com a
promoção de experiências educacionais signicativas e inclusivas,
sobretudo no âmbito da educação formal, mas não somente. Ao
abranger uma ampla variedade de públicos, desde educadores
e estudantes de diferentes níveis até o público em geral, o museu
demonstra uma abordagem holística e consciente. As preocupações
evidentes nessas práticas educacionais destacam o museu como
um exemplo notável de como os recursos, iniciativas e abordagens
educacionais podem enriquecer não apenas o conhecimento
histórico, mas também a compreensão crítica e o desenvolvimento
integral dos seus visitantes/educandos.
REFERÊNCIAS
ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Educación y investigación. Disponível
em: https://www.abuelas.org.ar/educacion-e-investigacion. Acesso em
dezembro de 2023.
ADAMOLI, María Celeste. Pensar la dictadura: terrorismo de Estado en
Argentina: preguntas, respuestas y propuestas para su enseñanza / María
Celeste Adamoli; Cecilia Flachsland; Pablo Luzuriaga. - 2a ed. - Buenos
Aires: Ministerio de Educación de la Nación, 2014.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
284
EDUC.AR. Pensar la dictadura. Disponível em: https://www.educ.ar/
recursos/125624/pensar-ladictadura\. Acesso em dezembro de 2023
LOPES, Maria Margaret. A favor da desescolarização dos museus. Educação
e sociedade, v. 40, p. 443-455, 1991.
MUSEO SITIO DE MEMORIA ESMA. Recursero. Disponível em:<http://www.
museositioesma.gob.ar/educacion/recursero/\>. Acesso em dezembro de
2023
________. Aqui. Disponível em: http://www.museositioesma.gob.ar/el-
museo/aqui/. Acesso em dezembro de 2023
MUSEU DA VIDA - FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Educação museal e a
importância da acessibilidade atitudinal: uma conversa com Hilda da
Silva Gomes. Disponível em: http://www.museudavida.ocruz.br/index.
php/noticias/1463-educacao-museal-ea-importancia-da-acessibilidade-
atitudinal-uma-conversa-com-hilda-da-silva-gomes #:~:text=De%20
acordo%20com%20o%20site,a%20política%2C%20a%20história” .
Acesso em maio de 2023
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. III- Sistematização da educação museal:
planejamento, registro e avaliação de ações educativas museais & Teoria
educacional, formação, pesquisa e comunicação na educação museal. In:
CASTRO, Fernanda; SOARES, Ozias; COSTA, Andréa. Educação museal:
conceitos, história e politicas. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional,
2020.
SAMPAIO, Carlos Magno Augusto; DOS SANTOS, Maria do Socorro;
MESQUIDA, Peri. Do conceito de educação à educação no neoliberalismo.
Revista Diálogo Educacional, v. 3, n. 7, p. 1-14, 2002
MODOS E USOS DO SABER
CULINÁRIO COMPARTILHADO
NO YOUTUBE
Rafael Meira de Oliveira1
Considerações iniciais
Este texto tem como objetivo discutir minha pesquisa em
andamento no mestrado em História Social na Universidade Estadual
de Londrina. Eu pesquiso de que forma criadores de conteúdo,
também conhecidos como inuenciadores digitais, compartilham
o saber culinário no ciberespaço, mais especicamente no site de
compartilhamento de vídeos Youtube. A pesquisa busca não só
compreender os elementos técnicos do conteúdo audiovisual como
também o sentido atribuído pelo inuenciador; para isto, selecionei
três criadores de conteúdo, sendo a cozinheira prossional Paola
Carosella; o inuenciador Caio Novaes, dono do canal “Ana Maria
Brogui”; por m, Otto Vitellesci, vulgo “ChefOtto”. Foram critérios
de escolha a relevância dos inuenciadores dentro da plataforma
digital e também a temática dos seus conteúdos serem sobre
receitas culinárias. Também, a pesquisa foi delimitada em uma
receita, sendo o estrogonofe de carne, analisando as diferenças ou
continuidades em produzir este prato, bem como o sentido dado
por quem produziu.
1 Mestrando em História Social na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:
rafaelmeira122@gmail.com.
285
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
286
O recorte espacial da pesquisa é o próprio Youtube no ciberespaço,
portanto, compreende-se que o mundo virtual tem sua dinâmica
própria e deve ser considerado; o recorte temporal (2010-2023) diz
respeito ao ano de publicação do primeiro vídeo analisado até o
presente momento, considerando que no espaço compartilhado há
uma interação comunicativa que se mantém ativa entre o público.
Como aporte teórico, ressalto o uso do autor Michel de Certeau que
propõe conceitos como a estratégia e tática para pensar nas relações
cotidianas, sendo a estratégia relações de forças que tornam possível
um sujeito de querer e poder garantir seu domínio, produzindo
regras e leis, impondo práticas e ideias aos sujeitos que consomem
esse discurso. (CERTEAU, 1998, p.46) Em contrapartida, a tática
seria as “maneiras de fazer” frente à imposição da estratégia, ou
seja, de que forma os consumidores ou usuários se apropriam das
imposições, às mudando segundo seus interesses próprios e suas
próprias regras. As táticas se manifestam “em momentos oportunos
onde combina elementos heterogêneos[...] tem por forma não
um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a
“ocasião”. (CERTEAU, 1998, p.47)
Quando Michel de Certeau aponta para a análise de ações
práticas do cotidiano, como o comer, consumir um saber culinário e
identicar o que elaboram ou acontece a partir disso, tira o cotidiano
de uma mera banalidade e possibilita a alimentação enquanto
objeto de pesquisa, anal “as táticas do consumo, engenhosidades
do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma
politização das práticas cotidianas”. (CERTEAU, 1998, p.45)
O primeiro canal analisado pertence a cozinheira prossional
Paola Carosella e leva o nome da mesma enquanto título, de modo
geral possui mais de 1,079,000 assinantes. Criado em 2009, é
objetivo do canal, segundo sua própria descrição, abordar “receitas
variadas, de fácil à média complexidade, preparos rápidos, técnicas
de cozinha, informações sobre ingredientes orgânicos, dentre outros
assuntos que a inspiram como política, projetos sociais, entrevistas,
e o que mais tiver vontade de falar.” (CAROSELLA, s.d.). Além do
canal no Youtube, a criadora de conteúdo está presente em outros
espaços no ciberespaço, como as redes sociais Instagram, Twitter e o
site próprio do seu restaurante chamado Arturito.
Paola Carosella nasceu na capital argentina Buenos Aires,
em 1972. Inicialmente trabalhou como secretária, onde iniciou
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
287
alguns experimentos na cozinha do escritório, preparava almoços
oferecidos pelo chefe na empresa; trabalhou em alguns restaurantes
argentinos como “La Cave Du Valais” e também o “La Créole”;
em 1992, foi morar na capital francesa Paris, para continuar seus
estudos no restaurante “Le Celadon”. Sua formação gastronômica
francesa foi importante na medida que “a cozinha era muito, mas
muito mais séria, rigorosa e disciplinada do que pensava; que nada
tinha a ver com os raviólis da minha avó nem com as brincadeiras
do Paul com o Larousse.” (CAROSELLA, 2016, p.33) Ao resgatar
as memórias gustativas com os preparos da avó, ou até mesmo dos
estudos no manual de cozinha francês “Larousse”, a autora compara
esses momentos à estadia e trabalho no restaurante francês, onde se
prossionalizou.
A vida prossional de Paola Carosella também foi marcada no
Brasil, como no restaurante “Figueira Rubayat”, em 2001, seu próprio
restaurante inaugurado em 2003 chamado “Julia”, experiência que
brevemente se encerrou; e o atual “Arturito” funcionando desde 2008.
Publicou em 2016 um livro de receitas e autobiográco chamado
“Todas as sextas” onde é possível identicar seus posicionamentos
para além do cozinhar
Constata-se que esse livro de receitas tem como objetivo a transmissão
do saber culinário, ou seja, a divulgação das receitas através da
narrativa de vida de sua autora, mas, para além disso, em diversos
momentos, Paola deseja persuadir seu leitor a compartilhar de seus
posicionamentos políticos frente a questão dos alimentos orgânicos.
O trabalho de persuasão é feito de forma implícita, às vezes, ou
contundente em outras, a partir de argumentos lógicos ou mesmo de
apelo dramático e emotivo para conseguir tal intento. (VIEIRA; PAES,
2018, p. 14)
No livro, a cozinheira prossional se posiciona contra os
alimentos industrializados em defesa de uma vida alimentícia
pautada no consumo de alimentos orgânicos, adquiridos
diretamente do produtor; cercado de memórias afetivas, esse
livro de receitas autobiográco também apresenta o universo de
referências culinárias de Paola Carosella, assim como sua trajetória
prossional. Essa narrativa pedagógica e combativa de transmissão
do conhecimento culinário é presente em seus vídeos publicados
no Youtube.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
288
O vídeo “Strogano, com A mesmo! – Nossa cozinha Ep.4”
tem duração de 00:18:19 e pretende apresentar o estrogonofe em
sua dimensão gastronômica e histórica. O conteúdo audiovisual,
publicado em 2020, possui atualmente 4.250.000 visualizações e
7.948 comentários.
O segundo canal do Youtube analisado se chama “Ana Maria
Brogui”, criado por Caio Novaes em 2006, no momento da pesquisa
possui mais de 3,580,000 assinantes, e se intitula “1º programa de
culinária do Youtube Brasil” (BROGUI, s.d.), e de fato é o pioneiro
brasileiro no ramo culinária; também está localizado entre os 10
canais culinários brasileiros com maior número de inscritos, em
quarto lugar. (DIAS; FILHO, 2020, s.p.) O produtor se encontra em
outros lugares do ciberespaço, como Instagram, Facebook e seu site
próprio de receitas.
Caio Novaes nasceu em São Paulo em 1984, formado em
publicidade, trabalhou na área até meados de 2009, quando deu
exclusividade ao blog de entretenimento e variedade. Em seu canal
do Youtube reproduz receitas de redes de restaurantes popularmente
conhecidos e consumidos, como o McDonald ‘s. Conforme arma
em entrevista dada ao apresentador Danilo Gentili, no programa
“e Noite”, a ideia inicial do youtuber era produzir vídeos para
aprender a cozinhar, mas conforme foi publicando os vídeos, outros
usuários simpatizam com seu conteúdo e seu canal foi crescendo e
ganhando espaço inuente no site. Além das redes sociais, publicou
os livros sobre culinária “As famosas receitas de Ana Maria Brogui”
em 2014, “Faça você mesmo” em 2016; bem como um livro
autobiográco chamado “A receita do sucesso” em 2018.
No vídeo publicado em 2010, de nome “COMO FAZER
STROGONOFF DE CARNE | Filét Mignon | #AnaMariaBrogui
#4”,tem duração de 00:08:04, o criador de conteúdo pretende ensinar
sua comunidade virtual a executar a receita estrogonofe, bem como
quais ingredientes escolher. O vídeo possui 171.420 visualizações e
186 comentários.
O terceiro canal do Youtube analisado é intitulado “CheOtto”,
criado em 2021 por Otto Vitelleschi, com mais de 1,590,000 de
assinantes, tem como descrição “Descomplicando a cozinha de uma
maneira diferente” (CHEFFOTTO, s.d.). O criador de conteúdo
também produz vídeos para as redes sociais Tik Tok e Instagram.
Os vídeos publicados no canal entram na modalidade chamada
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
289
shorts, traduzido livremente como “curtos”, são vídeos cujo objetivo
é compartilhar conteúdos audiovisuais em poucos segundos.
Apesar de sabermos por meio dos vídeos publicados quem
é a gura pública “CheOtto”, Otto Vitelleschi não possui uma
biograa ou detalhes pormenorizados de sua trajetória de vida.
O que temos acesso são fragmentos, seja por matéria jornalística
sobre inuenciadores digitais e empreendedorismo, ou até mesmo
pelo perl que Otto Vitelleschi mantém na rede social Linkedin. Em
matéria intitulada “Inuencers de cozinha multiplicam negócios
com impulso das redes sociais”, escrita por Bianca Zanatta e
publicada no site do jornal Estadão em 2023, sabemos que Otto
Vitelleschi nasceu em Sorocaba, São Paulo em 2003, por meio dos
estudos do marketing digital, viu na culinária um nicho que podia
ser explorado no ciberespaço. Seu contato com a cozinha se deu por
meio da família, acompanhava sua avó, dona de padaria, cozinhar.
Além do cozinhar, Otto Vitelleschi vê na cozinha um negócio
Como empreendedor, Otto descobriu na internet um grande nicho de
mercado e acertou a mão na receita. Aos 20 anos, é conhecido como
Che Otto e acumula mais de 7 milhões de seguidores e 150 milhões
de visualizações por mês nas redes sociais, entre TikTok, Instagram e
Youtube (ZANATTA, 2023, s.p.)
CheOtto tem uma peculiaridade se compararmos aos outros
inuenciadores aqui analisados: ele produz vídeos no formato shorts,
seguindo a tradução literária que seria “curto”, é característico desses
vídeos tem duração de no máximo sessenta segundos, desaando
o produtor de conteúdo a sintetizar sua mensagem e a apresentar
nesses limites. Paola Carosella e Caio Novaes também produzem
vídeos neste formato, porém, no caso de Otto, dos 298 vídeos atuais
de seu canal 96% são compostos de shorts, o que caracteriza sua
dinâmica. Esse fenômeno dos vídeos curtos sugere uma disputa de
mercado entre serviços de armazenamento de vídeos, sites como
os chineses Kwai e Ti kTok operam e disputam acessos no mundo
virtual desde respectivamente 2012 e 2016.
A resposta do Youtube frente à nova modalidade aparece com
o lançamento do Youtube Shorts, em 2021. Alguns inuenciadores
continuam a produzir vídeos longos nos moldes antigos, outros
aderem a nova modalidade de vídeos curtos, há também os que
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
290
mantem seus canais de forma híbrida, abraçando os dois modelos.
A proposta aqui é analisar de que forma o conhecimento culinário
é transmitido, em diferentes inuenciadores, pers distintos de
conteúdo, cujo mesmo objetivo foi apresentar a receita estrogonofe.
Em que medida existem aproximações ou distanciamentos entre
esses youtubers? No vídeo chamado “Strogono de carne!”, Otto
pretende “[...]te ensinar a fazer o melhor estrogonofe da tua vida[...]”
(CHEFFOTTO, 2021). O conteúdo audiovisual possui 1,400,000 de
visualizações e 743 comentários.
Sobre o prato escolhido, também chamado de stroganov, é
mencionado como tradicionalmente russo, com variações distintas
na Europa desde o século XVIII, na busca de armar sua composição,
uma pesquisa sobre nutrição aponta que “consiste numa preparação
feita com carne em cubos, coberta com molho cremoso, temperada
com cebola e cogumelos.” (LAROUSSE, 1990 apud DEVINCENZI;
MODESTO; PINTO E SILVA, 1998, p.84-85). Em 2018, ano que a
Rússia sediou o mundialmente popular Campeonato Mundial de
Futebol, ou Copa do Mundo, foi de interesse do jornal Gazeta do
Povo publicar uma matéria a respeito da receita estrogonofe. Escrito
por Talita Boros Voitchm, com o título “Culinária russa: estrogonofe
já foi prato nobre no Brasil”, a matéria apresenta as diferenças
desse prato na Rússia e Brasil. André Pugliesi, correspondente da
revista viajou para a Rússia no ano da matéria publicada e pôde
experimentar uma versão da receita de lá, segundo Pugliesi,
Logo de cara caímos na tentação do estrogonofe, tão falado. A principal
diferença é mesmo o purê de batatas no lugar da batata palha, que eu
considero um ganho. A carne estava gostosa, parece um prato mais
‘renado’, mas não tem sabor tão distante do feito no Brasil, apesar dos
ingredientes diferentes” (PUGLIESI, 2018, apud VOITCHM, 2018, s.p.)
A matéria, embora seja um texto breve, traz diversas armações
sobre a receita. Primeiramente dene sua origem nos territórios
russos no século XIX, com a narrativa de origem traz a ideia de
prato original, baseado na visita do correspondente ao restaurante
russo local “[...] próximo ao Museu de História da Rússia, numa das
entradas da Praça Vermelha”. A partir do discurso de origem e acesso
ao prato em sua versão “primária”, a matéria segue dizendo que
existem versões sobre a criação do prato, mas que “provavelmente”
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
291
se credita à um cozinheiro francês, o qual o nome não é citado, de
uma família nobre cujo sobrenome é Stroganov, de São Petersburgo.
A receita defendida pela matéria como original seria:
[...]carne cortada em tiras nas, dourada e ambada, que depois
recebe o smetana, clássico creme de leite azedo russo, iguaria que
acompanha muitas receitas tradicionais do país[...] o clássico preparo
russo é servido sobre purê de batatas e vem com salada de repolho,
picles, tomate cereja e ervas frescas, como salsinha e erva-doce,”
(PUGLIESI, 2018, apud VOITCHM, 2018, s.p.)
Ainda sobre o prato, é narrada sua trajetória até às terras
brasileiras. Receita consumida pela nobreza russa, foi levada para
outros países da Europa a partir da revolução soviética de 1917;
na França foi adicionado o cogumelo champignon; na segunda
guerra mundial foi largamente consumido pelos soldados russos,
que mantinham a receita a partir dos ingredientes carne em tiras
e smetana; nos Estado Unidos, o preparo da batata foi alterado de
purê à fritas em formato de palito, com adição de ketchup. Por m,
a notícia arma que o auge do estrogonofe no Brasil foi na década
de 1970, quando este prato foi considerado sosticado, mas que
se popularizou e “[...]deixou de ser renado para se tornar trivial”.
(VOITCHM, 2018, s.p.)
Por m, sobre história do estrogonofe, cito o vídeo “Strogono:
uma receita da Rússia pro Brasil - e a primeira receita do prato, direto
do séc. XIX!” Publicado em 2021, no Youtube pelo canal “Comer
História”, voltado à “divulgação cientíca e prestação de serviços”,
organizado pelos historiadores Ana Carolina Viotti, Rafael Afonso
Gonçalves e Gabriel Gurian; possuem área de interesse nos campos
da História da saúde, da alimentação, das viagens e dos animais.
(COMERHISTÓRIA, s.d.) O vídeo em questão tem como objetivo
contar a história da receita estrogonofe, bem como apresentar os
ingredientes e modo de preparo.
Além das receitas apresentadas, no vídeo, arma-se que o nome
stroganov é “quase certo” que se tenha dado referenciando uma família
aristocrática czarista russa, que tinham como característica cultuar
a cozinha e costumes franceses, contratando chefs parisienses. Tais
chefs por costume intitulavam os pratos homenageando as famílias
contratantes. Outra possível explicação do nome se dá a palavra
russa strogat que signica “cortar”, mencionando o próprio preparo
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
292
da carne na receita. Há ainda a menção de que o prato tenha
descendência de outras receitas como a húngara savnyu vetrece e
francesa fricassé. No vídeo, a historiadora Viotti ainda arma que
a primeira versão de estrogonofe que se tem registro de publicação
se encontra no livro “Um presente para as jovens donas de casa” da
autora Elena Molokhovets, em 1871, receita já descrita acima. O
manual repercutiu signicativamente, sofrendo revisões, paródias,
plágios, “feito raro para livros de cozinha, especialmente um escrito
por uma mulher lá na Rússia” (COMERHISTÓRIA, 2021, s.p.) A
segunda receita apresentada teve seu espaço devido a inclusão de
ingredientes no preparo como molho de tomate, cebola e “tinhas”
de batata que remete à batata palha hoje presente em várias versões
do estrogonofe. O stroganov se tornou um prato itinerante e foi
agregando novos elementos por onde passou.
No Brasil, temos o registro da receita a partir da década de
1950, como a publicação da revista dedicada ao público feminino
“Cigarra” em São Paulo. Na matéria, apresentam um restaurante
chamado “Ermitage” “tipicamente russo” ambientado, que além
de servir vodka, tinha no cardápio “bife à Strogono”. Na mesma
revista “Cigarra”, temos uma pista da disseminação do “prato da
moda” e popularização da receita, sobretudo no Rio de Janeiro,
entre as classes mais abastadas da sociedade brasileira. A partir das
décadas de 1960 e 1970, com a simplicação dos ingredientes na
receita, aparece nas mesas “de um público maior e mais diversos”.
Também, o processo de industrialização de alimentos favoreceu
essa mudança de público, por exemplo o creme de leite enlatado que
passa a compor versões da receita. Em 1980, Viotti arma que um
fator decisivo para a popularização da receita foi a introdução da
carne de frango substituindo a de vaca, sendo a ave mais acessível.
(COMERHISTÓRIA, 2021, s.p.)
Pesquisas acadêmicas sobre a receita estrogonofe são escassas,
o que é dicultoso à pesquisa remontar suas origens e recepção
em diversos países; portanto, suas histórias são contadas por meio
de prováveis histórias, dentre outras, reetida nessas narrativas
compartilhadas. Mas um elemento em comum apontado e que
buscamos investigar é que os modos da receita foram reelaborados
ao longo do tempo, de acordo com o contexto histórico a qual
estava inserida. Outros exemplos de ressignicação e usos da receita
podem ser apresentados e destaco dois a seguir.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
293
Um prato ou receita culinária perpassa diversas questões além da
subsistência, o site “Família Avôvó” é um portal colaborativo que tem
como público alvo a chamada “terceira idade”, ou seja, os idosos. O
site publica conteúdos que visam o bem estar e saúde desta população
alvo. Neste sentido, publicaram em 2022 uma matéria a respeito
da receita estrogonofe chamada “os diversos tipos de strogono
e as suas receitas”; a considerando muito calórica e agravante de
problemas de saúde, o site propõe adaptações, ressignicações da
receita, seus ingredientes e modo de preparo. (FAMÍLIA AVÔVÓ,
2022, s.p.) Aqui, o compartilhar conhecimento culinário se deu por
meio do discurso médico, onde a escolha do que comer e como
cozinhar perpassou questões da saúde do sujeito que acompanha a
rede, escolhas determinadas por pressupostos médicos.
O segundo exemplo é o publicado no site “Independente” em
2022, a partir de uma dimensão política a matéria sugere um
“boicote” que o “mundo” estaria realizando na Rússia, o motivo? O
conito armado entre Rússia e Ucrânia. Citações que vão desde e
New York Times ao bar paulistano “Dona Onça”, a publicação arma
que, por meio de pratos de origem russa como o estrogonofe, alguns
bares e restaurantes estão modicando ou substituindo as receitas
do cardápio. (INDEPENDENTE, 2022, s.p.) Por mais que exista um
exagero na narração jornalística em dizer que o mundo boicote à
Rússia, pelos exemplos citados podemos ver uma movimentação
política percebida na ressignicação do prato.
Meus resultados preliminares até o momento dizem respeito ao
que desenvolvi em minha pesquisa, ainda bem inicial, sendo usos da
receita que demonstram uma série de adaptações e ressignicações
por diversos motivos, sejam políticos, econômicos, étnicos, de
gênero, dentre outros. Isso reete no fazer culinário, que é um
indicativo de seu momento histórico. Remontar a própria história
do estrogonofe, que tem seus primeiros registros na Rússia do
século XIX e que se populariza no Brasil após a metade do século
XX nos aponta a historicidade da receita.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
294
Referências
BROGUI, A. M. COMO FAZER STROGONOFF DE CARNE | Filét Mignon |
#AnaMariaBrogui #4. 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch ?app=d esktop&v=crjFKp3Uv90. Acesso em: 31 out. 2022
CAROSELLA, P. Strogano, com A mesmo! Nossa Cozinha Ep.4. 2022.
Disponível em: https://www.yo utube. com/watch?v=8qFZ0N4R68k.
Acesso em: 31 out. 2022
CAROSELLA, P. Todas as sextas. São Paulo: Melhoramentos, 2016.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano I: as artes do fazer. Petrópolis:
Vozes, 1998.
CHEFFOTTO. Strogono de carne! #shorts. 2021. Disponível em: https://
www.youtube.com/shorts/qBt3hXCGuLg. Acesso em: 31 out. 2022.
COMER HISTÓRIA. Strogono: uma história da Rússia para o Brasil – e a
primeira receita do prato, direto do séc. XIX! 2021. Disponível em: https://
www.youtube.com/ watch?v=1cEPVBGnFRk. Acesso em: 09/01/2024.
DEVINCENZI, M.; MODESTO, S. M.; PINTO-e-SILVA, M. E. M. . Receita
tradicional russa adaptada com restrição de sódio, gordura saturada e
colesterol. Revista de Nutrição: Campinas, v. 11, n.1, p. 83-89, 1998
DIAS, F. D.; FILHO, A. S. A. Análise Webmétrica do compartilhamento de
informação e Conhecimento Gastronômico via YouTube®. Encontros Bibli,
v. 25, p. 1-19, 2020.
FAMÍLIA AVÔVÓ. Os diversos tipos de Strogono e as suas
receitas. 2022. Disponível em: https://avovo.com.br/os-diversos-
tipos-de-strogono-e-as-suas-receitas /. Acesso em 07 maio 2022.
INDEPENDENTE. Strogono, o prato de origem russa que o mundo está
boicotando. Disponível em: https://independente.com.br/strogono-o-
prato-de-origem-russa-que-o-mundo-esta-boicotando/. Acesso em 07
maio 2022.
VOITCHM, T. B. Culinária russa: estrogonofe já foi prato nobre no Brasil.
Gazeta do Povo. 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.
br/bomgourmet/estro gonofe-russo-e-versaobrasileira/#:~:text=O%20
estrogonofe%20teve%20seu%20auge, renado%20para%20se%20
tornar%20trivial.
ROMARIA DOS CARREIROS
DO DIVINO PAI ETERNO EM
TRINDADE – GO: TRANSITANDO
POR ENTRE O PATRIMÔNIO, O
ENSINO E AS EXPERIMENTAÇÕES
Emilia Fleury Curado Sasse1
João Guilherme da Trindade Curado2
Considerações iniciais
A manifestação popular que propomos enquanto recorte
do presente texto tem por referência a veneração ao Divino Pai
Eterno, cujo ápice festivo aconteceu na goiana cidade de Trindade,
que antes da década de 1920 era o distrito de Barro Preto, onde
começou a devoção que atraia a cada ano centenas de carreiros – os
que participam se locomovendo em carro de boi, uma tradição que
se perpetua.
1 Historiadora (UniEvangélica) e Pedagoga (UNIFAVENI), Especialista em História do
Brasil República e em Psicopedagogia. Atua no Ensino Fundamental da Rede Particular
de Educação. E-mail: emiliasasse@gmail.com
2 Historiador, Mestre e Doutor em Geograa IESA/UFG. Pesquisador externo do
Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (LABOTER). Membro da
Academia Pirenopolina de Letras, Artes e Música (APLAM). E-mail: joaojgguilherme@
gmail.com
295
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
296
Trindade pertence, segundo as divisões voltadas para o
planejamento goiano, a mesorregião do Centro e à microrregião de
Goiânia. Desde a década de 1980 integra o Aglomerado Urbano de
Goiânia, que pela Lei Complementar nº 149 de 15 de maio de 2019
(GOIÁS, 2019) instituiu a Região Metropolitana de Goiânia (RMG).
Dista 16 quilômetros da capital e possui área de aproximadamente
719 km² e é o nono município mais populoso de Goiás (IBGE,
2022). Figura 1 – Localização de Trindade/GO
Fonte: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/trindade/panorama
A localização geográca de Trindade é benéca não apenas
nas questões logísticas que contribuem para o desenvolvimento
da economia goiana; é ponto referencial para uma das maiores
manifestações do catolicismo. O acesso à romaria ao Divino Pai
Eterno é possibilitado nacionalmente pelo aeroporto internacional
e rodoviária de Goiânia, quanto por rodovias (GO-050 que chega a
Trindade e GO-060 e GO-469 que “cortam” a cidade) e possibilitam
uxo de ônibus, carros e dos carros de bois – representantes dos
meios de transportes antigos e rurais seguem longas distâncias,
trafegando por rodovias e principalmente por estradas vicinais que
interligam propriedades rurais.
Propomos transitar por entre uma romaria que acontece, pelo
menos desde 1840, e que vem se alterando ao longo do tempo, mas
mantendo a representatividade e os aspectos identitários goianos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
297
Entendemos que os carreiros representam a memória e as tradições
contidas nos deslocamentos anuais em carros de bois que giram
suas rodas (de madeira, da história, do tempo e das festividades)
tendo por destino a antiga Barro Preto, atual Trindade. Assim, a
pretensão é apontar o protagonismo dos carreiros, considerando o
universo festivo caracterizado pela trajetória a Trindade.
Nosso principal foco é pensar a festa como algo mais amplo,
espaço de interações e sociabilidades repletas de saberes e fazeres
construídos ao longo de décadas e de gerações, e que propiciaram
memórias plurais e polifônicas tão importantes como os “cantos
dos carros de bois”, transporte indispensável para o goiano em
tempos pretéritos e que se mantém em atividade, também, graças à
perseverança festiva da romaria dos carreiros.
A proposta investigativa parte de levantamentos bibliográcos
realizados, divididos aqui em duas categorias: o institucional,
proveniente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), destacando o Dossiê (2015), o Plano de
Salvaguarda (2021) e o Manual do modo de fazer carros de boi,
Goiás (2023). A segunda categoria, mais extensa, corresponde a
pesquisas acadêmicas: livros, artigos cientícos e dissertações em
variadas áreas do saber e que contemplam a Romaria de Trindade,
não só pelos aspectos religiosos e devocionais – o que nos chama a
atenção, pela ampla gama interpretativa que tal festa proporciona
para o campo da Memória.
As experimentações pretendidas pautam-se nos diálogos entre
Patrimônio e Ensino ainda incipientes devido ao andamento
da pesquisa que se encontra na fase de exploração bibliográca,
período anterior aos trabalhos de campo. O texto conta com duas
divisões, a primeira voltada para a questão patrimonial, aborda o
“mito de origem” da manifestação popular, sua institucionalização
e as espacializações da devoção, quando as discussões se pautam
em produção bibliográca sobre Trindade; o segundo momento
traz diálogo entre o patrimônio institucionalizado e o popular, com
suporte no Dossiê (2015) e no Plano de Salvaguarda (IPHAN, 2021)
e de menções à tradição e memória.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
298
Trindade e Patrimônio
O aglomerado inicial, delimitado pelo nosso recorte investigativo,
ocorreu às margens do Córrego Barro Preto, toponímia indicativa
das características das águas que dali auíam. O local era conhecido
e abrigou, em momentos anteriores, mineradores em busca de ouro.
Antes de ali se instalarem, o casal Ana Rosa de Oliveira e
Constantino Xavier Maria realizaram algumas trajetórias que
merecem menções. Ele nasceu em Minas Gerais em 1793, data
constatada pela Relação da Companhia de Ordenança, de 15
de agosto de 1823, documento produzido em Meia Ponte (atual
Pirenópolis/GO), em que Constantino é elencado e consta ter 30
anos de idade, conforme aponta Jacób (2010). Qual sua cidade
natal? Quais as razões que o trouxera para as terras goianas e
quando? Quem era Ana Rosa e quando se casou? São perguntas que
necessitam de maiores investigações documentais, o que foge do
escopo da presente investigação.
Partimos do momento em que passaram a cultivar terras nas
proximidades do Barro Preto, em especial, a contar a menção
do “medalhão” com a Santíssima Trindade. O “mito de origem”
expressão aqui emprestada de Mircea Eliade (2016), pois
concordamos que “todo novo aparecimento [...] implica a existência
de um Mundo”, o que de fato ocorreu naquela área rural segundo os
pesquisadores sobre a temática.
Se a devoção ocorre a partir do medalhão, seria ele o “mito
de origem”. Elemento de difícil explicação, por isso passível de
várias versões, sobre as quais não se encontra consenso. Situação
percebida em relação à própria Igreja em Trindade, por intermédio
de sua publicação ocial: “Santuário da Trindade”, como expomos
a seguir, recorrendo a publicações frutos de investigação de outros
pesquisadores:
O nosso bom mineiro não perdeu a coragem. Era um religioso da gemma
trouxe da sua terra o “santo” de sua devoção [...] representando as
três pessoas da Santíssima Trindade coroando Nossa Senhora Maria
Santíssima. Perante este seo thesouro religioso que ocupou um lugar
de honra em sua casa, Constantino costumava rezar o terço. Isto
chamou a atenção de vizinhos (SANTUÁRIO DA TRINDADE, 1924, apud
DEUS, 2000 – grifo nosso).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
299
Constantino Xavier e Ana Rosa, casal piedoso e devoto, levados,
talvez, por inspiração divina, expuseram ao público o medalhão,
representando as 3 pessoas da Santíssima Trindade coroando a virgem
Maria. Antigos moradores de Trindade contavam a seus netos que esse
medalhão foi encontrado no terreno, que estava sendo roçado por
Constantino (SANTUÁRIO DA TRINDADE, 1957, apud DUARTE, 2004 –
grifo nosso).
Independentemente se o “medalhão” foi trazido de Minas Gerais
ou achado em Barro Preto, houve envolvimento direto do casal
Ana Rosa e Constantino, responsáveis pela exposição, sendo os
precursores da devoção na localidade, franqueando, inicialmente
a residência em que habitavam. Assim, coadunamos com o
pensamento de Eliade, para quem “todo mito de origem conta e
justica uma ‘situação nova’ – nova no sentido de que não existia
desde o início do Mundo” (2016, p. 26 – grifo no original).
Outra contribuição do referido autor nos informa: “os mitos de
origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam
como o Mundo foi modicado” (2016, p. 26), e segue: “é o mito,
portanto, da instalação territorial do grupo, em outros termos, a
história de um novo começo, réplica da criação do Mundo” (2016, p.
28 – grifo no original). Ao transpor para nosso recorte de análise,
consideramos inicialmente que a presença dos vizinhos diante
do “medalhão” alterou o cotidiano nas proximidades, tanto dos
visitantes quanto dos visitados, especialmente pelas motivações do
ali estar. O “mundo” que transcorria às margens do Córrego Barro
Preto não foi mais o mesmo desde então.
Dentre as modicações que se prologam com o tempo,
percebemos a pertinência de reetir sobre as territorialidades
ocupadas: primeiro foi a sala da casa de Ana Rosa e Constantino,
mas com a ampliação do uxo devocional tornou-se incapaz de ali
permanecer, quando foi construída uma pequena capela coberta por
folhas de buriti, depois outra de alvenaria e ainda uma quarta, mais
elaborada e ornamentada, que deu lugar à Igreja Matriz, edicada
pelos padres Redentoristas, e considerada “o primeiro Santuário
do Divino Pai Eterno a ser edicado no município de Trindade”
(ALMEIDA, 2020, p. 33) – a autora investigou as territorialidades
no contexto da festa naquele município. É mister destacar que
até aqui, todas as capelas foram construídas no mesmo local,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
300
sobrepondo-se em camadas históricas ao longo do tempo. A Igreja
Matriz ou “Santuário Velho” teve sua edicação e acervo tombados
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
em 2012, nas comemorações referentes ao centenário do imóvel.
Outra modicação territorial signicativa coube aos “mesmos
Redentoristas [que] estão levantando, no morro da Cruz das Almas,
o Novo Santuário de Trindade, obras iniciadas em 1957 e já em
fase de acabamento, com capacidade para cerca de 10.000 pessoas”
(SANTOS, p. 56-57). As constantes atualizações do “mito de
origem” podem ser compreendidas aqui pelas diversas informações
temporais sobre a transferência territorial do Santuário Velho para o
Santuário Novo. Consta na bibliograa sobre Trindade que em 1943
o então arcebispo de Goiás, Dom Emmanuel Gomes de Oliveira,
fez o lançamento da pedra fundamental do novo Santuário, o ano
seria alusivo ao centenário da Romaria – não vamos abordar a
questão em relação às datas da romaria, para nós interessa o “mito
de origem”, caracterizado pelo “medalhão”.
A “fase de acabamento” da nova edicação se estendeu até 1974,
quando ali foi realizada, pela primeira vez, a festa ao Divino Pai
Eterno. Vale salientar que a conclusão das obras só ocorreu em 1994.
O intervalo de meio século, entre pedra fundamental e o arremate,
estaria relacionado com o fato de que haveria distanciamento do
“mito de origem”? Talvez sim, pois a procissão levando a imagem
para a Matriz, o lócus, ainda ocorre a cada edição da festa. O
Santuário Novo recebeu a 4 de abril de 2006, pelo Papa Bento XVI,
o título de Basílica, a única no mundo em devoção ao Divino Pai
Eterno (ALMEIDA, 2020).
Por ocasião da festa de 2011, ocorreu o lançamento da pedra
fundamental, nas proximidades da GO-060 e do Morro do Cruzeiro
– em área não urbanizada – do Novo Santuário Basílica do Divino
Pai Eterno, construção projetada para uma década de obras, previa-
se a inauguração para a festa de 2022! Muito há o que se fazer,
assim como são as polêmicas envolvendo a construção; no entanto,
talvez como estímulo à continuidade, o local passou a receber
missas mensais no “canteiro de obras” em agosto de 2023 (SILVA,
05/08/2023).
A seguir, no intuito de melhor visualizar as alterações espaciais da
devoção delimitada pelas ações da Igreja em Trindade, apresentamos
três intervenções na gura a seguir. O retângulo vermelho destaca a
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
301
Igreja Matriz ou Santuário Velho. Os outros dois espaços, por terem
recebido o título de Basílica são destacados em azul e no intuito de
diferenciá-los, o Santuário Novo foi delimitado por um quadrado e
o canteiro de obras da Basílica Santuário por um círculo.
Figura 2 – Alterações espaciais da devoção
Fonte: Google Earth, 2023 – marcações feitas pelos autores
Patrimônio e experimentações educacionais
Compreendemos o patrimônio a partir de duas perspectivas
e suas interconexões: o popular e o institucionalizado, ambos de
grande relevância para as questões educacionais, por isso serão
abordados aqui – na ordem inversa à mencionada.
A Lei nº 8.915, de 13 de outubro de 1980, que “dispõe sobre a
proteção ao patrimônio histórico e artístico estadual” (GOIÁS,
1980) contemplou, com tombamento estadual, dentre outros
imóveis existentes no território goiano, o Santuário do Divino
Pai Eterno, situado na cidade de Trindade, talvez o primeiro
reconhecimento governamental. Na instância federal, a legitimação
ocorreu por meio do processo 1656-T-2012, que culminou com a
inscrição no Livro do Tombo Histórico, em novembro de 2015, do
Santuário Matriz do Divino Pai Eterno e todo o seu acervo (www.
portal.iphan.gov.br). No ano seguinte, em 15 de setembro de 2016,
foi inscrita no Livro de Celebrações, como Patrimônio Cultural do
Brasil: A Festa do Divino Pai Eterno de Trindade e a Romaria de
Carros de Bois (IPHAN, 2015). Tais reconhecimentos são pautados
nas duas legislações federais sobre patrimônio, o Decreto-Lei nº
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
302
25/1937 e o Decreto 3.551/2000, que respectivamente contemplam
o patrimônio material e o imaterial (IPHAN, 2006).
Em 2023, na Assembleia Legislativa de Goiás, estavam
em tramitação 40 projetos de Lei cujos caputs versam sobre
reconhecimento de algo como patrimônio goiano. Três deles
destinados a Trindade: I) Projeto de Lei nº 212, de 28 de março de
2023, voltado para as manifestações da “Caminhada da Fé”, realizada
anualmente por ocasião da sexta-feira santa (ALEGO, 2023a);
II) Projeto de Lei nº 629, de 4 de julho de 2023, “dispõe sobre o
reconhecimento da Festa do Divino Pai Eterno de Trindade (GO)
como patrimônio cultural e imaterial goiano”, especicando “Art.
1º A Festa do Divino Pai Eterno de Trindade (GO), ca declarada
como patrimônio cultural e imaterial goiano” (ALEGO, 2023b), e
III) O terceiro ainda consta como Processo nº 2023003317/2023, de
proposição inicial em 26 de setembro de 2023, e traz em seu caput:
“dispõe sobre o registro do bem imaterial, Romaria do Divino Pai
Eterno em Trindade – Festa de Trindade, como patrimônio cultural
goiano” e pelo “Art. 1º - Fica declarada a Romaria do Divino Pai
Eterno em Trindade – Festa de Trindade como patrimônio Histórico
e Cultural do Estado de Goiás” (ALEGO, 2023c). A redação e a ação
propostas são semelhantes, o que pouco difere as duas são os textos
contidos nas justicativas.
Na perspectiva do patrimônio popular é possível analisar a
devoção à Santíssima Trindade na festa do Divino Pai Eterno desde
seu início, quando um casal se muda para a região e encontra o “mito
de origem”, que de devoção familiar passa a congregar com vizinhos
próximos, e com a ampliação dos devotos houve a necessidade de
criação de um espaço destinado às práticas das religiosidades.
Muitas famílias locais tiveram envolvimento na manutenção
do que posteriormente foi denominado como romaria, na qual os
carros de bois faziam-se sempre presentes; inicialmente por serem
o meio de transporte comum para grande parte dos que moravam a
distâncias mais signicativas e se deslocavam em grupos familiares,
com mulheres e crianças, o que exigia também demover inúmeros
artefatos para a reprodução do cotidiano à beira de estradas e cursos
d’águas; e nalmente por manutenção do que chamam de “tradição”
e que será aqui entendida segundo as discussões de Giddens (2003).
Consta no Dossiê de registro da Festa de Trindade que a
presença dos carros de bois passou a “ocupar uma parte do tempo
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
303
da festa, ela condensa, na extensão de todo o seu ritual, expressões
de fé e práticas do catolicismo popular que preside a vida religiosa
de pessoas identicadas com o mundo rural brasileiro” (IPHAN,
2015, p. 16). Os apontamentos sobre carro de boi no Brasil, remete
à primeira metade do século XVI, conforme expressa Bernardino
José de Souza (1958), no clássico “Ciclo do carro de bois no Brasil”.
Sobre Goiás, o autor arma que: “ao longo do século XIX, são
também as tropas e os carros de bois que, de acôrdo com as zonas
e os usos locais, não só se encarregam dos transportes rurais, mas
também de mercadorias de importação e exportação” e prossegue:
“tanto em pequenos como em grandes percursos” (SOUZA, 1958,
p. 128).
O período mencionado corresponde, segundo Jacób (2010)
com o início da romaria, quando “o pátio da pequena capela
transformava-se ‘miraculosamente’, no espaço de 15 ou 20 dias
numa imensa vila de choças de folhas de buriti, com milhares de
pessoas e centenas e centenas de carros de boi” e segue armando
que “desde o princípio da romaria contavam-se carros de boi vindos
de todo o interior goiano, Bahia, Maranhão, Pará, Minas Gerais, São
Paulo e Mato Grosso” (JACOB, 2010, p. 92).
Com o passar do tempo a permanência da presença ritual do
carro de boi na romaria de Trindade, a transformou em tradição,
indo ao encontro a uma das premissas de Giddens, para quem
“muito do que supomos tradicional, e imerso nas brumas do tempo,
é na verdade um produto no máximo dos últimos dois séculos”
(2003, p. 48) e continua: “as tradições evoluem ao longo do tempo,
mas podem também ser alteradas ou transformadas de maneira
bastante repentina” (p. 51), como, por exemplo: “o Desle do Carro
de Bois é realizado desde o nal da década de 1980 e acontece na 5ª.
feira que precede o primeiro domingo de julho, ápice da Festa do
Divino Pai Eterno” (IPHAN, 2015, p. 52).
Outro ponto levantado pelo Dossiê foi o surgimento recente dos
“carreiros de ataio” aqueles que “gostam apenas de acompanhar o
comboio dos carros de bois em romaria. Saem de suas regiões para
Trindade, movidos somente pelo prazer de tanger o gado no carro de
bois” e “ao chegarem à cidade, muitos deles retornam imediatamente
às suas moradas. E como a boiada chega muito cansada, os bois e os
carros voltam aos sítios de origem nos caminhões de transporte de
gado, alugados para tal m” (IPHAN, 2015, p. 52-53).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
304
As alterações e adaptações são inevitáveis para a acomodação da
tradição a novos contextos, desde que haja o aceite pela comunidade,
em caso positivo passa a integrar o que Halbwachs (2006) denomina
de “memória coletiva” – entendida como o conjunto de memórias
individuais ou de grupos distintos de uma mesma comunidade que
se juntam em decorrência das “lembranças” e dos “esquecimentos”
de fatos ocorridos no espaço em que vivem, transformam e se
retroalimentam das constantes permanências e mudanças, devido
as necessidades e/ou desejos.
Em Trindade, relacionado com os carreiros, algumas inovações
foram se acoplando aos rituais festivos. Para o Desle que ocorria
passando pela lateral da Matriz, foi inserida a aspersão dos romeiros
carreiros com água benta, uma retribuição da Igreja para com aqueles
que possuem destaque na tradição da festa. O Dossiê registrou que
atualmente os carros possuem numeração e são “identicados pelas
suas origens e nomes de família, nas faixas axadas nas laterais”,
assim como as pessoas junto aos carros vestem uniformes que os
individualizam perante o grupo carreiros, mas que os identicam
enquanto conjunto de mantenedores da tradição, por isso nos
uniformes constam a “identicação das localidades de onde vieram
e/ou das famílias a que pertencem” (IPHAN, 2015, p. 61).
Segundo o Dossiê, o Desle enuncia alguns pontos que merecem
menção, como a abertura, tendo à frente três cavaleiros de gerações
diferentes portando as bandeiras do Brasil, Goiás e Trindade,
ação considerada como “a continuidade daquela tradição” (p. 58),
mas também a inserção de aparatos cívicos em uma manifestação
popular com grande repercussão. Ainda como alegoria, segue no
desle o “carro da rainha”, menina escolhida entre os familiares
dos carreiros que participam da romaria e que é acompanhada das
princesas, propiciando igualmente a participação de geração mais
jovens das mulheres. O Desle, narrado “em tom efusivo por um
locutor”, menciona, “o nome da fazenda e o município de origem,
o nome do proprietário da fazenda e o de sua esposa e, por m,
o nome do carreiro e do candeeiro condutores do carro de bois”
(IPHAN, 2015, p. 64). Percebemos que desde Ana Rosa a mulher se
faz presente na romaria do Divino Pai Eterno em Trindade, inclusive
dentre as tradições dos carreiros.
Em 2003 o Desle foi prolongado e o ápice deixou de ser na
via lateral da Matriz, passando a ser no Carreiródromo localizado
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
305
na Rua Antônio de Souza Aguiar, distante 1,2 km do Santuário
Basílica. O Carreiródromo é mais um dos “festódromos” espaços
espalhados pelo Brasil, que são “caracterizados por transferirem as
festas de seus locais com a intenção de melhorar a infraestrutura,
o conforto e a segurança, mas, justamente, por espetacularizarem
uma festa para atrair um público maior” (SOARES; TUMA; MAIA,
2018, p. 24-25).
As festas, compreendidas também como lócus de ensino e de
experimentações educacionais, têm em seus saberes e fazeres as
vivências precípuas de memórias e tradições de uma comunidade.
O Dossiê se preocupa e destaca “prática de ensino-aprendizagem na
lida com o carro de bois, com os bois ou com as tarefas propriamente
domésticas”, enfatizando que “nessas práticas pedagógicas [...] as
gerações se entrecruzam e os mais jovens aprendem com os mais
velhos, vendo-os desempenhar as atividades, ajudando-os ou
ouvindo deles explicações de como fazer” (IPHAN, 2015, p. 52-53).
O Plano de Salvaguarda da Celebração em estudo traz três
princípios pelos quais transitam os processos educacionais, ao
propor: “reconhecimento do vínculo histórico”, “fortalecimento
das interações entre a comunidade detentora e as instituições”
assim como a “ampliação dos debates” entre elas (IPHAN, 2021),
demonstração de que, mesmo que ocialmente de modo implícito,
a Educação se faz presente e necessária para a continuidade festiva.
Considerações nais
A proposta é incipiente e as pesquisas em andamento, mas
buscamos no trajeto do texto a exposição de fatos que proporcionem
conexões entre os momentos iniciais da festa do Divino Pai Eterno
de Trindade (GO) com o ensino, por isso os direcionamentos são
voltados para a memória e para a tradição, conceitos que por si
só remetem à transmissão de saberes e de fazeres, colaborando na
continuidade da manifestação.
Como vimos, os instrumentos envolvidos no processo de
reconhecimento da Festa do Divino Pai Eterno de Trindade e a
Romaria de Carros de Bois, tanto o Dossiê (IPHAN, 2015) quanto o
Plano de Salvaguarda (IPHAN, 2021) e o Manual do modo de fazer
carros de boi, Goiás (IPHAN 2023) abordam, recorrentemente,
práticas pedagógicas ou ações voltadas às difusões de conhecimentos,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
306
o que nos permite pensar em experimentações diversas no que se
refere às perspectivas de análises nos contextos educacionais, ainda
mais ao considerar, conforme Catelan (2022), a recorrente presença
do carro de boi nos festejos goianos.
As representatividades dos carreiros são muitas e merecem maior
aprofundamento, não só no que tange a festa, mas o cotidiano, a
manutenção do carro e dos bois, a preparação e especialmente o
deslocar anual rumo à Trindade e o ali estar durante o período
festivo. Investigações das quais podem derivar registros fotográcos
e audiovisuais em que conhecimentos e devoções sejam aprendidos
e apreendidos no intuito de que as memórias colaborem para melhor
compreensão da tradição de aspectos importantes da cultura goiana,
mediante o estudo de uma romaria reconhecida como patrimônio
cultural do Brasil.
Referências
ALEGO. Projeto de Lei nº 212, de 28 de março de 2023. Dispõe sobre
o reconhecimento do bem que especica como patrimônio
cultural e imaterial goiano. Goiânia: ALEGO, 2023a. Disponível
em: https://alegodigital.al.go.leg.br/Arquivo/Documents/
Migracao/SGPD/65599-2023000395-publica%C3%A7%C3%A3o1.
pdf?identicador=32003000360035003500390039003A005000. Acesso: 3
jan. 2024.
ALEGO. Projeto de Lei nº 629, de 4 de julho de 2023. Dispõe sobre o
reconhecimento da Festa do Divino Pai Eterno de Trindade (GO) como
patrimônio cultural e imaterial goiano. Goiânia: ALEGO, 2023b. Disponível
em: https://alegodigital.al.go.leg.br/Sistema/Protocolo/Processo2/Digital.
aspx?id=2066660&arquivo=Arquivo/Documents/Migracao/SGPD/66660-
2023001469-Publica%C3%A7%C3%A3o.f&identicador=32003000360036
003600360030003A005000#PRA2241077. Acesso: 3 jan. 2024.
ALEGO. Processo nº 2023003317/2023, de 26 de setembro de 2023. Dispõe
sobre o registro do bem imaterial, Romaria do Divino Pai Eterno em
Trindade – Festa de Trindade, como patrimônio cultural goiano. Goiânia:
ALEGO, 2023c. Disponível em: https://alegodigital.al.go.leg.br/Sistema/
Protocolo/Processo2/Digital.aspx?id=2168851&arquivo=Arquivo/
Documents/PLO/2168851-202309211615344782(34888).f&identicador=3
2003100360038003800350031003A005000#P2168851. Acesso: 3 jan. 2024.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
307
ALMEIDA, Lorrana Laila Silva de. “Daí pra cá é meu”: Territorialidades
no contexto da Festa do Divino Pai Eterno em Trindade-GO. Ituiutaba:
Universidade Federal de Uberlândia, 2020. 160f. Dissertação
(Mestrado em Geograa). Disponível em: https://repositorio.ufu.br/
bitstream/123456789/29386/1/DaiPraCaEMeu.pdf. Acesso: 20 dez. 2023.
CATELAN, Álvaro. A presença do carro de boi nos festejos goianos e na
música caipira. Cap. 13. In: BARBO, Lenora de Castro; CURADO, João
Guilherme da Trindade (org.). Goiás +300: Reexão e Ressignicação,
Memória e Patrimônio. v. 3. Coordenação da Coleção Goiás +300 por Jales
Mendonça e Nilson Jaime (Editor-geral). Goiânia: Edições Goiás +300.
2022. p. 211-225.
DEUS, Maria do Socorro de. Romeiros de Goiás: a Romaria de Trindade
no século XX. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2000. Dissertação
(Mestrado em História).
DUARTE, Valquíria Guimarães. O carreiro, a estrada e o santo: um estudo
etnográco sobre a Romaria do Divino Pai Eterno. Goiânia: Universidade
Católica de Goiás, 2004. Dissertação (Mestrado Prossionalizante em
Gestão do Patrimônio Cultural).
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva,
2016. 179p.
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. Trad. Maria Luiza X. de A.
Borges. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. 108p.
GOIÁS. Lei nº 8.915 de 13 de outubro de 1980. Dispõe sobre a proteção
ao patrimônio histórico e artístico estadual e dá outras providências.
Goiânia: Casa Civil, 1980.
GOIÁS. Lei Complementar nº 149, de 15 de maio de 2019, instituiu a Região
Metropolitana de Goiânia (RMG). Diário Ocial do Estado de Goiás 30
de maio de 2019. p. 1. Disponível em: https://diarioocial.abc.go.gov.br/.
Acesso em 17 dez. 2023.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São
Paulo: Centauro, 2006. 224p.
IBGE. Trindade. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/
trindade/panorama. Acesso em 18 dez. 2023.
IPHAN. Coletânea de Leis sobre preservação do Patrimônio. Rio de
Janeiro: Iphan, 2006. 320p.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
308
IPHAN. Romaria dos carreiros do Divino Pai Eterno em Trindade/GO:
Dossiê. Brasília: IPHAN, 2015. 110p.
IPHAN. Plano de Salvaguarda: Romaria dos carreiros do Divino Pai Eterno
em Trindade/GO. Brasília: IPHAN, 2021. 30p.
IPHAN. Manual do modo de fazer carros de boi, Goiás. Brasília: IPHAN,
2023. 155p.
JACÓB, Amir Salomão. A Santíssima Trindade do Barro Preto: História da
romaria de Trindade. 3. ed. Goiânia: PUC/GO, 2010.
SANTOS, Miguel Archângelo Nogueira dos. Trindade de Goiás - Uma Cidade
Santuário. Conjunturas de um Fenômeno Religioso no Centro-Oeste
Brasileiro. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1978. 259f. Dissertação
(Mestrado em História). Disponível em: https://www.historiograa.com.
br/tese/148. Acesso: 22 dez. 2023.
SILVA, Vinícius. Obra da nova Basílica de Trindade já recebe missas com a
presença de éis. O Popular. Goiânia, 05/08/2023. Disponível em: https://
opopular.com.br/cidades/obra-da-nova-basilica-de-trindade-ja-recebe-
missas-com-a-presenca-de-eis-1.3052569. Acesso em 03 jan. 2024.
SOARES, Maria Elisabeth Alves Mesquita; TUMA, Raquel Lage; MAIA, Carlos
Eduardo Santos. Das ruas para os espaços fechados: reexões sobre as
festas. In: ALMEIDA, Maria Geralda de (Org.). Territórios de tradições e de
festas. Curitiba: Ed. UFPR, 2018. pp. 13-35.
SOUZA, Bernardino José de. Ciclo do carro de bois no Brasil. São Paulo:
Companhia Editora nacional, 1958. 557p.
www.http://portal.iphan.gov.br
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NA
EDUCAÇÃO INFANTIL ATRAVÉS
DOS CAPITÉIS DE NOVA PALMA
(RS)
Alexandra Pozzatti Marchesan1
Marta Rosa Borin2
Introdução
O presente trabalho apresenta reexões sobre a potencialidade
da Educação Patrimonial na Educação Infantil, a partir do
reconhecimento de heranças culturais relacionadas à religiosidade,
neste caso, os capiteis da cidade de Nova Palma, um dos municípios
que integram o Geoparque Quarta Colônia Mundial UNESCO,
juntamente com São João do Polêsine, Silveira Martins, Ivorá,
Dona Francisca, Restinga Seca, Agudo, Faxinal do Soturno, Pinhal
1 Mestre em Patrimônio Cultural (Universidade Federal de Santa Maria - UFSM),
Especialista em Gestão Educacional (UFSM), Pedagoga (UFSM) e Professora da
Rede Municipal de Ensino de São João do Polêsine/RS e Nova Palma/RS. E-mail:
xandinhapozzatti@gmail.com.
2 Doutora em História (Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS),
Professora do Departamento de Metodologia do Ensino, do Mestrado Prossional em
História (UFSM); Professora do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural
(UFSM) e do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado e Doutorado (UFSM).
E-mail: marta.borin@ufsm.br.
309
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
310
Grande, cuja preservação do patrimônio cultural é um dos objetivos
do desenvolvimento sustentável
Nova Palma é um pequeno município que está situado na
região central do Estado do Rio Grande do Sul, entre a serra de São
Martinho e a bacia do rio Jacuí, faz fronteira a leste com Ibarama e
Agudo; a oeste com Júlio de Castilhos e Ivorá; ao sul com Faxinal
do Soturno e Dona Francisca; ao norte com Pinhal Grande e Júlio
de Castilhos, no Rio Grande do Sul (IBGE – Instituto Brasileiro de
Geograa e Estatística, 2022).
A pesquisa, resultado da dissertação de mestrado em Patrimônio
Cultural, realizada na Universidade Federal de Santa Maria/RS3,
foi desenvolvida na Escola de Educação Infantil Aquarela, de
Nova Palma, numa turma de maternal (faixa etária de 3 anos). É
importante destacar que a Lei Municipal nº 1.881 de 29 de setembro
de 2021 regula a inclusão da Educação Patrimonial nos currículos
das Escolas Públicas de Nova Palma, a partir dos patrimônios locais.
Desse modo, destaca-se como herança cultural herdada dos
imigrantes italianos na cidade e região, a devoção popular aos
santos católicos para os quais foram erigidas pequenas capelas ao
longo das estradas do interior do município, nas encruzilhadas, bem
como na zona urbana, denominados “capitéis”. Essas capelinhas
foram dedicadas a um santo de devoção das famílias residentes nas
suas imediações, que ali se reuniam, e ainda se reúnem, para rezar e
agradecer por graças recebidas. Essas práticas, de oração e devoção
aos santos, podem ser consideradas como um bem patrimonial
que guarda expressões da fé e da religiosidade através das práticas
como as rezas do terço, a realização de procissões, das missas, das
peregrinações, das festas religiosas, em torno dos santos de devoção
que cada capitel abriga, o que faz deste um espaço de socialização
dos imigrantes italianos, principalmente nas festividades, já que
viviam isolados em suas propriedades.
O município conta com quarenta exemplares destas pequenas
capelas, um número bem expressivo comparado aos outros
municípios que integram o território do Geoparque Quarta Colônia
Mundial UNESCO, o que demonstra a importância da religiosidade
para esta comunidade. É válido destacar que na atualidade, várias
3 Dissertação defendida em 2022, intitulada Trilha Divertida dos Capitéis de Nova
Palma (RS): A Educação Patrimonial na Educação Infantil. Área de Concentração e Linha
de Pesquisa História e Patrimônio Cultural.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
311
festividades e grupo de orações são realizados em torno dos
capitéis. Diante disso, eles tornam-se um patrimônio cultural a ser
preservado, divulgado e usufruído de maneira respeitosa.
Assim, escolhemos esses elementos da religiosidade de Nova
Palma, para despertar nas crianças da Educação Infantil, o interesse
em conhecer e preservar os saberes desse patrimônio religioso.
Nessa perspectiva, buscamos identicar o contexto histórico dos
capitéis mais conhecidos dos nossos alunos, a m de reconhecer
a importância dos capitéis como patrimônio cultural. Para tanto,
utilizamos o suporte metodológico da pesquisa-ação, pois as crianças
e suas famílias foram membros ativos da pesquisa participando
de modo colaborativo na criação de um recurso didático que
denominamos Trilha Divertida dos Capitéis de Nova Palma, ou seja,
um jogo em forma de trilha a ser percorrida pelos caminhos dos
capitéis, partindo da Igreja Matriz Santíssima Trindade, e de um
livreto com desenhos dos patrimônios religiosos para colorir.
Dessa maneira, esse recurso lúdico foi criado a partir das
informações históricas dos capitéis, levando em consideração que as
interações e as brincadeiras constituem a base da educação infantil.
A Educação Patrimonial como um recurso educativo na Educação
Infantil torna-se uma aliada do patrimônio, pois desperta nas
crianças o interesse em conhecer e aprender mais sobre seus bens
culturais de maneira lúdica e divertida, despertando o sentimento
de pertencimento à Nova Palma, tornando-se defensoras de suas
heranças culturais, patrimônios estes que dão identidade católica à
sua comunidade.
Educação Patrimonial e Educação Infantil: um
viés possível
A Educação Infantil é a primeira etapa da educação básica e
“visa o desenvolvimento integral da criança de zero a cinco anos
de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996,
p. 22). Para tanto, nesta fase, proporcionamos momentos de ensino-
aprendizagem através da interação entre as crianças de diferentes
idades e com adultos, momentos de descobertas e de exploração
do mundo de maneira criativa para despertar a curiosidade das
crianças, bem como estimular a socialização de conhecimentos e
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
312
saberes essenciais de convivência para que as crianças se constituam
cidadãos críticos, criativos e conscientes do seu papel na sociedade.
Nesta fase da infância a criança experimenta o mundo através
do brinquedo, das brincadeiras e dos jogos, ela cria, inventa, brinca
na medida em que se desenvolve e aprende. Através da brincadeira
constrói suas concepções acerca do mundo, investiga os diversos
contextos, constrói e reconstrói o conhecimento, inventa e reinventa
e demonstra suas percepções sobre o mundo que a rodeia. Nesse
processo, a criança amplia seu repertório de experiências cognitivas,
emocionais, sociais e culturais, desenvolvendo-se e conquistando
novas aprendizagens.
Nesta direção, segundo Vigotski (2007), a brincadeira é a base do
desenvolvimento infantil, pois nela a criança se comporta melhor
do que no seu cotidiano, se comporta como se tivesse mais idade
que tem na realidade. Na brincadeira a criança realiza vontades que
não são possíveis no seu cotidiano, utiliza-se da imaginação para
realizar seus desejos.
Sob este viés de ensino-aprendizagem na Educação Infantil que
a Educação Patrimonial torna-se um recurso educativo nesta fase
da infância. A Educação Patrimonial contribui com a valorização
dos nossos bens culturais na medida em que provoca a criança a
conhecer e aprender mais sobre suas heranças culturais, neste caso,
de maneira lúdica e divertida, reconhecendo neles a importância
para a preservação da sua identidade. Segundo Fagan, Padoin
(2014, p. 8):
Aproximar o cotidiano do aluno e a própria história é uma alternativa
para o desenvolvimento da cidadania local dentro de um processo
de ensino-aprendizagem que se torne mais signicativo para este
aluno, reconhecendo seus direitos e deveres enquanto cidadão.
Este sentimento de pertencimento, produzido através das relações
familiares, escolares, étnicas, culturais, religiosas, regionais, nacionais
ou locais criam valores de respeito com o seu próprio patrimônio e
ao mesmo tempo respeito com o patrimônio do ‘outro’, ajudando a
diminuir as desigualdades de gênero e raça.
Diante disso, o momento de interação com os bens culturais
entre as crianças instiga, nelas e nos adultos ao seu redor, o
pensamento de pertencimento a sua cultura com intuito de se
tornarem seres comprometidos e responsáveis com a valorização
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
313
das heranças culturais, desenvolvendo a consciência do signicado
da cidadania. Assim, a Educação Patrimonial como um recurso
educativo contribui para estimular as crianças a se reconhecerem
como protagonistas da sua própria história, bem como do grupo
social do qual fazem parte, usufruindo de modo consciente dos
bens culturais que seus antepassados deixaram, sendo responsáveis
pela preservação e divulgação dos mesmos.
Itaqui e Villagrán (1998 apud FAGAN; PADOIN, 2014, p.9)
corroboram ao discorrer sobre o papel da Educação Patrimonial
para a comunidade escolar:
O trabalho da Educação Patrimonial é levar os indivíduos a um
processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua
herança cultural, capacitando-os para uma melhor utilização destes
bens e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos,
tendo assim um contínuo processo de criação cultural. A metodologia
da Educação Patrimonial é materializada através do estudo de
objetos comunitários como estratégia de aprendizagem do contexto
sociocultural.
Em vista disso, a Educação Patrimonial é um processo contínuo
no qual se elaboram estratégias diversicadas para promover
a aprendizagem signicativa a partir do patrimônio. São ações
pedagógicas que visam o conhecimento do patrimônio para melhor
usufruí-lo, bem como para incentivar as crianças e os adultos a
desenvolverem um pensamento de pertencimento com intuito de
tornarem-se seres comprometidos com a valorização e o cuidado
da sua herança cultural. Assim, a Educação Patrimonial propicia
um processo contínuo de reexão e participação acerca dos bens
culturais em que as pessoas estão constantemente produzindo
cultura que cam de legados para as gerações futuras.
Dessa maneira, esse processo de interação com os bens
patrimoniais pode ocorrer na escola ou fora dela. Segundo Franco
(2019) a integração do trabalho nos espaços formais e não formais
de ensino potencializa o diálogo do educando através das suas
experiências e vivências na sua comunidade com os conhecimentos
construídos ao longo da história, uma vez que os patrimônios locais,
que dão sentido à comunidade em que a criança está inserida, são
valiosos em dados, informações, históricos, estímulos que podem
contribuir para a compreensão deles.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
314
Sendo assim, o autor reverbera que ao interagir com a realidade
do seu mundo numa perspectiva questionadora e crítica o educando
transforma-se a si mesmo, estabelecendo novas relações com seu
meio social e físico, reconhecendo e valorizando as diferentes
culturas da sua comunidade, bem como estabelecendo possíveis
diálogos com outras realidades. Nesse contexto, a partir de vivências
e experiências que instigam a relação das culturas locais com as
regionais, nacionais e globais, a criança amplia seus conhecimentos,
mudando suas formas de olhar e interagir com os patrimônios.
Nessa perspectiva, o patrimônio está atrelado ao passado,
ao presente e ao futuro, considerando que as gerações passadas
deixaram uma herança cultural para no presente usufruir e
modicar o que também pertencerá às gerações futuras. Desse
modo, a responsabilidade das gerações atuais de zelar e preservar o
patrimônio cultural herdado para que as próximas gerações possam
conhecer os bens culturais e se reconhecer através deles, elevando,
assim, sua autoestima.
Carvalho (2014 apud FRANCO, 2019, p. 33) faz uma consideração
importante sobre o passado e o presente:
Valorizar o passado e sua memória não signica desrespeitar o
presente e suas demandas, caso contrário estaríamos inviabilizando a
própria condição de habitabilidade urbana inscrita em sua capacidade
ecossistêmica de se reinventar. Do mesmo modo, entretanto, valorizar
o presente não deve signicar desrespeitar o passado.
Nesse caso, o diálogo estabelecido entre passado e presente, sem
exaltar nenhum deles, possibilita a evolução da comunidade na
medida em que reete criticamente sobre o passado, reconhecendo-o
para compreender o presente, podendo operar sobre ele. Esse
entrelaçamento do passado com o presente só é possível por meio
da reconstrução do passado que perpassa pela memória.
Segundo Pollak (1989, p. 9) “a referência ao passado,
serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que
compõem uma sociedade, para denir seu lugar respectivo, sua
complementaridade, mas também as oposições irredutíveis”. Desse
modo, o passado contribui para o grupo delimitar e selecionar as
memórias importantes, que os identicam. Também, não é possível
lembrar-se de tudo, pois “a memória é seletiva” (POLLAK, 1992,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
315
p. 4), ela seleciona e relembra momentos que são signicativos
para construção de uma identidade, ou seja, para identicar uma
comunidade. Como Pollak (1992, p. 5) arma
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um
fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
Em vista disso, a relevância de não se perder as memórias,
de preservá-las, pois elas permitem a inserção das pessoas no
contexto histórico, dão sentido e signicado às novas gerações,
constituindo os laços de valorização dos patrimônios, bem como
do fortalecimento da cidadania.
Diante disso, destacamos a necessidade de conscientizar as
crianças para a valorização e o cuidado com o patrimônio desde
pequenas, na Educação Infantil. Educar para o patrimônio
proporciona ao professor buscar diferentes recursos educativos,
metodologia que torna-se uma aliada do educador e educando, pois
auxilia despertar nas crianças a curiosidade de conhecer mais sobre
os bens culturais que fazem parte da sua história, é uma maneira
de ensinar sobre identidade, bem como instiga a valorização e
preservação das tradições locais.
Nesse sentido, incluir a Educação Patrimonial na educação
infantil contribui para a “alfabetização cultural” (HORTA,
GRUNBERG, MONTEIRO, 1999), pois desde bem pequenas
as crianças entram em contato com seus patrimônios, tendo a
oportunidade de interagir com eles conhecendo os signicados que
eles têm para sua comunidade.
Nesse sentido, acreditamos que na Educação Patrimonial
como um recurso educativo, pois o material pedagógico que
elaboramos, jogo e livreto, voltados à Educação Infantil através de
recursos lúdicos, contribuem para a valorização do patrimônio.
Nesta direção, as aulas tornam-se mais prazerosas e signicativas,
proporcionando às crianças a participação ativa e espontânea nas
proposições pedagógicas, assim, desenvolvem-se e aprendem de
maneira signicativa, dinâmica, participativa e crítica.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
316
O recurso educativo a partir dos capitéis de
Nova Palma
A partir da pesquisa realizada sobre os capitéis de Nova Palma,
bem como sobre a Igreja Matriz Santíssima Trindade, evidenciamos
que sua historicidade remete às práticas sociais e culturais dos
imigrantes italianos relacionadas a acontecimentos de diculdades
na pátria de adoração. Muitas destas práticas são mantidas
atualmente pelas famílias que moram próximas a eles, ou mesmo
outras pessoas da comunidade. Nesse caso, os capitéis são símbolos
da fé e da religiosidade da comunidade de Nova Palma, respaldadas
pelas orações e cultos realizados como meios para enfrentar as
diculdades da vida.
Ademais, a religiosidade está presente nas memórias dos
descendentes de imigrantes italianos, registradas pelo pesquisador
Padre Luiz Sponchiado, no Centro de Pesquisa Genealógica de
Nova Palma (CPG).
Nesse sentido, esta iniciativa do Padre Luiz Sponchiado
em registrar as memórias dos imigrantes italianos, através de
documentos, fotograas, relatos de história de vida, sob a guarda
do arquivo do centro de pesquisa, permite ao pesquisador
rememorar acontecimentos e reconhecer os signicados impressos
nesses registros como parte das memórias de diferentes famílias.
Memórias essas que foram sendo construídas pelas pessoas que
interagiram com os capitéis ao longo dos anos proporcionando um
valor histórico para eles em Nova Palma.
Quando realizamos a visitação às pequenas capelinhas,
pudemos perceber que os capitéis constituem uma referência para
a comunidade que, a cada festividade ou momentos de oração,
rememora a religiosidade dos seus antepassados, conferindo
ao capitel o valor de um patrimônio cultural, o qual revela uma
identidade para a comunidade de Nova Palma.
Ainda, os capitéis de Nova Palma são reconhecidos como lugares
de memória, pois guardam informações daqueles imigrantes
italianos que se estabeleceram no território registradas em placas,
xadas nos capitéis contendo o nome dos fundadores do capitel,
com as datas de construção, de restauração, bem como do santo
de devoção abrigados neles. Esses lugares de memória guardam
as heranças da religiosidade do passado e para garantir que não se
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
317
percam com o passar do tempo os descentes de imigrantes mantém
viva as práticas dos seus antepassados.
Sendo assim, nestes lugares é possível rememorar acontecimentos
relevantes para a comunidade de Nova Palma, a m de compreender
o presente, atuando sobre ele com vistas a projetar um futuro de fé
e esperança. Desse modo, passado, presente e futuro se interligam
possibilitando a manutenção de práticas ancestrais na sociedade.
Em vista disso, é relevante não se perder essas memórias, preservá-
las, pois elas permitem as pessoas o reconhecimento do contexto
histórico, que dão sentido e signicado às novas gerações,
constituindo os laços de valorização dos patrimônios, bem como
do fortalecimento da cidadania.
Na atualidade, práticas religiosas, romarias, louvores e orações
acontecem em torno dos capitéis o que demonstra o quanto essas
pequenas edicações são importantes para os moradores de Nova
Palma e região, que após anos de sua construção original ainda
são espaços de representatividade, fundamentais para alimentar
a fé e a religiosidade dessas pessoas. Sendo assim, a importância
de trabalhar a conscientização das crianças e da comunidade
para a preservação desses bens patrimoniais a partir da Educação
Patrimonial como um recurso educativo.
Diante disso, criamos o recurso pedagógico A Trilha Divertida
dos Capitéis de Nova Palma para facilitar a Educação Patrimonial
na Educação Infantil. O jogo pedagógico, construído na forma de
trilha, objetiva aliar a aprendizagem à diversão. A Trilha Divertida
parte da Igreja Matriz Santíssima Trindade, símbolo de religiosidade
da comunidade, percorrendo os dez capitéis mais conhecidos das
crianças do Maternal, da Escola de Educação Infantil Aquarela de
Nova Palma. Além disso, elaboramos um livreto com os patrimônios
religiosos para colorir.
Com essa proposta trabalhamos com a imaginação das crianças
na Educação Infantil, pois nas brincadeiras elas estabelecem relações
entre o real e o imaginário, vivenciando situações do seu dia a dia,
assim, desenvolvem princípios positivos para relacionarem-se
em sociedade de maneira a tornarem-se cidadãs conscientes dos
seus atos na coletividade (Vigotski, 2007). Dessa maneira, nossos
recursos educativos propiciam através do lúdico os princípios que
orientam a educação patrimonial, principalmente no que tange
a conscientização das crianças da importância em preservar seus
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
318
patrimônios locais, neste caso, os capitéis de Nova Palma e a Igreja
Matriz.
Para respaldar nossa proposta, buscamos as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009), pois os
eixos que norteiam as práticas pedagógicas na Educação Infantil
são as interações e as brincadeiras. Nesse sentido, nossos recursos
lúdicos promovem a aprendizagem através do processo de interação
entre as crianças sendo que umas irão aprender com as outras sobre
os patrimônios estudados, sendo o professor o mediador nessas
atividades.
Nessa direção, conforme Vigotski (2007), o processo de ensino-
aprendizagem está pautado na interação entre seus pares, bem
como na medida em que o professor interage com suas crianças
realizando a mediação das atividades, instigando-as a reetir para
avançar na construção do conhecimento. Durante esse processo
cada um dos envolvidos mobiliza saberes que são próprios de cada
um e divide com seus pares, construindo conhecimento juntos.
Assim, as crianças através do jogo aprenderão signicativamente
os conteúdos relacionados aos bens patrimoniais brincando e se
divertindo.
Nessa perspectiva, Kishimoto (1994) estabelece duas funções
para o jogo educativo uma função lúdica, em que o jogo
proporciona diversão, alegria e uma função educativa em que o
jogo ensina qualquer informação que complete o saber da criança,
suas percepções de mundo, bem como seus conhecimentos. Para a
autora o objetivo do jogo educativo é o equilíbrio entre estas duas
funções, como exemplo, podemos citar um jogo de memória com
patrimônios da cidade, se as crianças utilizarem as cartas para
fazer pilhas ou aviãozinho, é a função lúdica que predomina, já se
o professor utilizar o jogo como forma de avaliar a criança a função
educativa que predomina. Nesse caso, para o jogo ser divertido e
proporcionar aprendizagem é necessário ter equilíbrio entre o
lúdico e o educativo.
Ainda, Kishimoto (1994) descreve dois sentidos que emergem
do jogo na Educação Infantil, um sentido amplo em que materiais
são organizados em espaços para a criança explorar livremente
visando seu desenvolvimento integral e um sentido restrito em
que o uso dos materiais necessitam de orientação especíca do
professor para apropriação de determinado conhecimento. Nesse
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
319
contexto, em qualquer um dos sentidos em que o jogo acontece
na Educação Infantil terá a função educativa, proporcionando à
criança desenvolvimento social, cognitivo, emocional e corporal.
Nesse sentido, tanto a trilha quanto o livreto visam educar para
conhecer os bens patrimoniais herdados de seus antepassados,
quando a Educação Patrimonial é experenciada no contexto escolar
infantil, propondo a aprendizagem a partir da realidade local
das crianças de Nova Palma, do seu contexto familiar, das suas
vivências e das suas experiências. Desse modo, o desenvolvimento
de atividades dessa natureza propicia a criança o sentimento de
pertencimento à história e cultura do lugar, neste caso, expressa
na religiosidade em torno dos capitéis. A aprendizagem a partir
da pesquisa histórica, do percurso da trilha instiga a compreensão
do protagonismo dos imigrantes e descendentes na construção
da história local, bem como a valorização das heranças culturais
deixadas por seus antepassados.
Desse modo, Ausubel (1968 apud MOREIRA, 1999) reverbera
que a aprendizagem signicativa ocorre quando é estabelecido o
processo de interação entre o novo conhecimento e o conhecimento
já existente, sendo que os conceitos relevantes disponíveis na
estrutura cognitiva funcionam como um ponto de ancoragem às
novas ideias, integrando este material novo ao mesmo tempo em
que modica o que já existe em função dessa ancoragem.
Diante disso, o recurso educativo e lúdico que elaboramos
propõe estabelecer relações entre o conhecimento que a criança já
dispõe sobre os capitéis de Nova Palma ao conhecimento novo, ou
seja, o que ela desconhece sobre os patrimônios estudados. Através
da Educação Patrimonial estamos proporcionando aos educandos a
aprendizagem signicativa.
Considerações nais
Através a Trilha Divertida dos Capitéis de Nova Palma e do
livreto foi possível propor ações na Educação Infantil, baseadas na
Educação Patrimonial como um recurso educativo, articulando
atividades pedagógicas para trabalhar com crianças pequenas
questões relacionadas à identidade e a preservação dos bens
patrimoniais.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
320
Desse modo, essas estratégias pedagógicas instigaram nas
crianças o interesse em aprender a história do município de Nova
Palma a partir dos capitéis. Nesse contexto, através do jogo Trilha
Divertida dos Capitéis de Nova Palma e do livreto trabalhamos
conceitos relacionados ao patrimônio como preservação, cuidado,
história, signicado, identidade, através do lúdico, em que a criança
sentiu-se provocada a conhecer mais sobre a temática e aprender
brincando.
Além disso, esses recursos educativos contemplaram os cinco
campos de experiência descritos na Base Nacional Comum
Curricular (2018): o eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos;
traços, sons, cores e formas; oralidade e escrita; espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações, pois o jogo propicia a
interação entre as crianças e com a professora, o contato com a
oralidade e escrita, movimentos, sons e gestos propostos, a relação
entre número e quantidade, bem como o contato com as cores, as
formas do tabuleiro, dado e pinos.
Também, evidenciamos que os recursos educativos vão ao
encontro dos eixos norteadores da prática pedagógica na Educação
Infantil, interações e brincadeiras (BRASIL, 2018), pois o jogo e o
livreto tornam-se um recurso lúdico em que as crianças interagem
entre si, trocando conhecimento e concepções, aprendendo umas
com as outras, enquanto se divertem.
Sendo assim, após o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos
novamente os recursos educativos na mesma turma, no ano seguinte,
bem como outras atividades como piquenique em um capitel,
atividade de artes a partir de imagens dos capitéis em um contexto
investigativo a partir de imagens para as crianças explorarem os
materiais e fazerem suas próprias criações.
No momento do jogo as crianças puderam interagir entre elas
e com nosso auxílio, aprendendo umas com as outras de maneira
divertida. Também, trabalhamos as regras de convivência social,
como esperar sua vez, respeitar o colega; os conceitos matemáticos,
relacionando número à quantidade ao dizer o número que caía
no dado e contar as casas respectivas; o reconhecimento das cores
e das formas constadas na trilha; as noções de localização dos
patrimônios; os conhecimentos relacionados aos usos e funções da
leitura e da escrita, por meio da leitura das cartinhas, bem como os
movimentos e gestos propostos pelo jogo.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
321
A partir de todas as experiências propostas com os capitéis,
evidenciamos o envolvimento positivo das crianças com a proposta
de atividade. Elas reconheceram as pequenas capelas, participaram
ativamente das atividades interativas, demonstrando já ter
conhecimentos prévios sobre a temática. Sendo assim, observamos
que as crianças desenvolveram o sentimento de pertencimento à
Nova Palma, tornando-se defensoras de suas heranças culturais,
patrimônios estes que dão identidade católica à comunidade.
Referências
BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Disponível em: https://www2.senado.leg.
br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf.
Acesso em: 04 mar. 2022.
_______. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
Brasília, 2018.
_______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara
da Educação Básica. Resolução Nº 5 de 17 de dezembro de 2009. Fixa
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: DF,
2009.
FAGAN, Elaine Binotto; PADOIN, Maria Medianeira. Educação
patrimonial e memória: Projeto de Integração Regional da Quarta
Colônia. Revista Memória em Rede, v. 6, n. 11, p. 92–109, 2014.
FRANCO, Francisco Carlos. Educação, Patrimônio e Cultura Local:
concepções e perspectivas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2019.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO,
Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília, IPHAN/
Museu Imperial, 1999. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/
temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.pdf . Acesso em: 30 mar. 2022.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geograa e Estatística. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/nova-palma/panorama. Acesso em:
02 jun. 2022.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O Jogo e a Educação Infantil. São Paulo:
Cengage Learning, 1994.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
322
MOREIRA, Marco Antonio. A teoria da aprendizagem signicativa de
Ausubel. In:
MOREIRA, M. A. Teorias da Aprendizagem, São Paulo: E.P.U., 1999. p.151-
165.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
_______. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A Formação Social da Mente: o
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
LETRAS E HISTÓRIA EM
DIÁLOGO: O PATRIMÔNIO
LINGUÍSTICO E SEUS
ATRAVESSAMENTOS
PEDAGÓGICOS
Kleverson Gonçalves Willima1
INTRODUÇÃO
As concepções de língua têm passado, ao longo dos séculos,
por inúmeras transformações. Isso, por sua vez, implica formas
diferentes de se pensar sobre língua e de praticá-la, o que pode
inuenciar os indivíduos tanto a nível de comportamento, quanto
a nível de compreensão de mundo, de realidade e de concepções
pedagógicas para o tratamento linguístico ou do que tenha a ver com
o linguístico (BAGNO, 2014; 2017), como as fontes documentais, por
exemplo. Atualmente, segundo Bagno (2014), Calvet (2002) e Paiva
(2014), entendemos as línguas humanas como fenômenos sociais,
psicológicos, culturais, cognitivos, históricos, antropológicos,
1 Pós-graduando em Currículo, Didática e Metodologias Ativas pela FAMEESP e
em Letras com Ênfase em Linguística pela Faculdade Focus. Licenciado em Letras -
Português e Espanhol pelo Centro Universitário FAEL. Membro do Laboratório de
Pesquisa em Teorias da História e Interdisciplinaridade (LAPETHI), coordenado pelo
Prof. Dr. José D’Assunção Barros e vinculado à UFRRJ. E-mail: biokleverson@gmail.
com.
323
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
324
ideológicos e políticos, justamente por estarmos nos referindo a
um objeto que só existe na sua complexidade e completude nos/a
partir dos seres humanos que dele fazem uso (CALVET, 2002, p.
12). Acontece, porém, que nem sempre foi/é assim.
Durante muito tempo, e isso inclui os dias atuais, as línguas
receberam, nas escolas, um tratamento instrumental, a-histórico
e dissociado de sua realidade social, heterogênea e variável, como
nos apontam Bagno (2007), Caputo (2020) e Willima e Souza
(2023). Isso implicou e implica, segundo os mesmos autores, um
ensino de língua portuguesa descontextualizado e que não leva em
consideração toda a riqueza, complexidade e possibilidade que as
línguas possuem. Sabemos, graças a Bagno (2014), que em tudo
o que fazemos, a língua(gem) está presente, mesmo que de forma
indireta. Tudo é linguagem, conforme nos arma Dolto (2018) em
seu livro, isto é, desde atividades como pensar, até atividades como
lecionar, ler, escrever, fotografar, falar, pintar, ver um lme, ouvir
uma música e tantas outras, a língua(gem) está presente e atuante,
direta e/ou indiretamente.
Em decorrência do exposto acima, múltiplos olhares sobre a
língua são possíveis, além de diversas formas de se trabalhar com
ela e utilizá-la. A justicativa disso reside no fato de que, conforme
vimos anteriormente, todos os seres humanos, salvo em graves
problemas de ordem neurobiológica (e mesmo nesses casos)2,
fazem uso de sua língua materna nas atividades diárias (BAGNO,
2014), o que implica compreender que, por força desse uso, os
entendimentos de/sobre língua serão plurais. Por esse motivo, não
é incumbência apenas de docentes de língua portuguesa teorizar
sobre língua, tecer explicações e descrições sobre ela. Se todas as
pessoas utilizam-na, signica dizer prossionais de outras áreas
também terão, em algum momento, de teorizar sobre esse objeto
singular, complexo e multifacetado (cf. BAGNO, 2019).
Nesse sentido, em virtude dos atravessamentos pelos quais a
língua passa, podemos compreender, ao menos em parte, a ideia
de patrimônio linguístico, isto é, aquele conjunto de símbolos,
documentos, expressões e vivências que, através da língua(gem),
participam da construção da identidade e da memória de um povo
(PEREIRA, 2017; TEIXEIRA, 2021). Ao entender língua(gem) como
um patrimônio, ou seja, como algo que nos pertence enquanto seres
2 Graças à neuroplasticidade cerebral (cf. HAASE; LACERDA, 2004).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
325
humanos e que participa da nossa construção, da nossa identidade,
da nossa subjetividade (LUNARDI, 2005), abrimos margem
para conceber a importância de um tratamento linguístico mais
condizente com a realidade dos indivíduos e das comunidades,
além de uma inter-relação entre as áreas do conhecimento para que
tenhamos um trabalho conjunto no que tange ao linguístico e ao
seu tratamento pedagógico.
Há, no mundo, uma variedade imensa de línguas, culturas
e povos. Toda essa diversidade é extremamente importante no
processo formativo de nossos/as jovens, pois auxiliam na formação
de indivíduos críticos, reexivos, tolerantes e conhecedores da
riqueza existente não apenas no seu próprio país/território, mas
também no planeta como um todo. Nas palavras de Lucchesi (2015,
p. 14), “o reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser
prejudicial, é condição sine qua non para uma escola democrática
e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem menosprezar
sua bagagem cultural”.
É por esses e outros motivos que o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) criou o Inventário Nacional
da Diversidade Linguística (IPHAN, s/p), a m de salvaguardar a
diversidade linguística presente no Brasil, que compõe mais de 150
línguas de povos originários. Além disso, pensando na diversidade
de variedades da nossa língua materna, foi construído o Museu da
Língua Portuguesa, localizado na Estação da Luz, na cidade de São
Paulo - SP, cujo principal objetivo é inventariar a nossa língua, com
o mesmo intuito do Inventário do IPHAN: salvaguardar a riqueza
linguística da nossa língua pátria, assim como a nossa memória
coletiva (cf. HALBWACHS, 1950) enquanto falantes de português
brasileiro3 (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2019).
3 Ao considerarmos que a língua constitui, igualmente, a nossa identidade enquanto
seres humanos, é necessário fazer um adendo com relação ao termo em destaque.
Muitos autores, tais como Bagno (2001; 2012) e Lucchesi (2015), atualmente, defendem
que nunca falamos a língua portuguesa que é usada como a referência da língua: o
português de Portugal. Decorre disso a ideia de que, no Brasil, houve aquilo que
Lucchesi (2015) chama de “transmissão linguística irregular”, ou seja, o português foi
transmitido para um indivíduo, que por sua vez transmitiu esse português aprendido
como segunda língua para as gerações futuras, e assim sucessivamente. Resultado: o
português transmitido para as novas gerações foi um idioma aprendido como segunda
língua, não como língua materna/nativa, tal como se fazia em Portugal naquele tempo
histórico, o que implicou alterações importantes na forma de se produzir (n)essa língua.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
326
Pensando nas discussões acima, este trabalho objetiva
observar a relevância do diálogo entre Letras e História no que
tange ao tratamento da língua numa perspectiva patrimonial
e as implicações disso a nível pedagógico. Para tanto, será feita
uma pesquisa bibliográca, de cunho qualitativo e exploratório-
descritivo, conforme propõem Marconi e Lakatos (2021), a m de
alcançar o objetivo proposto. A justicativa da importância desse
diálogo refere-se ao fato de que tanto a História quanto Letras têm
a incumbência de trabalhar com língua(gem) e/ou seus produtos
linguísticos (como as fontes documentais), seja de forma mais
prática através de manipulação, análise, pesquisas e estudos, seja de
forma pedagógica através do ensino (que não exclui a abordagem
prática), em especial quando falamos em patrimônio linguístico,
já que a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nossa
atual política educacional a nível nacional, aponta a necessidade de
um olhar mais crítico e direcionado no que tange ao patrimônio,
seja ele linguístico ou não (cf. BRASIL, 2018).
METODOLOGIA
Para a construção deste trabalho, foi feita uma pesquisa
bibliográca, de caráter qualitativo e exploratório-descritivo
(MARCONI; LAKATOS, 2021), com o intuito de analisar o que
já existe de produção na área sobre o assunto, a m de alcançar o
objetivo proposto: observar a relevância do diálogo entre Letras e
História no que tange ao tratamento da língua numa perspectiva
patrimonial e as implicações disso a nível pedagógico. Assim
sendo, recorremos a autoras e autores que versam sobre a ideia
de patrimônio linguístico - e ao próprio IPHAN, no caso deste
tópico especíco, com o seu Inventário Nacional da Diversidade
Linguística (IPHAN, s/d) - e sobre as possíveis concepções de língua
e patrimônio existentes, além da parte pedagógica concernente a
essa realidade, como Bagno (2014; 2017; 2019), Ballarine (2006),
Calvet (2002), Cervo (2012), Costa (2017), Garcia (s/d), Lucchesi
O linguista brasileiro Marcos Bagno escreveu uma Gramática Pedagógica do Português
Brasileiro, com mais de 1000 páginas, justicando essa realidade (cf. BAGNO, 2012).
Por questões identitárias e por alguns critérios linguísticos é que dizemos, hoje, que
falamos a nossa língua, a língua brasileira, ou o português brasileiro (cf. BAGNO, 2001).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
327
(2015), Paiva (2014), Pereira (2014; 2017), Teixeira e Venturini
(2016) e tantos outros.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A armação de que “a língua é o patrimônio de um povo”,
proferida por Maria Ignez Villela em uma entrevista (BALLARINE,
2006), nos permite reetir sobre o papel sumamente necessário
da diversidade linguística e, principalmente, de sua promoção e
preservação. Sobre esse ponto:
Conceber a língua como patrimônio implica, como podemos
depreender a partir de Venturini (2009), o retorno a um passado, que
se organiza como uma narrativa aparentemente coerente, na qual
é apagado o que deve ser esquecido e, por conseguinte,o que não
pode e não deve ser lembrado, pressupondo-se, com isso, a partir do
controle do passado, controlar-se também o presente. É assim que a
língua nomeada portuguesa ou simplesmente português, signicada
como idioma, passa a constituir-se como monumento, como lugar de
memória, de comemoração (Zoppi-Fontana, 2009) disso que hoje é
posto como a lusofonia que nos une (COSTA, 2017, p. 581).
Nesse sentido, e em consonância a armação da autora, o
Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) do IPHAN
se coloca nesse lugar de preservar e promover/difundir a diversidade
linguística presente no nosso país (IPHAN, s/d). São mais de 150
línguas faladas em nosso território, indo desde línguas de herança
(como o francês, o espanhol, o alemão, o italiano, o japonês e
outras) até línguas indígenas (como o guajajara, o ticuna, o guarani
e outras). Boa parte das línguas de povos originários estão em risco
de extinção, conforme nos apontam Toledo e Miranda (2021). Com
relação ao último ponto destacado:
A diversidade linguística encontra-se ameaçada. Estima-se que entre
um terço e metade das línguas ainda faladas no mundo estarão extintas
até o ano de 2050. As consequências da extinção das línguas são
diversas e irreparáveis, tanto para as comunidades locais de falantes,
quanto para a humanidade (GARCIA, s/d, s/p).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
328
É pelos motivos apresentados e por tantos outros que o INDL
do IPHAN é tão importante para a conservação da memória desses
povos, de suas identidades, de suas línguas propriamente. Nesse
caminho, é válido destacar que os métodos para preservar e promover
essas línguas são diversos. Podemos contar com a musealização
da língua, como ocorre com o Museu da Língua Portuguesa (que
discutiremos mais adiante); com a História Oral, a Sociolinguística
Variacionista e a Antropologia Linguística, cujo objetivo principal
é salvaguardar o patrimônio linguístico e a memória de um povo
através de gravações de áudio e vídeo, contribuindo para conservar
a cultura oral. Além disso, ainda há as fontes documentais escritas,
encontradas em línguas que possuem sistema de escrita (como a
nossa, a maioria das línguas de herança e algumas poucas línguas
indígenas). Ambos são essenciais para levar a cabo esse trabalho
de preservar e promover a diversidade linguística, seja das mais
variadas línguas, seja das variedades linguísticas da nossa própria
língua materna.
A esse respeito:
No Brasil, o reconhecimento das línguas como referência cultural
vai ao encontro dos princípios que regem as políticas do patrimônio
cultural e insere-se justamente no entendimento de que língua
e cultura são elementos indissociáveis. De acordo com a Unesco
(2003), a diversidade linguística é essencial para o patrimônio da
humanidade e a perda de uma única língua representa uma perda para
a humanidade como um todo. Essa noção parte do entendimento de
que as línguas desempenham um papel fundamental na transmissão
e manutenção das manifestações culturais. Línguas são, dessa forma,
compreendidas como referências culturais e como elementos de
articulação de identidades e culturas e que, por isso, de acordo com
a visão da Unesco, são, elas próprias, herança dos grupos sociais e,
consequentemente, da humanidade. Em função disso, o tratamento
das línguas enquanto patrimônio cultural tem como princípio que
todas as línguas são passíveis de reconhecimento e que há grande
valor na diversidade (PEREIRA, 2014, p. 14).
A citação da autora nos permite uma margem de justicativa
para a importância de se inventariar a diversidade linguística
nacional, a m de que toda essa riqueza não se perca para sempre
quando o último nativo de determinada língua morrer. Línguas têm
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
329
a ver com cultura, com história, com memória, com identidade, daí
a necessidade de não deixarmos toda essa potência desaparecer no
espaço-tempo. Uma boa forma de difundir as realidades linguísticas
outras presentes em nosso território é através das escolas: das aulas
de línguas (materna e adicionais), de História, de Geograa, de
Biologia, de Sociologia, de Filosoa. Cada área vai tratar desse objeto
língua a sua maneira, a partir de seus aportes teóricos próprios. Aqui,
neste texto, o foco está na urgência e importância da interlocução
entre Letras (na gura da Língua Portuguesa) e História para o
trabalho com o linguístico, haja vista o nosso recorte vislumbrar a
língua enquanto um patrimônio, podendo ser abordado por outras
áreas, obviamente.
Para justicar o parágrafo anterior, é imprescindível trazer os
direcionamentos da BNCC com relação ao tema do patrimônio e
do trabalho com esse tópico. A partir da leitura da Base (BRASIL,
2018), foi possível perceber que o termo “patrimônio” aparece
44 vezes. De todas as aparições, a maioria esmagadora está no
campo das Linguagens (Arte, Educação Física, Língua Portuguesa
e Língua Inglesa) e das Ciências Humanas (História e Geograa).
Majoritariamente, trata-se do patrimônio no seu sentido cultural,
histórico e linguístico, com desdobramentos, também, para o
material. Depreende-se disso a importância de uma abordagem
que leve em consideração a língua enquanto patrimônio cultural de
um país, de um povo, e a necessidade de sua preservação, conforme
já nos apontava estudos anteriores como os de Cervo (2012),
Costa (2017), Garcia (s/d) e Pereira (2014; 2017). Além disso, é
sumamente urgente lutarmos por uma educação patrimonial efetiva
e de qualidade no nosso país, para além do puramente linguístico
tratado aqui.
No que concerne ao Museu da Língua Portuguesa, alguns
apontamentos de autoras que trabalharam com ele são cabíveis:
Signicamos o Museu de Língua Portuguesa (MLP), instalado em
2006, na Estação da Luz em São Paulo, como um espaço de memória
que difere das tradicionais instituições estáticas que salvaguardam
arquivos históricos. Este museu funciona pela tecnologização e, de
acordo com Montagner Cervo (2012, p. 17), “ele convida à visitação a
partir do funcionamento da língua por diferentes materialidades no
interior do próprio arquivo”, ou seja, não se trata de acervo exposto
estaticamente, mas de arquivo interativo-tecnológico. O Museu da
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
330
Língua Portuguesa é como o próprio nome diz, dedicado à língua
portuguesa “como patrimônio cultural e é divulgado como espaço de
valorização da diversidade dessa língua” (MONTAGNER CERVO, 2012,
p. 120). Não se trata, portanto, de um espaço em que coisas antigas
são guardadas e expostas, mas de um espaço que celebra o imaterial,
a nossa língua portuguesa, e busca mostrar a origem, a história da
língua e as inuências sofridas, pelo material, fazendo com que o
sujeito visitante compreenda que a língua é o elemento fundamental
e fundador da nossa cultura e que ele é o agente proprietário e
modicador da língua (TEIXEIRA; VENTURINI, 2016, p. 642).
O MLP é a prova viva de que as línguas podem, sim, ser
musealizadas, conforme já nos armavam Teixeira e Venturini
(2016) e Cervo (2012). Esse fato, por sua vez, possui implicações
importantes, tanto de caráter pedagógico, quanto de caráter social,
político, cultural e histórico. O caráter pedagógico do MLP consiste
em apresentar, para a população como um todo, a riqueza linguística
que compõe a nossa língua e as questões que a atravessam, por
exemplo: seu “nascimento”, sua “transformação”, as línguas e culturas
outras que inuenciaram a nossa, as características linguísticas do
nosso idioma pátrio, entre outras. A partir dessa realidade, é possível
levar a cabo uma abordagem de língua diferenciada em sala de aula,
que leve em consideração as línguas enquanto patrimônio cultural
de um país, compondo aquilo que se tem chamado de patrimônio
linguístico, indo de encontro ao que se tem praticado em muitas
escolas brasileiras até os dias de hoje (cf. WILLIMA; SOUZA, 2023).
Graças ao Museu da Língua, foi possível dar à nossa língua
materna um olhar diferenciado, que tem por objetivo a promoção
da diversidade e complexidade que compõem o português
brasileiro, desconstruindo o ideário de língua homogênea,
inexível e desvinculada da realidade social, histórica e cultural
que se tem tentado reproduzir na sociedade brasileira há séculos,
e construindo no lugar a ideia de que a nossa língua (assim como
as outras) é heterogênea, complexa, plural, variável, sensível aos
contextos de uso, atravessada histórica, ideológica, política, cultural
e socialmente. Isso, por sua vez, serve como uma ferramenta
pedagógica potente para promover um ensino de línguas mais
efetivo, compreendendo que “a língua é o elemento fundamental e
fundador da nossa cultura e que ele [o sujeito visitador do MLP] é o
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
331
agente proprietário e modicador da língua”, segundo nos armam
Teixeira e Venturini (2016, p. 642).
Portanto, os resultados encontrados, levando em consideração
as observações de Cervo (2012), Costa (2017), Garcia (s/d), Pereira
(2014; 2017), Teixeira e Venturini (2016) e as ponderações aqui
feitas, apontam para a importância de um novo olhar para as línguas,
enxergando-as enquanto partes essenciais de nossa história, da
nossa memória, da nossa construção como seres humanos. Diversos
documentos são usados, tanto em Letras quanto na História, com
ns de pesquisa, estudo e análise, embora por vezes o seu contexto
de formulação e a sua bagagem histórica sejam deixados de lado
em prol de uma manipulação mais direta e direcionada deles. Esses
documentos, independente de seu caráter, fazem parte do nosso
patrimônio, seja ele material, linguístico, cultural ou histórico
propriamente dito, ou seja, nos ajudam a compreender determinado
espaço-tempo histórico, determinados acontecimentos e eventos.
Nas aulas de História ou de Língua Portuguesa, eles são mobilizados
a todo momento; por isso, é sumamente necessária uma abordagem
que vise à desconstrução da concepção de língua que a entenda
como um sistema fechado, homogêneo, a-histórico e distanciado de
sua realidade sócio-histórica-cultural, como infelizmente, segundo
Bagno (2007), Caputo (2020) e Willima e Souza (2023), temos visto
acontecer nas escolas Brasil afora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer de todo o artigo, discutimos sobre como as
concepções de/sobre língua vêm sendo mobilizadas ao longo
do tempo e a importância da desconstrução de uma ideia de
língua meramente instrumental, homogênea e desconectada da
realidade social, histórica e cultural na qual está inserida. A partir
das discussões anteriores, foi possível chegarmos à concepção de
língua enquanto patrimônio cultural de um país, de um povo, de
uma sociedade, sendo, então, variável, heterogênea, complexa
e multifacetada. Isso nos possibilitou traçar um paralelo entre
Letras e História, já que ambas lidam com o objeto língua e ambas
teorizam tanto sobre língua, quanto sobre patrimônio e a relação
entre eles, levando em consideração as possibilidades múltiplas que
esse objeto nos permite vislumbrar e alcançar.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
332
Graças a esse percurso, dialogamos sobre o Inventário Nacional da
Diversidade Linguística do IPHAN e o Museu da Língua Portuguesa,
apontando a importância e necessidade desses instrumentos como
potentes ferramentas pedagógicas para um melhor tratamento da
língua em sala de aula e nas diversas pesquisas e/ou demais formas
de manipulação da língua/do linguístico, e para a preservação e
promoção da diversidade linguística presente em nosso país, seja
relacionada somente à nossa língua materna, seja em sua relação
com as mais de 150 outras línguas que coabitam na nossa nação.
Assim, nos foi possível alcançar o objetivo proposto neste estudo,
que versava sobre a relevância da observação do diálogo entre Letras
e História no que tange ao tratamento da língua numa perspectiva
patrimonial e as implicações disso a nível pedagógico.
Para nalizar, é válido destacar que as línguas compõem a nossa
identidade, são o nosso bem cultural mais precioso, o patrimônio
que ninguém pode nos usurpar. Assim, um olhar mais crítico
e reexivo sobre elas, sob o recorte de sua concepção enquanto
patrimônio, certamente fará com que a nossa relação com esse
objeto, e com os seus produtos (como as fontes documentais),
melhore de forma considerável. Ademais, é importante frisar o
papel sumamente necessário da diversidade linguística para uma
educação linguística mais condizente com a nossa realidade e
para uma manipulação linguística que leve em consideração a
língua(gem) em sua completude e complexidade, compreendendo
que as línguas não estão (e nem podem estar) desvinculadas de seu
contexto social, histórico, político e cultural.
REFERÊNCIAS
BAGNO, M. Dicionário Crítico de Sociolinguística. São Paulo: Parábola,
2017.
BAGNO, M. Gramática Pedagógica do Português Brasileiro. São Paulo:
Parábola, 2012.
BAGNO, M. Língua, Linguagem, Linguística: pondo os pingos nos ii. São
Paulo: Parábola, 2014.
BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
linguística. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2007.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
333
BAGNO, M. Objeto Língua. São Paulo: Parábola, 2019.
BAGNO, M. Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo:
Parábola, 2001.
BALLARINE, R. “A língua é o patrimônio de um povo”. O Tempo, 2006.
Disponível em: https://www.otempo.com.br/entretenimento/magazine/a-
lingua-e-o-patrimonio-de-um-povo-1.325865. Acesso em: 02 jan. 2024.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
Brasília: MEC, 2018.
CALVET, L-J. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola,
2002.
CAPUTO, D. M. Olhares sobre o tratamento dado à variação linguística
em salas de aula do ensino básico. Monograa (graduação em Letras com
habilitação em português e italiano) - UFRJ. Rio de Janeiro, 2020.
CERVO, L. M. Língua, patrimônio nosso. Tese (Doutorado) - Programa
de Pós-graduação em Letras (UFSM). Santa Maria, 2012. Disponível em:
https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/3978/CERVO%2C%20
LARISSA%20MONTAGNER.pdf? sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 02
jan. 2024.
COSTA, T. A. Língua Portuguesa, Patrimônio Linguístico-Cultural: da
memória que atravessa o dizer do gramático brasileiro sobre a língua
no século XXI. Atas do V Simpósio Mundial de Estudos de Língua
Portuguesa. Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em
tempos de colonização/descolonização linguística, p. 567-585, 2017.
DOLTO, F. Tudo é linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
GARCIA, M. V. C. Diversidade Linguística como Patrimônio Cultural
do Brasil. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/cknder/
arquivos/artigo_cuia_Diversidade_Linguistica_MarcusViniciu s.pdf.
Acesso em: 02 jan. 2024.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Plano Museológico do Museu
da Língua Portuguesa. São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.
museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2021/09/Plano_
Museologico_ago2019.pdf. Acesso em: 02 jan. 2024.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
334
HAASE, V. G.; LACERDA, S. S. Neuroplasticidade, variação interindividual e
recuperação funcional em neuropsicologia. Temas psicol., Ribeirão Preto,
v. 12, n. 1, p. 28-42, jun. 2004.
HALBWACHS, M. La mémoire collective. Paris: Press Univ. de France, 1950.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Inventário
Nacional da Diversidade Linguística. Disponível em: http://portal.iphan.
gov.br/indl. Acesso em: 02 jan. 2024.
LUCCHESI, D. Língua e Sociedade Partidas: a polarização sociolinguística
do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
LUNARDI, M. L. Língua, Cultura e Identidade. Santa Maria: Universidade
Federal de Santa Maria, 2005.
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de Metodologia Cientíca.
9. ed. São Paulo: Atlas, 2021.
PAIVA, V. L. M. O. Aquisição de Segunda Língua. São Paulo: Parábola, 2014.
PEREIRA, G. R. Diversidade Linguística como Patrimônio Cultural: a
construção de uma política pública. Brasília, 2014. Disponível em: https://
bdm.unb.br/bitstream/10483/8972/1/2014_GiovanaRibeiroPereira.pdf.
Acesso em: 02 jan. 2024.
PEREIRA, G. R. Quando língua é patrimônio? Políticas de patrimônio e de
promoção da diversidade linguística no contexto do Inventário Nacional
da Diversidade Linguística (INDL). Dissertação (Mestrado) - Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: IPHAN, 2017.
TEIXEIRA, E. Patrimônio Linguístico e Cultural da Fronteira: Portunhol
como patrimônio imaterial de Jaguarão. In: SANTOS, A. B.; MACHADO, J. P.
(Orgs.). Pesquisando e pensando o patrimônio. Jaguarão: EDICON, 2021.
TEIXEIRA, M. C.; VENTURINI, M. C. Museu da Língua Portuguesa: lugar de
memória, de história e de cultura. Anais do 4° Encontro Rede Sul Letras.
Unisul, Palhoça, 2016.
TOLEDO, B. F.; MIRANDA, C. C. Por que documentar e descrever línguas? A
importância desses estudos para revitalização e fortalecimento de línguas
indígenas brasileiras. Revista Articulando e Construindo Saberes, v. 6,
2021.
WILLIMA, K. G.; SOUZA, S. S. Transpondo os Muros da Discriminação e
do Preconceito Linguísticos: uma análise do (não) ensino devariação
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
335
linguística em sala de aula. In: VIEIRA, S. R. et. al. (Org.). Variação
linguística, ensino e interfaces: resultados e propostas. São Paulo:
Pimenta Cultural, 2023.
TRAVESSIAS SENSÍVEIS NUMA
CAMINHADA PELO ACERVO
DO MUSEU HISTÓRICO ABÍLIO
BARRETO EM BELO HORIZONTE/
MG
Lucinei Pereira da Silva1
“Vim de longe léguas cantando eu vim. Vou, não
faço tréguas sou mesmo assim”2: Considerações
Iniciais
O ato de caminhar por avenidas, ruas, praças, penumbras da
cidade e adentrar ao museu, os (as) docentes proseiam com o
mundo e a sala de aula através de dimensões curriculares, saberes
pedagógicos, saberes experienciais entre outras “partituras”. Na
verdade, as andarilhagens/travessias realizadas pelos professores
de História no museu histórico de cidade podem ser capazes de
mobilizar experiências perceptivas, potencialidades de olhares
e imaginação poética. Por isso, podemos dizer que os museus
1 Doutorando em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) na linha de pesquisa Memória Social, Patrimônio e Produção do
Conhecimento. Mestre em Educação (UEMG). Graduado em História (UNIVALE). E-mail:
lucinei.pereira28@gmail.com
2 Música: Andança, Beth Carvalho. CD Andança. EMI Music Brasil, 1969.
336
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
337
se colocam como importantes instituições culturais capazes de
nortear a construção de sentidos e a identidade das comunidades
a partir do vínculo entre o passado e o presente, numa dinâmica
de transformação que caracteriza o desenvolvimento das cidades.
Dito de outra forma, a experiência museológica pode permitir aos
docentes a construção de signicações e sensibilidades.
Vale ressaltar que, este texto é parte de uma pesquisa de
doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) cujo objetivo é analisar as relações e experiências que os
professores de História estabelecem com os cenários expositivos de
dois museus históricos de cidade localizados em Minas Gerais: o
Museu da Cidade de Governador Valadares (MCGV) e o Museu
Histórico Abílio Barreto (MHAB) em Belo Horizonte. Isto posto,
nossa pretensão neste texto é compreender quais experiências
sensíveis emergem de uma entrevista caminhante com um professor
de História pelo acervo do MHAB.
Em suma, a entrevista caminhante será uma opção metodológica
que poderá permitir ao docente uma situação de experiência
formativa em diálogo com o pesquisador. Sendo assim, o professor
realizará um percurso dialogando com os diferentes cenários
expositivos do museu enquanto a entrevista ocorre. Este método
de pesquisa foi desenvolvido na tese de doutorado de Braga
(2014). O autor defende que por meio da entrevista caminhante e
o contato visual com os objetos, as lembranças desses professores
podem vir à tona, estabelecendo uma percepção e construindo
uma narrativa intimista que extrapola uma percepção reexiva
da exposição. Em uma entrevista caminhante, o docente pode ser
capaz de construir uma narrativa inteligível que também pode ser
partilhada com outros sujeitos, incluindo os estudantes em visita aos
museus. Na verdade, nesta investigação buscaremos reetir que as
andarilhagens/travessias no MHAB podem ser capazes de mobilizar
pelo professor de História experiências sensíveis, potencialidades
de olhares e imaginação poética. Dito de outra forma, a experiência
museológica pode permitir ao docente a construção de signicações
e sensibilidades. Por essa vereda teórica, buscaremos suporte nas
discussões de Pesavento (2007); Pereira e Siman (2009); Larossa
(2014); Dubet (1994); Certeau (1996).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
338
“Como se faz? Sei, porém que só andando é que
se sabe andar”3: reexões sobre experiências e
sensibilidades
Jorge Larrosa (2002) nos instiga a pensar a experiência como
aquilo que nos passa, nos acontece. O que nos toca de forma
particular e singularizada. Ou seja, a experiência requer um gesto
de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para
escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos
detalhes, requer “cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os
ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e
dar-se tempo e espaço” (LARROSA, 2002, p. 24).
Segundo Dubet (1994) os professores, por exemplo, narram suas
práticas partindo de suas experiências, ainda que tenham como
horizonte o currículo e o programa que dene seus papéis. Sabem
que estão limitados por regras inerentes ao seu papel social, que
muitas vezes defendem, mas que não denem o que realmente
fazem e o que realmente são. Larossa (2014) arma ainda que,
experiência não é o mesmo que informação. Experiência é o que
nos passa, não o que se passa, o que se passa com os outros. Para
o autor, a experiência, é relação: com o mundo, com a linguagem,
com o pensamento, com os outros, com nós mesmos. Na verdade,
Dubet (1994) aponta que a experiência só existe verdadeiramente
na medida em que é reconhecida pelos outros, portanto o que se
conhece dela é aquilo que é dito pelo sujeito. Para ele,
(...) ainda que estejam presos às regras burocráticas que os enquadram,
os professores denem seu ofício como uma experiência, como uma
construção individual realizada a partir de elementos esparsos: o
respeito pelos programas, a preocupação pelas pessoas, a busca dos
desempenhos e da justiça... Enquanto na concepção ‘clássica’ da ação a
personalidade é um efeito do papel e se mantém recuada, aqui o papel
é vivido como produto da ‘personalidade’ denida como capacidade
de governar sua experiência, de a tornar coerente e signicativa
(DUBET, 1994, p. 16).
3 LISPECTOR, 2020, p. 58.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
339
Em certa medida, o exercício do fazer educativo em museus é
visto como oportunidade formativa rica de experiências, contatos
e trocas que proporcionam situações novas, enriquecedoras e (re)
inventivas. Ao aprender na prática, com a prática e pela experiência,
o professor poderá tornar sua ação prossional um exercício de
aprendizagem, que, uma vez iniciado, não se completa e não se
nda, residindo nessa processualidade, especialmente, sua maior
riqueza (PEREIRA & SIMAN, 2009, p. 4). Nessa direção, Larossa
(2014) sustenta que as experiências vividas pelos docentes são
capazes de invocar travessias, atravessamentos, novas signicações,
importantes marcas e outros efeitos. A experiência é, nesse sentido,
aquilo que padecemos; ligado à nossa existência, contingente e
pessoal.
Na perspectiva de Miranda (2010), a geração de signicados e
sentidos conformam identidades e pressupõe aprendizagens, que a
partir da experiência entre os professores e a instituição museológica,
assumem papel fundamental. Ou seja, o museu torna-se lugar em
que emergem relações dinâmicas e intrincadas entre os sujeitos na
prática de aprender e sentir os enovelamentos dos tempos. E ainda,
uma ação experiencial no museu é capaz de disparar “sensibilidades
múltiplas, cambiantes, instáveis, o que implica certo relativismo das
interpretações possíveis” (PESAVENTO, 2007, p. 18).
E nesses caminhos complexos, enredados e que, principalmente,
se dão ao caminhar buscaremos captar tateamentos, gestos, tempos
de espera e acolhidas realizadas pelo docente em sua experiência
sensível pelo acervo do MHAB. Pesavento (2007, p. 14) salienta ainda
que a sensibilidade “começa no indivíduo que, pela reação de sentir,
expõe o seu íntimo. Nesta medida, a leitura das sensibilidades é uma
espécie de leitura da alma”. Para a autora, mesmo essa experiência
sendo um processo individual, ela pode ser também compartilhada,
uma vez que é, sempre, social e histórica. Em outras, as pessoas não
experimentam sua própria experiência apenas como ideias, elas
também experimentam sua experiência como sentimento e lidam
com esses sentimentos na cultura, no cotidiano e em suas relações
sociais (THOMPSON, 1981, p. 189).
Pressupomos que a capacidade criativa de trabalho com a
história, mediada pela visita a um museu histórico de cidade,
seja capaz de capturar elementos no curso da vida social para
o exercício permanente da pesquisa e reexão sobre o espaço
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
340
urbano, premissa fundamental da prática docente. A partir de
sua vivência e experiência, com e no museu, os professores de
História são formados em suas múltiplas dimensões; e ao mesmo
tempo mobiliza-se e compromete-se com a transformação de sua
realidade. Num sentido mais amplo, o indivíduo ao compreender
sua realidade, assume uma posição crítica e engaja-se no processo
de conscientização. Ou seja, “vai dominando a realidade. Vai
humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é
o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográcos. Faz cultura”
(FREIRE, 1991, p. 43).
Para Michel de Certeau (1996), os caminhantes são os praticantes,
que por meio de sua enunciação conhecem, exploram e experienciam
a cidade ou, no caso deste estudo, a narrativa expositiva do MHAB.
Em outras palavras, o ato de caminhar
[...] é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra
é uma realização sonora da língua); enm, implica relações entre
posições diferenciadas, ou seja, contratos pragmáticos sob a forma de
movimentos (assim como a enunciação verbal é ‘alocução’, ‘coloca o
outro em face’ do locutor e põe em jogo contratos entre locutores). O
ato de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira denição
como espaço de enunciação. (CERTEAU 1996, p. 177).
Nessa direção, o autor compara a caminhada ao ato de
falar. Sendo mais claro, Certeau (1996) compreender o caminho
como inserido em uma estrutura sêmica4. Ou seja, andando,
os caminhantes se apropriam do espaço, dando a ele novos usos,
territorializando-se. De algum modo, o ato de caminhar pode
ser capaz de estimular e avivar os pensamentos, como se o corpo
precisasse de movimento para acionar a mente.
A seguir, analisaremos a entrevista realizada com um professor
de História realizada em julho de 2023. Assim, utilizando de um
roteiro semiestruturado, esta entrevista caminhante poderá nos
fornecer informações de suas experiências vividas em diálogo com
os objetos presentes no acervo da instituição.
4 Sistema de sinais que serve para transmitir determinado pensamento.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
341
“O real não está no início nem no m, ele se
mostra pra gente é no meio da travessia”5: a
experiência caminhante com um professor de
História
O Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB) foi inaugurado em
18 de fevereiro de 1943 e ocupa uma área de aproximadamente
1.850 m² no bairro Cidade Jardim a poucos metros da avenida do
Contorno na Regional Sul de Belo Horizonte. O Casarão construído
por Candido Lúcio da Silveira por volta de 1883, era a sede da
Fazenda do Leitão no antigo Arraial do Curral Del Rey (gura 1).
A propriedade possui características das construções oitocentistas,
sustentadas em madeira e barro (pau-a-pique). A fundação deste
museu está articulada com o projeto de expansão e modernização
da cidade, concebido pelo então Prefeito Juscelino Kubitschek,
que também foi responsável pela expansão de Belo Horizonte
construindo concomitantemente o complexo arquitetônico
modernista na Pampulha.
Figura 1 – Casarão do MHAB
Fonte: https://culturalizabh.com.br/index.php/2021/02/22/museu-abilio-barreto-oferece-
mediacoes-educativas-pela-internet/
Acesso em: 26/04/2023
5 ROSA, 1994, p. 86.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
342
A exposição de média duração “Complexa Cidade” analisada
nesta pesquisa, entrou em cartaz a partir de 2019. Em dezembro
daquele ano foi apresentado o módulo habitar a casa, e em 2020 foi
inaugurado o módulo habitar a rua. Esta exposição tinha o objetivo
em reetir sobre as complexas relações que se estabelecem entre
a casa e a rua, como dimensões privada e pública da cidade. Por
meio dos artefatos, mapas, fotograas, representações literárias, etc,
a exposição propõe ao visitante umaanálise acerca do Casarão e
das múltiplas maneiras de se ocupar a cidade.
Em julho de 2023 numa tarde agradável e ensolarada de Belo
Horizonte vou ao encontro do professor Fabricio Seixas, professor
de História de uma escola estadual na região do Barreiro em
BH. Nos encontramos no jardim do MHAB e lá já trocamos
cumprimentos afetuosos e logo recebo dele um livro, fruto de um
projeto idealizado e desenvolvido por ele chamado “BH é quem?
BH é nóis!” E de modo muito entusiasmado me contou que por este
projeto teve a oportunidade de levar seus estudantes em diversos
lugares de memória na capital. Entre eles o Museu Abílio Barreto.
Me emocionei com o gesto e a oportunidade de conversar com um
professor tão engajado. Resolvo iniciar a entrevista com o professor
Fabrício Seixas na primeira sala do MHAB.
Após iniciar a gravação lanço a seguinte pergunta: Neste museu
qual o ambiente ou a sala que você acha mais signicativa e que
gostaria que a entrevista começasse?
Professor Fabrício: Na verdade, o espaço que eu mais gosto, claro,
além do casarão... Eu gosto mais da parte externa, por que não é
comum um museu que abrigue uma exposição na parte externa.
Temos Inhotim, mas a maior parte dos museus são fechados. Sempre
que eu venho aqui a parte externa me dá um acolhimento maior. Mais
natureza, que junta com a exposição, que junta com a história e não
está enclausurada dentro de um espaço, diz o professor Fabrício.
Então vamos lá?
Vamos! Respondeu ele.
Descemos as escadas do Casarão e logo estávamos no jardim.
Chegando neste ambiente, pergunto: qual o objeto que mais te
chama a atenção e por quê?
O Professor Fabrício responde: Eu acho que seja um pouco
clichê. Não sei. Mas o bonde...
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
343
Olhamos todos juntos em direção ao objeto e de imediato rumos
em direção a ele. O bonde começou a fazer parte do acervo do museu
em 1968 e se destaca em meio a árvores, plantas e ores. Durante a
caminhada e se aproximando do objeto Fabrício vai relatando:
Professor Fabrício: Como eu sou um curioso da história de Belo
Horizonte, eu não sou um especialista, mas eu tenho muita curiosidade
e é que me interessa desenvolver projetos com os estudantes em que
trabalho e seja a escola que for. Eu penso muito no bonde que eu não
tive o prazer de utilizar este meio de transporte que ele foi abolido de
Belo Horizonte há décadas, mas ele era muito eciente, seguro. Claro,
tinha seus acidentes, mas eram acidentes de pouco dano por que não
andava muito rápido e é triste saber que há várias linhas que foram
asfaltadas, soterradas, por pura não sei... pela política rodoviária,
que tem que ser o ônibus. Como se um operasse em detrimento do
outro. Mas na verdade, o bonde percorre distâncias curtas e os ônibus
distâncias maiores. Então, um é transporte complementar. Belo
Horizonte se abdicou de um transporte que funcionava. Claro, restrito,
muito restrito por que não viajava longas distancias. Mas que poderia
ser até hoje utilizado. Por que utiliza rede elétrica, por que é não diesel
e gasolina, enm... É um transporte não sei... tem um ar romântico
também. Tem a coisa de correr, de pegar o bonde. Tem a expressão
“peguei o bonde andando”.
Nós dois rimos juntos, por ter vindo logo em nossas mentes essa
expressão.
Professor Fabrício: Tem toda essa coisa que eu gostaria de ter vivido.
Eu acho que talvez seja possível em algum momento restaurar isso.
Talvez não o bonde, mas um VLT não sei. Transportes que sejam mais
ecologicamente sustentáveis e mais ecazes que o ônibus. Claro, falta
um metrô em Belo Horizonte, mas aí é um outro papo...
Após a pausa do professor, e ouvindo o barulho dos pássaros que
se misturava com os sons de carros e ônibus que circulavam pelas
avenidas ao redor do museu, pude perceber como aquela conversa
com aquele professor pôde disparar múltiplas sensibilidades
temporais e históricas. Por ter nascido em outro tempo, onde o
bonde já não fazia parte do cotidiano, este professor - e ali também
na condição de cidadão belorizontino - olhando para aquele artefato
foi capaz de reetir as maneiras pelas quais o mundo contemporâneo
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
344
lida com o passado. “Soterrando e asfaltando” memórias em nome
do progresso. Em suma, este objeto exposto fora do ambiente
“enclausurado” do museu foi capaz de criar condições ecazes
“[...] para aprofundar esse trânsito que pode existir entre o ‘eu’ e o
‘mundo fora mim’” (MENESES, 2010, p. 13).
Figura 2 – Módulo externo: bonde
Fonte: Acervo do autor, agosto 2021.
No retorno ao Casarão, e andarilhando pela “Exposição Complexa
Cidade”, pergunto ao professor se naquele acervo tem algum objeto
que traz alguma lembrança da infância ou da adolescência.
O professor Fabrício, pensa um pouco e diz que na Sala chamada
“Ritos”, os objetos expostos não tem muita relação com este período
de sua vida, mas com sua “vivência de cidade”.
O Professor Fabricio responde: Eu de vez em quando frequento
terreiro. Vou em festas de terreiro...
Interrompo e provoco o professor: Qual objeto da Sala Ritos
você pode citar? Neste momento também lembro a ele que naquela
sala além das projeções de vídeos e fotograas, havia também uma
estante com os objetos em exposição.
Fomos andando em direção à sala e no silêncio do percurso até lá
o que se ouvia era apenas o barulho do ranger de nossos passos pelo
assoalho de madeira do museu. Paramos em frente a esta estante e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
345
pergunto qual objeto é signicativo pra ele que revela então, a sua
“vivência de cidade”. Ele diz de imediato:
Professor Fabrício: O estandarte! Com certeza! O estandarte me
remete ao carnaval. E não só ao carnaval, mas também a questão de
frequentar de vez em quando o terreiro. Está aqui também Iemanjá.
Então, a mitologia dos orixás. Se for pensar numa sala mais próxima
seria essa. Não que eu seja um praticante, mas eu sou um curioso da
mitologia dos orixás. Eu tenho um livro, estou lendo, pesquisando,
frequentando. Então, dessas salas essa me pareceu ser a mais
acolhedora.
Figura 3 - Sala: Ritos
Fonte: Acervo do autor, agosto 2021
Na concepção de Pereira e Siman (2009), a mobilidade dos
corpos no museu sucede-se os parâmetros da mobilidade dos
sentidos, em um diálogo temporal que suscita travessias e vivências
de sensibilidades. Pois, segundo Guimarães Rosa (1994) o homem
é a caminhada, a senda, o caminhante, construindo a si mesmo na
travessia. Desse modo, o professor Fabrício foi capaz de exercer sua
condição andarilha, percorrendo os diferentes cenários expositivos
do MHAB, num convite que exigiu passos lentos e deslocamentos
no tempo e no espaço. Portanto, “[...] o chão sobre o qual caminha
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
346
é ladrilhado: exige passos lentos, freia a correria convencional e a
falta de atenção, convida ao encantamento, ao gosto pela caminhada
(PEREIRA e SIMAN, 2009, p. 286)
“Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir”6:
Considerações Finais
Como vimos nesta “travessia” empírica, a experiência da
entrevista caminhante com o professor de História foi capaz de
resgatar emoções, sentimentos, ideias e desejos. Por meio do relato
do docente na parte externa do MHAB fomos capazes de observar
as reminiscências do tempo vivido e experienciado na urbe.
Ou seja, a relação entre o sujeito e o objeto foi capaz de emergir
interpretações, deslocamentos temporais e indignação com os
problemas atuais das grandes cidades como a mobilidade urbana.
Ao se romper com as paredes do museu e ir ao encontro do bonde
nos jardins da instituição, este professor buscou outras chaves de
leitura de compreensão da história da cidade que também dialoga
com sua história e experiência de vida.
Caminhar nos obriga a viver uma temporalidade diferente
daquela guiada pela velocidade da técnica. É preciso saber andar
devagar para conseguir andar mais. Obedecer aos limites do corpo.
Na verdade, caminhar pelo museu é a oportunidade de reconhecer
a mistura entre os dois tempos – passado e presente - que moldam
a vida. Entendemos nesta investigação, que o museu para aquele
docente se tornou um instrumento potencial para se compreender
a “vivência da cidade” da qual ele buscou relacionar o objeto com
sua religiosidade e suas práticas culturais. Nessa ótica, o artefato em
exposição naquela estante pôde ser concebido pelo docente pelo seu
valor provocativo de percepções e interpretações do social vivido e
do passado relido no presente.
6 Rosa, 1994, p. 440.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
347
Referências
BRAGA, Jezulino Lúcio Mendes. Professores de História em Cenários de
Experiência. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de
Minas Gerais. Belo Horizonte, 2014.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2 morar, cozinhar.
Tradução de Ephraim F. Alves e Lúcia Endlich Orth. Rio de Janeiro: Vozes,
1996.
DUBET, F. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez Editora, 1991.
LARROSA, Jorge. Notas sobre o saber da experiência. Revista Brasileira
de Educação, nº. 23, jan/fev/mar/abr de 2002, pág. 20 a 28.
LARROSA, Jorge Bondía. Tremores: escritos sobre a experiência.
Tradução Cristina Antunes, João Wanderlei Geraldi. Belo Horizonte,
Autêntica Editora, 2014.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O museu e a questão do
conhecimento. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado e LOPES, Regis (org.).
Futuro do Pretérito; história dos museus na escrita da história. Editora
ARGOS Coleção História e Patrimônio, 2010, p.13-33.
MIRANDA, Sonia Regina. Estranhos passados encontrados em um museu:
a criança e seus olhares sobre o tempo desconhecido. Caderno CEDES.
Educar para a compreensão do tempo. Campinas, vol. 30, nº 82, set-dez.
2010, p.369-382.
PEREIRA, J. S.; SIMAN, L. M. C. Andarilhagens em Chão de Ladrilhos. In:
FONSECA, Selva Guimarães (Org.). Ensinar e aprender História: formação,
saberes e práticas educativas. São Paulo: Editora Alínea, 2009.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades
imaginárias. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, n, 53, jan./jun.
2007.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1981.
PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA:
A ESCOLA ESTADUAL DELFIM
MOREIRA E SUA CONEXÃO COM O
PATRIMÔNIO
Mariana Cunha de Faria1
INTRODUÇÃO
Imagem 01 – Foto da reforma da Escola Estadual Delm Moreira (Colégio Central).
Acervo pessoal Mariana Faria
1 Mestranda em História pelo PPGHIS da Universidade Federal de Juiz de Fora.
E-mail: faria.mary62@gmail.com
348
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
349
O casarão do colégio Delm Moreira ou Grupos Centrais é uma
edicação da segunda metade do século XIX de características
remanescentes da arquitetura tradicional da época de elementos
classicizantes do século XIX, construído pelo proeminente fazendeiro
e político da cidade, o Comendador Manuel do Valle Amado para
presentear ao Imperador Dom Pedro II. Durante o levantamento de
fontes para a pesquisa de mestrado pudemos entender o desdobrar
da história do casarão com o seu novo uso como escola, uso esse
que trouxe valor de patrimônio cultural ao palacete que é tombado,
as relações foram se estabelecendo ciclicamente com o passar dos
anos2, as relações de afetividade combinadas com o sentimento de
pertencimento são a base para que o antigo palacete fosse protegido
de maiores deteriorações e da especulação imobiliária.
Após passar um pouco mais de dez anos fechado para obras o
casarão passou por uma intensa reforma e processo de restauração
a obra foi entregue em abril de 2023 e em agosto de 2023 as aulas
retornaram para o casarão, com um certo atraso pois foi prometido
que as obras seriam ndadas até janeiro de 2023. O imóvel tem
cerca de 163 anos de história que perpassaram entre os séculos
XIX e XXI após passar por processo de inventario juntamente
com outros imóveis da cidade foi rearmado a real necessidade de
seu tombamento apesar de ser demonstrada a necessidade desse
método de proteção mesmo assim os órgãos superiores de esfera
estadual e federal não acolheram o pedido, entretanto a memória
e afetividade falaram mais alto o sentimento de pertencimento de
todos que por ali passaram foi atendido por meio do tombamento
via decreto municipal Processo:3.936/82-Decreto 2.864/19.1.1983,
na década de 1980, durante o exercício do Prefeito e historiador
Francisco Antônio de Mello Reis que se dedicou a alavancar o
inventario de bens imóveis da cidade.
O casarão que esteve envolto em tramas e peculiaridades políticas
da época do império que fazem parte das relações de sociabilidade
do século XIX, mas que não determinaram o seu trajeto, o Palacete
Santa Mafalda passou por várias mudanças, intervenções internas e
das épocas, com o passar dos anos, juntamente com a cidade, uma
das mudanças presentes é a forma como atualmente é conhecido o
imóvel, como Grupos Centrais ou colégio Central não pelo fato de
2 Valor utilitário ou de uso (Gebrauchswert): o valor que um monumento preserva
mantendo-se apto para uso. (RIEGL, 2014, p. 25)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
350
estar localizado em uma movimentada avenida, chamada Barão do
Rio Branco no centro da cidade em espaço nobre, de fronte a igreja
Matriz, mas pelo fato de ter centralizado grupos escolares distintos.
OS GRUPOS ESCOLARES E A ESCOLA
DELFIM MOREIRA
O casarão recebeu o nome de Palacete Santa Mafalda ainda no
século XIX, fazendo menção ao antigo proprietário, o Barão de
Santa Mafalda, mas hoje nada lembra o passado do império, com
o passar de mais de cem anos em funcionamento como escola, se
tornou conhecido pelo funcionamento de três grupos escolares em
três turnos diferentes3, mais tarde, na década de 1980, somente
a Escola Estadual Delm Moreira continuou como único grupo
escolar a habitar o imóvel até meados de 2013 em funcionamento no
mesmo local, assim perpetuando a memória deste lugar enquanto
escola, abandonando o seu passado como presente a D. Pedro II,
dando voz a outras narrativas, que surgiram através do uso deste
local como fonte de instrução e saber a partir da primeira década
do século passado.
Ao longo de seus 163 anos de edicação e 106 anos foram em
funcionamento na área do saber como escola, o que justica as novas
narrativas e desconstruções do passado imperial, demostrando
que o casarão ocupa lugar na memória coletiva da população juiz-
forana pela qual os indivíduos que usufruíram do local como escola
carregam as memórias que o espaço escolar pôde prover para a
coletividade e seus indivíduos, como ponto de encontro e todos os
outros tipos de confraternizações que possam haver dentro de um
ambiente escolar e todas as outras confraternizações que surjam
dentro deste ambiente que podem se externar para a vida, havendo
uma ressignicação desse espaço enquanto seu uso, voltado para
a educação, que pelo mesmo motivo pôde resistir a especulação
imobiliária entre as décadas de 60/70 até chegar em seu tombado por
meio de decreto municipal supracitado, e não por conta do objetivo
de sua construção deste modo corroborando com o sentimento de
pertencimento e memória coletiva que Halbwachs dispõe:
3 Escola de meninos José Rangel, Escola Estadual Estevão de Oliveira e Escola
Estadual Delm Moreira.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
351
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que
eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não
tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante
pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos
recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. Não é
suciente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento
do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta
reconstrução se opere a partir de’ dados ou de noções comuns que se
encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas
passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o
que só é possível se zeram e continuam a fazer parte de uma mesma
sociedade. (HALBWACHS, 2004, p.34)
De acordo com a história do casarão Colégio Central passaram
pelo imóvel diversos sujeitos históricos, que não podem ser
esquecidos como o seu idealizador o Comendador Manoel do Valle
Amado e seu herdeiro, o Barão de Santa Mafalda, a antiga Santa
Casa de Misericórdia de Juiz de Fora também esteve envolvida no
desenrolar da história desde imóvel, quando recebe o Palacete por
meio do testamento do Barão de Santa Mafalda e depois o negocia
por intermédio do senhor José Rangel para que o Estado de Minas
Gerais pudesse efetuar a compra do imóvel para instalação de um
grupo escolar, e em 1907 foi instalada no local a Escola Estadual
José Rangel, a escola Delm Moreira e posteriormente os Grupos
Centrais foram tomando forma4.
Analisando os atores citados, o que se relaciona por mais tempo
na história do Palacete, é o Estado de Minas Gerais, representado na
gura das escolas que por ele passaram de 1907 a 2013. No álbum
do município feito por Albino Esteves, aparecem informações
sobre os grupos escolares situados no Palacete durante o século
passado em que Esteves, cita que o primeiro Grupo Escolar a ser
utilizado foi o José Rangel que funcionava no período da manhã
foi instalado em 04/23 de fevereiro 1907 era frequentado somente
por meninos, (ESTEVES, 1915: 261) havendo uma boa adesão por
parte da população, a escola acabou atraindo a população carente
que antes não via perspectiva de se formar, se não estivesse acesso
à escola particular, em seu primeiro ano de funcionamento obteve
4 Escola de meninos José Rangel, Escola Estadual Estevão de Oliveira e Escola
Estadual Delm Moreira.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
352
o número de 470 matrículas alcançadas juntamente, com o Grupo
Escolar Delm Moreira que foi instalado para funcionar no horário
da tarde, após sete anos em funcionamento o número de matriculas
se manteve na media inicial não somente no Grupo Escolar Delm
Moreira quanto no Grupo Escolar José Rangel.
O Grupo Escolar Estevam de Oliveira foi criado em parte para
atender a classe operaria que vinha tendo que se adequar perante as
novidades que o advento da industrialização demandava. A escola
atendia ao público que precisava estudar no horário noturno de
modo que atendesse ao interesse da população em questão que em
suma se tratava de pessoas do sexo feminino, o grupo escolar foi
instalado em 15 de janeiro de 1927.
O Casarão passou por diversas modicações que o século XX
trouxe para o país e para a população de Juiz de Fora no que se refere
a educação, outras mudanças são na área da política, e construções
que contribuíram para as transformações das paisagens construídas
e humana. A industrialização trouxe modicações necessárias
acarretando um certo tipo de luz as necessidades básicas do
trabalhador como, o saber ler e interpretar, até mesmo para evitar
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
353
acidentes dentro das fábricas e tecelagens, para ser ativo na vida
política a educação pontuava com peso como a autora COHN
expressa neste trecho de seu artigo:
O regime republicano criou uma nova esperança de melhoria de vida
dos cidadãos. A escravatura havia sido abolida, surgia um novo regime.
A República é conrmada pela constituição de 1891 sendo lhe dado o
caráter federativo, representativo e presidencialista. O voto passa a
exigir a imposição de letramento como condição de votar e ser votado
(COHN, 2008: 308).
A migração do campo para as cidades demonstra que a evolução
que se precisa passa pela educação básica que muitos antes não
tinham acesso por vários motivos. E os Grupos Escolares instalados
no antigo Palacete foram um porto seguro para as pessoas que
buscavam instrução, pois não se tratavam somente de meninos
com idade escolar ideal, como os garotos do Grupo José Rangel,
mas também os adultos de ambos os sexos que enfrentavam uma
segunda jornada, após um dia cansativo de trabalho nas salas de
aula que foram adaptadas da “Casa do Imperador “ que virou uma
“Casa do Saber” de acordo com os dizeres de COHN “o ensinou
transformou-se em um elemento fundamental para formar os
cidadãos republicanos, patriotas que viriam atuar no mundo
urbano, participando da vida pública e construindo-se, em um
povo civilizado (COHN, 2008: 307-324). Para essas pessoas que
utilizaram o local para se prepararem para uma nova empreitada na
vida, não importava se o casarão foi oferecido ao Imperador tanto
quanto, quem foi o fazendeiro que mandou construir o casarão, o
importante para essas pessoas era que o casarão era o local onde
podiam sanar a falta de instrução voltada para o trabalho.
Analisando as memórias construídas no âmbito escolar nas
dependências dos Grupos Centrais, se torna claro o motivo dele
fazer parte da memória afetiva e coletiva da população juiz-forana,
tendo em vista o conhecimento do pensamento de Halbwachs
sobre o conceito de memória de que, se o sujeito se recorda de
algo que o insere no corpo social no qual sempre possui um ou
mais grupos de referências, por tal fato a memória é então sempre
construída em grupos, por mais que as experiências possam ser
sentidas e entendidas de formas distintas a memória é um veículo
de socialização dos indivíduos como disposto por Halbwachs;
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
354
Um grupo entra geralmente em relação com outros grupos. Há muitos
acontecimentos que resultam de contatos semelhantes, bem como
informações que não têm outra origem. Por vezes, essas relações ou
esses contatos são permanentes ou então, em todo caso, se repetem
muito freqüentemente, se prolongam durante uma duração bastante
longa. Por exemplo, quando uma família viveu durante muito tempo
numa mesma cidade, ou na proximidade dos mesmos amigos; cidade e
família, amigos e família constituem como que sociedades complexas.
Então nascem as lembranças, compreendidas em dois quadros de
pensamentos que são comuns aos membros dos dois grupos. Para
reconhecer uma lembrança desse gênero, é preciso fazer parte ao
mesmo tempo de um e de outro. É uma condição que é preenchida,
durante algum tempo, por uma parte dos habitantes da cidade, por
uma parte dos membros da família. (HALBWACHS, 2004, p.46)
Então, quando o casarão é inserido como lugar de memória ele
sofre a ação da ressignicação e assume a identidade dos Grupos
Centrais perpassando por grupos diferentes, que rememoram a sua
relação com o casarão desde sua ocupação como escola em 1907
até 2013 ano de maior pressão quando a sociedade cobrou por sua
preservação ao governo do estado de Minas Gerais. Observa-se que
a essência da vivência de cada memória individual é um ponto de
vista sobre a memória coletiva, como se pode ver, o trabalho do
sujeito no processo de rememoração não é descartado posto que, as
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros
de modo particular sem perder a forma coletiva ainda que, trate de
eventos em que somente um indivíduo tenha tido contato direto
com os objetos que somente outro indivíduo teve tal contato este
fenômeno acontece somente porque jamais estamos isolados ou
estanques, pois somos seres políticos, e vivemos em uma sociedade
coletiva mesmo dentro de nossa individualidade ao rememorar
lembranças.
Consequentemente a lembrança enquanto memória é o produto
de um todo, de um processo coletivo partilhado, estando estabelecida
em um contexto social ou particular onde espontaneamente há
troca de experiências como as que evoluíram para as manifestações
pela reforma do casarão em meados de 2013. As lembranças mesmo
sendo coletivas também podem ser lembradas por outros indivíduos,
mesmo que os indivíduos que rememoram não estejam diretamente
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
355
envolvidos e tenham contato com a memória em questão somente
por meio da oralidade no seio de sua família, como pode ser
constatado na ocupação do casarão por meio das escolas que por ali
passaram, com a entrega do casarão reformado para a comunidade
escolar em julho de 2023, os alunos que vão ocupar o local não são
os mesmos que estudavam lá na época de seu fechamento, não são
os memos sujeitos que marcharam, pela Av. Rio Branco pedindo por
respeito ao casarão pedindo sua reforma, os alunos que vão utiliza-
lo não tem vínculos de memória ou afetividade com o casarão, mas
tem parentes e amigos que já passaram pelo local e compartilharam
suas histórias e vivencias para essa geração que vão poder criar suas
próprias memorias com o casarão segundo entrevista realizada em
05/09/22, com a Diretora da Escola Delm Moreira.
Imagem 03 – Foto da reforma da Escola Estadual Delm Moreira (Colégio Central).
Acervo pessoal Mariana Faria
Utilizando o entendimento de locais de memória por Nora, são
lugares em todos os sentidos do termo, vão do objeto material e
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
356
concreto, ao mais abstrato, simbólico e funcional, simultaneamente
e em graus diversos, esses aspectos devem coexistir sempre
analisando o antigo colégio sob a ótica idealizada por Pierre Nora
por conter uma pequena parcela da história imponente da cidade,
e história do Estado de Minas Gerais no que tange a história e
memoria da educação. O Imóvel dos Grupos Centrais é importante
para a memória não somente da cidade de Juiz de Fora, enquanto
um bem tombado, mas conjuntamente por seu valor histórico ao
Estado de Minas Gerais e região pois nele foi instalado o primeiro
Grupo Escolar de Minas Gerais em fevereiro de 1907 segundo
relatório realizado pelo autor Dormevilly Nobrega sobre a história
do antigo Palacete.
Quando se expõe as desconstruções pela qual a história do casarão
passou, mesmo que que inconscientemente como local de memória,
rearmando o seu papel perante a memória afetiva dos indivíduos
que perpassaram por ele. O que outrora foi símbolo de poder em
várias esferas como a política e econômica de um rico fazendeiro,
como pode ser visto na descrição do decreto de tombamento do
imóvel que exalta sua volumetria da fachada e a distribuição das
janelas, modo de construção que indica que só um indivíduo com
um elevado poder aquisitivo seria capaz de nanciar esse tipo de
edicação, entretanto, agora esse mesmo imóvel se tornou um
símbolo de educação quase que com uma cultura própria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 1987, a Escola Estadual José Rangel deixa de prestar
seus serviços à comunidade juiz-forana pois foi desativada em
consequência disto a Escola Estadual Delm Moreira assumiu os
alunos da escola José Rangel, em 1992 a Escola Estadual Estevam de
Oliveira saí do imóvel tornando a Escola Delm Moreira tornando-
a única escola a ocupar o espaço e assim acabou por ampliar os seus
serviços.
Compreendo sua importância no tocante a memória coletiva e
patrimônio foi um dos pontos que o ajudaram a afugentar ameaças
de demolições durante os anos 60 e 70, como Dormevilly traz em seu
texto intitulado a “A Casa do Imperador” citando os movimentos de
estudantes e intelectuais que pediam pela preservação do casarão
em uma época que vários outros imóveis da mesma época ou até
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
357
mais novos os casarões e sobrados estavam sendo demolidos como
é o caso da casa do Barão de Ibertioga.
Então, a ressignicação do imóvel dos Grupos Centrais pela
população como um lugar de memória e patrimônio cultivados no
seio do meio escolar, desconstrói e ressignica o antigo palacete
para a população juiz-forana pois ele não é mais lembrado como o
presente rejeitado por D. Pedro II e sim a escola pública que rendeu
bons frutos para cidade e região, o primeiro Grupo Escolar de Minas
Gerais e uma das mais antigas escolas públicas do estado.
Apesar da separação dos Grupos Escolares e a Escola Estadual
Delm Moreira continuar seus trabalhos no imóvel até meados de
2013, a escola voltou ao local original, os grupos escolares voltaram
a car juntos de forma peculiar por meio de sua documentação,
pois a documentação do extinto José Rangel cou sob guarda da
Escola Delm Moreira e com a extinção do Estevam de Oliveira
em 2021 a documentação foi entregue a direção da Escola Delm
Moreira, fechando um ciclo simbólico para os grupos escolares.
O Colégio Central faz parte da vida de muitas pessoas da cidade
de Juiz de Fora, que buscaram sua preservação tanto nas décadas de
1960, 70 quanto no ano 2013 quando o palacete foi fechado para
aguardar as obras de restauração e reforma, anteriormente no texto
tratei das desconstruções de memórias que o palacete sofreu por
meio da ressignicação popular, e notasse uma observação, que
o trajeto percorrido ao longo dos anos demonstra que a memória
atribuída ao Palacete não foi alvo de disputas, pois não houve intrigas
de quais memórias deveriam ser ou não serem lembradas, nem de
memórias impostas para uma suposta validação da população, a
validação veio espontaneamente por parte da comunidade pelas
manifestações de alunos e outros populares, professores e outros
interessados na reforma do antigo Palacete, as manifestações
ganharam as ruas, as páginas de jornais e outros veículos de mídia
que de certa forma o protegeu.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
358
Referências
COHN, Maria Aparecida Figueiredo. O surgimento de uma escola noturna
pública em Juiz de Fora-MG: o grupo escolar Estevam de Oliveira.
EDUCAÇÃO EM FOCO: Revista de educação. Universidade Federal de Juiz
de Fora: Ed Especial, 2008.
ESTEVES, Albino; LAGE Oscar Vidal Barbosa. Album do Município de Juiz
de Fora. Belo Horizonte. Imprensa Ocial do Estado de Minas. 1915.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.
HEMEROTECA DIGITAL, Jornal O Pharol. 17 julho de 1914.
Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.
aspx?bib=258822&pasta=ano%20190&pesq=%22Grupo%20Escolar%20
Jos%C3%A9%20Rangel%22&pags=31499. Visto em:18/10/23
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP Editora da UNICAMP,
1990.
NOBREGA, Dormevelly. A casa do Imperador: - Escola Normal - Grupos
Centrais. Juiz de Fora: Edições Caminho Novo, 1997.
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História da PUC - SP, n. 10. São Paulo, dez.-
1993.
PEIXOTO, Ana Maria Casasanta. Barão do Rio Branco: De 1° grupo escolar
a Escola Estadual-Marcos de um educandário de Belo Horizonte.
EDUCAÇÃO EM FOCO: Revista de educação. Universidade Federal de Juiz
de Fora: Ed Especial, 2008
RANGEL, José. Como o tempo Passa. Rio de Janeiro: A encadernadora S.A.
1940.
___________. Escola Normal: Relatório apresentado ao Dr. Secretário do
interior, pelo diretor da Escola Normal, Jornal Correio de Minas, Juiz de
Fora, dias 28, 29, 30 e 31 de maio de 1904.
RIEGL, Alois. O Culto Moderno dos monumentos: a sua essência e a sua
origem. Anat Falbel. I. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
359
PARTE 3
PATRIMÔNIO
CULTURAL: POLÍTICAS
PATRIMONIAIS,
CIDADES E
ARQUITETURA
O NÃO TOMBAMENTO DE VIÇOSA
DO CEARÁ: OUTRO OLHAR SOBRE
A PATRIMONIALIZAÇÃO
Sara Silva Fonteles1
INTRODUÇÃO
Os anos entre 1997 e 2004 representam um marco nos
tombamentos no Ceará, pois correspondem a um intervalo de
sete anos, na qual todos os quatro sítios históricos, além de um
sítio natural cearenses foram tombados como monumentos
nacionais pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), sendo eles Icó (1997), Sobral (1999), Aracati
(2000), Viçosa do Ceará (2003) e Quixadá (2004). Esse período
corresponde também, no campo político ideológico, a um período
de redemocratização e fortalecimento de ações que se voltaram para
o interior do estado, com a elaboração de planos de desenvolvimento
inter-regionais, com novos atores, instrumentos e recursos. Esse
período corresponde ainda com a construção de uma nova imagem
identitária para o Estado do Ceará, com vistas ao progresso e ao
desenvolvimento.
No cerne desse movimento, o Sítio Histórico Urbano de Viçosa
do Ceará (SHUVC) foi tombado pelo IPHAN, em 2003. A cidade
está localizada na Serra da Ibiapaba, a 350km de distância da capital
1 Mestranda em Arquitetura e Urbanismo e Design, Universidade Federal do Ceará.
E-mail: sarasfonteles@gmail.com
360
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
361
cearense, na divisa com o estado do Piauí. O registro mais antigo
de ocupação da Serra da Ibiapaba data do século XVII, relacionado
à diáspora dos indígenas que saíam da Bahia e de Pernambuco em
direção ao Maranhão e se concentravam no alto da serra, ocupada
por grupos indígenas, no contexto da expansão da coroa portuguesa
pelos sertões nordestinos. O traçado urbano de Viçosa do Ceará,
remonta ao século XVIII, e representa a memória arquitetônica
de uma das mais importantes vilas indígenas do Brasil, palco de
resistência indígena, ocasionando disputas nas quais a urbanização
era uma etapa da colonização portuguesa.
Partindo do princípio que a memória se apoia em um jogo de
lembrar e esquecer; mostrar e esconder; falar e silenciar; que de
acordo com a dinâmica do presente deixa mais visível ou invisível
no espaço público determinadas dinâmicas apoiadas em valor
coletivo, o presente artigo busca fazer uma análise do processo de
patrimonialização do SHUVC a partir diversos agentes envolvidos
e das dinâmicas silenciadas durante o tombamento.
O período de análise é de 1999, início da elaboração da instrução
de tombamento, até 2003 nalização do processo. Para isso foram
feitas as seguintes perguntas norteadoras: Como o Ceará se
insere na política de preservação nacional? De que forma os bens
elencados como patrimônio em Viçosa do Ceará se relacionam com
construção democrática da identidade nacional?
O trabalho foi realizado através de pesquisa bibliográca, com
destaque para a trajetória da política patrimonial nacional, bem
como para a análise da instrução de tombamento, elaborada para
o Sítio Histórico Urbano de Viçosa do Ceará, e visa contribuir para
a discussão do processo patrimonial como um campo político de
disputa que, através da ressignicação de processos simbólicos,
de valores e de memórias impactam diretamente nos projetos de
intervenção espacial nos centros urbanos.
POLÍTICA PATRIMONIAL NACIONAL
Nos estudos sobre a urbanização das cidades, o processo
de tombamento de sítios históricos urbanos (SHU), como
representantes do patrimônio cultural, constitui terreno fértil para
discussões acerca da preservação urbana das chamadas cidades
históricas. Seja pela preservação do patrimônio cultural, seja pelo
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
362
esforço de integrá-las à dinâmica do desenvolvimento urbano
regional e socioeconômico ou pelos múltiplos olhares em rede,
que interligados no território, subsidiam novas formas de pensar o
espaço urbano patrimonializado. Viçosa do Ceará, cidade localizada
na divisa com o estado do Piauí, foi tombada pelo IPHAN em 2003 e
diversas iniciativas dinamizaram a região desde então. Para analisar
esse processo, primeiro faz-se necessário entender como a política
patrimonial brasileira trabalhava a proteção das cidades, como
representantes do patrimônio cultural, inseridas em um processo
histórico.
A preservação e a conceituação do patrimônio cultural sofreram
alterações nos critérios de valoração atribuídos ao longo do
tempo, estando envolto de disputas conceituais distintas e por
vezes antagônicas. Duarte Júnior (2015) faz um panorama desde
o surgimento de patrimônio cultural ocidental e como tais ideais
foram incorporados e trabalhados no Brasil, a partir da década de
1930, com a criação do órgão SPHAN (atual IPHAN). Para Duarte
Júnior (2015 p. 20)
O termo patrimônio foi cunhado para representar um signicativo
acervo de bens de valor cultural pertencentes a uma coletividade de
cidadãos, servindo para fundamentar uma justicativa ao mesmo
tempo prática e ideológica, qual seja, o novo status desses mesmos
bens, agora conscados pelo Estado e devidamente ressemantizados.
A ideia de patrimônio, basilar para os processos de construção das
identicações nacionais e de consolidação dos estados nações
modernas, serviu para cumprir várias funções simbólicas. (...)
No Brasil, as abordagens sobre a preservação urbana por parte do
IPHAN sofreram alterações ao longo do tempo. Em 1937, primeira
fase do órgão, considerava a cidade histórica como monumento
idealizado (SANT´ANNA, 2014), um museu de arquiteturas, no
qual o processo sócio-histórico de formação e evolução urbana era
ignorado.
A década de 1960 foi marcada pela efervescência de ideias,
saberes e novos paradigmas cientícos, impactando a conceituação
de patrimônio. Novas formas de pensar as problemáticas humanas,
baseadas na fenomenologia, que deslocam os problemas para
as condições as quais o homem está inserido, se difundem e
se consolidam com o desenvolvimento das ciências humanas
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
363
e de novos paradigmas cientícos, como a Nova História, a
Nova Geograa, a Sociologia, a Antropologia e o Urbanismo,
reverberando no alargamento do conceito de patrimônio cultural.
Nesse contexto, o Urbanismo busca se armar enquanto ciência que
estuda o planejamento da cidade e passa a ser analisado sob diversas
disciplinas, o traçado urbano das cidades passa a ser entendido
também como representante da história de um povo. ROSSI (2001)
faz uma análise da cidade enquanto artefato humano, construída
através da sobreposição de camadas históricas que juntas compõem
e demostram a evolução do pensamento construtivo e arquitetônico
das épocas em que foram construídas, portanto objeto representativo
de uma cultura.
A cidade passa a ser entendida também como representante
cultural de um povo, assim além das memórias individuais,
desencadeadas nos processos cotidianos, a cidade é o lugar em que
se ancoram as memórias coletivas, assim nem tudo que existe nela
pode ser destruído, esquecido ou abandonado.
A memória seleciona e conserva determinadas impressões ou
conhecimentos repassados por gerações (LE GOFF, 2003). Pensando
nos sítios urbanos tombados, os espaços da cidade se tornam espaços
âncora de memória individuais, pois são carregados de signicações
atribuídas por acontecimentos importantes pessoais tais onde o
casamento da avó e mãe aconteceram, como a rua e o bairro onde
morou na infância, entre outros acontecimentos que carregam
importância e marcos individuais. Entretanto esses espaços,
enquanto espaços de vida pública também ancoram memórias
partilhadas na sociedade, onde as histórias agora carregadas
de signicados individuais e coletivos, maturadas pelo tempo,
permitem pensar sobre a nossa vida e a relação que estabelecemos
com o mundo em que vivemos esses diversos lugares podem
contribuir para compreendermos melhor os processos sociais que
originaram na cidade, vericando as origens e as permanências de
outros tempos em nosso cotidiano.
No Brasil, nal da década de 1970, mediante a atuação de
outros prossionais e técnicos, a abordagem da cidade histórica
pelo IPHAN a tomou como cidade-documento, considerando os
processos sócio-históricos de sua formação e evolução urbana tão
importantes quanto a sua arquitetura. Novas formas de usar e gerir
o patrimônio, vinculadas ao turismo cultural e ao planejamento
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
364
urbano, se difundiram no Brasil e logo trouxeram mudanças no
que diz respeito à seleção, aproveitamento, gestão e utilização das
cidades já tombadas, modicando assim as práticas do IPHAN.
Nesse contexto, o programa Cidades Históricas (IPHAN, 1975),
alterou os conceitos dominantes, ao propor a reinserção de bens
imóveis nas cidades como elementos dinamizadores da realidade
local.
As práticas de preservação do patrimônio cultural adotadas
após a redemocratização do país, no nal da década de 1980,
apontavam para um alargamento dos conceitos de identidade
nacional, tradicionalmente acolhidos pelo IPHAN, bem como a
ampliação dos estoque patrimonial com novos representantes da
diversidade cultural pelas práticas, simbolismos e localização em
que estão inseridos. Nesse aspecto, a constituição federal de 1988,
representa um marco para a política patrimonial, o artigo 216,
dene patrimônio cultural da seguinte maneira:
Constituem o patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
incluem:
I.formas de expressão; II. modos de criar, fazer e viver;
III. criações cientícas, artísticas e tecnológicas; IV. as obras,
objetos, documentos, edicações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e cientíco.
A década de 1990 foi marcada por uma nova concepção
acerca das cidades históricas, com programas voltados para o
patrimônio cultural, que propunham a promoção da conservação
do patrimônio e o desenvolvimento econômico das cidades
através do turismo. A cidade histórica passou a ser concebida
como cidade-empreendimento ou cidade-atração, como destaca
(SANT´ANNA, 2017). Apostava-se que os investimentos
efetuados na sua recuperação seriam propulsores de um processo
sustentável e progressivo de valorização do patrimônio urbano
e que alavancariam, além dos públicos, investimentos privados,
principalmente no turismo nacional e internacional. Num último
estágio, a cidade-histórica, mormente por ação estatal, passou a
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
365
ser vista como cidade-instrumento, com o patrimônio cultural
edicado recuperado para servir à comunidade de várias formas.
Os caminhos percorridos pelo patrimônio cultural, desde a
criação do órgão nacional com a criação do IPHAN, sofreram
alterações conceituais e de valoração, como elencado até aqui.
Para MARINS (2016), após a redemocratização do país no nal da
década de 1980, a política nacional de patrimonialização passava
por intensas modicações, na busca por uma representatividade
cultural diversa, em oposição a uma cultura nacional unicada. O
autor analisa que entre a década de 1990 e começo dos anos 2000,
houve uma intensicação na quantidade de bens acautelados,
assim como a descentralização geográca de conjuntos urbanos
tombados, saindo do eixo sudeste e deslocando a concentração para
os exemplares localizados no Nordeste semiárido e Centro Oeste
brasileiro.
Os conjuntos urbanos tombados nesse momento possuem
como características comuns a sobreposição de estilos do século
XIX e princípios do século XX, com lotes profundos de testada
estreitas, com casario basicamente alinhado na testada do lote e
sem recuos laterais MARINS (2016). O autor destaca ainda que,
embora geogracamente houvesse um esforço para representar
uma diversidade regional, os patrimônios elencados nesse período
ainda são representantes muito ans à paisagem luso-brasielira -
vinculados à celebração modernista do fusionismo mestiço em que
sempre sobressaem as heranças lusitanas (MARINS pg. 20). O que
se preservou na eleição desses conjuntos foi a paisagem “típica”
luso-brasileira, ainda que atualizada estilisticamente, sobrepostas
com edicações ecléticas, art déco e art Nouveau, onde as restrições
temporais e espaciais enlaçam-se também àquelas de caráter étnico.
O autor ressalta que os tombamentos jamais priorizaram marcos
materiais em que os legados da África ou dos ameríndios fossem
os eixos condutores da mestiçagem, com uma visão menos arque
elágica e eurocêntrica da conformação desses espaços.
A coincidência não pode ser tomada como eventual, mas deve sim
ser compreendida como parte de uma reiterada interpretação do país
em que essas duas regiões, base geográca inicial da colonização
portuguesa e lócus simbólico da mestiçagem entre brancos e
negros, são aquelas que denem o caráter “nacional” desde o
estabelecimento das políticas culturais na década de 1930. Excluem-se
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
366
assim, e reincidentemente, as populações indígenas ou imigrantes da
centralidade simbólica do país. (Marins, pg. 18)
Os tombamentos dos sítios históricos cearenses foram realizados
de 1997 a 2004, período de apenas sete anos. Os cinco Sítios
Históricos Urbanos tombados como monumentos nacionais pelo
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
são: Icó (1997), Sobral (1999), Aracati (2000), Viçosa do Ceará
(2003) e Quixadá (2004). Apesar de existirem estudos anteriores,
foram necessárias mudanças políticas conjunturais que superassem
a percepção de que a proteção do patrimônio cultural seria
apenas algo ligado à simples preservação da história do Ceará.
Além disso, considerou também a preservação como um vetor de
desenvolvimento socioeconômico. Esse período foi marcado pela
redemocratização e fortalecimento de ações que se voltariam para o
interior do estado, com a elaboração de planos de desenvolvimento
inter-regionais, com novos atores, instrumentos e recursos.
O Ceará se insere na política de preservação nacional, utilizando
o patrimônio cultural como recurso para representar algo moderno,
importante para construção de uma nova imagem do estado,
inserido no panorama nacional de redemocratização como lugar
de progresso e modernidade, e não mais ligado à velha imagem do
estado associada as oligarquias e ao atraso econômico. Entretanto,
é importante ressaltar que, apesar da importância na preservação
da história do Ceará, resguardando importantes testemunhos
históricos, de uma parcela da população, os agentes simbólicos
exaltados que aparecem como representantes estão ligados a lógica
colonial luso-brasileira, amplamente trabalhada pelo IPHAN,
carecendo de representações de outros agentes étnicos em uma
lógica mais diversa e plural, onde culturalmente também gurem
como eixos centrais.
O TOMBAMENTO DE VIÇOSA DO CEARÁ
No que tange aos conjuntos urbanos cearenses tombados, as
antigas manifestações da produção do espaço arquitetônico e
urbanístico, constituem objeto de aprofundada pesquisa por parte
do professor Liberal de Castro, desde meados da década de 1950,
evidenciando o caráter singelo, popular e utilitário das edicações,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
367
como destaca Duarte Júnior (2009). Para CASTRO (1973, p. 04) a
arquitetura dos SHU deve ser admirada sobretudo pelo “comovente
testemunho material dos percalços enfrentados na penosa lida
civilizatória dos sertões”. Nesse sentido, a atribuição de valor do
testemunho histórico, carrega em si o potencial de produção
do conhecimento, reverberando as práticas de preservação do
patrimônio no Ceará, através dos tombamentos.
No cerne desse movimento, o sítio histórico urbano de Viçosa
do Ceará foi tombado pelo IPHAN, em 2003. Seu traçado urbano
remonta ao século XVIII e representa a memória arquitetônica de
uma das mais importantes vilas indígenas do Brasil. A localização
geográca da vila era local de disputas entre indígenas e colonizadores,
por estar no caminho entre o Maranhão e Pernambuco. O relator do
processo de tombamento, José Liberal de Castro, indicava no seu
parecer:
A evolução histórica de Viçosa do Ceará está vinculada á sua condição
de centro intermediário, econômico e cultural, nas rotas de comércio
e relações geopolíticas do nordeste brasileiro. Constituída sobre
traçado urbano desenvolvida no século XVIII e consolidada no século
XIX, e sobre ele um conjunto de arquiteturas de projeto e composição
vernácula, com alguns remanescentes do século XVIII, mas, em
grande parte consolidado entre ns do século XIX e início do século XX
(CASTRO, 2002 p. 45).
A cidade está localizada na Serra da Ibiapaba, a 350km de distância
da capital cearense, na divisa com o estado do Piauí. O registro
mais antigo de ocupação da Serra da Ibiapaba data da diáspora
dos indígenas que saiam da Bahia e de Pernambuco em direção ao
Maranhão e se concentravam no alto da serra que era ocupado por
grupos indígenas no contexto da expansão da coroa portuguesa
pelos sertões nordestinos. O traçado urbano de Viçosa do Ceará
remonta ao século XVIII e representa a memória arquitetônica
de uma das mais importantes vilas indígenas do Brasil, palco de
resistência indígena, ocasionando disputas nas quais a urbanização
era uma etapa da colonização portuguesa.
O tombamento, como aponta Santana (2017), além de preservar
o próprio sítio urbano, buscou produzir uma nova imagem para
a cidade, com o valor de um patrimônio nacional capaz de, entre
outras iniciativas, atrair novos negócios e investimentos, com
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
368
potencial de tornar-se polo de cultura e turismo, e incrementar o
crescimento socioeconômico da cidade.
O processo de tombamento do SHU de Viçosa do Ceará foi
iniciado em 1999 com a elaboração do documento técnico Estudos
para tombamento federal de Viçosa do Ceará, elaborado pelo 4ª.
Superintendência regional do IPHAN.
O estudo para tombamento do SHUVC é apoiado em amplo
estudo histórico, com bibliograa destacada por relatos de
expedições realizadas nos séculos XVII, XVIII e XIX, bem como
através de pesquisadores cearenses, nacionais e estrangeiros. O
trabalho também revela o esforço para composição de um estudo
técnico, através da pesquisa e elaboração gráca de mapas, plantas
e fotograas. A equipe técnica que compôs o estudo, era formada
majoritariamente por arquitetos, o que chama atenção pela ausência
de uma participação dos demais estudiosos do campo patrimonial
como historiadores, antropólogos, geógrafos etc. Na bibliograa
indicada e nos textos em anexo não há referência às cartas e
recomendações patrimoniais.
As justicativas e motivações para o tombamento são diversas.
Logo na introdução se faz referência a motivação pelos estudos
elaborados pelo Prof. José Liberal de Castro, por solicitação para
tombamento federal, elaborado em 1999, para Igreja Matriz Nossa
Senhora da Assunção, identicado como elemento central do
conjunto urbano de Viçosa do Ceará e possuidor de um recheio
de rara beleza e importância histórica, que é o forro pintado
em policromia de sua capela-mor. Na seção especíca sobre as
justicativas e motivações são citados os inúmeros fatos históricos
relevantes que aconteceram na região onde se localiza Viçosa do
Ceará; os diversos agentes sócio históricos envolvidos, com destaque
para o traçado urbano que remonta ao século XVIII.
No documento sobre o Parecer do Tombamento do Sítio
Histórico Urbano de Viçosa do Ceará, elaborado em 2003, pelo
prof. José Liberal de Castro, as cartas patrimoniais são elementos
utilizados para respaldar a opinião técnica do relator. O relator
destaca que o seu ponto de vista para o parecer do processo está
condizente com as recomendações dos organismos internacionais
preconizada através das cartas patrimoniais. As recomendações
citadas são:
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
369
Carta de Quito – OEA- 1967:
De outra parte, a valorização de um monumento exerce benéca alçai
reexa sobre o perímetro urbano em que se encontra implantado
e ainda transborda dessa área imediata, estendendo seus efeitos a
zonas mais distantes. Esse incremento de valor real de um bem por
ação reexa constitui uma forma de mais-valia que há de se levar em
consideração.
Carta de Veneza – Icomos- 1964:
A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica
isolada, nem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de
uma civilização particular, de uma evolução signicativa ou de um
acontecimento histórico. Estender-se não só as grandes criações,
mas também as obras modestas, que tenham adquirido com o tempo
signicação cultural
Declaração de Tlaxcala – Icomos- 1982:
Os delegados após examinarem a situação atual da américa em relação
aos perigos que ameaçam o patrimônio arquitetônico e a ambiência
das pequenas cidades, decidem:
Rearmam que as pequenas aglomerações se constituem em reservas
dos modos de vida que dão testemunho de nossas culturas, conservam
uma escala própria e personalizam as relações comunitárias,
conferindo assim, uma identidade a seus habitantes.
Carta de Nairobi- UNESCO – 1976:
A ação de salvaguarda deveria associar a contribuição da autoridade
pública à dos proprietários particulares ou coletivos e à dos habitantes
e usuários, isoladamente ou em grupo, cujas iniciativas e participação.
A utilização das cartas demonstra a inuência desses documentos,
bem como o entendimento sobre a utilização e a conservação do
patrimônio no caso de Viçosa do Ceará. A primeira recomendação
citada, Normas de Quito, elaboradas em 1967, composto por
propostas sobre a utilização do patrimônio cultural, no contexto
dos países da Latino-americanos com poucos recursos econômicos,
através do turismo cultural. No caso do tombamento do Sítio
Histórico Urbano de Viçosa do Ceará, conforme aponta Santana
(2017), além de preservar o próprio sítio urbano, buscou produzir
uma nova imagem para a cidade, com o valor de um patrimônio
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
370
nacional capaz de, entre outras iniciativas, atrair novos negócios e
investimentos, com potencial de tornar-se polo de cultura e turismo,
e incrementar o crescimento socioeconômico da cidade. Assim, a
cidade de Viçosa do Ceará, localizada entre rotas de turismo do
Ceará, Piauí e Maranhão, busca se inserir como destino turístico. O
relator não faz referência a documentos mais cautelosos em relação
aos impactos que o turismo pode ocasionar nas relações e dinâmicas
locais, aspectos que são abordados em outras cartas patrimoniais
A segunda carta utilizada é a Carta de Veneza, elaborada em 1964,
pelo ICOMOS. A carta é utilizada como alargamento do conceito de
patrimônio para além da obra arquitetônica isolada, mas também o
sítio urbano, e no caso de Viçosa do Ceará, do traçado urbano. O
testemunho histórico passa a ser validado também como passível de
tombamento, buscando um entendimento da história mais amplo
e não apenas pautado na história das grandes criações, grandes
acontecimentos representados por tipologias já consagradas. O sítio
histórico de Viçosa representa a arquitetura modesta, resultado do
contexto histórico de sua conformação.
Sobre a importância da Carta de Veneza, MELO (2017) arma
que apesar de não ser um documento normativo, trata-se de um
conjunto de conceitos e práticas consensuais, produzidas em um
momento muito especíco, de modo que sua publicação inuenciou
as noções patrimoniais nas estruturas internas dos países ocidentais.
A Declaração de Tlaxcala, elaborada em 1982, pelo ICOMOS, diz
respeito a Revitalização de Pequenos Aglomerações, assim como a
preocupação com as ameaças que sofrem o patrimônio arquitetônico
e a ambiência das pequenas localidades. O documento rearma
ainda a importância dos planos de ordenação físico-territorial e
de desenvolvimento para diminuir o processo de abandono dos
pequenos lugares. A participação interdisciplinar em favor da
conservação, restauração e revitalização é encorajada ao mesmo
tempo em que é incentivada a criação de mestrados e doutorados
nas escolas de arquitetura.
A Recomendação de Nairóbi, elaborada em 1976, pelo UNESCO,
relativa à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função
na vida contemporânea, destaca o perigo da uniformização e
despersonicação das expressões culturais. Nessa perspectiva,
chama a atenção para a necessidade de proteger o patrimônio
cultural contra ameaças, tais como a urbanização descontrolada, os
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
371
desastres naturais, a poluição, o vandalismo e os conitos armados.
A recomendação também enfatiza a importância da participação da
comunidade na preservação do patrimônio cultural, promovendo
o respeito pelas tradições e práticas culturais das comunidades
locais. No contexto de Viçosa do Ceará, a recomendação é utilizada
para refutar questões sobre a participação popular no processo
de tombamento. À época do tombamento, o relator ressaltou que
o processo conseguiu respaldo prévio sobre o tombamento por
parte da população da cidade, dos proprietários dos imóveis, da
prefeitura municipal e da câmara municipal, bem como o trabalho
de divulgação do IPHAN sobre as consequências do tombamento
na vida dos habitantes. O autor salientou tais ações como
representativas do envolvimento da população local no processo de
tombamento, mas não deixou claro se a elaboração do processo de
tombamento foi realizada de maneira participativa, ou restrita aos
técnicos envolvidos.
Os bens elencados em Viçosa do Ceará como representantes da
identidade nacional, apesar de descentralizarem geogracamente as
escolhas, interiorizando as ações de patrimonialização, destacam o
traçado urbano como representante da colonização e resguardam
representantes de arquiteturas do século XIX e XX, com exemplares
do ecletismo no Ceará. O conjunto não apresenta uma unidade de
estilos, ao contrário, representa uma sobreposição de exemplares
de diferentes épocas, cenário comum nos sítios históricos urbanos
existentes na américa latina, tombados no nal da década de 1990
e início dos anos 2000. O SHU de Viçosa do Ceará representa
a pequena arquitetura com a história cotidiana, de singelas
construções, produzida nas condições encontradas no Ceará. O
tombamento, enquanto instrumento de proteção, certamente
contribuiu para conservação desses espaços, enquanto instrumento
de dinamização econômica, no caso de Viçosa do Ceará contribuiu
através do incentivo ao turismo cultural e de eventos culturais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão do processo patrimonial como um campo político
de disputa que através da ressignicação de processos simbólicos,
de valores e de memórias impactam diretamente nos projetos de
intervenção espacial nos centros urbanos.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
372
A análise do tombamento do sítio histórico de Viçosa do Ceará,
através do Estudo para tombamento do Sítio Histórico Urbano de
Viçosa do Ceará e do Parecer do Tombamento do Trecho Urbano
de Viçosa do Ceará, apontam para a construção de valor, por se
tratar do entorno da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção,
edicação que gura destaque no contexto da elaboração e pela da
construção histórica da cidade de Viçosa, com estudos técnicos que
buscam elaborar um panorama da cidade e das tipologias existentes.
Algumas cartas patrimoniais são selecionadas e utilizadas como
suporte para o processo de patrimonialização do Sítio Histórico
Urbano de Viçosa do Ceará. Os documentos patrimoniais surgem
na busca pela unicação do conceito e das práticas relacionadas ao
campo patrimonial, embora a elaboração por diferentes associações
plurinacionais carregue em si diferentes agentes e interesses. A
elaboração das Cartas Patrimoniais, inicialmente encabeçada por
países do norte global passa por sucessivas ações na busca por
democratizar os critérios, práticas e conceitos.
É importante destacar que embora não tenham efeito legal nos
países envolvidos, as recomendações guram como importantes
norteadoras, utilizadas como respaldo para práticas locais e
possibilitando acesso a diferentes fontes investidoras ligadas as
associações internacionais.
No caso de Viçosa do Ceará, os conceitos elaborados na Carta
de Veneza, propostos 39 anos antes do Parecer de Tombamento
de Viçosa do Ceará, ainda gura como importante referencial. As
cartas de Tlaxcala e Nairóbi são utilizadas como ferramentas para
ativar o dispositivo patrimonial, como instrumentos de dinamização
econômica de pequenos núcleos urbanos na América Latina,
principalmente através do turismo, demonstrando as discussões
sobre as especicidades das cidades latino-americanas na política
patrimonial.
A escolha das cartas revela a utilização dos conceitos e da
utilização patrimonial que se pretende com o tombamento de
Viçosa do Ceará e apesar de gurar como o exemplar de sítio
histórico mais recente do Ceará não contempla discussões que já se
apresentavam nas cartas patrimoniais em discussão mais próxima
ao tombamento, como o patrimônio imaterial e da necessidade de
identicação e diversicação dos agentes e etnias representadas nos
bens culturais. Para o estudo das cartas patrimoniais e sua inuência
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
373
nos diferentes países se faz necessário levar em consideração os mais
variados contextos da organização política, instrumental e social.
Para WAISMAN (2015), a denição de um patrimônio
arquitetônico e urbano está relacionado a sua função para
determinado grupo, tendo o valor central as pessoas:
o patrimônio arquitetônico e urbano tem um valor cultural não
consumível, mas produtivo: produtivo de novas ideias de projetos,
tanto quanto e melhores espaços de vida. A permanência de elementos
considerados como patrimônio é uma permanência da vida, nunca
isolada e convertida em mero objeto de contemplação ou consumo
(pag. 188).
Os estudos aqui realizados apontam que o tombamento do Sítio
Histórico Urbano de Viçosa de Ceará contribuiu para permanência
desses espaços como importantes exemplares da urbanização
brasileira, não pelo caráter monumental, mas pelo caráter singelo
e utilitários de suas edicações. A patrimonialização desses
exemplares carregam as mais variadas camadas de historicidade,
ligadas a diversos projetos de intervenção urbana, com longevidade
no espaço, carregadas de heranças profundas comuns, ao mesmo
tempo em que possuem características próprias, que singularizam
os espaços.
Pensar o processo de urbanização de Viçosa do Ceará, a partir
da sua importância como centro articulador no período de
interiorização da colonização portuguesa, mostra que esse processo
estava intimamente ligado à dinâmica nacional em que estávamos
inseridos, e que desde os primórdios existia uma grande rede de
conexões e ligações. Viçosa do Ceará, importante aldeamento
indígena na Serra da Ibiapaba onde se concentravam principalmente
grupos indígenas provenientes de duas correntes de povoamento
Sertão de fora e Sertão de dentro, advindos da diáspora indígena que
se deslocava de Pernambuco e da Bahia em direção ao Maranhão
no século XVI. Pensar Viçosa do Ceará enquanto representante do
patrimônio nacional pelo IPHAN, deve levar em consideração sua
conformação histórica, os interesses envolvidos no estabelecimento
da aldeia e posteriormente vila e sua importância nas dinâmicas
exercidas em escala de território, bem como os representantes que
são envolvidos e destacados no processo de patrimonialização, não
de forma isolada, mas como uma rede indígena que circulava em
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
374
todo o território. A urbanização carrega em si a potencialização
da desigualdade, marcada pelas estruturas de poder, social e
econômico.
O patrimônio edicado constitui fonte materiais da cultura,
carregam em si a memória e história daqueles espaços, como
indícios da realidade concreta de ocupação dos espaços. O objeto
de estudo aqui em questão, o Sitio Histórico Urbano de Viçosa do
Ceará, guarda relações com a cidade e a mensagem embutida no
controle da produção dessas fontes. A cultura, enquanto elemento
vivo e dinâmico, se recria no movimento de criação desses espaços,
exigindo o olhar atento para além da construção, alcançando a
sensibilidade das técnicas construtivas, o modo de fazer e a mão de
obra utilizada, características singulares daqueles espaços.
O tombamento de Viçosa do Ceará por um lado ressalta
uma narrativa e atores já historicamente trabalhados, dinamiza
culturalmente e economicamente a região, por outro lado, carece da
diversicação dos agentes envolvidos. No processo de negociação
da memória, aquilo que não se revela no tombamento, nos convida
a pensar como esses agentes podem ser rastreados e ressignicados
em novos estudos e discussões, na compreensão de que os
tombamentos se inserem em recortes de tempo, espaço e narrativas.
Vale ressaltar que as discussões sobre patrimônio e memória têm
ganhado cada vez mais contornos no tempo presente. O patrimônio
cultural representa um importante dispositivo que âncora a memória
portanto, sempre passível de revisão dos signicados, simbólicos
e valores, onde a reticação do passado ou a busca por novas
interpretações, em intensa discussão atualmente nos convidam a
(re)pensar o apagamento e/ou silenciamentos de alguns agentes
da história, como recurso político e social que entrelaça passado,
presente e futuro.
REFERÊNCIAS
CASTRO, José Liberal de Castro. Viçosa do Ceará – Parecer sobre
tombamento federal de trecho urbano. In: Revista do Instituto do Ceará.
2002. p. 45-68.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
375
CESAR, Pedro Alcantara Bittencourt. STAGLIANO, Beatriz Veroneze. A
viabilidade superestrutural do patrimônio. In Revista da Cultura e
Turismo, ano 04, n1, janeiro, p. 77-88, 2010.
COSTA, Everaldo Batista da. Patrimônio e Território Urbano em Cartas
Patrimoniais do Século XX. In Finisterra, XLVII, 93, 2012, pp. 5-28.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira
Machado. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001.
DUARTE JUNIOR, Romeu. Novas Abordagens do tombamento federal
de sítios históricos – Política, Gestão e Transformação: a experiência
cearense. 2005. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
DUARTE JUNIOR, Romeu. Sítios Históricos Brasileiros: Monumento,
Documento, Empreendimento e Instrumento: o caso de Sobral/CE.
2012. 458 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
GRAMMONT, Anna Maria. A construção do Conceito de Patrimônio
Histórico: Restauração e Cartas Patrimoniais. In Revista do Turismo e
Patrimonio Cultural. Vol. 4. N3. Pags 437-442. 2006.
IPHAN. Estudo para tombamento do sítio histórico de Viçosa do Ceará.
Elaborado pela 4ª SR/IPHAN. 2002.
JEUDY, Henry-Pierre. Memórias do social. Tradução: Márcia Cavalcanti.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
Le GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. 5 ed.
Campinas, Sp: Editora da UNICAMP, 2003.
MARINS, Paulo Cesar Garcez. Novos Patrimônios, Um Novo Brasil? Um
balanço das Politicas Patrimoniais Federais após a década de 1980. In
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, n57, p. 9-28, janeiro-
abril 2016.
MELO, Dirceu Cadena lho. Patrimônio como Recurso Político: Disputas
por Reconhecimento, Fortalecimento e Geopolítica entre Unesco e
Cabo Verde. 2017.230f. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
ROSSI, Aldo. A arquitetura da Cidade. 2 edição, São Paulo: editora Martins
Fontes, 2011.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
376
SANT´ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a
norma de preservação de áreas urbanas no Brasil 1937-1990. IPHAN,
Ministério da Cultura, Governo Federal Brasil, 2015.
SANT´ANNA, Márcia. A cidade-patrimônio no Brasil: Lições do passado e
desaos contemporâneos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, [S. l.], n. 35, p. 139-155, 2017.
SANT’ANNA, Márcia. A cidade atração: patrimônio e valorização de áreas
centrais no Brasil dos anos 90. Disponível:http://portal.iphan.gov.br/
uploads/cknder/arquivos/5%20-%20SANT%27ANNA.pdf>. Acesso em:
mai. 2023.
VIANA, Monalisa Freitas. Conjunto Histórico e Arquitetônico da cidade
de Viçosa do Ceará: dos percursos da patrimonialização (1997- 2006).
2016. Dissertação (Mestrado) – Mestrado Acadêmico em História e Culturas,
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará, 2016.
WAISMAN, Marina. O interior da História: Historiograa Arquitetônica
para uso de Latino-Americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
CARTAS PATRIMONIAIS
ICOMOS. Carta de Veneza. Veneza: 1964. Disponível em: http://portal.
iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%20
1964.pdf
ICOMOS. Declaração de Tlaxcala. México: 1982. Disponível em: http://
portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20
Tlaxcala%201982.pdf
OEA. Norma de Quito. Quito: 1967. Disponível em: http://portal.iphan.
gov.br/uploads/cknder/arquivos/Normas%20de%20Quito%201967.pdf
UNESCO. Recomendações de Nairóbi: 1976. Disponível em: http://portal.
iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20de%20
Nairobi%201976.pdf
CINE DRIVE-IN EM BRASÍLIA:
UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A POLÍTICA DE
PATRIMONIALIZAÇÃO
Mariah Boelsums1
Rayane Cristina C. Silva2
INTRODUÇÃO
Pretende-se apresentar, por meio do estudo de caso do Cine
Drive In de Brasília, uma análise sobre as complexidades jurídicas
e sociopolíticas que envolvem o reconhecimento e a chancela legal
de um bem como Patrimônio Cultural no Distrito Federal (DF),
evidenciando as relações entre os diversos agentes envolvidos neste
processo, em especial, a comunidade, os membros das instituições
legislativas e os membros das instituições responsáveis pelo
reconhecimento e pela preservação dos bens culturais tombados e
registrados no DF, nesse caso, a Secretaria de Cultura e Economia
1 Doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais, em Preservação do
Patrimônio. Mestrado pela Universidade Federal de Minas Gerais, em Preservação
do Patrimônio. Graduação em Conservação e Restauro pela Universidade Federal de
Minas Gerais. E-mail de contato: mariah-boelsums@hotmail.com
2 Mestre pela Universidade de Brasília, em Psicologia do Desenvolvimento Humano
e Escolar. Graduação em Pedagogia pela Universidade de Brasília. E-mail de contato:
rayaneunb@gmail.com
377
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
378
Criativa do Distrito Federal (SECEC-DF) e o Conselho de Defesa
do Patrimônio Cultural (CONDEPAC).
Para isso, apresentar-se-á um breve histórico sobre os cinemas
em Brasília, desde sua concepção enquanto capital federal até os
dias atuais, dando enfoque à existência e à trajetória do Cine Drive
In, relatando e analisando como se deu o seu reconhecimento do
como Patrimônio Cultural do DF através do poder legislativo, que
não dispõe de atribuições legais para executar o ato de reconhecer,
tombar ou registrar um bem cultural. Desta forma, objetiva-se
lançar luz sobre os ritos e os uxos processuais adequados para o
reconhecimento e para a proteção efetiva e eciente de um bem
cultural e sobre as problemáticas relativas a um reconhecimento
sem o cumprimento dos trâmites legais.
Por m, pretende-se abordar os elementos que tornam o Cine
Drive In de Brasília um bem provido de valores relacionados à
autenticidade e à raridade, destacando-se como um relevante
repositório de memória, pertencimento e identidade da comunidade
brasiliense.
A cidade e os lmes: Brasília no circuito
cinematográco
Desde sua concepção como cidade planejada, o arquiteto e
urbanista Lúcio Costa projetou uma vida cultural ativa em Brasília,
com cinemas e teatros distribuídos, especialmente, nos Setores de
Diversões Norte e Sul do Plano Piloto. Porém, é interessante destacar
que, segundo estudos de SENISE (2015, p. 43), os primeiros registros
do cinema em terras brasilienses datam ainda da época de sua
construção, entre 1958 e 1960 - quando a cidade foi inaugurada, com
o Cine Bandeirante, na Cidade Livre (atual Núcleo Bandeirante), o
Cine Cultura, na W3 sul, e, posteriormente, o Cine Brasília, o único
dos três que ainda tem sua atividade funcional primária preservada.
Além disso, a construção de uma capital totalmente planejada, com
um projeto irreverente e inovador representando um grande feito
político e um marco urbanístico de magnitude mundial, atraiu a
atenção de variados fotógrafos e cineastas nacionais e internacionais,
fazendo de Brasília um local extremamente fotogênico e um cenário
propício, especialmente peculiar, para lmes, documentários e
produções audiovisuais diversas.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
379
O culto aos lmes está tão intrinsecamente ligado à história de
Brasília que desde seus primórdios enquanto cidade, em 1960, há
registros da utilização de uma estratégia engenhosa para exibição
fílmica que faz, inclusive, referência aos métodos e aos conceitos
dos cines drive in:
Também em 1960, na Cidade Livre, por um ano, se fez presente o
“cinema móvel”: um caminhão cujo cinema funcionava em cima
dele, com um projetor movido a gasolina. Era também chamado de
Cine Grátis, e possuía seus custos pagos graças aos anúncios entre
os intervalos de exibição, os quais até o então presidente Juscelino
Kubitschek utilizou para propaganda eleitoral. (SENISE, 2015, p. 43)
Todos esses fatos corroboram para a compreensão de que o cinema
e a cidade de Brasília coexistem desde a época de sua construção e
que, mesmo quando não havia estrutura física que pudesse receber
o título de cinema, o espaço público era ocupado e utilizado como
suporte para essa manifestação cultural extremamente democrática.
O “cinema móvel” que funcionava com um caminhão e um projetor
nos remete aos primórdios essenciais do cine drive in e pode ser
considerado como uma primeira tentativa de compartilhamento da
experiência audiovisual à céu aberto no DF.
Posteriormente, outras estratégias para fazer com que essa
relação se tornasse cada vez mais sólida foram desenvolvidas,
principalmente através da institucionalização do cinema enquanto
espaço funcional com destinação própria e estrutura adequada com
a inauguração de diversas salas de exibição de lmes na capital,
chegando a ser considerada em 2009, pelo Ministério do Turismo,
como a cidade mais cinéla do Brasil, com o maior número de salas
de cinema por habitante.
A cultura do cinema em Brasília é tão forte que pode-se
mencionar a criação na Universidade de Brasília (UnB), em 1963,
de um dos primeiros cursos de Cinema no Brasil e também do
“Festival de Brasília do Cinema Brasileiro”, em 1965, encabeçado
pelo cineasta e professor Paulo Emílio Sales Gomes. O festival,
bem cultural imaterial foi reconhecido como parte do Patrimônio
Cultural do DF, pelo Decreto nº 27.930/2007, dada sua importância
e referência do segmento e da produção cinematográca local, tanto
para o DF, como em nível nacional e internacional. O Festival de
Brasília do Cinema Brasileiro, sediado no Cine Brasília, acontece
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
380
todos os anos e é fomentado pelo Governo doDistrito Federal,
marcando gerações e se consagrando como o mais longevo festival
de cinema de todo o país,
O Cine Brasília nasceu junto com Brasília na década de 60.
Concebido pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto estrutural
do engenheiro Joaquim Cardozo foi construído pela Novacap.
Localizada na Asa Sul – Entrequadra Sul 106/107, além de sua
programação cinematográca, realiza exposições de arte, cursos,
seminários e outros eventos. Por sua vez, inaugurado em 1993, o
Pólo de Cinema e Vídeo Grande Otelo também foi um elemento
importante para o cinema brasiliense, sendo um local de produção
e de formação, com diversas ocinas e cursos relacionados ao
universo do audiovisual.
O Governo do Distrito Federal, por meio Fundo de Apoio à
Cultura - FAC, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa,
também incentiva e fomenta as produções audiovisuais do DF,
evidenciando que Brasília é uma cidade que produz e absorve
cinema, sendo por isso considerada por muitos como a ‘capital do
cinema’ e consagrada pelo Ministério do Turismo como destino
referência em turismo cinematográco do país.
Apesar de toda essa trajetória fortemente marcada pela presença
do cinema, cabe destacar que assim como aconteceu e ainda
acontece em muitas cidades ao redor do mundo, Brasília também
sofreu com múltiplas crises culturais e políticas que inuenciaram
diretamente na permanência dos cinemas tradicionais, o que levou
ao aumento considerável de salas fechadas ao longo desses 60 anos
e a um enfraquecimento na relação da população com a utilização
dos espaços de exibição de lmes. Os pequenos cinemas tradicionais
deram lugar às grandes salas de exibição de empresas conceituadas
mundialmente, isso fez com que a potência e a qualidade das salas
aumentassem, mas suas localidades e quantidades cassem cada
vez mais restritas e diminuíssem exponencialmente.
Além disso, houve a instauração de um tipo de padronização das
experiências, já que os cinemas de determinadas marcas seguem um
modelo estrutural, estético e técnico pré-estabelecido, fazendo com
que todas as salas se pareçam muito entre si e as peculiaridades que
caracterizam o pertencimento e a identidade se percam no caminho.
Na contramão desta lógica mercadológica e proporcionando
experiências multissensoriais ímpares, encontra-se o Cine Drive in
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
381
de Brasília, símbolo de resistência cultural e objeto desta pesquisa,
que será abordado em maior profundidade a seguir.
Cine Drive in de Brasília: a paisagem urbana
como sala de cinema
O americano Richard Hollingshead idealizou, em 1933, o
cine drive in como uma alternativa para sua mãe, que sofria com
obesidade e não encontrava conforto nas poltronas padrões dos
cinemas da época na cidade de Nova Jersey. Desde então, essa
tipologia de cinema foi ganhando forma e força, tendo seu auge
nos anos 50 e 60, especialmente nos Estados Unidos, constituindo,
inclusive, o enredo de muitos lmes norte-americanos e fazendo
parte do imaginário de gerações que tinham o desejo de vivenciar
essa experiência tão representada nos lmes.
Nesse contexto que foi inaugurado o Cine Drive In de Brasília, em
1973, integrando o planejamento da cidade inovadora e moderna,
capital do Brasil. Localizado no Setor de Recreação Pública Norte, no
Eixo Monumental, o cine como vizinhos o Estádio Mané Garrincha,
o Kartódromo e o Autódromo Internacional Nelson Piquet.
A composição do Cine Drive In de Brasília, idealizado por Paulo
Renato de Oliveira Figueiredo em conjunto com o engenheiro
Ricardo Koury, tem uma área total de 15.000 m² e é formada por um
pequeno conjunto de elementos sendo os principais o acesso dos
automóveis pela ponte principal, marco para o usuário que chega
ao local, e a tela de concreto de 312m², maior tela cinematográca
do país, além da bilheteria, sala da administração, banheiros, sala
de projeção e o estacionamento asfaltado com capacidade para 500
carros dispostos em acomodando, aproximadamente, um total de
2.500 pessoas.
Investido, à época, um milhão de cruzeiros para a construção de
iniciativa da rma Alvorada Comercio e Promoções e LTDA é desde
sua inauguração o maior drive in do Brasil. A tela de projeção encanta
não só pela sua grandiosidade à primeira vista, correspondente
a um edifício de 16 andares, mede 26 metros de largura e 12 de
altura, pela sua constituição de concreto em espessura de 8cm, mas
pela audácia do projeto em consonância com a unidade estética da
cidade, Ricardo Koury destaca que “para sua idealização inspirei-
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
382
me no traçado urbanístico de Brasília, tendo em vista sua moderna
arquitetura” (Jornal de Brasília, 1973, p. 8).
Por sua vez, o sistema de projeção contava com dois projetores
de 70mm e 35mm fabricadas no Brasil que transmitiam lmes
em acetato de celulose e o sistema de sonorização se utilizava da
tecnologia de som estereofônico e 500 autofalantes individuais,
postes com 500 autofalantes com volume controlado dentro do
próprio carro. Atualmente o projetor é digital, com qualidade e há
torre de som para transmissão do áudio dos lmes em frequência
modulada (FM) com frequência exclusiva liberada pela ANATEL
para transmissão do áudio do lme pelo rádio dos carros.
O Cine Drive In também oferece desde sua inauguração,
atendimento de lanchonete no próprio carro, contendo em seu
cardápio com refrigerante, sanduiches, pipoca e guloseimas. A
conhecida prática de ligar o farolete do carro é a regra para chamar
os garçons sem atrapalhar os demais frequentadores e a exibição das
produções cinematográcas.
Opção de lazer e cultura no início o drive in funcionava em duas
sessões por noite, além de vesperal para as crianças no sábado e
domingo e sessão especial às sextas 00h, ao custo de cinco cruzeiros
por vaga no estacionamento e cinco cruzeiros por pessoa o Cine
Drive In sempre prezou pela projeção de lmes que marcaram época
e produções locais e nacionais. A inauguração do cine foi marcada
pela exibição do lme Receita:Violência do diretor Blake Edwards,
que possui enredo forte sobre o aborto diante da ética médica dos
Estados Unidos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
383
O cine se consolidou e se popularizou de forma rápida na cidade.
Até a década de 1980 o Cine Drive In foi um dos principais cinemas
do Distrito Federal, na década de 70 tinham somente 12 salas de
cinema, em Brasília, atingindo, em seu auge, lotação de cerca de
600 carros por noite. Para gerações de brasilienses, que viveram essa
época, o Cine Drive In está indissociavelmente ligado à história da
cidade, além de marcar a vida do brasiliense como palco de pedidos
de namoro, casamento, ensaios fotográcos, competições de dança
e inúmeros eventos culturais.
Marta Fagundes, proprietária da administradora que detém a
ocupação e a exploração da área destinada ao cinema. Ela trabalha
no local desde 1975, quando tinha 15 anos, com sua história de
vida imbricada na história do cine, no início dos anos 90 constituiu
a empresa Stark’s Cinema e Lanchonete LTDF, que encampou o
projeto, inclusive com investimentos próprios, enfrentando batalhas
burocráticas e políticas e por muitas vezes impediu o fechamento
do cine. Marisa, projecionista desde dezembro de 1987, é a el
escudeira de Marta e guardiã da sala de projeção. Este ponto nos faz
questionar o que manterá a prática cultural para além do curso de
vida de pessoas afetivamente engajadas?
O Cine Drive In foi o único cinema do Distrito Federal a receber o
prêmio de renda adicional da ANCINE em 2014. No seu aniversário
de 40 anos foi homenageado por produtores brasilienses no longa-
metragem de cção “O último Cine Drive In”, de Iberê Carvalho, e o
documentário de curta-metragem “Drive In – Cinema sob o céu”, de
Claudio Moraes. Atualmente, é considerado como o único exemplar
dessa tipologia de cinema ainda em funcionamento no país, que
já chegou a ter cerca de 1.500 cines drive-ins espalhados pelo seu
território nacional (SENISE, 2015, p. 44). Essa singularidade,
aliada à sua condição de equipamento cultural emblemático para
a população de Brasília e sua inegável relevância do bem para a
história, memória e identidade cultural do Distrito Federal são
atributos que dão destaque ao Cine Drive In e ensejam especial
atenção do poder público.
A estrutura do cine drive in revolucionou a experiência
audiovisual em nível mundial, criando ssuras no espaço urbano
que criaram brechas de luz e de cor na rotina concreta e cinza
da maior parte dos grandes centros, um respiro na vida citadina
possibilitando conexões únicas. Por estarem inseridos no espaço
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
384
público da urbes, os cines drive in rompem com as barreiras físicas
das salas tradicionais de exibição e estabelecem relações nunca antes
experienciadas ao inserirem elementos constitutivos extremamente
variáveis e incontroláveis à vivência dos usuários, por exemplo, a
chuva, o vento, os barulhos urbanos, as mudanças na paisagem de
entorno através das variações das estações do ano que interferem
na vegetação ou da construção de edifícios, passarelas e/ou demais
estruturas da cidade. Tudo isso faz com que assistir um lme em um
cine drive in seja, portanto, uma vivência ampla, multissensorial,
de expansão e integração com a cidade. Nesse momento, cabe
destacar que a integração é uma das bases do pertencimento, que,
por sua vez, é fundamental na construção da memória coletiva e do
reconhecimento de ícones culturais relevantes para uma sociedade.
Pode-se dizer que existe uma mútua interferência entre o
entorno e o cine drive in, uma simbiose na composição da paisagem
urbana, sendo que o próprio cinema pode ser entendido como um
“produtor de espaço”, [...] uma arte das ruas, um agente no processo
de construção de vistas urbanas” (COSTA, 2008, p. 35 e 36). A
ocupação do espaço urbano faz com que o cine drive in esteja no
limiar entre as concepções de público e de privado, proporcionando
a sensação dicotômica de estar em casa, mais especicamente no
carro (em um espaço privado) e, ao mesmo tempo, estar na rua
(em um espaço público), uma contradição interessante entre estar
dentro e estar fora que se reete nas formas de uso desse espaço
que possibilita assistir aos lmes estando de pijama, com seu
animal de estimação, fazendo um piquenique com o porta malas
aberto ou conversando e debatendo sobre os lmes em tempo real.
Exatamente devido ao seu formato individual, mesmo estando
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
385
na coletividade, o uso dos cinemas drive in durante a pandemia
de Covid-19 aumentou consideravelmente, já que era uma fonte
segura de lazer, algo tão raro naquele momento de tantas restrições
sanitárias e de isolamento social.
O Cine Drive In está presente na rotina e na memória de muitas
gerações de Brasília, do DF e do Brasil, faz parte da história do
cinema, especialmente do cinema nacional porque é o único
remanescente no país e é parte fundamental da constituição da
população brasiliense, destacando-se como um componente
formador da identidade e facilitador de vínculos. Exatamente por
isso e diante de ameaças de alterações que rondavam o cine, a
sociedade do DF se organizou e apresentou um abaixo-assinado,
com mais de 18 mil assinaturas, à Câmara Legislativa em apoio ao
Projeto de Lei Nº 1.608/2013, fato que impulsionou a iniciativa da
proponente Deputada Luzia de Paula e culminou na publicação da
Lei nº 6.055/2017, que declarou o Cine Drive In patrimônio cultural
material do DF.
Processo de patrimonialização com vício
De acordo com a tripartição dos poderes, inicialmente proposta
por Montesquieu, o poder legislativo é responsável3 por estabelecer
diretrizes gerais e abstratas que garantam direitos, imponham
obrigações e reconheçam estados jurídicos. Por outro lado, o poder
executivo é responsável por implementar essas normas abstratas e
gerais por meio de ações administrativas extremamente concretas e
especícas. (Distrito Federal, 2018, página 3).
A Lei nº 6.055/2017 é sucinta e não abarca dados salutares como
o estado de conservação, histórico e valores do bem, menos ainda
aponta para a efetividade da preservação do bem cultural, como
pode ser percebido ela tem um caráter meramente declaratório de
valor simbólico, mas sem repercussão jurídica prática, em termos
de políticas e ações governamentais de efetiva preservação ou
salvaguarda. Sendo assim, o reconhecimento, mesmo que merecido,
resta comprometido, uma vez que a lei é elaborada a partir de
concepções subjetivas em detrimento avaliação técnica de órgãos
técnicos especializados, sem análise autônoma, meritória.
3 Salvo raras exceções autorizadas pela própria Constituição Federal um poder
exerce atividades típicas de outro poder.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
386
A matéria foi analisada pela Assessoria Jurídico-Legislativa
desta Secretaria, por meio do Parecer nº 398-2017-AJL-GAB-SEC
e também pela Assessoria Legislativa da Câmara Legislativa do
DF por meio do Estudo 350/2022, concluindo que a declaração
de um bem como patrimônio cultural por meio de projeto de lei
não encontra amparo na legislação distrital: Lei nº 47/1989, que
institui o tombamento no DF, e Lei nº 3.977/2007, que institui o
registro no DF. Assim sendo, a mera declaração legal não cumpre os
procedimentos administrativos ou legais necessários para inclusão
de um bem como parte do conjunto do Patrimônio Cultural, sendo
esta atribuição exclusiva da SECEC e CONDEPAC-DF.
Alerta-se que leis com esse teor geram expectativas de direitos
em relação aos efeitos jurídicos da norma, nem sempre reguladas
pelo Executivo, resultando em normas vazias e inócuas, sem
efeito na realidade material, não acenando para ações efetivas de
preservação e salvaguarda do bem patrimonial com articulação com
diferentes setores como o turismo, a economia criativa e a educação
patrimonial. No caso concreto do Cine Drive In ações de salvaguarda
que se vislumbram giram em torno da regularização da ocupação,
desmembramento da área do Cine Drive In do autódromo, fomento
para ocupação por lme brasilienses e brasileiros, registro histórico
contendo fotograas, entrevistas e demais ações, articuladas de
diferentes agentes sociopolíticos, que possam salvaguardar a prática
para as próximas gerações.
Sem estudo aprofundado que garanta a elaboração da
documentação patrimonial não é possível aprofundar-se no
melhor formato de reconhecimento a depender da natureza do
bem, em relação a especicidade do Cine Drive In e sua inequívoca
importância cultural destaca-se a possibilidade de inscrição no livro
de registro dos lugares e também do tombamento especíco da tela
de projeção.
Considerando a justa preocupação dos parlamentares em
apresentarem proposições visando a valorização e a preservação
da cultura local, destaca-se que os instrumentos: a) moção de
louvor: ferramenta para reconhecer simbolicamente bens culturais
e pessoas que se destaquem em aspectos relevantes para a sociedade
e b) indicação: ferramenta adequada para sugerir ao Executivo
que reconheça determinado bem como integrante do patrimônio
cultural.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
387
A política de patrimonialização no DF existe desde 1989
para bens materiais e desde 2007 para bens imateriais. Uma
série de requisitos estão previstos legalmente para o processo de
reconhecimento de um bem como parte do patrimônio cultural
distrital. Esses requisitos incluem: a) a solicitação de proponentes
legítimos do bem; b) requerimento com ampla documentação que
justique o reconhecimento do bem como parte do patrimônio
cultural; c) análise técnica de órgão competente, neste caso SECEC
e CONDEPAC, conforme Lei Orgânica da Cultura; d) publicação
do registro ou tombamento no DODF por meio de decreto do
governador do DF; e) inclusão do bem no Livro de Registro ou Livro
de Tombos; e f) atuação do Poder Público para fomentar, proteger e
preservar o bem tutelado.
Em que pese a inconsistência jurídica do Projeto de Lei nº
1.608/2013, as manifestações da sociedade civil sinalizam o interesse
da população em garantir que o Cine Drive In seja preservado e
valorizado como parte de sua identidade e memória, agregando
ao processo de patrimonialização o principal reconhecimento,
que é o da sociedade. Diante do exposto a SECEC, atua com efeito
saneador, do tombamento provisório e dialoga com a Universidade
de Brasília, detentores e a administradora para a elaboração do
inventário participativo, dossiê histórico e plano de salvaguarda do
Cine Drive In.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Cine Drive In de Brasília é um relevante repositório de memória,
pertencimento e identidade da comunidade brasiliense dotado de
valores relacionados à autenticidade e à raridade, destacando-se
como digno de reconhecimento com Patrimônio Cultural do DF,
inclusive, por seu inequívoco reconhecimento já demonstrado pela
comunidade do DF
No entanto, a Lei nº 6.055/2017, que declarou o Cine Drive In
patrimônio cultural material do DF, possui vício de forma e origem,
reservando tratamento especial a determinado bem cultural, é inócua,
pois não incide sobre a realidade fática tanto pela inadequação no
meio jurídico quanto pela violação do princípio constitucional da
separação dos poderes exorbitando as características fundamentais
da lei, como generalidade e abstratividade
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
388
O ato de reconhecer, tombar ou registrar um bem cultural é
um ato administrativo privativo do Poder Executivo, o processo
de reconhecimento deve atender a uma série de requisitos e
condicionalidades, em relação à forma, procedimento e visando
reconhecer a relevância do bem cultural como patrimônio tornando-
se este objeto de proteção, visando assegurar a permanência e
usufruto desse legado para as gerações presentes e futuras.
REFERÊNCIAS
COSTA, Maria Helena. A cidade como cinema existencial. RUA: Revista de
urbanismo e arquitetura, [S.I.], v. 7, n. 2, 2008.
DISTRITO FEDERAL. Lei 6.055, de 22 de dezembro de 2017. Declara o Cine
Drive-in de Brasília patrimônio cultural do Distrito Federal. Distrito Federal:
Câmara Legislativa do Distrito Federal, [2017], Disponível em: https://
www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/0259b115a4f44b26a00fccb205fa9adb/
Lei_6055_22_12_2017.html. Acesso em:14 jan. 2024.
DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Nota
Jurídica - Parecer nº 398-2017. Brasília-DF: Assessoria Legislativa da
Secretaria de Cultura e Economia Criativa, 22 de dezembro de 2017.
Assunto: Consulta SUPAC sobre proteção de bens materiais e imateriais
em concreto por leis.
DISTRITO FEDERAL. Câmara Legislativa. Estudo Nº 350/2022. Brasília-DF:
Assessoria Legislativa da Câmara Legislativa, 2022. Assunto: Solicitação de
Estudo sobre leis e projetos de lei de iniciativa parlamentar que disponham
sobre registro, tombamento, reconhecimento ou declaração de bens
materiais ou imateriais como Patrimônio Cultural do Distrito Federal.
DRIVE In ca pronto em agosto. Jornal de Brasília, 25 de julho de 1973.
Digitalização de excertos do jornal original.
SANTOS, Andressa Clara Delmondes; BACCILE, Claudia Vasconcelos. Cine
drive-in: construções grácas para uma nova divulgação. Universidade de
Brasília, Brasília/DF, 2016.
SENISE, Marcus Vinicius Marinho. Festival de Brasília do Cinema
Brasileiro e sua relação com a cidade como experiência turística.
Universidade de Brasília, Brasília/DF, 2015.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
389
SILVA, Ana Cristina Costa e; VIANA, Ana Cristina; LIGOCKI, Marcus. Brasília
cinematográca: 1ª etapa de preparação do destino referência em
turismo cinematográco no Brasil / Brasília: Instituto Dharma; Ministério
do Turismo, 2009.
ZANCHETI, Silvio; HIDAKA, Lúcia. A declaração de signicância de
exemplares da arquitetura moderna. Centro de Estudos da Conservação
Integrada, v. 57, 2014.
DISCUSSÕES EM TORNO DO
PATRIMÔNIO MUNDIAL EM
RISCO: O CASO DE OURO PRETO
Giovana Martins Brito1
Considerações iniciais
As noções de risco e segurança têm progressivamente ocupado
as discussões mais recentes sobre o Patrimônio Histórico e Cultural,
infelizmente tomando essa maior proeminência na retaguarda da
ocorrência de acidentes envolvendo bens culturais. A avaliação
de riscos à preservação patrimonial e possíveis acidentes, etapa
necessária da prática preservacionista à qual se deveria dar
maior importância desde o princípio, torna-se urgente diante
dos desequilíbrios ecológicos provocados pela ação humana e as
mudanças ambientais.
O artigo concentra-se nesse problema, tomando como referência
o conceito de Patrimônio Mundial em Perigo (World Heritage in
Danger) proposto pela Unesco e reetindo sobre sua amplitude e
critérios indicadores. Como estudo de caso foi escolhido o sítio
histórico de Ouro Preto, o qual, apesar de ser reconhecido como
importante propulsor do movimento preservacionista no Brasil
e ter sido o primeiro bem cultural brasileiro a receber o título de
Patrimônio Mundial pela Unesco, encontrou-se em um complicado
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal
de Juiz de Fora. E-mail: Giovana_mb@outlook.com
390
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
391
processo de deterioração e descaracterização, agravado por
diferentes tipos de riscos.
O debate sobre as noções de risco ao
Patrimônio Mundial
A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e
Natural, elaborada na Conferência Geral da Organização das Nações
Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em Paris,
no ano de 1972, dene conceitos e critérios além de estabelecer uma
série de diretrizes e orientações.
O início do documento da Convenção já nos explicita o contexto
que motivou a sua realização, isto é, o cenário de avanço na
degradação e destruição do Patrimônio. A preocupação em torno da
situação em que se encontravam os Patrimônios impulsiona, então,
um movimento de reexão para a elaboração de medidas em prol
da sua proteção. Desse modo, podemos entender que diante de uma
conjuntura de risco emerge a necessidade de formular instrumentos
para prevenção e preservação. Quatro pontos se destacam nesta
consideração: a) a relação de ameaça com o desenvolvimento social
e econômico; b) a irreversibilidade da degradação; c) a carência
de recursos dos países; d) a responsabilidade coletiva (UNESCO,
1972).
Constatando que o patrimônio cultural e o patrimônio natural se
encontram cada vez mais ameaçados de destruição não somente devido
a causas naturais de degradação, mas também ao desenvolvimento
social e econômico agravado por fenômenos de alteração ou de
destruição ainda mais preocupantes,
Considerando que a degradação ou o desaparecimento de um
bem cultural e natural acarreta o empobrecimento irreversível do
patrimônio de todos os povos do mundo,
Considerando que a proteção desse patrimônio em âmbito nacional é
muitas vezes insatisfatória devido à magnitude dos meios necessários
e à insuciência dos recursos nanceiros, cientícos e técnicos do país
em cujo território se localiza o bem a ser salvaguardado,
Considerando que, diante da amplitude e da gravidade dos novos
perigos que os ameaçam, cabe à coletividade internacional participar
da proteção do patrimônio cultural e natural de valor universal
excepcional, prestando assistência coletiva que, sem substituir a ação
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
392
do Estado interessado, irá completá-la ecazmente. (UNESCO, 1972,
p.1-2)
O Manual de Referência da Unesco para Gestão de Riscos
de Desastres (GRD) para o Patrimônio Mundial (2015) é uma
orientação de práticas para prevenir e/ou reduzir os impactos de
possíveis desastres sobre os bens inscritos na Lista do Patrimônio
Mundial, apresentando uma preocupação não apenas com a
redução dos riscos aos valores patrimoniais, como também à vida
dos indivíduos, aos seus bens e meios de subsistência. A GRD
propõe que os valores norteadores da avaliação da vulnerabilidade
de um bem, o planejamento e as ações de sua salvaguarda, devem
ser aqueles que justicaram o seu reconhecimento como Patrimônio
Mundial. Assim, a GRD aborda não apenas a proteção contra riscos
elevados, mas também a diminuição de fatores de vulnerabilidade
subjacentes à própria preservação, como por exemplo a falta de
manutenção, a gestão inadequada, o não estabelecimento de zonas
de amortecimento e áreas de inuência baseadas nas probabilidades
de risco de incêndio e deslizamento de terra conforme levantamentos
geológicos etc., que seriam capazes de transformar riscos em
desastres (UNESCO, IPHAN, 2015).
Assim, os possíveis impactos que vulnerabilizam a preservação
de um Patrimônio Cultural decorre não apenas de desastres ligados
a fenômenos ambientais e antrópicos (geológicos, meteorológicos,
hidrológicos, biológicos, alterações climáticas etc.), mas também
do turismo descontrolado e da ausência ou inadequação de
políticas de preservação, cujo resultado é a deterioração progressiva
dos patrimônios. Tais condições perturbam a integridade e
autenticidade dos bens, levando à perda de sua signicação cultural.
Dessa forma, reconhecendo os principais perigos que podem afetar
os patrimônios, é possível traçar estratégias de redução e gestão
de riscos, a m de garantir o valor universal excepcional dos
patrimônios da humanidade (UNESCO, IPHAN, 2015; 2016).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
393
Figura: Ciclo de Gestão de Risco de Desastre (GRD)
Fonte: UNESCO; IPHAN, 2015, p. 18.
A compreensão da ideia de risco implica na análise de
diferentes elementos e se faz possível a partir de amplos sentidos
e interpretações, os quais se referem a historicidade do conceito e
as percepções experienciadas pela contemporânea “sociedade de
risco” - pautada nos tópicos da globalização, individualização e
reexividade (BECK, 1986). Nesse sentido, a produção globalizada
distribui os efeitos nefastos do processo industrial, gerando uma
espécie de universalismo dos perigos. Contudo, ainda que esta
sociedade passe a gerar o risco e a naturalizar a convivência com ele e
suas consequências, existe uma capacidade de reexão da sociedade
sobre si mesma que permite alterar o cenário (ZANIRATO et al.,
2008). Segundo as teorias de risco trazidas ao debate por Zanirato
(et al, 2008) e Kalb e Carelli (2018) as percepções sobre a exposição
a perigos estão atravessadas pelos contextos sociais, culturais,
políticos e econômicos e por isso não devem ser analisados apenas
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
394
sob o viés técnico e cientíco, mas também precisa levar em conta
as percepções da população. Desse modo, compreende-se que a
atenção a tais aspectos pode contribuir para se pensar os riscos que
afetam os patrimônios culturais e as ações de proteção, prevenção
e gestão.
Nos estudos de Kalb e Carelli sobre a sociedade de risco e de
acordo com a teoria de Beck, a relação entre os seres humanos
seria permeada por diversos riscos e perigos decorrentes da ação
humana. Os riscos dessa era moderna seriam diferentes do período
anterior, uma vez que “as ameaças nucleares, químicas, biológicas
e biológicas da contemporaneidade não são (a) delimitáveis, nem
social nem temporalmente; (b) imputáveis de acordo com as regras
prevalecentes de causalidade, culpa e responsabilidade; nem (c)
compensáveis ou asseguráveis” (BECK, 1995 apud KALB; CARELLI,
2018, p. 20). Assim, para Beck, Giddens e Lash, a produção intensiva
de riscos de destruição está diretamente relacionada à vitória da
modernização ocidental e do capitalismo, isto é, o progresso desses
processos é proporcional à sua própria autodestruição. Haveria
então uma tendência globalizante dos riscos, pois estes passaram
a ser independentes do local onde são produzidos. Desse modo,
as autoras identicam que Beck arma que a sociedade de risco é
uma comunidade de perigo – partindo de uma perspectiva realista
reexiva atravessada pelo construtivismo institucional –, posto
que esta sociedade ultrapassa as barreiras geográcas, políticas e
sociais. Acrescenta-se a reexão de Brüseke para concordar que
estes riscos sociais e ambientais produzidos pela sociedade têm sido
distribuídos de forma desigual (KALB; CARELLI, 2018).
Silvia Helena Zanirato (2010) arma que o processo de deterioração
dos patrimônios está relacionado aos materiais que constituem os
bens culturais, de modo que quanto mais as condições ambientais
permanecem relativamente estáveis, menor e mais lento é a sua
degradação. Alguns fatores podem atingir os patrimônios de forma
gradual e cumulativa, só sendo percebidos após um dado período de
tempo, como por exemplo devido a atividades humanas negligentes
que se expressam em consequência das pressões urbanas, turismo
descontrolado, predomínio dos interesses econômicos. Segundo
Zanirato, os relatórios publicados pelo Painel Intergovernamental
sobre Mudança do Clima (IPCC) em 2004 zeram com que a
UNESCO viesse a considerar as ameaças oriundas das mudanças
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
395
climáticas entre os fatores de risco ao patrimônio mundial. Com
isso, a autora informa que em 2006 o Comitê intergovernamental
responsável pelas políticas do patrimônio indicou a realização
de estudos a respeito dos impactos das mudanças climáticas nos
patrimônios e dos processos socioculturais que os envolvem. Assim,
o Comitê começou a averiguar a vulnerabilidade dos locais em
que se situam Patrimônios Mundiais, observando aspectos como
exposição, sensibilidade e capacidade de adaptação aos efeitos das
alterações climáticas, além de analisar a necessidade de formulação
de estratégias para as regiões entendidas como mais suscetíveis. Na
conclusão de suas investigações, Zanirato argumenta que a temática
do risco não está restrita ao olhar técnico, mas que é profundamente
atravessada por questões políticas. (ZANIRATO, 2010).
Riscos e desaos à preservação de Ouro Preto
Em 1980 Ouro Preto é inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da
Unesco. A avaliação para sua inscrição (Advisory Body Evaluation)
foi feita pelo ICOMOS. Os argumentos para inclusão enfatizam sua
importância durante o ciclo do ouro no século XVIII e destacam o
caráter singular de sua produção artística e arquitetônica barroca.
A análise assim ressalta o conjunto histórico por sua notável
homogeneidade e harmônico encaixe com a paisagem. Além disso
aponta a genialidade de seus artistas nas construções religiosas e civis
e na formação de uma arte originalmente nacional, desenvolvida
em uma acidentada topograa (ICOMOS, 1980). Nesse sentido, o
documento apresenta a seguinte justicativa:
Localizada 513 km ao norte do Rio de Janeiro, Ouro Preto foi o principal
ponto focal de todo o período denominado “a idade de ouro do Brasil”.
Originalmente chamada de Vila Rica, esta cidade desempenhou um
papel importante na história do Brasil no século 18. Foi criada por
milhares de homens ansiosos por fortunas e por enriquecer explorando
os depósitos de ouro; tais indivíduos foram seguidos por um grande
número de artistas que vieram para se estabelecer e realizar obras de
uma notável qualidade como a igreja de São Francisco de Assis do
Aleijadinho. Ouro Preto é considerada um patrimônio ímpar por suas
igrejas, sua arquitetura urbana simples mas original, suas pontes, suas
fontes e sua localização. É principalmente sua homogeneidade geral
e caráter global que o tornam uma propriedade cultural única. Como
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
396
primeira capital do estado de Minas, Ouro Preto é de interesse local;
como centro mineiro da Idade de Ouro do Brasil, é de interesse nacional,
e como centro único da arquitetura barroca, tem um valor universal
excepcional. Ouro Preto é uma obra-prima artística e urbanística ímpar
e indicada para inclusão na Lista do Patrimônio Mundial pelos critérios
1 e 3 da Convenção. (ICOMOS, 1980, tradução nossa)
Apesar do amplo reconhecimento de sua importância, o
conjunto histórico de Ouro Preto enfrenta diversos problemas, dos
quais se destacam: ocupação desordenada dos morros circundantes;
descaracterização paisagística e arquitetônica; ameaças à proteção
do sítio arqueológico do Morro da Queimada; áreas de instabilidade
geológica; infraestrutura urbana insuciente; obras irregulares;
falsicações históricas; impactos do trânsito pesado na zona do
núcleo histórico; diculdade de scalização; risco de incêndios;
poluição atmosférica e corrosão dos monumentos; turismo
predatório; depredações patrimoniais; desaparelhamento dos
agentes preservacionistas. (GRAMMONT, 2005; MADUREIRA,
2010; SALGADO, 2010; SANTANA, 2012).
Isadora Ribeiro (2021) arma que o crescimento acelerado
da cidade de Ouro Preto durante os anos 1980 e sua elevação a
Patrimônio Mundial zeram surgir novas nuances na dinâmica deste
espaço, levando a transformações na paisagem e à necessidade de
inclusão dos morros circundantes nos parâmetros de preservação.
Dessa maneira, diferentes utilizações e apropriações do território
foram sendo absorvidas no núcleo urbano em meio a um contexto
não resolvido de conitos e divergências entre população local,
Prefeitura e IPHAN. Assim, a autora aponta que muitas vezes as
atribuições se confundem e as esferas responsáveis pela proteção
do patrimônio se atrapalham na execução de suas funções. Ainda, a
comunidade se queixa de que mesmo com o título de Monumento
Mundial poucas melhorias foram realizadas para a cidade de modo
mais abrangente (RIBEIRO, 2021, p. 87-97; 117).
Benedito Tadeu de Oliveira, na época diretor da II Sub-Regional
da 13ª Superintendência do Iphan, publicou no Jornal do Brasil
“Ouro Preto, a destruição pelas bordas” (2003). Seu texto trata dos
problemas que vinham colocando o patrimônio da cidade em um
cenário preocupante de deterioração. Começando pelo crescimento
acelerado e desordenado que acarretou na ocupação de encostas e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
397
áreas de risco geológico, além de espaços de sítios arqueológicos.
Segundo Benedito Oliveira, tal situação não só trouxe uma piora
na qualidade de vida, como também descaracterizou a paisagem na
qual se enquadra o conjunto arquitetônico. O responsável destacou
os demais pontos de atenção: danos causados pelo trânsito às
edicações, construções irregulares, adensamento e alterações
nos espaços internos dos imóveis, substituição de materiais e dos
sistemas construtivos. Outra questão importante para Oliveira são
as condições de trabalho do IPHAN. Ele argumenta que, naquele
momento, o Instituto não possuía estrutura suciente para monitorar
todas as obras que aconteciam na cidade, scalizando apenas parte
da Zona de Proteção Especial (ZPE) enquanto as áreas de proteção
ambiental e paisagística cavam quase sem supervisão. Diante disso,
Benedito chega a dizer que o não IPHAN estaria executando “um
trabalho de preservação na cidade, mas, sim, apenas, um trabalho
de resistência à sua destruição” (OLIVEIRA, 2003).
Em Ouro Preto a Carta Geotécnica e o Plano Diretor de 1996 não vêm
sendo considerados nas ocupações urbanas. Na cidade não existem o
Código de Edicações e Obras, a Lei de Uso e Ocupação do Solo nem
um sistema eciente de prevenção e combate a incêndios. (...) Ouro
Preto encontra-se, portanto, em um processo acelerado e progressivo
de deterioração de natureza quase irreversível. Um Plano para a
Recuperação Ambiental, Paisagística e Arquitetônica de Ouro Preto
envolve iniciativas amplas e diversicadas, contemplando ainda
ações nas áreas de pesquisa histórica e arqueológica, manutenção
preventiva do patrimônio edicado e educação patrimonial e
ambiental. A tarefa de conservação do patrimônio cultural e ambiental
da cidade é gigantesca e pode gerar postos de trabalho permanentes
no município, contribuindo também para o aumento do turismo e para
a dinamização da economia regional. Só uma ação conjunta entre os
governos municipal, estadual e federal pode retirar Ouro Preto da rota
de expansão desordenada e autodestrutiva, e colocá-la no caminho do
desenvolvimento e da preservação auto-sustentável. (OLIVEIRA, 2003)
Em 14 de abril de 2003, ocorreu um incêndio no Hotel Pilão,
casarão localizado no centro histórico de Ouro Preto, na Praça
Tiradentes, principal via turística da cidade. Conforme reportagem
da Folha de São Paulo, o fogo teria começado no segundo andar do
casarão e se propagou facilmente devido às estruturas em pau-a-
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
398
pique e assoalhos de madeira - materiais muito inamáveis. A notícia
arma que a rede de hidrantes não foi suciente para controlar
o incêndio, sendo necessária a ajuda de carros-pipa de empresas
privadas e o reforço da guarnição de bombeiros de Belo Horizonte
no combate. Alguns edifícios localizados próximos também teriam
sido afetados pelo calor das chamas, apresentando pequenos focos
de fogo (INCÊNDIO, 2003, online). O Jornal do Brasil destacou
que o sinistro aconteceu dois dias após a visita da delegação da
UNESCO a Ouro Preto, que havia sido enviada à cidade justamente
para avaliar as condições de preservação das edicações tombadas e
reconhecidas como Patrimônio Histórico da Humanidade (FOGO,
2003)
Figura: incêndio no Hotel Pilão 14 de abril de 2003.
Fonte: Ronald Péret
Outra questão séria em Ouro Preto é o risco geológico e que
recentemente teve grande repercussão midiática. Conforme
publicado, no dia 13 de janeiro de 2022, houve um deslizamento
de terra no Morro da Forca destruiu um casarão neocolonial do
século XIX e um depósito, situados próximo ao Centro de Artes
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
399
e Convenções da UFOP e à Praça da Estação. Conforme informa
reportagem do G1 Minas (MANSUR, 2022), o casarão estava
interditado desde 2012 quando outro deslizamento já tinha ocorrido
no local e os técnicos chegaram à conclusão de que não havia
segurança para ocupação do espaço. Assim, como o risco havia sido
identicado anteriormente o imóvel estava vazio, o que garantiu
que ninguém se ferisse. O Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil
foram chamados por volta de 8:30 para vericar a situação e diante
dos riscos a área do entorno foi evacuada, criando-se um cordão de
isolamento. Logo em seguida, às 9:10, o deslizamento ocorreu, como
indica a notícia. Segundo entrevista da Defesa Civil e do Corpo
de Bombeiros ao G1 Minas, três elementos contribuíram para
esta ocorrência: declividade da encosta, características geológicas
da região e o acúmulo do grande volume de chuvas desde 26 de
dezembro, deixando o solo saturado (MANSUR, 2022, online).
Além disso, a Rádio Itatiaia informou que segundo os Corpo de
Bombeiros ainda persistia uma instabilidade do talude, de modo
que se ocorresse outro desmoronamento poderiam ser afetados um
hotel e um restaurantes próximos (PAVANELLI, 2022, online).
Figura: Desmoronamento do Morro da Forca em Ouro Preto destruindo o casarão Solar
Baeta Neves, 13/01/2022
Fonte: Ane Souz (Folha de S. Paulo)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
400
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos anos diversos desaos foram colocados à
salvaguarda de Ouro Preto. O crescimento da cidade aliado ao
aumento populacional, intensicação do turismo geraram novas
dinâmicas que impactaram seu patrimônio histórico. Tal situação
demandava novas obras para adequação da infraestrutura urbana,
maior scalização e implementação do Plano Diretor. Diante
dessas diculdades a cidade passou a sofrer, por exemplo, com a
ocupação desordenada, deslizamentos de terra e tráfego pesado no
núcleo histórico. Por conseguinte, acentuou-se um sério processo
de descaracterização da paisagem e degradação do patrimônio
histórico. Perante a este cenário, soma-se o incêndio do Hotel Pilão,
em que a precária infraestrutura de combate não foi suciente
para impedir o casarão de ser rapidamente consumido pelas
chamas, deixando uma grande lacuna na Praça Tiradentes. O triste
acontecimento deixou exposta a vulnerabilidade de Ouro Preto,
tendo em vista suas particularidades enquanto conjunto colonial.
Mais recentemente, em 2022, assistimos a outra perda com a
destruição do solar Baeta Neves devido ao deslizamento de terra no
Morro da Forca - região esta que já é conhecida há anos como área
de instabilidade.
Logo, a exposição aqui feita pretende evidenciar a importância
de um política de salvaguarda integrada, de forma que a gestão do
patrimônio e o planejamento urbano estejam alinhados em diálogo
e ação. Constatamos, então, que é fundamental a articulação entre
as diversas autoridades governamentais e a efetiva participação da
comunidade nesse processo. Diante disso, é preciso atestar o papel
do cuidado constante e da manutenção preventiva, a m de que não
se abra espaço para que a deterioração progressiva faça com que
riscos que poderiam ser previamente identicados e controlados se
transformem em desastres.
REFERÊNCIAS
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad.
Barcelona: Paidós, 1986 (2006).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
401
BRITO, Giovana Martins. “Riscos e desaos à preservação de Ouro Preto”. In:
TOSTES, Eduarda Guerra; TURQUETI, Lavínia Renata de Oliveira; CAMPOS
E SOUZA, Marco Antônio (orgs.). Anais da XXXVIII Semana de História
da Universidade Federal de Juiz de Fora. Por uma história decolonial:
Gênero, raça e classe na América Latina. Juiz de Fora, 2022. pp. 731-749.
BRITO, Giovana Martins. Percepções sobre o patrimônio mundial em
risco: o caso de Ouro Preto. Dissertação (Mestrado em História). Juiz de
Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora. (Não publicado).
“FOGO destrói prédio secular: Casarão de 300 anos desaba em Ouro Preto”.
Jornal do Brasil, 15 abr. 2003. O País/Política, p. A4
KALB, Christiane Heloisa; CARELLI, Mariluci Neis. “Dos riscos ao patrimônio
cultural em debate: o olhar da Sociologia Ambiental”. Mouseion
(UnilaSalle), Canoas, 30 ago. 2018. p. 09-27.
GRAMMONT, Anna Maria de. Os signicados do Patrimônio Histórico:
uma reexão em torno do Hotel Pilão de Ouro Preto. 2005. Dissertação
(Mestrado em Cultura e Turismo). Ilhéus: Universidade Federal da Bahia,
2005.
“INCÊNDIO atinge construções dos séculos 17 e 18 em Ouro Preto”. Folha
de São Paulo, 14 abr. 2003. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.
br/folha/cotidiano/ult95u73088.shtml>. Acesso em 20 jul. 2023.
ICOMOS. Advisory Body Evaluation – Historic Town of Ouro Preto, 1980.
Disponível em: <https://whc.unesco.org/en/list/124/documents/> Acesso
em 15 jan. 2024.
MADUREIRA, Mariana. “Centros Coloniais, Patrimônio histórico e
Autenticidade: Análise da reconstrução do Casarão do Hotel Pilão – Ouro
Preto (MG)”. Revista Eletrônica de Turismo Cultural, v. 4, n. 1, p. 23-38, 1º
Semestre 2010.
MANSUR, Rafaela. “Deslizamento destrói casarão histórico em Ouro Preto”.
G1 Minas, 13/01/22. Disponível em: <https://g1.globo.com/mg/minas-
gerais/noticia/2022/01/13/deslizamento-destroi-casarao-historico-em-
ouro-preto-videos.ghtml> Acesso em 19/10/2023.
OLIVEIRA, Benedito Tadeu de. “Ouro Preto, a destruição pelas bordas”.
Jornal do Brasil, 29 abr. 2003. Outras opiniões, p. A14.
OLIVEIRA, Melissa Ramos da Silva. Gestão patrimonial em Ouro Preto:
alcances e limites das políticas públicas preservacionistas. Dissertação
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
402
(Mestrado em Geograa). Campinas: Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Geociências, 2005.
PAVANELLI, Lucas. “Ouro Preto: estudo mostra que 3 mil moradores vivem
em área de risco”. Itatiaia. 13/01/2022. Disponível em: <https://www.
itatiaia.com.br/noticia/ouro-preto-estudo-mostra-que-3-mil-moradores-
vivem-em-area-de-risco> Acesso em: 02 nov. 2023.
RIBEIRO, Isadora Parreira. Ouro Preto: de Monumento Nacional
a Patrimônio Mundial: Estudo do impacto das classicações na
comunidade local. Dissertação (Mestrado em História da Arte, Patrimônio
e Cultura Visual). Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2021.
SALGADO, Marina. Ouro Preto: Paisagem em transformação. Dissertação
(Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável). Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura,
2010.
SANTANA, Marcela Maciel. As bordas da cidade colonial: um estudo
da paisagem tombada de Ouro Preto (MG). Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo). Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 2012.
SILVA, Patrícia Reis da. A Postura da Municipalidade na Preservação
do Patrimônio Cultural Urbano. Dissertação (Mestrado em Arquitetura
e Urbanismo - Área de Concentração em Teoria e História). Brasília:
Universidade de Brasília, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2006.
UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural
e Natural. (Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura), Paris, 17 a 21 nov. 1972.
UNESCO; IPHAN. Gestão de riscos de desastres para o Patrimônio
Mundial (Manual de referência do patrimônio mundial). Brasília, 2015.
UNESCO; IPHAN. Gestão do Patrimônio Mundial Cultural (Manual de
referência do patrimônio mundial). Brasília, 2016.
ZANIRATO, Silvia Helena et al. “Sentidos do risco: interpretações teóricas”.
Biblio 3W, Revista Bibliográca de Geografía y Ciencias Sociales,
Universidad de Barcelona, Vol. XIII, no 785, 25 de maio de 2008.
ZANIRATO, Silvia Helena. “Experiências de prevenção de riscos ao
patrimônio cultural da humanidade”. Ambiente & Sociedade, Campinas,
v. XIII, n. 1, p. 151-164, jan./jun. 2010.
DIFERENTES USOS DO
PATRIMÔNIO CULTURAL:
PENEDO-AL E O PROGRAMA DE
ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO
DAS CIDADES HISTÓRICAS (PAC-
CH)
Ana Beatriz Santos1
Maria Raiane dos Santos 2
Silvana Pirillo Ramos 3
Introdução
O reconhecimento de um patrimônio artístico-cultural de valor
pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN)
levou, em 1995, ao tombamento do sítio histórico de Penedo,
como patrimônio nacional e a tornar-se a única cidade de Alagoas
contemplada com dois programas de revitalização do patrimônio
1 Bacharel em Turismo pela Universidade Federal de Alagoas. E-mail:
beatrizsantosturismo@gmail.com
2 Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bacharel em Turismo pela Universidade Federal de Alagoas. E-mail: maria.raiane@
arapiraca.ufal.br
3 Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Professora Titular da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: silvanapirillo@uol.com.br
403
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
404
mais signicativos do país, com maior volume de recursos, na área
de recuperação de sítios históricos: o Programa Monumenta, e o
Programa de Aceleração do Crescimento das Cidades Históricas
(PAC-CH). Com o foco na preservação do patrimônio histórico e
pensando no desenvolvimento econômico e turístico das cidades, o
PAC-2007 foi reformulado em 2009, tornando-se PAC-CH, com o
intuito de contemplar cidades que possuíam patrimônios protegidos
no país.
As obras do PAC-CH foram realizadas entre os anos de 2009 e
2018, contou com ações de reformas, requalicação, revitalização e
recuperação de locais que possuíam determinado valor simbólico
e cultural para a região, como o eatro Sete de Setembro, Casarão
do Monte Pio dos Artistas, Galpões da Orla do Rio São Francisco e
demais atrativos beneciados pelo programa (SANTOS; SANTOS,
2022). Suas metas e objetivos visavam a requalicação urbanística,
infraestrutura urbana, nanciamento para recuperação de imóveis
privados, recuperação de monumentos e imóveis públicos, fomento
às cadeias produtivas locais e promoção do patrimônio cultural,
de modo a proporcionar um maior uso e preservação da cultura e
história local (IPHAN, 2009).
As ações realizadas permitiram que os locais pudessem ser
mais bem utilizados pela população, uma vez que essas obras
beneciaram tanto no aspecto físico como também na conservação
da memória cultural de seus residentes. Essas ações contaram com
a elaboração de projeto para as obras nalizadas com a descrição
da intervenção que seria feita, bem como o uso proposto que seria
dado para esses atrativos.
Partindo desse pressuposto, esse trabalho teve como objetivos
analisar as condições dos atrativos e recursos turísticos de Penedo
antes e depois do PAC-CH e identicar os resultados e impactos
das ações do programa no desenvolvimento do Turismo e na
preservação do patrimônio cultural.
A metodologia se baseou em uma abordagem qualitativa,
desenvolvida por meio de levantamento e análise dos documentos
da gestão municipal, estadual e do IPHAN. Foram feitas entrevistas
com gestores das políticas públicas de turismo e de preservação
do patrimônio cultural e análise dos atrativos e recursos turísticos
em perspectiva comparativa de situação antes e depois do PAC-
CH, no que se refere ao potencial de atratividade e dinamização
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
405
para o turismo, a preservação e a sustentabilidade. Foi realizado
também uma recolha do histórico do programa, bem como a sua
relação com o turismo, cultura local, planejamento turístico e
cultural, desenvolvimento dos instrumentos analíticos, planos de
desenvolvimentos, atuação conselho municipal de turismo e do
fundo de preservação do patrimônio histórico.
Na coleta de dados, foi aplicado um roteiro de entrevista com
perguntas pré-elaboradas e denido quem seriam os entrevistados,
como por exemplo, gestores públicos, representante da sociedade
civil, membros do Conselho Municipal de Turismo e do Fundo
Municipal de Turismo.
Programa de Aceleração do Crescimento das
Cidades Históricas (PAC-CH) em Penedo – AL
A cidade de Penedo por sua relevância histórica e cultural,
foi o único município do Estado de Alagoas beneciado por
dois programas de revitalização do patrimônio, o PAC-CH e o
programa Monumenta. O programa PAC-CH foi criado em 2007
como Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e em 2009
ele foi reformulado para Programa de Aceleração do Crescimento
das Cidades Históricas (PAC-CH), com o foco na revitalização e
restauração de patrimônios materiais (LEAL; MORAES, 2017)
Conforme aponta o IPHAN (2009, p. 5),
o programa é uma ação intergovernamental articulada com a
sociedade para preservar o patrimônio brasileiro, valorizar nossa
cultura e promover o desenvolvimento econômico e social com
sustentabilidade e qualidade de vida para os cidadãos.
Em 2013, o programa teve seu lançamento a nível nacional,
contemplando 44 municípios brasileiros, apresentando entre eles,
a cidade de Penedo-AL. Os municípios escolhidos possuíam um
signicativo acervo de patrimônio protegidos, e demais ações
visando a promoção turística da região. De acordo com Santos e
Santos (2022, p. 22), o programa contou com:
uma linha de nanciamento de R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões),
para a recuperação de patrimônios privados como imóveis particulares
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
406
e imóveis com uma linha de nanciamento de R$ 300.000.000,00
(trezentos milhões), para a recuperação de patrimônios privados como
imóveis particulares e imóveis com relevância cultural e histórica nas
áreas tombadas da cidade de Penedo.
Com relação aos imóveis privados, para que eles pudessem
receber esse nanciamento, era necessário fazer a sua inscrição no
processo licitatório que abria para a escolha dos locais privados que
seriam contemplados pelo programa.
As obras concluídas segundo o portal do IPHAN (2014), foram:
1. eatro Sete de Setembro;
2. Casarão do Montepio dos Artistas;
3. Círculo Operário - Escola de Santeiros;
4. Casarão da Biblioteca de Penedo;
5. Galpões da Orla do Rio: implantação da Escola Náutica,
Ocina e Marina Pública;
6. Chalet dos Loureiros: implantação do Centro de Referência
do São Francisco;
7. Requalicação urbanística do Largo de São Gonçalo;
8. Recuperação do Cais da Marina de Penedo.
Após a realização das obras, elas foram entregues para a cidade,
e tinham como foco, segundo Santos e Santos (2022, p. 20), “a
preservação do patrimônio e o desenvolvimento local e sustentável,
suscitando em melhorias no bem-estar da comunidade e na
infraestrutura”.
Condições dos atrativos e recursos turísticos
de Penedo antes e depois do PAC-CH e
Monumenta
Os atrativos que foram beneciados pelos programas se
encontravam sem um uso designado para o turismo, e em outros
casos, sem qualquer utilização. Com base no levantamento feito
com os atrativos abaixo apresentados, observou-se que apesar das
ações realizadas, não houve um planejamento turístico pensando
na sua utilização após as obras feitas, nem o seu desenvolvimento
pensando na sua autossustentabilidade.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
407
As ações realizadas nos locais contaram com intervenções
gerais, restauração total, reformas, recuperação e conservação da
infraestrutura, alargamento de ruas e pavimentações, requalicação
urbanística, entre outros, que buscou possibilitar uma melhor
utilização desses locais após as atividades realizadas. Entre as
intervenções realizadas, destacamos a Marina Náutica, o Galpão
e a Escola Náutica, que antes dos programas encontravam-se em
situação de abandono e como despejo de lixos.
Como um dos resultados encontrados, percebeu-se que
as obras do PAC-CH e do Monumenta, embora revitalizadas,
estão subutilizadas no que se refere aos usos turísticos. Não há
planejamento interpretativo desses espaços que possa potencializar
o uxo de turistas culturais no município e gerar atratividade.
Dessa forma, apesar das obras estarem concluídas e a agenda de
política pública se revelar cumprida, esses espaços e monumentos
não foram adequadas aos novos usos propostos, a meta de torná-
los autossustentáveis não se concretizou e tampouco resultou
em fomento ao desenvolvimento do turismo, demonstrando
que não houve um planejamento turístico do uso dos espaços
que possibilitasse autossutentabilidade desses monumentos e
consequentemente o desenvolvimento do turismo local.
Nas guras, abaixo, apresentamos o estado físico dos locais antes
e após as intervenções feitas pelos programas:
Figura 1 - Theatro Sete de Setembro antes do Programa
Fonte: Desconhecida (s/ano).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
408
Figura 2 e 3 - Theatro Sete de Setembro após o Programa
Fontes: Lucas Meneses (2021); Kaio Fragoso (s/ano).
Figura 4 - Casarão do Montepio dos Artistas antes do Programa
Fonte: Aqui Acontece (s/ano).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
409
Figura 5 - Casarão do Montepio dos Artistas após o Programa
Fonte: Aqui Acontece (s/ano).
Figura 6 - Chalet dos Loureiros antes do Programa
Fonte: Aqui Acontece (s/ano)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
410
Figura 7 - Chalet dos Loureiros após Programa
Fonte: Boa Informação (2018).
Figura 8 - Largo de São Gonçalo antes do Programa
Fonte: Egberto Araújo (2014).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
411
Figura 9 - Largo de São Gonçalo após o Programa
Fonte: Prefeitura Municipal de Penedo-AL (2018).
Figura 10 - Antigo espaço da Marina Náutica antes do Programa
Fonte: Desconhecida (s/ano).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
412
Figura 11 - Galpão, Escola Náutica, ocina e Marina Náutica antes do Programa
Fonte: Prefeitura Municipal de Penedo-AL (2016).
Figura 12 - Cais da Marina; Galpão; Escola Náutica; ocina e Marina Náutica após o
Programa
Fonte: IPHAN (2019).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
413
Figura 13 - Píer da Marina após Programa
Fonte: Ana Santos (2021).
Considerações nais
De acordo com a análise realizada, das nove obras denominadas
no projeto do PAC-CH na cidade de Penedo/AL, apenas sete foram
apresentadas como concluídas. E dentre elas, somente uma pode
ser denominada como autossustentável, uma vez que o restante
necessita do poder executivo para manutenção, reparos e operação
administrativa para o funcionamento diário.
Além de contar com um alto nanciamento federal, o PAC-CH
também possuía o objetivo de recuperar os patrimônios privados,
imóveis particulares e com relevância cultural e histórica nas
áreas tombadas da cidade. Como relatado, esses prédios estavam
em estado de abandono e sem utilização, mas somente um ano
depois da implantação duas obras foram iniciadas e em 2021, ainda
existiam obras inacabadas e sem a concretização ideal do projeto.
Ainda assim, vale ressaltar que o Cine Penedo, no ano de 2023,
foi reinaugurado, desvinculado do programa, benefício e da ideia
inicial do projeto realizado.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
414
Apesar dos atrativos terem sido reformados, requalicados,
revitalizados e restaurados, o uso que foi proposto nos projetos
de execução não foi alcançado. De acordo com Santos e Santos
(2022), não houve a utilização e implantação de usos desses locais
pensando no desenvolvimento do Turismo na cidade, e nem na
inclusão participativa dos moradores no processo de planejamento
e execução das ações realizadas.
A falta da educação patrimonial foi outro empecilho
identicado para o cumprimento das metas dos programas
acerca da autossutentabilidade dos monumentos, ressaltando a
importância da integração da comunidade nas ações propostas em
um planejamento integrado e participativo. Como o PAC-CH se
integra a conservação integrada, é importante obter a participação
da comunidade, uma vez que há realizações das ações que envolvem
a preservação e restauração do patrimônio cultural que representa a
identidade do local. A qual necessita da educação patrimonial seja
um elo, para que assim possibilite o sentimento de pertencimento
na comunidade (SANTOS; SANTOS, 2022).
Tendo em vista, a análise realizada no decorrer dessa pesquisa,
apurou-se que o Programa PAC-CH no município de Penedo,
no Estado de Alagoas, foi falho, tendo em vista que as metas não
foram desenvolvidas e o foco da autossustentabilidade ainda não é
realidade nesses móveis que foram recuperados.
Referências
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (Iphan).
Programa de Aceleração do Crescimento – Cidades Históricas.
Patrimônio, Desenvolvimento e Cidadania. Ministério da Cultura.
Brasília: Iphan, 2009. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/
ckfinder/arquivos/Cidades%20Hist%C3%B3ricas%20-%20Noticias%20
1%202009.pdf. Acesso em: 12 nov. 2023.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (Iphan).
Obras do PAC Cidades Históricas em Penedo (AL). Disponível em: http://
portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1773/. Acesso em: 10 dez. 2023.
LEAL, Sarah Floresta; MORAES, Fernanda Borges. Rupturas da formulação à
Implementação das políticas públicas: aspectos do desenvolvimento local
no PAC-CH. v. 17 n. 1 (2017). Anais do XVII ENANPUR, São Paulo: 2017.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
415
15 p. Disponível em: http://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/
article/view/2119/2098. Acesso em: 12 nov. 2023
SANTOS, Ana Beatriz da Silva; SANTOS, Maria Raiane dos. Planejamento
e desenvolvimento do turismo e sua relação com as políticas públicas
de preservação do patrimônio cultural em Penedo-AL. 2022.Trabalho
de Conclusão de Curso (Curso de Graduação em Turismo) - Universidade
Federal de Alagoas, Campus Arapiraca - Penedo, 2022. Disponível
em:https://ud10.arapiraca.ufal.br/repositorio/publicacoes/4664. Acesso
em: 12 nov. 2023
“PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
NA PAISAGEM HISTÓRICA
URBANA DE SALVADOR: LUTAS
E ESTRATÉGIAS DE EXISTÊNCIA
NO CENTRO HISTÓRICO”
Angélica Mello de Seixas Borges1
Fabio Pina de Souza2
Lívia Rebellato3
Natalia Gabriel Rodrigues4
Introdução
Esse artigo se propõe a contribuir com o debate acerca dos
processos de patrimonialização e a diculdade de considerar as
relações sócio-espaciais em suas ações. Para isso, escolheu-se o
Frontispício da cidade de Salvador como foco gerador do debate e
se buscou construir uma trajetória que passa por termos e conceitos
1 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia-UFBA.
E-mail: angelicamsborges@gmail.com
2 Doutorando em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia-UFBA.
E-mail: fpsouza2@yahoo.com.br
3 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia-UFBA.
E-mail: liviarebellato@gmail.com
4 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Bahia-UFBA.
E-mail: ngr.tour@gmail.com
416
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
417
utilizados no patrimônio, pelas ações de patrimonialização
realizadas no Centro Histórico e no Centro Antigo da cidade de
Salvador e o tensionamento com os movimentos sociais, que lutam
para que suas pautas sejam ouvidas e contempladas.
Os termos Paisagem Cultural e Paisagem Histórica Urbana
são estudados pelo seu processo de formação enquanto resposta
a demandas reais de ampliação da signicação de patrimônio. Os
Centros Históricos foram motor desse processo de alargamento de
signicado. O Centro Histórico e Antigo da cidade de Salvador, por
sua vez, ao ser patrimonializado, também lidou com a situação de
abandono de investimentos públicos que requalicasse a região.
Após alguns planos, ações foram tomadas nesse sentido, no entanto,
o foco dado foi econômico em detrimento do social. A partir dos
anos 2000, com a falência do modelo aplicado, o habitar passou a
integrar ações na área estudada. No entanto, os movimentos sociais
denunciam que suas pautas não têm sido bem solucionadas no
processo. Atualizar esse debate é necessário para que ações futuras
sejam lastreadas em concepções mais amplas da problemática a ser
tratada.
Preservação do Patrimônio na Paisagem
Histórica Urbana do Centro Histórico de
Salvador
O Termo Paisagem Cultural é proveniente da geograa alemã do
nal do século XIX e início do século XX e signica paisagem que
sofreu interferência do homem, em oposição à paisagem natural
(RIBEIRO, 2016, p. 239), essa denição está presente em diversas
cartas e recomendações patrimoniais. A partir de 1992, esse
conceito foi adotado pela UNESCO e incorporado como uma nova
tipologia de reconhecimento dos bens culturais. Anteriormente, os
sítios reconhecidos nessa categoria eram relacionados a áreas rurais,
sistemas agrícolas tradicionais, jardins históricos e outros locais de
cunho simbólico. Apesar disso, existem restrições para inscrição de
espaços urbanos dentro dessa categoria.
Diante dessas diculdades de abordagens mais amplas, que
integrem ao mesmo tempo o centro histórico e área urbana na qual
ele está inserido, as práticas culturais e valores imateriais associados
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
418
ao sítio, foi criado o Memorando de Viena de 2005, voltado para
cidades históricas já inscritas ou em processo de inscrição na lista
de Patrimônio Mundial, assim como grandes cidades que tenham
monumentos e sítios inscritos dentro de seu território (UNESCO,
2005, p.01). Dessa forma, o termo Paisagem Histórica Urbana
é trazido e adquire o seu valor excepcional e universal a partir
de uma evolução gradual e ordenamento territorial ao longo de
um determinado período, através de processos de urbanização
que integram as condições ambientais e topográcas, além de
expressarem valores económicos e socioculturais inerentes a cada
sociedade. Ademais, ele considera a herança histórica urbana das
cidades, além da sua conguração espacial, exigindo uma política
de gestão que tenha como ponto de partida a preservação da
integridade e da autenticidade das cidades históricas.
Na cidade de Salvador, fundada em 1549, a Paisagem Histórica
Urbana é evidenciada pela vista do frontispício da cidade,
considerado um dos mais ricos conjuntos arquitetônicos do período
colonial do Brasil e declarado Patrimônio Cultural da Humanidade,
pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), em 1985. Os sítios candidatos a patrimônio
mundial, devem satisfazer a alguns critérios de seleção. De acordo
com a avaliação do Órgão Consultivo do Conselho Internacional
de Monumentos e Sítios (ICOMOS), realizada em julho de 1985, foi
recomendado a inscrição do Centro Histórico de Salvador na lista
de Patrimônio da Humanidade por atender aos critérios IV e VI:
Critério IV: Salvador é um exemplo eminente de estruturação urbana
do Renascimento adaptado a um sítio colonial com uma cidade alta
de carácter defensivo, administrativo e residencial dominando uma
cidade baixa onde as funções comerciais se concentram em torno
do porto. [...] Critério VI: Salvador é um dos principais pontos de
convergência de culturas Europeu, Africano e Ameríndio do século XVI
ao século XVIII. (UNESCO, 1985, p. 02).
Nesse contexto, a valorização do patrimônio cultural
de uma cidade representa uma busca por uma identidade coletiva
ou individual que gera ações para preservar e promover esses bens
culturais, essa atividade pode contribuir para o desenvolvimento
econômico e social da cidade. Ao longo da história surgiram
legislações protetivas direcionadas aos patrimônios e no Brasil
deu-se por meio das Constituições Federais. Ao observar o artigo
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
419
148, na Constituição Brasileira de 1934, encontramos que, cabe à
União, aos Estados e Municípios proteger os objetos de interesse
histórico e o patrimônio artístico do País (BRASIL, 1934). Já na no
art. 216 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2016), temos um
entendimento de patrimônio nacional, além de uma visão ampliada
de sua composição. O termo Patrimônio histórico e artístico foi
substituído por Patrimônio Cultural Brasileiro, reconhecendo o
bem não apenas pelo contexto histórico e sim com uma denição
muito mais ampla, relacionada pelo referencial e pela percepção
cultural do bem, incorporando o conceito de referência cultural e
a denição dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de
caráter imaterial.
Dessa forma, com a intenção de proteger o patrimônio das
cidades históricas da região Nordeste do Brasil, foram criadas
políticas governamentais de preservação e de desenvolvimento
urbano, como o Programa das Cidades Históricas (PCH), pelo
Ministério do Planejamento e Coordenação Geral (Miniplan) e o
Programa de Ação Cultural (PAC), com objetivo de preservar os
monumentos tombados, tornando-os economicamente viáveis
por meio de seu uso gerando renda advinda da atividade turística
nas regiões, embasados na história, nos aspectos ambientais, nas
manifestações artísticas e folclóricas locais. Alguns dos objetivos
especícos do PCH eram:
[...] restauração de [...] monumentos históricos, artísticos e expressões
culturais do Nordeste; participação [...]; formação de recursos humanos
para a restauração e preservação [...]; promoção e divulgação de
nossos monumentos de valor histórico e artístico, junto à comunidade
municipal [...]; promoção e divulgação dos mesmos monumentos a
nível nacional e internacional [...] (BRASIL, 1973, p. 2-4).
Assim, seguindo tendência mundial, que apontava a cultura
como o diferencial capaz de agregar mais valor, o centro histórico
de Salvador passou por diversos planos e projetos com intuito da
preservação e valorização, através de investimentos para recuperação
e adaptação de imóveis para implantação de lojas, hotéis, pousadas,
além de outros elementos da infraestrutura turística. O resultado
dessa proposta no Centro Histórico de Salvador, foi um processo
de gentricação, que expulsou moradores tradicionais e uma
população vulnerável, para transformar a área tombada numa
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
420
espécie de shopping center à céu aberto. Apesar do esforço para
preservação dos imóveis, vários deles permanecem vazios até hoje,
sem nenhuma integração social. Muitos dos cinco mil casarões
antigos só possuem a fachada, vários estão seriamente danicados
e com risco de desabamento. Ou seja, além das falhas quanto à
integração social, o próprio bem físico não está sendo devidamente
cuidado e a permanência do descaso com o patrimônio histórico, a
continuidade da especulação imobiliária estimulada pelos projetos
empresariais e demolições sistemáticas das edicações podem
prejudicar e ameaçar a estabilidade do título de Patrimônio da
Humanidade do local.
Dessa maneira, até hoje o Centro Histórico de Salvador sofre com
o processo de apropriação de parte do tecido urbano edicado por
empresas privadas, que fazem uso de mecanismos que dão origem
a um intenso processo de valorização especulativa dos imóveis
históricos a m de se dinamizar a área com novos usos como o
caso de alguns imóveis da Rua Chile, a exemplo de um importante
centro comercial do passado, com arquitetura e ambiência histórica
peculiares, ou ainda da transformação do imóvel histórico que já
foi o Palácio do Governo do Estado da Bahia, construído em 1919,
de nome Palácio Rio Branco, em hotel. Localizado na Praça Tomé
de Souza, este faz parte doconjunto que é tombado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como parte
do Centro Histórico de Salvador e integrante da Lista da UNESCO
como Patrimônio Mundial. Apesar de muitas manifestações por
parte da população, o imóvel foi adquirido pela empresa BM Varejo
Empreendimentos e vai ser transformado em hotel de luxo.
O conjunto urbanístico e arquitetônico contido na poligonal do
centro histórico de Salvador é constituído por vários monumentos
civil, militar e religioso, que foram tombados pelo IPHAN, entre 1938
e 1945, para garantir sua preservação. Dentre todos os instrumentos
legais de proteção dos bens culturais. O Tombamento, instituído
peloDecreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, foi o primeiro
instrumento legal de proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro e
é uma dasformas maisconhecidas deproteçãodosbens culturais
utilizada para a preservação do patrimônio público, uma vez que,
feita a inscrição do bem cultural, impede-se legalmente que eles
sejam destruídos ou mutilados. Mas não basta tombar, é necessário
existir a valorização das memórias afetivas e sociais do patrimônio
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
421
urbano, ampliar os canais de participação social nas operações de
identicação, seleção, conservação e gestão do local, considerando
as referências culturais da comunidade existente, além de investir
no fortalecimento de usos habitacionais e outros ligados à vida
cotidiana nessas áreas, possibilitando uma integração mais forte
entre os setores patrimonializados e a sociedade.
Frontispício e Comércio: Intervenções e
Propostas para Área
Consideramos importante trazer a construção da valorização
das memórias sociais e identidades coletivas (MOTTA, 2019, p.
90) como importantes instrumentos da concepção de patrimônio
cultural e paisagem cultural, seja no âmbito material e imaterial,
e seus reexos nas intervenções realizadas no Centro Histórico e
Antigo de Salvador (MOTTA, 2019, p.16), com destaque para o
bairro do Comércio e Frontispício5, entre as décadas de 1990 até
o momento atual. As intervenções identicadas para este artigo
recuperam um breve histórico, mas se referem primordialmente a
dois programas: “Programa de Recuperação do Centro Histórico”
(1992-2023) e “Plano Bairro do Comércio” (2021-2023) sob a
perspectiva das considerações que esses programas estabelecem, ou
não estabelecem, ações em conjunto com moradores locais em suas
demandas, vivências e memórias.
As principais atribuições para as considerações de patrimônio
cultural na década de 1930, década da formalização de legislações
e instrumentos para a área de patrimônio, a questão estéticas-
estilísticas da arquitetura colonial e excepcionalidades construtivas
eram os principais norteadores para formalização e formação do
patrimônio cultural brasileiro e da identidade nacional dentro de
5 IPHAN, 2014. “O conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico, contido na
poligonal do centro histórico de Salvador, é um dos mais importantes exemplares do
urbanismo ultramarino português, implantado em acrópole, se distinguindo em dois
planos: as funções administrativas e residenciais no alto e o porto e o comércio à beira-
mar. Aliada a uma topograa singular, a paisagem dessa área é formada basicamente
por edifícios dos séculos XVI ao XIX, na qual se destacam os conjuntos monumentais da
arquitetura religiosa, civil e militar”. “Pela riqueza de suas construções, foi inscrita no
Livro de Tombo Arqueológico, Etnográco e Paisagístico em 1984. Em 5 de dezembro
do ano seguinte, sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial foi raticada pela
Unesco”.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
422
um imaginário de um quadro social da memória e memória social
(MOTTA, 2019, p. 90). Entre as décadas de 1930 e 1960, esta
concepção patrimonial cultural perdurou como eixo das diretrizes
a serem seguidas e pouco considerou as referências culturais que,
conforme a Constituição de 1988, considera como parte integrante
do patrimônio cultural a memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, portadores de referências à identidade
e ações locais como importantes atributos na constituição de
um patrimônio cultural (MOTTA, 2019, p.94). Também, como
é descrito por Márcia Sant´anna, referente às reformas urbanas
entre as décadas de 1960 e 1970, a desconsideração à moradia e a
permanência de moradores locais já estavam nos planos:
[...] O plano de 1969 propunha remover a população pobre e destinar
os imóveis para usos turísticos, comerciais e de serviços, capazes de
dinamizar economicamente os bairros do Maciel e do Pelourinho, os
quais constituíam, há muito tempo, os focos de maior deterioração física
do centro antigo. A população da área era vista então como um entrave
ao sucesso de um plano de revitalização. (...) Assim, os primeiros planos
de recuperação das áreas protegidas do centro tinham como objetivo
“limpá-las” de uma população julgada incompatível com o centro da
cidade e com qualquer projeto de valorização. Previa-se nanciamento
da prefeitura para aquisição de casa própria apenas para aqueles que
concordassem em sair do bairro, e já se cogitava o uso de indenizações
para os que não preenchessem os requisitos nanceiros. (SANT’ANNA,
2017a, p. 81).
É notória a diculdade, que permanece até os dias de hoje, de as
intervenções nas áreas consideradas patrimônio cultural brasileiro,
arquitetônico e urbanístico, material e imaterial, considerarem
as ações, saberes, modos de fazer e usos sociais. Movimentos
sociais buscam que suas lutas pautem, com maior ênfase, às
ações governamentais. São os grupos e movimentos sociais,
por compreenderem suas vivências e permanências em locais
considerados de relevante valor histórico e patrimonial enquanto
algo essencial também para a sua preservação, que buscam fomentar
o diálogo e participação da sociedade civil junto às instâncias
governamentais e órgãos reguladores, como deve ser e aponta Lia
Motta:
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
423
[...] Os trabalhos com o patrimônio cultural considerando tal
concepção, necessariamente, incluem diversos sujeitos, abrangendo
os “saberes especializados” e “leigos”, e o diálogo entre eles, assim
como a discussão, formulação e revisão de métodos de atribuição de
valor e instrumentos de preservação (MOTTA, 2019).
Os programas “Programa de Recuperação do Centro Histórico”
(1992-2023) (SANT´ANNA, 2017, p.90) e “Plano Bairro do
Comércio” (2021-2023) (FMLF, 2021), têm como antecedentes
diversos programas e propostas para a recuperação e revitalização
do Centro Histórico de Salvador, sempre pautados pela lógica do
turismo e patrimônio de consumo e o deslocamento da população
local menos favorecida para áreas periféricas e bairros adjacentes da
cidade de Salvador. A partir da década de 2000, buscam incentivar
a moradia de interesse social porém apresentam falhas em suas
implementações, não atendendo as medidas necessárias para
atender a população local mais vulnerável (SANT´ANNA, 2017, p.
89-96).
O “Programa de Recuperação do Centro Histórico”, iniciado em
1992, tem sua trajetória dividida em três fases, sendo: a primeira
fase, constituída da primeira à quarta etapas, entre os anos de 1992
a 1995; a segunda fase, constituída pelas quinta e sexta etapas, entre
os anos de 1996 e 1999; e a terceira fase, constituída pela sétima
etapa e que vigora até o momento, iniciada no ano de 1999, etapa
que incluiu a habitação de interesse social como uma das diretrizes
fundamentais (MOURAD, 2011, p. 79-81).
No período anterior à década de 2000, o “Programa de
Recuperação do Centro Histórico” pautava-se através dos conceitos
mercadológicos, turísticos e patrimonial, porém com poucos
resultados satisfatórios para a recuperação da área. A inclusão da
moradia de interesse social como parte integrante do programa
surge como resposta às exigências de fundos nanciadores como
o BID e programas governamentais como o Projeto Monumenta
(1999-2010) para incentivar as intervenções em patrimônios
históricos (SANT´ANNA, 2017, p.92). Programas complementares
para nanciamentos de projetos habitacionais sociais foram
incentivados e até certo ponto contribuíram para o incentivo de
projetos habitacionais de interesse social, mas falhas ou insuciência
de tais programas somados à intensa especulação imobiliária
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
424
permanecem retirando oportunidades de permanência dos menos
favorecidos na área (SANT´ANNA, 2017, p. 99).
O “Plano Bairro do Comércio” (2021-2023) tem como área de
intervenção o bairro Comércio, localizado no Centro Antigo de
Salvador e inserido em uma área importante na formação histórica
da cidade de Salvador. A região foi o foco de processos de intervenção
e modernização, desde o nal do século XIX e com maior ênfase
para a década de 1960, com os planos de reformas urbanas ou
refuncionalização, transformações urbanísticas, como as expansões
viárias e portuária, aterros, demolições de patrimônios, entre outras
mudanças. Sobrepõe a tentativa de uma cidade modernizada sobre
uma cidade de tradição urbanística colonial portuguesa. Em função
de mudanças na dinâmica urbana, como a criação de novos centros
empresariais, a região sofreu com um processo de degradação.
Apesar da existência de planos de intervenção na área, ao longo
do tempo, tais planos não consideraram a temática da moradia de
interesse social e manutenção para a população local como premissa
das intervenções (OLIVEIRA, 2019, p.89-91).
O “Plano Bairro do Comércio” está dividido em dois eixos
principais: habitação, comércio e serviços, e comércio e serviços.
O foco na área destinada à habitação, determinado como ZEIS
(Zonas Especiais de Interesse Social) denominado Pilar, conforme
plano diretor de 2016, abrange quadras denominadas a partir dos
principais logradouros como: Corpo Santo, Plano Gonçalves, Pilar,
Montanha, Conceição e Irmãos Pereira. O foco para comércio
e serviços abrange as áreas do terminal náutico, porto e trapiche.
Além de comércio e serviços, edicações tombadas e de valor
histórico estão previstas no plano e, conforme pode ser consultado
em material disponibilizado pela Fundação Mário Leal Ferreira,
algumas dessas edicações encontram-se nalizadas (FMLF, 2021).
Os planos encontram-se em andamento, porém as intervenções
focadas no âmbito da habitação de interesse social permanecem
com poucos resultados satisfatórios e, recorrentemente interesses
adversos ao interesse social, ao direito à moradia, permanecem sob
a conduta de caráter duvidoso da especulação imobiliária e alguns
setores governamentais. Grupos e movimentos sociais por moradia
têm manifestado e pleiteado cada vez mais por seus direitos de
permanência no Centro Histórico e Antigo de Salvador através de
audiências públicas e representação de destaque de lideranças.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
425
Movimentos Sociais
Nesse momento, é inevitável a compreensão de que o Centro
Histórico de Salvador é território de disputa, onde as relações de
poder atravessam direta e cotidianamente as vidas da população
negra que ali permanece, apesar das históricas tentativas de expulsão
promovidas por discursos desenvolvimentistas. Destacamos a
integração entre setores patrimonializados e a cidade para reiterar
a indissociabilidade que há entre os signicados e usos atribuídos
pelos moradores e trabalhadores, que dão sentido à noção de
comunidade, pertencimento, valor histórico e afetivo, centrais para
o entendimento sobre patrimônio, cultura e práticas sociais urbanas.
Em outra direção, como apontamos, as políticas patrimoniais
de tombamento são apropriadas pelo mercado imobiliário em
Salvador, intensicando práticas racistas de desapropriação de
imóveis habitados há gerações por famílias negras, esvaziando de
sentido esses casarões antigos e, mais que isso, o próprio território
e suas dinâmicas. Trata-se de pauta central para os movimentos
sociais de luta por moradia digna no Centro Histórico de Salvador,
comprometidos com a reivindicação por projetos e políticas para
garantir seu direito de permanência. Nesse sentido, são caras
à discussão do patrimônio, questões como habitação social e
participação popular.
Dentre os projetos mais recentes divulgados pelo atual prefeito,
Bruno Reis, conta com a parceria do IPHAN para a reforma de
casarões no bairro do Comércio, localizado nas imediações da
poligonal tombada, tendo sido feito o mapeamento de vários
imóveis ociosos, um dos argumentos para a criação de unidades
habitacionais6. O bairro tem sido parte de um processo mais recente
de transformações urbanas, ganhando destaque na divulgação
do novo “Distrito Cultural do Centro Histórico e do Comércio”
durante o evento “Pensar a Cidade”7, promovido pela Fundação
6 Divulgação através da Secom - Secretaria de Comunicação da Prefeitura
Municipal de Salvador, disponível em https://comunicacao.salvador.ba.gov.br/
bruno-reis-anuncia-acoes-de-habitacao-para-o-centro-historico-tres-projetos-estao-
em-desenvolvimentofoto-jefferson-peixoto-secomreportagem-vitor-villar-secomo-
prefeito-de-salvador-bruno-reis-an/ acesso em 04/01/2024.
7 É possível assistir aos 4 dias do evento pelo canal do YouTube da Secult Salvador,
com as temáticas: Reexões para o Distrito Cultural do Centro Histórico e Comércio de
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
426
Mário Leal Ferreira (FMLF), vinculada à prefeitura, em cooperação
com a Unesco.
Ocorrido durante julho de 2023, o evento teve como proposta,
trazer convidados nacionais e internacionais - gestores públicos e
guras importantes no campo da Cultura - que traziam casos para
pensar centros antigos. Além disso, houveram também denúncias
dos movimentos sociais, representados por mulheres negras da
Articulação dos Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de
Salvador8. Cabe aqui citarmos Marcos Olender:de suas cidades.
Disponível em gravação feita pelo canal Tv Câmara, pode-se
acompanhar a reivindicação:
Ao remover-se, perversamente, o valor afetivo das orientações,
planejamentos e decisões a serem tomadas na vida de uma cidade, e
mais especicamente naquilo que interessa mais de perto a este artigo,
no que concerne à eleição e à preservação dos bens que constituirão o
patrimônio histórico e cultural de uma cidade ou território, estamos
efetivamente afastando os seus cidadãos (ou parte signicativa deles),
desqualicando-os e com isso deslegitimando a própria cidadania,
fundamentada no direito à cidade e, por extensão, no direito à sua
memória (OLENDER, 2017, p. 340)
Bem contextualizada à forma como se deu o evento em questão,
“Pensar a Cidade”, entendemos que sem a efetiva participação ativa
dos movimentos sociais nas mesas, que não apenas pensam a cidade,
mas a constroem cotidianamente, as noções de patrimônio são
colocadas em um plano ambíguo, se não contraditório. Evidenciando
isso, trazemos a fala de uma das lideranças da articulação presente
Salvador; Habitação em áreas centrais; Dimensão social e vulnerabilidade em áreas
centrais; Cidade e cultura, acessando a playlist através do link https://www.youtube.
com/@SecultSalvador/playlists Acesso em 04/01/2024.
8 Coletivo composto por grupos com diferentes trajetórias: Associação Amigos
de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo, Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho,
Coletivo Vila Coração de Maria, Centro Cultural Que Ladeira É Essa?, Artíces da
Ladeira da Conceição da Praia e Movimento dos Sem Teto da Bahia, alguns com mais
de 20 anos de luta, a qual busca, desde 2014, armar o direito à cidade denunciando
o autoritarismo de intervenções públicas que favorecem o mercado imobiliário, sem
consulta popular e, muitas vezes, com uso de violência das forças de segurança pública.
Informações e notícias podem ser acompanhadas no portal da CESE – Coordenadoria
Ecumênica de Serviço pelo link: https://www.cese.org.br/ e pelo perl no Instagram
https://www.instagram.com/centroantigovivo/ acesso em 05/01/2024.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
427
durante o evento, onde questiona o papel do IPHAN e o próprio
entendimento de patrimônio:
Eaí o IPHAN diz: a gente mantém o patrimônio histórico. COMO? Se é
tombado pra cair. Em 2015 na Preguiça tombou dois prédios que eram
tombados, e vitimou uma pessoa, que foi que o IPHAN fez, e o Governo do
Estado? Demoliu os prédios e nessa mesma época noticou a preguiça
inteira que estaria caindo. Nós fomos pra cima e provamos que tá lá
de pé até hoje. O prefeito em 2013, assim que ele ganhou, ACM Neto
declarou que ele não aguentava mais passar na Preguiça e ver aquelas
coisas feias que tem lá, que somos nós. Nós passamos a pintar as casas,
hoje todo mundo pode ir lá que é uma das ruas mais coloridas, segundo
ao Sto Antônio, é a Ladeira da Preguiça, é limpa, pintada, pelas mãos
das mulheres da Ladeira da Preguiça. Então, vamos falar de patrimônio
histórico? Vamos. Vamos qualicar? Vamos. Nós somos totalmente
a favor da qualicação. Mas que mantenha o povo que mantém o
histórico. Mas tem que manter o patrimônio vivo, não só o material,
mas o imaterial também, porque somos nós que mantemos o centro de
Salvador (transcrição das autoras, Pensar a Cidade, 2023)
A visão de que sua gente, os moradores do Centro Histórico
são o maior patrimônio, nos faz retomar a armação de que não
basta tombar, já que são plurais as percepções do que signica
morar, trabalhar e viver em sítios urbanos tombados, como bem
aponta Sant’anna (2017, p. 139). Como um ponto importante para
nossa análise, ca o questionamento referente a grande ocorrência
de imóveis ociosos e a proposta de criar unidades habitacionais:
“Habitação para quem?”, pergunta levantada por outra liderança
presente no ciclo de debates.
Considerações Finais
O patrimônio cultural é um campo de estudo amplo e muitos
debates acerca da relação com a comunidade já foram construídos
e continuam sendo estudados. No entanto, quando se trata de
ações práticas, existe ainda um descolamento do tratamento do
patrimônio material e as relações culturais e sociais que se dão em
seu espaço. A evolução do termo Paisagem Cultural para Paisagem
Histórica Urbana busca ampliar possibilidades de categorização, e
sabidamente outras questões, como o próprio Patrimônio Imaterial
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
428
fazem parte dessa ressignicação da idéia de patrimônio, ampliando
a capacidade de compreender e salvaguardar novos elementos,
conjuntos urbanos e conhecimentos culturais. No entanto, um
tensionamento que não pode ser ignorado é entre o patrimônio
que pode ser registrado em um documento e as relações sociais do
espaço urbano, que não se limitam a uma descrição formal, mas é
onde as comunidades se estabelecem.
As intervenções realizadas no Centro Histórico e no Centro
Antigo da cidade de Salvador a partir da década de 1990 com foco
turístico trataram o espaço de forma dissociada da comunidade
que habitava o espaço e mesmo a partir da 7º fase do “Programa
de Recuperação do Centro Histórico”, quando habitação passou a
fazer parte do planejamento das intervenções, muitos problemas
são relatados nesse processo e ca clara a diculdade de superar o
distanciamento entre os bens materiais, tratados pelos órgãos em sua
intervenções, e as relações sociais que as comunidades estabelecem
com o espaço. Uma vez que o termo Paisagem Histórica Urbana
passa a retratar essa busca por melhor expressar valores económicos
e socioculturais, inerentes a cada sociedade, o foco no turismo e
a gentricação sofrida na região do Centro Histórico da cidade
de Salvador nos leva a concluir que a função sociocultural vem
sendo pouco tratada ou mal delimitada ao considerar o patrimônio
imaterial e não incluir as relações comunitárias que se dão no
espaço.
Um possível norteador a ser observado são os movimentos sociais
e suas pautas, que permanecem lutando pelo direito à cidade, pelo
direito de morar no Centro Histórico e por uma vida digna. Sendo
assim, as ações práticas dos órgão de patrimônio precisam ter seus
procedimentos revisados de modo a considerar os movimentos e
pautas sociais no próprio planejamento e o diálogo com eles precisa
ser constante. Talvez, os termos Paisagem Cultural ou Paisagem
Histórica Urbana ainda não sejam sucientes para trazer em si a
importância de considerar a relação dos habitantes, da comunidade,
nas ações decorrentes das políticas de patrimônio. Se assim for,
ainda falta novo termo, novas referências e novas práticas.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
429
REFERÊNCIAS
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. 496 p. Disponível em: <https://
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_
EC91_2016.pdf. 2024>. Acesso em: 03 jan. 2024.
_______. [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1934. Disponível em: < https://www2.
senado.leg.br/bdsf/handle/id/137602>. Acesso em: 03 jan. 2024.
_______. Exposição de motivos nº 076-B, de 31 de maio de 1973.
Regulamentada pela Portaria Miniplan 050/73. Brasília.
FMLF - FUNDAÇÃO MÁRIO LEAL FERREIRA. Plano de Bairro do Comércio:
Salvador-BA, 2021. Disponível em: <https://fmlf.salvador.ba.gov.br/wp-
content/uploads/2021/06/Por-que-um-Plano-de-Bairro-para-o-Comercio.
pdf> Acesso em: 05 dez 2023.
IPHAN/MINISTÉRIO DA CULTURA. Centro Histórico de Salvador (BA),
2014. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/35/>
Acesso em: 05 dez 2023.
MOURAD, Laila Nazem. O Processo de Gentricação do Centro Antigo de
Salvador 2000 a 2010. UFBA, 2011. Disponível em: <https://repositorio.
ufba.br/handle/ri/30971> Acesso em: 05 dez 2023.
MOTTA, Lia. O Patrimônio Urbanístico e seus Usos Sociais.Coimbra,
Impressa da Universidade de Coimbra, 2019. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5592621/mod_resource/
content/1/MOTTA%2C%20Lia.%20O%20patrim%C3%B4nio%20
urban%C3%ADstico%20e%20seus%20usos%20sociais > Acesso em: 05
dez 2023.
OLENDER, Marcos. O afetivo efetivo. Sobre afetos, movimentos sociais
e preservação do patrimônio. In: Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, n. 35, p. 321-341, 2017.
OLIVEIRA, Ícaro Macêdo Guimarães de. O Frontispício em disputa:
demandas, conitos e possibilidades reais na borda marítima do Centro
Antigo de Salvador, UFBA, 2019. Disponível em: <https://ppgau.ufba.br/
sites/ppgau.ufba.br/les/icaro_macedo.pdf> Acesso em: 05 dez 2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
430
RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural urbana e paisagem histórica
urbana: o Rio de Janeiro e os desaos recentes para a lista do patrimônio
mundial. Identidades: território, projeto, patrimônio, n. 6, p. 235-255, 2016.
SANT’ANNA, Márcia. A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e
desaos contemporâneos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, v. 35, p. 139-155, 2017.
________. A cidade-atração: a norma de preservação de áreas centrais
no Brasil dos anos 1990 [online]. Salvador: EDUFBA-PPG-AU FAUFBA,
2017, 503 p. Disponível em: <https://books.scielo.org/id/8wzv5/pdf/
santanna-9788523218713.pdf> Acesso em: 24 nov 2023
SEMINÁRIO INTERNACIONAL PENSAR A CIDADE (2023), Prefeitura
Municipal de Salvador. Fundação Mário Leal Ferreira em cooperação com
a Unesco. Tema: Reexões para o Distrito Cultural do Centro Histórico e
Comércio de Salvador. Disponível em: <https://www.youtube.com/@
SecultSalvador/playlists>. Acesso em 04 jan. 2024.
UNESCO. Historic Centre of Salvador de Bahia. Avaliação do Órgão
Consultivo (ICOMOS), 1985. Disponível em: < https://whc.unesco.org/en/
list/309/documents/>. Acesso em: 03 jan. 2024.
________. Vienna Memorandum: World Heritage and Contemporary
Architecture – Managing the Historic Urban Landscape. 20 May 2005.
Disponível em: <hc.unesco.org/uploads/.../activity-48-3.doc>. Acesso em:
03 jan. 2024.
PRAINHA DE VILA VELHA:
IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DE
UM PATRIMÔNIO CULTURAL
Cláudia Mazarakis Rubim1
Introdução
Na Prainha, bairro da cidade de Vila Velha (ES), foi onde se
iniciou, em 1535, a colonização da então capitania hereditária do
Espírito Santo. Constituiu, portanto, o primeiro núcleo de povoação
e a capital inicial deste estado, localizada na entrada do canal da
baía que separa Vila Velha de Vitória. Originalmente, a Prainha era
uma pequena enseada2 cercada de morros arborizados e de terreno
plano, onde se desenvolveu a povoação segundo as características
da colonização portuguesa, com casas em torno de uma igreja
central voltada para o mar e um fortim para a defesa da terra.
Como a colonização ali não logrou sucesso, a capital do estado foi
transferida para a ilha vizinha (atual Vitória), ainda na metade do
1 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo no Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU/UFF). Mestra
em Ciências da Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROARQ/UFRJ). E-mail: claudiarubim@id.u.
br
2 Essa enseada sofreu quatro aterramentos, ao longo dos anos, que a
descaracterizaram signicativamente, sendo o maior deles nalizado no início dos
anos 1980, que originou um grande terreno plano sobre o qual se construiu o Parque
da Prainha, atualmente em obras de requalicação.
431
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
432
século XVI. A antiga vila,3 principalmente o seu núcleo fundador,
tornou-se estagnada até os nais do século XIX, quando algumas
melhorias urbanas começaram a ser ali realizadas. Mas foi a partir
de meados do século XX que avanços econômicos e urbanos, de fato,
ocorreriam na cidade, alterando-a signicativamente (OLIVEIRA,
2008).
Sendo um núcleo urbano fundador, a Prainha de Vila Velha
conta com exemplares arquitetônicos que se destacam entre os mais
antigos do Brasil, como a igreja de Nossa Senhora do Rosário, cuja
origem se confunde com a criação desta povoação (Figura 1); o
convento de Nossa Senhora da Penha, edicação cujos primeiros
esboços também se encontram nos meados do século XVI (Figura
2); e o forte de São Francisco Xavier da Barra (ou forte de
Piratininga),4 construído ao longo dos séculos XVII e XVIII a m
de consolidar a posse territorial.
3 A denominação original de Vila Velha era Vila do Espírito Santo, e a de Vitória
era ilha de Duarte Lemos. Em 1549, com a passagem da capital para esta ilha, a vila
antiga passou a ser conhecida popularmente por “vila velha”, em oposição à Vila Nova
(que, depois, viria a ser Vitória). Em 1896, a Vila do Espírito Santo tornou-se Município
do Espírito Santo, adotando ocialmente o nome de Vila Velha somente em 1959
(OLIVEIRA, 2008).
4 O tombamento do forte encontra-se, atualmente, em processo de avaliação no
IPHAN.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
433
A igreja matriz surgiu com a fundação da primeira povoação, na
Prainha de Vila Velha, portanto, e é uma das igrejas mais antigas
ainda em funcionamento litúrgico no Brasil. Situada próxima à
enseada e voltada para o mar, inicialmente, era uma pequena capela,
que, em 1551, sofreu ampliações que lhe deram suas dimensões
atuais. Com arquitetura colonial simples, a igreja apresenta partido
arquitetônico de planta retangular, possuindo nave, coro e capela-
mor. A igreja do Rosário foi inscrita pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Livro do Tombo
Histórico, em 1950, e seu tombamento contempla a edicação e o
seu acervo.
A partir dessa igreja, foi estruturada a forma urbana da Prainha,
que consolidou e conservou seu traçado original ao longo do
tempo, apesar das diversas alterações arquitetônicas e urbanísticas
que se seguiriam nesta localidade, entre as quais a construção de
espaços públicos (praças) frontais e posteriores à igreja, as perdas de
tipologias arquitetônicas originais e as edicações de arquiteturas
novas, os aterramentos da enseada etc.
O convento de Nossa Senhora da Penha foi erguido sobre um
outeiro (o morro da Penha) a partir das iniciativas do frei espanhol
Pedro Palácios, que chegou à Prainha, em 1558, e tinha moradia
numa gruta de pedra que cava no sopé desse morro. Neste ano, o
frei iniciou a construção de uma ermida dedicada a São Francisco
de Assis, num terreno plano localizado no morro (então chamado
Campinho). Dez anos depois, iniciou a construção de outra ermida,
desta feita sobre uma grande rocha que havia no ponto mais alto
do mesmo morro, que foi dedicada a Nossa Senhora da Penha.
Esta santa, cuja imagem viera de Portugal para a Prainha, em
1569, passou a ser a padroeira local e a ser celebrada todos os anos,
originando-se daí a Festa de Nossa Senhora da Penha (ou Festa da
Penha).
A ermida da Penha, com os anos, foi sofrendo expansões e
alterações em sua arquitetura. Em 1650, houve a fundação do
convento, e, até o século seguinte, a edicação continuou sendo
modicada até adquirir as feições que atualmente mantêm. O
convento teve o seu processo de tombamento pelo IPHAN iniciado
no ano de 1940, sendo inscrito no Livro das Belas Artes e Livro
Histórico, em 1943. É um conjunto arquitetônico e paisagístico
que contém a igreja, o convento, o morro e outros monumentos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
434
integrados (a gruta do frei, as ladeiras de acesso, os portais etc.),
assim como todo o seu acervo, que conta com imaginária e pinturas
de Vitor Meireles e Benedito Calixto, entre outras obras.
A Prainha sedia a Festa da Penha, antiga celebração religiosa que
guarda estreitas relações com os primórdios da cidade, sua paisagem
e seu patrimônio edicado. Esta festa é realizada anualmente, oito
dias após a Páscoa, e conta com missas campais, procissões (dentre
as quais a mais tradicional é a Procissão dos Homens) e shows, que
ocorrem no convento e na parte aterrada da enseada da enseada,
denominada Parque da Prainha. Recentemente reconhecida como
patrimônio cultural imaterial do estado e do município, atrai, a cada
ano, um número maior de éis e visitantes, sendo considerada uma
das maiores festas religiosas do Brasil.
Em 2015, a porção do tecido urbano mais antigo da Prainha,
cujo traçado mantinha a conguração original, foi elevada a sítio
histórico por meio de tombamento municipal, constituindo o atual
Sítio Histórico da Prainha de Vila Velha. Mas, apesar de a lei de
tombamento da Prainha ser relativamente recente, o processo de
instituição deste sítio remete à década de 1990.5
A Prainha, como patrimônio cultural, foi concebida a partir de
imagens e suas representações simbólicas, que aqui entendemos
como baseadas em três pilares principais: a história, a fé (ou a
religiosidade) e o mar. Este artigo6 tem por objetivo principal
investigar como estas imagens e suas representações foram
utilizadas na construção discursiva desse patrimônio e como estas
atualmente são instrumentalizadas no contexto do sítio histórico.
Observações preliminares nos apontam para intervenções voltadas
eminentemente para o incremento do turismo e para a atração de
capitais ao local, preocupantes em relação à preservação da Prainha.
5 Em 1995, foi publicada a primeira lei para a criação do Sítio Histórico da Prainha, a
Lei Nº 3.013/1995, revogada pela Lei No 5.657/2015.
6 Esta pesquisa, em processo de desenvolvimento, faz parte da tese de doutorado
da autora sobre a preservação do Sítio Histórico da Prainha de Vila Velha, iniciada no
ano de 2022 e ainda em andamento.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
435
Representação e imagem: conceitos
referenciais
A concepção de que um bem cultural possuía um valor
intrínseco – ou seja, um valor que seria inerente àquele objeto,
independentemente da relação que ele pudesse ter com outras coisas
– predominou até meados do século XX. A partir de então, sobretudo
com a inuência da noção de valor de Riegl, foi-se estabelecendo
a percepção de que um objeto não possui valor por si próprio,
mas que este lhe é atribuído mediante a signicação cultural que
adquire para determinada coletividade. Isto possibilitou as graduais
aberturas do conceito de patrimônio cultural e trouxe melhor
compreensão aos seus processos, desde a sua formação até a sua
preservação, tornando-os, por outro lado, também mais complexos.
A atribuição de valor a um objeto que, para determinada
sociedade, se converte em bem cultural coaduna-se, portanto, ao
entendimento de que o patrimônio é socialmente construído. Isto
se dá não naturalmente, mas mediante mecanismos e recursos
(intelectuais, sensíveis, simbólicos e memoriais) que agem a partir
da “edicação” de uma imagem que concentrará em si simbolismos
essenciais para que memórias, sentidos e afetos coletivos sejam
reunidos, representados e, assim, convirjam para a formação de elos
sociais, de pertenças e de identidades. Os movimentos de seleção
daquilo que comportará sentidos e signicados coletivos não são
neutros ou imparciais, mas elaborados e pactuados, permeados
de interesses, disputas e estratégias que resultam em escolhas,
“invenções” e esquecimentos, produzidos, entre outros fenômenos,
a partir da seletividade da memória (POLLAK, 1989). Nos processos
do patrimônio, os conceitos de representação e imagem são,
portanto, fundamentais para a compreensão de como um objeto se
torna bem cultural.
O que aqui entendemos por representações sociais ancora-se
no conceito de Denise Jodelet (2017, p. 19), para quem estas são
produtos de uma elaboração coletiva a partir de um conjunto
complexo de fenômenos mentais e psicossociais que “[...] remetem a
formas, modos e processos referentes ao sentir, ao saber, ao conhecer,
ao dar sentido à experiência cotidiana”, ou, em outras palavras, que
remetem a como pensar e interpretar a realidade. São, para ela,
“uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
436
com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma
realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p. 21). As
representações buscam, assim, o engajamento de uma coletividade
e a formação de uma rede relacional por meio da adesão consensual
à interpretação de determinada realidade.
Na esfera do patrimônio cultural, a produção e a circulação das
representações sociais nos apontam a relação da sociedade com
o bem cultural a partir desses sistemas de interpretação coletiva,
daí a sua importância na construção de signicados e de valores
atribuídos ao objeto patrimonial. Depreende-se, portanto, que
as representações sociais são o processo de elaborações coletivas
(de natureza complexa, pluridimensional e polimorfa, consoante
às dinâmicas sociais atuantes) que visam a forjar uma realidade
comum a um grupo a partir de consensos que são estruturados,
comunicados, compartilhados e xados a m de organizar, modelar
e integrar condutas e práticas sociais (JODELET, 2001). Para esta
autora, uma das características fundamentais da representação é
que ela sempre possui um “caráter imagético”, cujas faces gurativa
e simbólica são indissociáveis. Representação e imagem estão,
assim, associadas no processo de conhecimento e interpretação do
mundo/da realidade pelo ser humano.
Menezes (1996, p. 152) nos explica que a imagem “[...] é uma
forma que serve de suporte a representações”. Para além daquilo que
é simplesmente capturado pela visão humana, a imagem funciona
como intermediação – ou intercessão, como prefere Joly (2007, p.
67) – entre o homem e o mundo a partir dos signos e signicados
nela expressos e apropriados, pois “[...] é uma construção discursiva,
que depende das formas históricas de percepção e leitura, das
linguagens e técnicas disponíveis, dos conceitos e valores vigentes”
(MENESES, 1996, p. 152). Nesse mesmo sentido, Weller e Bassalo
(2011, p. 286) argumentam que “[...] devemos considerar que a
imagem não representa a realidade plasmada em uma superfície
amorfa, mas que é constituída e produzida pela realidade social, que
é mediadora entre o sujeito que a produz e aquele a quem se destina
[...]”. Enm, uma imagem não se trata do objeto propriamente,
nem de uma mera reprodução da realidade, mas de um processo
de signicação e de comunicação que visa à produção de sentidos e
de coesão social, pois, como arma Joly (2007, p. 61), “uma imagem
constitui sempre uma mensagem para o outro”.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
437
Prainha de Vila Velha: história, fé e mar
Ao tratarmos da construção de uma imagem patrimonial da
Prainha, não podemos desvincular sua tradição fortemente ligada
à história, à fé religiosa e ao mar de suas representações. Estes
elementos, consagrados no imaginário comum, permearam e ainda
permeiam as representações do lugar. Assim, pela perspectiva da
história ocial, a imagem da Prainha se enleia à fundação não só
da cidade de Vila Velha quanto do estado do Espírito Santo, onde
aportou a caravela do donatário Vasco Fernandes Coutinho para o
desembarque de colonizadores portugueses em terras habitadas por
indígenas. Esta história, forjada eminentemente sob a perspectiva da
colonialidade, narra como conquistas a expulsão dos índios de suas
terras, a tomada do território sob a égide da força e do cristianismo
e a colonização por meio do trabalho escravo nativo e africano,
características do projeto colonizador português. Tais “feitos”, entre
factuais e mitológicos, se perpetuam, através dos tempos, por meio
da história ocial – elaboração hegemônica consagrada e difundida
a partir daqueles que detêm o domínio socioeconômico e cultural
(LE GOFF, 2003) –, e acabam reproduzidos nas esferas cívicas, na
educação formal, nas mídias e também no imaginário coletivo,
imiscuindo-se também à tradição cultural local.
Nos símbolos ociais de Vila Velha, temos marcadas suas
referências históricas. Na bandeira do município, que traz o brasão
de armas da cidade, tem-se, destacada, a imagem do convento da
Penha no alto do morro e o mar,7 os símbolos da colonização
portuguesa (Cruz de Cristo e Cruz de Malta), a or-de-lis (referência
a Nossa Senhora do Rosário), e as datas históricas da fundação e da
elevação da vila a cidade, entre outros ícones. O hino do município
também ressalta a fundação: “Sob a colina sagrada, Vasco Coutinho
fundou a cidade encantada que a Virgem Santa abençoou”. Como
data cívica, em 1972, a Lei No 2.7238 instituiu a comemoração
do início da colonização do solo espírito-santense (ou Dia da
Colonização do Solo Espírito-Santense). “O Espírito Santo nasceu
aqui” é, portanto, um enunciado há muito repetido em referência
a Vila Velha e, em particular, à Prainha, o que dá a este lugar o
7 O brasão estadual também contém o convento da Penha entre seus ícones.
8 Esta lei foi revogada pela Lei No 11.212/2020, que mantém a comemoração anual
desta data no dia 23 de maio.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
438
sentido de “origem”, repetidamente observado em sua imagem e
representações. As simbologias que envolvem a fundação da cidade
revelam os atributos a serem ali valorizados, seja pela historiograa
ou por outras formas de narrativas.
Pela perspectiva da fé (ou da religiosidade), a imagem da Prainha
forjou-se a partir de dois monumentos ali erigidos, a igreja matriz
de Nossa Senhora do Rosário e o convento de Nossa Senhora da
Penha, importantes marcos religiosos arraigados na história e na
tradição locais. O convento, em especial, assentado no alto de um
morro que lhe permite ser avistado integralmente em diversos
pontos da cidade (e também da vizinha Vitória), tornou-se uma
referência visual na paisagem local e o principal símbolo da cidade e
do estado. Esta edicação comporta também histórias e mitos que,
não obstante suas relações factuais, zeram e ainda fazem parte do
imaginário coletivo, assim como sustenta, até os dias atuais, a sua
mitologia acerca de Nossa Senhora da Penha, que move milhares de
éis e visitantes até a Prainha, nas festas desta padroeira.
Nesse sentido, também a iconograa da Prainha contribuiu
para a construção e a reprodução da imagem que se instalou no
imaginário, revelando-nos representações que “unicam” uma
realidade comum, exprimindo valores, afetos e aspirações coletivas
sobre o lugar. As pinturas de Benedito Calixto, produzidas na
década de 1920 e expostas permanentemente como parte do acervo
do convento, muito contribuíram para as narrativas constitutivas
da sacralidade do lugar. Nelas, o pintor paulista idealizou algumas
dessas histórias (ou lendas) locais, como a chegada de frei Pedro
Palácios à Prainha – cena fundante da religiosidade local (Figura 3);
este frei diante de sua gruta e do nicho de Nossa Senhora (Figura 4);
“A visão dos holandeses em 1643” (Figura 5); e “Milagre da seca em
1769” (Figura 6).9
9 Sobre a tentativa de invasão e saque do convento pelos holandeses – de fato, houve
incursões de holandeses na Prainha, no século XVII –, a tela idealiza a incredulidade
destes invasores perante um exército de soldados que, descendo das nuvens, vem ao
socorro dos freis jesuítas em sua defesa. Sobre a pintura da procissão a Nossa Senhora
pelo m da seca, diz-se que choveu logo após este cortejo.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
439
Nessas pinturas, as ideias de abnegação, força da fé, milagres,
heroísmos e obtenção de graças se associam à Prainha e sua
paisagem, que, então, não só se tornou o lugar da fundação, mas,
sobretudo, um lugar sacralizado e diretamente tocado pelas forças
divinas a partir das intervenções da santa protetora. Observam-se
ali, tanto na fundação quanto nos primórdios da instauração da
“fé” (ou religiosidade), discursos e mitos fundadores do lugar e da
cidade. Segundo Orlandi (2003), o discurso fundador atua como
referência para a construção do imaginário sobre determinado lugar
ainda em formação, constituindo-o em sua especicidade como um
objeto simbólico que relaciona a formação deste lugar à formação
de um discurso a m de lhe atribuir um sentido comum agregador.
Na Prainha, esse discurso fundador, alicerçado na fundação e na fé,
instaurou e sedimentou sentidos que constituíram e mantiveram, ao
longo do tempo, a ideia de “gênese” comum a partir desses atributos
que amalgamaram e constituíram pertencimentos e identidade
coletiva.
Na construção da imagem patrimonial da Prainha, o mar
compareceu não só como elemento essencial da paisagem, mas por
meio dos seus usos tradicionais. O antigo gentílico “canela-verde”,
que denomina popularmente os vila-velhenses, em si já revelaria
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
440
uma relação de origem com o mar,10 pois, contam as histórias locais,
as águas da enseada da Prainha eram repletas de algas alfaces-do-
mar, que se enroscavam nas pernas de quem ali se banhasse. O mar
sempre teve ali forte presença, como paisagem natural, histórica,
cotidiana e memorial/afetiva, seja como elemento formador
da paisagem urbana, em direção ao qual a cidade se voltava: a
igreja e o traçado urbano conectavam-se visual e funcionalmente
com a enseada. Portanto, a paisagem em que o mar era presença
dominante e imediata, em sua inerente comunhão com os fatos
históricos e a vida cotidiana, foi um elemento fortemente valorizado
na construção da imagem da Prainha. O mar tornou-se, sobretudo,
elemento importante para a formação da cultura local, pois, além
do uso recreativo da praia, desenvolveram-se ali a pesca artesanal
e a mariscagem, atividades a partir das quais nasceram tradições
culinárias também identicadas ao lugar, como a torta e a moqueca
capixabas.11
Nas telas de Homero Massena (Figura 7),12 um pintor que exaltava
a Prainha por meio de suas obras, o mar e o morro do convento
se destacam na paisagem, com pequenos barcos de pesca e a gente
do lugar em sua vida cotidiana. As imagens evocam o “espírito do
lugar” à época – a beleza, a tranquilidade e a simplicidade de uma
Prainha ainda pouco alterada –, xando no imaginário coletivo e na
memória afetiva esses atributos visuais arquetípicos do lugar.
10 Segundo as histórias locais, esse gentílico remonta à fundação, quando do
desembarque dos colonizadores.
11 A Lei Estadual Nº 7.567/2003 instituiu a moqueca como a “comida típica do Estado
do Espírito Santo” e a Lei Estadual No 10.463/2015 a declarou patrimônio imaterial do
estado.
12 Homero Massena, artista mineiro, viveu na Prainha de 1951 a 1974, e pintou as
paisagens deste lugar. A antiga casa em que vivia (à beira-mar, antes do aterro), onde
funcionava seu ateliê, foi transformada em museu, e é uma das atrações culturais do
Sítio Histórico da Prainha.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
441
Figura 7: Óleo sobre tela, de Homero Massena: paisagem com dois pequenos barcos e
convento da Penha ao fundo, s/d (à esquerda); paisagem com pequenos barcos e vista para
o convento da Penha, s/d (ao centro); paisagem litorânea com casebres e convento da Penha
ao fundo, s/d (à direita). Fonte: www.midiateca.es.gov.br
Para além de registros visuais, compreendemos que essas pinturas
também contribuíram para a percepção, a construção e a narrativa
de uma imagem identitária do lugar, pois, segundo Burke (2004,
p. 44), “as pinturas não são concebidas simplesmente para serem
observadas, mas também para serem lidas”. A produção de pinturas
sobre temáticas da Prainha, principalmente entre as décadas de 1920
e 1970, a nosso ver, foi importante para a formação das imagens
representacionais que contribuíram para forjar um imaginário
visual de referência e os discursos imagéticos da Prainha, a partir
dos quais se constrói, se consolida e se difunde o patrimônio.
“Comece sua aventura no Sítio Histórico da
Prainha”
O convento da Penha foi tombado nos anos iniciais de atuação
do IPHAN, órgão de preservação federal criado em 1937. Tendo
em vista que a Lei de Tombamento é de 1938, podemos localizar
o tombamento do convento, cujo processo foi iniciado em 1940 e
nalizado em 1943, entre os primeiros a serem efetuados por esse
órgão de proteção no Brasil, que inicialmente tinha por objetivo
preservar a arquitetura colonial no país. O tombamento da igreja do
Rosário ocorreria sete anos depois do convento. Esses tombamentos
se baseavam nos valores artístico, estilístico e histórico dos bens,
sendo a arquitetura colonial considerada a arquitetura nacional
“genuína”. Ocialmente protegidos, esses bens arquitetônicos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
442
passaram a representar o patrimônio da Prainha, sendo a Festa da
Penha, a eles associada, também assim popularmente considerada.
A igreja e o convento foram tombados individualmente,
no entanto, o tombamento da Prainha como um conjunto urbano
foi processo iniciado na década de 1990, tendo culminado na
criação do Sítio Histórico da Prainha, em 2015.13 Também no
Brasil, principalmente a partir dos anos 1980, a criação de sítios
históricos esteve inserida num contexto de novas percepções sobre o
patrimônio urbano, inuenciadas pela ideia da valoração econômica
das áreas urbanas antigas, inserindo-as na lógica de exploração
econômica pela via do turismo. A criação de sítios patrimoniais e/
ou as intervenções em tecidos antigos (revitalização, reabilitação,
requalicação etc.), em grande parte, têm visado apenas a gerar
recursos econômicos para as cidades, o que não se coaduna com as
premissas da preservação contemporânea.
Sob este ponto de vista, a elevação do patrimônio da Prainha
a sítio histórico deu-se, decerto, por motivos vários (políticos,
econômicos, conservacionistas, sociais etc.), os quais não nos
propomos analisar diretamente neste artigo, senão pela abordagem
da utilização da imagem e suas representações. Assim, entendemos
que a criação desse sítio histórico também se fundamentou na
imagem da Prainha já alicerçada e consolidada na tríade “história-
fé-mar”, embora devamos apontar algumas ressalvas em relação
a este último elemento, pois, a partir do grande aterramento da
enseada, a relação da comunidade local com este ambiente foi
bastante alterada. Perdeu-se uma praia ao passo que surgiu uma
grande área livre pública, onde se forjaram outras formas de
usufruto desse espaço. Embora a atividade pesqueira ainda ocorra
no lugar, o afastamento da linha de praia original, após os aterros,
modicou outros usos tradicionais, não mais permitindo banhos de
mar e usufruto da praia para o lazer. A praia formada pelo aterro,
afastada da rua à beira-mar original, tornou-se atracadouro para
barcos de pesca e cenário de observação, o que trouxe novos usos
do lugar.
A imagem da Prainha foi constituída de elementos culturais
que remetem à essência do lugar e à sua tradição. Sua ambiência
histórica e religiosa, com monumentos e elementos paisagísticos
fortemente associados à memória social, ainda predomina e é
13 A Lei Nº 3.013/1995 perdeu ecácia, tendo sido revogada pela Lei No 5.657/2015.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
443
eminentemente evocada nas representações sociais, estas também
capturadas pelo marketing turístico. No e-book intitulado “Curta
Vila Velha – destino turístico inteligente”14 publicado pela Secretaria
de Turismo de Vila Velha, e que aqui tomamos por exemplo, lê-
se: “[...] Vila Velha ostenta o título de primeira capital do Espírito
Santo. Desde então, ela tem desempenhado um papel fundamental
na construção da identidade capixaba. Suas ruas são testemunhas
de séculos de história, desde os primeiros colonos portugueses até
os dias de hoje” (grifos nossos). Embora trate da cidade como um
todo, esta informação, raticadora da ideia de fundação e de gênese
cultural (e patrimonial) do estado, remete evidentemente à Prainha.
Nessa publicação, evoca-se o convento da Penha como “o principal
atrativo turístico, religioso, histórico e cultural do Espírito Santo”,
o Forte de São Francisco Xavier como “um dos mais importantes
monumentos históricos do estado do Espírito Santo” e a igreja do
Rosário como “um marco da colonização do Espírito Santo”. Sobre
a Festa da Penha, considera-se que “a religião tem uma presença
signicativa na cultura de Vila Velha. Durante todo o ano, a cidade
celebra festas religiosas, com destaque para a Festa da Penha, uma
das maiores peregrinações do Brasil. Esta festa reúne milhares de
éis que caminham até o Convento da Penha para expressar sua fé
e devoção”. Nesse material, apresenta-se o patrimônio como oferta
cultural local, mesclando-se um conteúdo turístico tradicional,
com linguagem leve e convidativa, e mensagens com tendências
discursivas mais contemporâneas sobre a cidade (Vila Velha como
“caldeirão de culturas”, por exemplo). São oferecidas aos visitantes
opções temáticas de passeios. No “roteiro histórico”, cujos trajetos e
atrativos se confundem com os do “roteiro religioso”, predominam
as referências à Prainha e seus monumentos, tendo nas primeiras
linhas o convite: “Comece sua aventura no Sítio Histórico da
Prainha”.
14 Publicação de setembro de 2023. Disponível em https://api.vilavelha.es.gov.
br/apiturismo/imagens/servicos/arquivos/E-book%20Curta%20Vila%20Velha.pdf/
Acesso em: dezembro de 2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
444
Considerações nais
Mais que se constituir num patrimônio cultural que
apresenta bens de diversas tipologias (arquitetônicos, urbanísticos,
naturais, paisagísticos, imateriais), a Prainha é, sobretudo, um lugar
de e para a comunidade, que tem ali sua vida, memórias e afetos.
É plena de uma memória social que, no passado e no presente,
se associa à vivência da história, da fé e (ainda) do mar, e que se
dene e é denida em sua profunda relação com estes elementos.
Entretanto, observa-se, tanto na gestão pública quanto nos setores
privados, a necessidade da dinamização de Vila Velha como um
destino turístico (concepção, aliás, trivial nas gestões das cidades), e,
nesse sentido, um sítio histórico é considerado, decerto, um ativo a
ser explorado. Entendemos que o turismo é atividade fundamental e
necessária ao desenvolvimento das cidades, no entanto, ele não deve
se pautar apenas pelo viés mercadológico, visão que, infelizmente,
continua a persistir, sobretudo junto aos gestores.
O poder público executa, nos dias atuais, obras de requalicação
urbana no espaço livre denominado Parque da Prainha (surgido após
os aterros da enseada), visando a oferecer melhorias infraestruturais
e paisagísticas aos moradores e visitantes neste espaço. O projeto se
baseia na edicação de uma grande área para o lazer e a realização
de espetáculos e eventos públicos, sobretudo para a Festa da Penha.
É necessário atentar para o fato de que tais interferências nesta
paisagem podem contribuir para o enfraquecimento de referências
socioculturais e sociabilidades importantes no lugar – que já
ocorreram devido aos aterros –, com repercussões na percepção e na
preservação do patrimônio. Para a permanência e a perpetuação do
patrimônio cultural, são imprescindíveis os vínculos e a afetividade
da sociedade, sem os quais se perdem ou se desvanecem os seus
sentidos. O patrimônio está inscrito no modelo da cidade como
espaço de qualidade de vida, e, para o equacionamento de suas
negatividades, nela se exprime o direito ao “usufruto durável da
existência simbólica de sítios urbanos” (ACSERALD, 2001). Nesse
sentido, é preciso sempre evocar-se o espírito do lugar para que a
Prainha não seja reduzida a cenário turístico produzido “para fora”.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
445
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri. A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas
políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A/Crea-RJ, 2001.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC,
2004.
JODELET, Denise. Representações sociais e mundos de vida. Paris:
Éditions des Archives Contemporaines; SP: Fundação Carlos Chagas;
Curitiba: PUCPRess, 2017.
______. As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 17-
44.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa, Ed. 70, 2007.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas/SP: Editora da Unicamp,
2003.
MENESES, Ulpiano T. B de. Morfologia das cidades brasileiras: introdução
ao estudo histórico da iconograa urbana. In: Revista USP: São Paulo, n.
30, 1996.
OLIVEIRA, J. T. História do estado do Espírito Santo. 3ª ed., Vitória: APEES,
2008.
ORLANDI, E. P. (org.). Vão surgindo sentidos. In: ____. Discurso fundador: a
formação do país e a construção da identidade nacional. 3ª ed., Campinas:
Pontes, 2003.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
WELLER, Wivian; BASSALO, Lucélia de Moraes B. Imagens: documentos
de visões do mundo. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 28, set./dez.
2011, p. 284-314.
PELO DESPERTAR DA
CONSCIÊNCIA PATRIMONIAL:
USOS E PATRIMONIALIZAÇÃO
DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA
DE RERIUTABA-CE E SUAS
SOCIABILIDADES (1988-2023)
Jaciara Azevedo Rodrigues1
Introdução
O interesse em estudar a ferrovia está imbricado desde a minha
infância, ao assistir o trem perpassando o centro da cidade onde
resido, Sobral2, Ceará. Com isso, foi desenvolvida a curiosidade em
saber onde era o ponto nal daqueles trilhos. Esse questionamento
foi perpassando os anos, e, durante minha graduação em História,
tive a oportunidade de ser bolsista de Iniciação Cientíca cuja
proposta de pesquisa era a análise do cotidiano dos ferroviários
aposentados no Ceará. No mestrado, foi possível me aprofundar
1 Graduada em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA);
Especialista em Estudos de História Local pela Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB); Mestranda em História, Culturas e Espacialidades pela Universidade Estadual
do Ceará 9UECE). E-mail: jaciaraazevedorodrigues951@gmail.com
2 Cidade localizada na região norte do Estado do Ceará. Inauguração da estação
ferroviária nessa cidade ocorreu em dezembro de 1893. Aproximadamente, no cenário
atual, a cidade conta com 20 mil habitantes.
446
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
447
no universo do trabalho dos ferroviários que prestaram serviço
especicamente à Rede Ferroviária Federal.
Com isso, a partir da incumbência de apresentar uma proposta de
doutorado, pensei na dimensão patrimonial da ferrovia, sobretudo
partindo da análise da atual situação desses prédios frente ao
desenvolvimento ou não de políticas que objetivem salvaguardar
essas estações. Contudo, a partir da premissa de que o conceito de
patrimônio na contemporaneidade deve ser pensado para além do
material, busca-se também a preservação do que foi vivenciado
nessas estações.
Diante disso, ao longo da pesquisa serão ouvidos sujeitos simples
que foram viajantes no trem de passageiros. Com isso, é possível
dialogar com Pacheco (2017) ao armar que “hoje, é comum
fazermos a História de grupos sociais que, há algumas décadas,
simplesmente não existiam na historiograa, como as mulheres e as
comunidades locais...” (PACHECO, 2017, p. 8). Logo, a incumbência
dessa pesquisa é seguir a lógica de destacar sujeitos simples, que
visualizavam no trem o meio mais econômico de se locomover.
Essas memórias serão acessadas através da metodologia de
História Oral. Com isso, “a utilização da história oral, além de
poder registrar narrativas as quais de outra forma não teríamos
acesso, justica-se também pelo que ela tem de mais precioso e
singular, a subjetividade, o que a torna diferente pois conta menos
sobre evento que sobre signicados. (PORTELLI, 1997, p. 31).
Sendo assim, deve-se considerar o valor de bens culturais como
catalizadores da identidade de um povo. Ao longo de toda a malha
ferroviária cearense, várias estações ferroviárias foram construídas,
servindo como ponto de encontro e despedidas, construindo, assim,
sociabilidades e afetos.
Hoje, faz-se fulcral esses prédios serem protegidos não apenas
por lei em virtude de contar a história de um espaço, mas também
seja assim na prática - realidade que ainda não faz parte da maioria
das estações cearenses. Sendo assim, o intuito geral dessa pesquisa
é discutir acerca da patrimonialização das estações ferroviárias do
Ceará da linha norte como também as memórias que se construíram
nesses espaços.
Destaca-se como objetivos especícos denunciar o descaso que há
com esses prédios que a exemplo de um número mínimo de cidades
fazem uso de algum ponto cultural, seja biblioteca ou até mesmo
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
448
museu. Ademais, despertar na sociedade o desenvolvimento de
uma dita consciência patrimonial perante não somente as estações
ferroviárias, mas as histórias que ali foram construídas. Além disso,
elaborar um levantamento dos usos das estações ferroviárias no
Ceará e compreender as políticas de preservação do patrimônio
ferroviário e como elas orientam os usos e intervenções.
Diante do recorte escolhido, o ano de 1988 marca a última viagem
no trem de passageiros pela linha férrea na região norte do Ceará,
passando por cidades do interior que hoje possuem suas estações
deterioradas. A escolha do ano 2023 marca a forte presença da
história do tempo presente, como a sociedade atribui importância
às memórias sobre esse contexto. O objeto de estudo é, portanto,
a análise das estações ferroviárias e as memórias experimentadas
nesses espaços. Apesar do patrimônio ferroviário englobar ocinas,
rotundas, plataformas de paradas, casa do agente, a proposta de
pesquisa se debruça apenas na análise e no novo uso do prédio das
estações e histórias ali produzidas.
A justicativa desse projeto possui duas dimensões, a social
e cientíca. Adentrando no universo acadêmico, a pesquisa
impactará nos estudos sobre a ferrovia que teve uma diminuição
nos estudos ultimamente. Pode-se considerar um tema fértil, uma
vez que gera um leque de possibilidades de análises. Primeiramente,
a perspectiva econômica e moderna que a implantação dos trilhos
causou nas cidades. Outro viés de estudo é a análise das memórias
das pessoas viajantes do trem de passageiros, como a investigação
do cotidiano de trabalho ferroviário.
Ademais, a temática também abre possibilidade para a dimensão
patrimonial. No caso desse trabalho, tocará nas sensibilidades dos
sujeitos que viveram na época do trem de passageiros no Ceará e
como hoje a sociedade (des) conhece o prédio da estação como um
espaço de recordação. Diante da falta do reconhecimento da geração
de hoje perante essa memória ferroviária, a partir dessa pesquisa,
será possível alcançar o (re) conhecimento acerca das histórias
construídas nesses espaços.
Paul ompson, historiador inglês, arma que toda história
depende, basicamente, de sua nalidade social. (THOMPSON,1992).
Desse modo, nas cidades ou em espaços de trabalho, cruzam-
se grupos e indivíduos com heranças históricas diversas, que
acabam por compartilhar memórias comuns, estabelecer acordos
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
449
de convivência e aceitação de códigos vigentes nas atividades,
prossões ou funções exercidas. Nessa dinâmica, estabelecem-se
laços de solidariedade e empatia entre pessoas, grupos étnicos e
classes sociais. Desse modo, surgem as memórias que, narradas com
base nas experiências e nos conhecimentos acumulados, recriam o
passado e indicam caminhos futuros.
Nesse sentido, “a maior parte dos escritos e publicações históricas
sobre os bens patrimoniais ainda é fruto de esforço intelectual de
memorialistas que, coletando informações históricas, as reúne
num quadro de memória afetiva. (PACHECO, 2017, p. 6). Diante
disso, o ocio do historiador faz-se fundamental nesse processo,
problematizando as lembranças experimentadas nesses espaços.
Sendo assim, infere-se que há a necessidade de pesquisadores
engajados na causa patrimonial e a contribuição a que se propõe
esta pesquisa pode oferecer suporte a processos em curso ou que
poderão ser iniciados de tombamento ou valoração das estações
ferroviárias no Ceará.
Nessa perspectiva, na forma como os prédios das estações
ferroviárias impactaram a população da época do funcionamento
do trem de passageiros, essas estações (des) afetam a geração de hoje
que passa muitas vezes ao lado desses espaços sem compreenderem
o valor signicativo que aquele espaço já teve na cidade em
um determinado tempo, de forma a não instigar a consciência
patrimonial para fortalecimento da identidade dessa cidade cujo
moradores não fazem dimensão da importância histórica dessa
estação. Sendo assim, pode-se armar que
O local, independentemente do valor econômico, possui histórias
para serem problematizadas, e não somente permanecerem na mera
descrição, ou seja, traçar análises críticas. Ora, quando os historiadores
elegem o local para reetir sobre diversos aspectos da vida social, eles
reduzem a escala de observação com a intenção de produzir efeitos
de conhecimento que visam, na forma narrativa, dizer algo sobre esses
lugares particulares e únicos (REVEL, 1998).
Desse modo, a análise da realidade patrimonial ferroviária de
cada cidade privilegiada com os trilhos da região norte do Ceará
será importante para realçar a importância dos estudos de história
local, instigando pesquisadores na produção dessa história, que há
muito que ser desenvolvida.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
450
Fundamentação teórica e diálogo com
a historiograa que fundamenta o tema
proposto
A pesquisa se insere na história do tempo presente, sendo assim,
será possível dialogar com Marieta Morais em seus estudos nessa
abordagem. O campo historiográco de pertencimento da temática
abordada faz referência à história cultural. Sendo assim, optou-se por
mergulhar nas produções de Sandra Jathay Pesavento, tornando-se
imprescindível para compreendermos teoricamente a dimensão da
história cultural, sobretudo o conhecimento do imaginário social
de décadas atrás. Assim,
É, verdadeiramente, com o advento da História Cultural que o
imaginário se torna um conceito central para a análise central da
realidade, a traduzir a experiência do vivido e do não-vivido, ou seja,
do suposto, do desconhecido, do desejado, do temido, do intuído.
(PESAVENTO, 2003, p. 47)
Através da abordagem da História Cultural, o conceito de
imaginário passa a ser fundamental na análise da realidade. O
imaginário é capaz de traduzir não apenas a experiência vivida,
mas também as experiências que não foram vividas, como aquelas
relacionadas apenas à representação. Através do estudo do
imaginário, é possível compreender as representações, os símbolos
e as signicações que moldam a cultura e a sociedade. A História
Cultural, portanto, busca ir além dos fatos e eventos históricos,
explorando as dimensões subjetivas que permeiam a experiência
humana.
Ademais, o conceito de patrimônio será imprescindível, sobretudo
o patrimônio ferroviário. Conforme a história dos conceitos, é
perceptível que o termo patrimônio cultural sofreu transformação
ao longo de sua trajetória histórica, logo, esse contexto poderá fazer
parte da discussão. Nesse sentido, ao longo do percurso dos estudos
que envolvem patrimônio, houve vários momentos. Inicialmente
havia a preocupação apenas com grandes monumentos, já na
contemporaneidade, os estudos foram se desenvolvendo, e se
começou-se a pensar patrimônio para a sociedade no geral.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
451
Desse modo, tornou-se possível considerar os patrimônios
materiais para além de monumentos. Os “bens culturais” atuam no
papel de preservar a “identidade cultural” de grupos sociais. Logo,
faz-se possível armar com veemência que as estações ferroviárias
são bens materiais culturais que envolvem aspectos sensíveis de
toda uma cidade em uma determinada época. Logo, as estações
ferroviárias são tidas como objeto de análise dessa pesquisa. O
historiador Ricardo Pacheco reete sobre isso:
Ao escolher um objeto como patrimônio histórico, estamos retirando-o
de seu contexto original para lhe atribuir uma outra funcionalidade:
a de evocar um determinado passado. O patrimônio é, portanto, um
discurso de segunda ordem. Uma cadeira utilizada pelo Imperador,
quando integrada a uma exposição museológica, não será utilizada
como cadeira; será agora um suporte para trazer à lembrança a
presença do Imperador. Ou seja, o objeto perde sua função de uso
original sendo transformado em objeto de memória, em suporte
material para a produção de um imaginário social sobre as relações
sociais que cercaram esse objeto no passado. (PACHECO, 2009, p. 9)
O quadro do contexto que o autor traz pode ser atribuído
às estações. Assim, ao transformar as estações e suas memórias
em objetos de análise, há a necessidade de pensar para além
da funcionalidade, adentrando nas sensibilidades construídas
e rmadas. Dessa forma, pode haver uma garantia de conexão
signicativa entre o objeto e a sociedade. Oliveira (2010) em uma de
suas vastas produções acerca do patrimônio ferroviário, considera
que as referências patrimoniais são os objetos constitutivos da
memória da formação, formas de trabalho e vida passadas ou atuais.
De todo modo, o patrimônio se apresenta como a materialização
de um discurso sobre o passado. Tal como aborda Pelegrini (2007,
p. 87) que considera patrimônio cultural como “lócus privilegiado
onde as memórias e as identidades adquirem materialidade.” A
autora também arma que o direito à memória e à preservação do
patrimônio cultural constitui um exercício de cidadania.
Ademais, de forma teórica, será problematizado o conceito de
espaços da recordação de Aleida Assmann. Considera-se uma leitura
não tão aprofundada na academia, mas com a referida proposta de
pesquisa aprovada, poderá ser mais explorada. A autora pontua
dois modos da recordação: a memória funcional e a cumulativa. A
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
452
autora associa a memória funcional à memória coletiva e a chama
de memória habitada; já a memória cumulativa equivale à memória
histórica, chamada inabitada. A memória funcional pode ser
alterada, sendo igualmente utilizada de diversas formas. A memória
cumulativa é um reservatório para todas as memórias funcionais.
Ela não é natural e necessita de apoio de instituições para preservá-
la, como é como o caso das estações ferroviárias. Desse modo,
Os elementos da memória cumulativa pertencem ao indivíduo, mas
constituem uma reserva que- por vários motivos, sejam eles quais
forem- em certo momento deixa de estar disponível para resgate. A
m de que a memória possa desenvolver uma função orientadora, é
preciso apropriar-se desses elementos, ou seja, é preciso selecioná-
los segundo sua importância, torna-los acessíveis e interpretá-los em
determinado quadro de sentido. (ASSMANN, 2011, p. 148)
Essa seleção e interpretação são inuenciadas pela experiência,
valores, crenças e conhecimentos do indivíduo. A memória
cumulativa se constrói ao longo da vida, integrando informações
passadas com as experiências presentes. Isso é fundamental para a
formação da identidade. Além disso, ao selecionar os elementos da
memória, estamos criando um quadro de sentido que é único para
cada indivíduo, que, de certo modo, se insere numa coletividade.
Em suma, os espaços da recordação são locais onde a memória
coletiva é preservada, transmitida e vivenciada, desempenhando um
papel fundamental na preservação da identidade, na transmissão de
valores culturais e no processo de cura histórica. Assmann comenta
que os espaços da recordação desempenham um papel importante
na construção da identidade de um grupo ou sociedade, ajudando a
manter viva a memória coletiva. Sendo assim, as estações ferroviárias
são espaços da recordação que desempenham um papel crucial na
preservação e transmissão da memória coletiva, pois fornecem um
terreno comum onde as memórias individuais se encontram e se
conectam. Esses prédios também oferecem um ponto de ancoragem
para a identidade coletiva, fornecendo um senso de continuidade e
pertencimento.
Dominique Poulot arma que a história do patrimônio é a história
da construção do sentido de identidade. Assmann arma que “o
nexo entre recordação e identidade não foi pesquisado somente
por poetas e lósofos, mas também por sociólogos e historiadores.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
453
(ASSMANN, 2011, p. 143) Dessa forma, a autora arma que há
uma relação entre ambos os conceitos, abrindo margens para a
pesquisa no campo da Sociologia e História. Entretanto, armo que
na antropologia, há estudos voltados para essa análise.
O livro Memória e identidade do antropólogo Joel Candau
será uma leitura atual imprescindível. O autor arma que todos
os grupos sociais reconhecem a necessidade de criar e preservar
uma tradição própria para si, construindo uma narrativa sobre seu
passado e uma memória que ajude a sustentar sua identidade no
presente. No que se refere à patrimonialização, Candau questiona
a ideia de patrimônio como algo estático e imutável, propondo
uma visão mais dinâmica e aberta. Para ele, o patrimônio deve ser
compreendido como um processo social de seleção e valorização
de bens culturais, que devem ser preservados não apenas por seu
valor estético ou histórico, mas também por sua importância para
a sociedade atual.
Em suma, Candau, defende que a preservação da memória do
patrimônio cultural deve ser uma preocupação constante, pois os
patrimônios são fundamentais para a construção e fortalecimento
das identidades individuais e coletivas, nesse caso dos sujeitos que
vivenciaram o período do trem de passageiros. Desse modo, ao
trabalhar com patrimônio, também se considera a dimensão teórica
da memória.
Michael Pollak, apropria-se da importância atribuída por
Halbwachs à memória coletiva, explorando como diferentes
indivíduos contribuem para a formalização e solidicação das
memórias. Para o autor, a função da memória é manter a coesão
daquilo que um grupo possui em comum, tendo-se em vista o
território que os indivíduos compartilham. Diante disso, Bosi (1987)
já alertava para uma valorização da história e memória dos sujeitos
mais velhos, adquirindo sensibilidade para analisar o que suas
lembranças que são respaldadas por uma memória coletiva, têm a
contribuir para a historiograa. Sendo assim, a autora justica com
argumentações convincentes a importância de que o ato de lembrar
pode ser pensando para além de lembrar por lembrar.
Dessa forma, sobre a memória de velhos, nelas é possível vericar
uma história social bem desenvolvida: elas já atravessaram um
determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas
e conhecidas; elas já viveram quadros de referência familiar e
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
454
cultural igualmente reconhecíveis: enm, sua memória atual pode
ser desenhada sobre um pano de fundo mais denido do que a
memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum
modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente
que a solicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de
idade. (BOSI, 1987, p. 23) Por ter feito parte da memória coletiva,
as estações ferroviárias poderiam ser pensadas na abordagem
da patrimonialização. O que se busca armar é que todo esse
grupo participou de algum modo do funcionamento dos trens de
passageiros no espaço pesquisado.
Para uma análise efetiva dessa memória, leva-se em conta
os contextos sociais, colocando em pauta os acontecimentos e
circunstâncias que moviam aquele determinado grupo e nos
convidando a pensar a memória não somente atrelada ao indivíduo,
mas também reetir sobre a posição desse sujeito enquanto
pertencente a uma dimensão social caracterizada pelas relações e
sociabilidades dentro do ambiente de trabalho. Como Halbwachs
(1990) arma que a memória individual é respaldada pela memória
coletiva. Sendo assim, “um objeto patrimonial não funciona sozinho,
ele precisa estar inserido em um quadro de memória que lhe dê
sentido, necessita de uma rede de signicados que lhe potencialize
um signicado particular.” (PACHECO, 2017, p. 9).
Conforme o autor, pode-se armar que esses objetos têm o poder
de nos transportar para diferentes épocas e sociabilidades, nos
conectando com o passado e proporcionando uma compreensão
mais densa do presente. Porém, essa conexão só é possível quando
esses objetos estão inseridos em um contexto, em uma rede de
signicados que lhes ofereça sentido. essa rede é formada por
diversas camadas, como a história, a cultura, as narrativas pessoais e
coletivas, entre outras. É através dessa teia complexa que um objeto
patrimonial se torna mais que um simples objeto físico, passando
a ser guardião da memória e do conhecimento de uma sociedade.
É notório que atualmente a ferrovia em sua grande parte foi
desativada juntamente aos prédios de antigas estações, ou seja,
algumas cidades tiveram seus trilhos arrancados devido a alegação
do governo de que o trem era considerado uma tecnologia
ultrapassada, abrindo espaço para a indústria automobilística.
Todavia, onde está a geração que vivenciou esse tempo do trem
transportando pessoas? Onde é possível encontrar suas memórias?
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
455
Santos (2017, p. 13) revela que “essa nostalgia, com um misto
de saudade, de raiva dos políticos e dos técnicos do governo que
preferiram outro tipo de transporte na época, de um sentimento
de impotência em não poder ter mais o trem [...]” começou após a
extinção do trem de passageiros pelas cidades interioranas. Apoiada
nessas leituras, podemos inferir que as estações ferroviárias
são patrimônios, que, revestidos de valores sociais e culturais,
dependem do reconhecimento de uma comunidade em massa para
ganhar a devida notoriedade, e são esses mesmos grupos sociais que
estão inseridos no tempo do trem de passageiros e assim, atribuem
signicações às estações.
O patrimônio ferroviário no Brasil encontra-se sob risco de
desaparecimento frente aos processos de desindustrialização e da
obsolescência funcional das estruturas ferroviárias, sem que haja
uma política preservacionista voltada especicamente para sua
preservação; é nessa lacuna onde a pesquisa se insere na tentativa
de produção dessa história. O patrimônio é um instrumento das
políticas públicas para valorizar as histórias vivenciadas nas estações
como as próprias estações palcos de socialidades experimentadas
ao longo das décadas.
Assim, por exemplo, seria possível compreender o
reconhecimento do objeto patrimonial e de suas formas de proteção
legal, tanto na perspectiva dos agentes sociais envolvidos, quanto
pela formulação de valores que fundamentam pareceres técnicos,
bem como ações de preservação e de defesa dos objetos e edifícios.
(OLIVEIRA, 2012, p. 100). A partir dessa perspectiva, torna-
se evidente que apesar de todo aparato nas leis, há muito que ser
trabalhado na consciência patrimonial dos cidadãos, que não se
sentem envolvidos em preservar seu passado ferroviário.
A chegada da estrada de ferro ao interior do Brasil representou
um marco histórico e cultural para a historiograa ferroviária,
tendo em vista que cada estação ferroviária existente nos municípios
brasileiros, é considerada marca simbólica desse tempo de ferrovia
no local. Tendo isso em base, Mont’Alverne (2015, p. 55) arma
que “as estações de trens eram as portas da cidade moderna.
Proporcionavam a primeira e a última impressão aos viajantes;
revelavam a prosperidade do país, incentivando a iniciativa de seus
cidadãos”. Um espaço de chegadas e partidas que proporcionava
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
456
a esses sujeitos (re) conhecer a chegada de diferentes culturas no
espaço pertencente, assim (des) construindo histórias.
O produto dessa modernização tão difundida pelo neoliberalismo
foi a erradicação de inúmeros ramais, seções e estações, além da
desativação de muitos trilhos, a paralisação quase completa dos trens
de passageiros e o enxugamento da máquina, com a redução maciça
do número de empregados, além do leilão de todo patrimônio
mobiliário e imobiliário. (MAIA, 2002, p. 13). Essas mudanças
podem ter sido vistas como necessárias para alguns, visando a
eciência e rentabilidade econômica. No entanto, para muitos, isso
resultou em uma diminuição signicativa no acesso aos serviços
de transporte ferroviário, além do impacto social e econômico
causado pela perda de empregos. É importante questionar se essa
modernização foi realmente benéca para toda a sociedade ou se
privilegiou apenas determinados setores econômicos. É preciso
analisar os impactos a longo prazo dessas medidas e garantir que o
interesse público esteja sendo protegido.
Algumas considerações
Nesse sentido, Pelegrini (2006, p. 89) retrata que “o direito à
memória e à preservação do patrimônio cultural de distintos grupos
constitui um exercício de cidadania importante para fundamentar
as bases das transformações sociais necessárias para a coletividade”.
Assim, o patrimônio ferroviário, tal como as memórias desses
sujeitos merecem uma atenção por parte de nós, pesquisadores
que buscamos no nosso ofício ir para além dos muros acadêmicos,
na tentativa de promover contribuições na esfera social de forma
signicativa, como é o caso dessa proposta.
Referências
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da
memória cultural. Campinas: Unicamp, 2011.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
457
CANDAU, Joel. Memória e identidade. tradução Maria Lecicia Ferreira. - 1.
ed., 3ª reimpressão, São Paulo: Editora Contexto, 2016.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice: Editora
Revista dos Tribunais, 1990.
MAIA, Andréa Casa Nova. Memória (s) e Identidade (s) nos trilhos: História
de Ferroviários brasileiros em tempos de neoliberalismo. Locus: revista
de história, v. 15, n. 1, 2009.
MONT’ALVERNE, Glória Giovana Saboya. A Ferrovia e a Cidade. Desaos
da modernidade em Sobral (1870-1920). Sobral; Instituto Ecoa, 2015.
OLIVEIRA, Eduardo Romero de. Memória, História e patrimônio:
perspectivas contemporâneas da pesquisa histórica. Fronteiras,
Dourados, MS, v. 12, n. 22, p. 131-151, jul./dez. 2010.
OLIVEIRA, Eduardo Romero de. Usos sociais do Patrimônio Cultural.
UNESP, 2012, p. 97-123.
PACHECO, Ricardo de Aguiar. Educação, memória e patrimônio: ações
educativas em museu e o ensino de história. Revista Brasileira de
História, v. 30, p. 143-154, 2010.
PACHECO, Ricardo de Aguiar. O Patrimônio histórico: objeto de pesquisa
do historiador. História Unicamp, v. 4, n. 7, p. 5-14, 2017.
PELEGRINI, S. C. A. O patrimônio cultural no discurso e na lei: trajetórias do
debate sobre a preservação no Brasil. Patrimônio e Memória, v. 2, n. 2, p.
1-24, Assis - São Paulo: UNESP – FCLAs – CEDAP, 2006.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História:
Revista do Programa de estudos pós-graduados de História, v. 14, 1997.
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques
(org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise, Rio de Janeiro:
Editora FGV, 1998. p. 15-38.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
458
SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. A Nostalgia dos apitos: a estrada
de ferro de Sobral. Quarenta anos depois da partida do último trem de
Camocim-CE. (1977-2017). 1ª ed. Sobral: Edições UVA; Global Gráca, 2017.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
POLÍTICAS PATRIMONIAIS:
CIDADE DE SILVÂNIA (GO)
João Guilherme da Trindade Curado1
Maria Idelma Vieira D’Abadia2
Tereza Caroline Lôbo3
Considerações iniciais
A goiana cidade de Silvânia remonta ao período da mineração
de ouro e se caracterizava como um pequeno aglomerado surgido
entre as proximidades do Ribeirão Vermelho e ao redor da igreja
erigida em homenagem ao santo padroeiro, o Senhor do Bomm,
daí a antiga designação da toponímia.
1 Historiador, Mestre e Doutor em Geograa IESA/UFG. Pesquisador externo do
Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (LABOTER). Membro
da Academia Pirenopolina de Letras, Artes e Música (APLAM); do Instituto Cultural e
Educacional Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (ICEBE) e do Instituto Histórico e
Geográco de Goiás (IHGG). E-mail: joaojgguilherme@gmail.com
2 Geógrafa, mestra e doutora em Geograa (IESA/UFG). Professora da Universidade
Estadual de Goiás e do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado (TECCER/UEG). Coordenadora do Projeto de Pesquisa: “Corpos,
ritmos, vozes e (en)cantos: a voz e a performance em festas religiosas das antigas
terras de Bomm” (PrP-UEG). E-mail: maria.dabadia@ueg.br
3 Mestra e Doutora em Geograa IESA/UFG. Pesquisadora externa do Laboratório
de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (LABOTER). Membro da Academia
Pirenopolina de Letras, Artes e Música (APLAM); do Instituto Cultural e Educacional
Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (ICEBE) e do Instituto Histórico e Geográco de
Goiás (IHGG). E-mail: terezacarolinelobo@gmail.com
459
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
460
Para melhor situar o leitor, propomos uma representação atual
da localização de Silvânia.
Figura 1 – Localização de Silvânia/GO
Fonte: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/silvania/panorama
Em Silvânia, ao longo do tempo, as construções coloniais viram
passar pelas estreitas ruas partes signicativas da história regional,
como os viajantes que no início do século XIX adentraram Goiás
com diversos objetivos, registrar acontecimentos, curiosidades
e aspectos dos que habitavam locais inseridos nas rotas que eles
transpunham – a antiga Bomm fez parte dos principais trajetos;
dentre os estrangeiros destacamos o francês Auguste de Saint-Hilaire,
que descreve algumas características ali observadas: “uma regular
extensão de terra, escavada até uma profundidade de 2 ou 3 metros,
cavoucada e revirada de todas as maneiras, anuncia claramente
à entrada de Bom Fim qual tinha sido a ocupação dos primeiros
homens que se estabeleceram na região” (SAINT-HILAIRE, 1975,
p. 104). Continua o autor relatando que ali, em 1819: “as casas são
igualmente pequenas, mas bem conservadas. Ficam afastadas uma
das outras, e todas têm quintal” (p. 104). E ainda: “o Arraial de Bom
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
461
Fim é, aliás, de pequenas dimensões. Compõe-se de algumas ruas
pouco extensas e de uma praça triangular, onde está situada a igreja
de N. S. do Bom Fim” e comenta sobre uma importante alteração ali
ocorridas: “a igreja é muito pequena, mas à época da minha viagem
estava sendo construída uma outra” (SAINT-HILAIRE, 1975, p.
103-104).
Retomaremos as observações de Saint-Hilaire comparando-as
com outro contexto, as políticas patrimoniais de Silvânia – foco
da presente proposta. Para tanto recorreremos ao Decreto-Lei
nº 25/1937 que estabelece as diretrizes patrimoniais no Brasil,
especialmente no que tange o “material” e ainda os efeitos de tal
legislação, com o intuito de elucidar as práticas patrimoniais em
Silvânia, assim como as proposituras estadual e municipal voltadas a
manutenção do importante acervo remanescente da antiga Bomm.
Além da pesquisa legislativa, os estudos bibliográcos de autores
silvanienses foram de suma importância para a compreensão
da dinâmica não só espacial, mas também cultural no sentido
de preservação dos bens que foram/são representativos para a
comunidade. Optamos por realizar registros fotográcos que
possibilitaram melhor visualizar alguns exemplos do patrimônio
construído; recorremos, ainda, a acervos de imagens contidos em
obras sobre Silvânia, que possibilitam o diálogo patrimonial entre o
passado e o presente.
O texto está subdividido em três partes: “De Bomm a Silvânia”
onde recorremos à história local, baseada, principalmente, nas
referências bibliográcas silvanienses. Em seguida “Políticas
Patrimoniais em Silvânia” em que as legislações federal, estadual
e municipal serão o foco; a terceira subdivisão “O Patrimônio
em Silvânia” traz observações de campo do Projeto de Pesquisa:
“Corpos, ritmos, vozes e (en)cantos: a voz e a performance em
festas religiosas das antigas terras de Bomm” (PrP-UEG (2021-
2024), permeado por discussões que interligam o texto.
“De Bomm a Silvânia”
O título aqui apresentado é da obra de Sanches (2011), que no
original é acrescido de “um olhar sobre a cidade” e grafado Bonm.
Constitui uma homenagem que se estende aos demais escritores
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
462
daquela localidade a partir da pesquisadora silvaniense, autora de
várias obras, dentre as quais duas foram por nós estudadas.
Com a diminuição da produção proveniente da mineração
algumas transições foram ocorrendo, dentre elas salientamos
o “deslocamento” do centro, quando a ocupação territorial se
estendeu ao sentido Sul da igreja do Nosso Senhor do Bonm,
edicação religiosa original que passou a se tornar um dos extremos
do então Arraial. Outro fator é que a Igreja do Bonm perdeu o
status de matriz em decorrência da edicação de uma “igreja nova”
erigida em homenagem à Nossa Senhora do Rosário (1813-1825),
construção mencionada anteriormente pelo viajante francês.
A mudança da matriz contribuiu para a ocupação espacial,
inclusive diminuindo os “afastamentos” entre casas mencionadas
por Saint-Hilaire, devido a construção de novas residências nas
proximidades da nova igreja. Outro fator foi a elevação do Arraial
à categoria de Vila em 1833, ampliando a necessidade de imóveis
administrativos. Bomm virou cidade, pela Lei Provincial ou
Resolução Provincial n.º 2, de 05 de outubro de 1857, ao emancipar-
se de Santa Cruz.
Seguindo as dinâmicas comuns, a cidade foi se expandindo com
novas construções e aumento da população até o início do século
XX, período em que se destacam alguns integrantes da família Silva,
que possuíam signicativo destaque político em Bomm, dentre eles
aludimos a inuência intelectual de Henrique Silva e de Americano
do Brasil, que publicaram a Revista A Informação Goyana, editada
no Rio de Janeiro com principal objetivo de divulgar Goiás além de
nossas fronteiras. Segundo Sanches (2011, p. 37) foi um periódico
“especializado em Brasil Central”, que circulou entre os anos de
1917 a 1935, em suas páginas muito dos patrimônios goianos foram
expostos e discutidos, mesmo em um período que antecedeu a
política nacional patrimonial, cuja gênese pode ser caracterizada
pelo Decreto-Lei nº 25/1937.
A década de 1930 será abordada no item seguinte, por ser de
suma importância para a compreensão das questões patrimoniais
naquela cidade, que em 1943, pelo decreto nº 8.305, de 31 de
dezembro, teve seu nome alterado para Silvânia, “em homenagem
ao patriarca e consolidador do município, Vicente Miguel da Silva
e de todos os seus descendentes como Vicente Miguel da Silva Neto
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
463
[...], Henrique Silva, Antônio Americano do Brasil e tantos outros”
(SANCHES, 2011, p. 17).
Políticas Patrimoniais em Silvânia
A década de 1930 foi marcada em Goiás pelo declínio do
coronelismo que tinha por base de sustentação as oligarquias rurais.
Mas algumas mudanças foram anteriores ao marco referencial, como
a nomeação de Dom Emmanuel Gomes de Oliveira para Bispo de
Goiás (função que exerceu entre 1923 e 1954); a chegada dos trilhos
de ferro a Goiás e a proposta da mudança da capital goiana.
Enquanto capixaba, Dom Emmanuel, não coadunava com
algumas das práticas recorrentes na política goiana, por isso
transferiu-se para Bomm, privando a Cidade de Goiás, então
capital, de abrigar a administração católica, tal afastamento espacial
não era algo recorrente.
Quanto a chegada da ferrovia a Goiás, símbolo de “modernidade”
e de integração econômica, houve demora e inúmeras discussões, o
que pode ser ilustrado com os fatos que se seguem: “em 1930 foi
inaugurada a estação ferroviária de Bonm, batizada de Caturama”
(SANCHES, 2011, p. 95), isso depois de alguns imbróglios
anteriores, como relata a referida autora: “sem explicação e sem que
a população pudesse entender, 18 quilômetros de linha construída
foram arrancados e tudo que havia sido feito cou perdido” (p. 94) e
ainda: “pelo traçado original a linha férrea deveria passar abaixo do
[Colégio] Anchieta, mais perto da cidade para facilitar o embarque
e desembarque de pessoas e mercadorias. Devido a essa mudança
‘repentina’, foi acrescentado mais um quilômetro acima” (p. 94).
A distância acima, interpretada inicialmente como uma
represália, hoje pode ser analisada como fator que contribuiu
para alteração mais lenta da arquitetura, uma vez que a estrada
de ferro apresentou à colonial cidade uma diferente arquitetura:
a ferroviária. Outro destaque foi na área educacional, Bomm
contava com escolas referências em Goiás, tanto para moças quanto
para rapazes (o Seminário), pelos quais passaram parte dos futuros
pensadores do estado, ao mesmo tempo que proporcionou à cidade
um reconhecimento estadual, atraindo, inclusive, moradores e até
mesmo investidores oriundos de outras paragens, ampliando o
número de habitantes e de construções.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
464
Ao assumir o governo goiano após a Revolução de 1930, Pedro
Ludovico Teixeira se deparou com uma situação política complexa
na antiga Vila Boa de Goiás, sede do executivo estadual, o que
tornava a administração na Cidade de Goiás quase impossível
naquele contexto. Uma das alternativas era a mudança da capital,
o que gerou movimentos pró e contra; assim como a constituição
de uma Comissão objetivando encontrar o melhor local para a
transferência. Dentre as sugestões, Bomm foi cotada, não se
sabe ao certo se pelos requisitos analisados ou pela inuência de
Dom Emmanuel Gomes de Oliveira, que presidia a mencionada
Comissão.
O fato é que a nova capital foi planejada, construída e denominada
Goiânia. Trazia no seu escopo a ideologia do novo, do “moderno”,
o que era reetido, por exemplo, nas propostas: a) urbanística
com uma praça circular, em que se concentrava a administração
estadual, da qual saiam amplas avenidas e b) mais explicitamente
na arquitetura escolhida, o estilo Art Déco, inuência francesa
do período entreguerras tendo por elementos construtivos: ferro,
concreto e vidro em contraste com os coloniais madeira, barro e
pedra.
Se Goiânia tinha a pretensão de uma “nova” política para
Goiás e ainda representar o “moderno” e a integração, em termos
patrimoniais houve uma ruptura, uma vez que muito do colonial foi
transformado em tentativas de Art Déco por Goiás adentro, tanto
por particulares quanto pelos poderes públicos municipais. Em
Bomm não foi diferente. Aliás, as mudanças acontecem a partir
da própria toponímia que foi alterada para Silvânia em 1943, como
exposto no m do item anterior, designação que vamos utilizar a
partir daqui.
O impacto da nova Goiânia parece ter reetido nas questões
patrimoniais em Goiás, pois na década de 1940 foram 13 os
tombamentos, sendo um deles em Pirenópolis e os demais na
Cidade de Goiás antiga capital que passou a ter relevância histórica
reconhecida com o Decreto-Lei nº 25 de 1937.
Em Silvânia, a igreja Nossa Senhora do Rosário, a mencionada
por Saint-Hilaire, foi demolida na década de 1930, dando lugar a
uma praça que passou por inúmeras transformações e consta hoje
com coreto e fonte luminosa. A devoção à Senhora do Rosário
permaneceu entre os silvanienses que em 1951 começaram a
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
465
construção de outra igreja sob o orago da santa. Foi inaugurada
em 1959 e hoje é a igreja matriz que passou a delimitar uma outra
centralidade, também mais ao Sul, se distanciando mais uma vez da
igreja Nosso Senhor do Bonm.
Acomodar passado e presente em uma cidade às vezes é tarefa
complexa ao considerar os interesses e necessidades de cada
momento, no entanto é algo possível, porém com limitações. Em
Silvânia podemos perceber as miscelânias criadas a partir das ações
do tempo, evidência da ausência de um conjunto de imóveis que,
se preservados fossem, poderiam constituir um “centro histórico”
reconhecido conforme Artigo 1º do Decreto-Lei nº 25 de 30 de
novembro de 1937, onde se lê: “constitui o patrimônio histórico e
artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes
no país e cuja conservação seja de interesse público” (IPHAN,
2006, p. 99 – grifos nossos). Mesmo sem proteção federal, parte do
patrimônio silvaniense edicado vem se mantendo.
Enquanto outras cidades goianas foram contempladas pelo
Decreto-Lei nº 25/1937, o que auxiliou na proteção e na preservação
de parte da representatividade, em especial, do período colonial,
o mesmo não ocorreu com Silvânia que teve parcela signicativa
de seu casario demolido ou alterado. Alguns registros das
“perdas patrimoniais” foram realizados, recorrendo à memória
de moradores locais, autores de obras como: “Bonm de Goiás:
minha terra e minha gente” (LOBO, 2020) e “Decifrando Silvânia”
(SANTOS, 2015), assim como estudos realizados por pesquisadores
locais (COTRIM, 1998; SANCHES, 2011 e 2012).
Os descuidos com a memória material são mais lembrados, mas
não se pode esquecer dos cuidados, responsáveis para existência,
no tempo presente, de vestígios de outros tempos. Em Silvânia, as
relações afetivas e familiares foram as “guardiãs” da preservação que
zeram chegar aos dias atuais registros de outras épocas, por ações
individuais ou coletivas.
A primeira ação institucional, de relevância preservacionista em
Silvânia, ocorreu através do governo de Goiás, pela Lei nº 8.915, de
13 de outubro de 1980, que dispõe sobre a proteção ao patrimônio
histórico e artístico estadual, com o tombamento estadual, dentre
outros, da Igreja Nosso Senhor do Bonm. A legislação se torna
ecaz pelo que determina seu Artigo oitavo: “a escrituração e
guarda dos Livros do Tombo Estadual, bem como as providências
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
466
e medidas que visem à conservação, restauração e preservação dos
bens culturais do Estado e da memória goiana” (GOIÁS, 1980).
Ao propor não só o tombamento, mas também a documentação,
a conservação, o restauro e a preservação, evidencia a indicação
da existência de uma política patrimonial efetiva que contempla a
perpetuação dos bens tombados em questão.
Todavia, houve um hiato em relação ao estado, de duas décadas
para que a municipalidade silvaniense se manifestasse em relação ao
patrimônio local, fato demarcado pela Lei nº 1.294 de 28 de junho
de 2001, que “dispõe sobre a proteção e preservação do Patrimônio
Cultural de Silvânia” e “institui o Conselho Municipal de Cultura e
Patrimônio Cultural” (SILVÂNIA, 2001).
A referida Lei consta de 30 artigos distribuídos em sete capítulos
que versam, respectivamente, sobre: I) do Patrimônio Cultural
(denição e abrangência do patrimônio); II) do Conselho Municipal
de Cultura e do Patrimônio Cultural (criação, função e atuação
do Conselho); III) do tombamento (embasamento no Decreto-
Lei nº 25/1937 e no Decreto nº 3.551/2000); IV) do processo de
tombamento (diretrizes e trâmites para que o bem seja tombado);
V) dos efeitos do tombamento (versa sobre a manutenção, isenção
de IPTU, acompanhamento de reformas e de restauros, assim
como punições para os danos causados aos patrimônios móveis
e imóveis); VI) do direito de preferência (a ser exercido pela
Prefeitura Municipal) e VII) disposições gerais (onde consta rol
com dez edicações tombadas, assim como a delimitação da área
do que denomina por “Centro Histórico” municipal).
Em seu artigo 29 consta que: “esta Lei entrará em vigor na data
de sua publicação” (SILVÂNIA, 2001). Na prática, o que se viu
foram quase quatro anos de intervalo até o início dos primeiros
processos de tombamento, cujo documento municipal apresenta
por referencial o “nível de tombamento/proteção” com três
categorias, contemplando 45 imóveis: “P-1: Corresponde a bens
de excepcional interesse histórico, arquitetônico, paisagístico ou
ambiental, determinando sua preservação integral”; nos outros
níveis as características externas são mais determinantes: “ P-2:
Corresponde a bens de grande interesse histórico, arquitetônico,
paisagístico ou ambiental determinando sua preservação de
suas características externas e de alguns elementos internos, que
serão estabelecidos no processo de tombamento” e o último nível
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
467
de proteção: “ P-3: Corresponde a bens de interesse histórico,
arquitetônico, paisagístico determinando sua preservação de suas
características externas” (SILVÂNIA, 2004, p. 3).
O documento possibilita ainda a compreensão da distribuição
dos níveis de proteção entre os nove bens de uso público (igrejas,
edicações da administração pública, muro e a estação ferroviária
de Silvânia) todos com grande relevância e considerados P1, exceto
o Colégio Estadual Moisés Santana, classicado como P2. Dentre
os imóveis de uso privado (residências) temos 4 P1, 22 casas P2
e dez P3; aqui foi vericada ainda as mudanças de categorias (já
computadas acima): três residências passaram de P1 para P3 e
outras quatro tiveram alteração de P2 para P3. Ou seja, mesmo
durante o processo de tombamento ocorreram interferências que
rebaixaram o nível de proteção de sete imóveis, cerca de 15% dos
imóveis tombados.
A incidência das legislações acima mencionadas, tanto a
estadual quanto municipal, não conseguiram conter a ausência
de restaurações e as iniciativas para evitar deterioração de parte
do patrimônio local, o que resultou em intervenção do Ministério
Público do Estado de Goiás – Ação Civil Pública nº 20120043784,
– com tratativas em relação às igrejas do Senhor do Bonm e de
São Sebastião, em desfavor do Município de Silvânia, do Estado
de Goiás e da Arquidiocese de Goiânia/Paróquia de Silvânia, que
em reunião ocorrida em 18 de setembro de 2012, deliberaram que
as igrejas deveriam ser vistoriadas e laudos apresentados. Após a
apresentação dos documentos produzidos sobre a situação das
edicações, objetos da ação, o MP/GO resolveu “condenar as
entidades rés, solidariamente, a realizarem imediatamente a reforma
da Igreja Nosso Senhor do Bonm e restauração da Igreja de São
Sebastião” (MP/GO, 2013, p. 12).
O Patrimônio em Silvânia
O primeiro Trabalho de Campo do Projeto de Pesquisa “Corpos,
ritmos, vozes e (en)cantos: a voz e a performance em festas religiosas
das antigas terras de Bomm” (PrP-UEG), do qual o presente texto
deriva, aconteceu no dia 21 de janeiro de 2021, um dia após a Festa
de São Sebastião local, estudada anteriormente por nós a partir
da obra de Nascimento (2021), presente na atividade enquanto
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
468
pesquisador e que os conduziu pelas ruas, proporcionou conversas
com moradores locais e nos chamou a atenção para vários aspectos
da cidade. No entanto, o que se destacou naquela ocasião foi o
impacto causado pela demolição de uma edicação centenária que
acontecia na Praça do Rosário, nas imediações da Prefeitura e da
Secretaria de Cultura.
A preocupação foi ampliada posteriormente ao consultar o
documento que relaciona os bens contemplados pelos trabalhos de
tombamento iniciados pela municipalidade em 2004, em cujo rol
gura o imóvel mencionado; o mais instigante é que ele foi um dos
que tiveram alteração em relação ao nível de proteção, passando de
P1 para P3, um indicador evidente de vulnerabilidade patrimonial
não sanada, uma vez que em seguida culminou com a lamentável
constatação in loco, na primeira visita do grupo.
Figura 2 – Imóvel em demolição, localizado na Praça do Rosário
Fonte: Arquivo da Pesquisa “Corpos, ritmos, vozes e (en)cantos: a voz e a performance
em festas religiosas das antigas terras de Bomm”. Foto: João Guilherme Curado, Silvânia,
21/01/2021.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
469
A imagem é bastante elucidativa ao mostrar a inexistência da
cobertura (telhado) e de demais paredes, demonstrativos de que
não havia manutenção e sim interesses de que o imóvel ruísse. A
última armativa tem por suporte a placa instalada entre as duas
janelas da direita: “Perigo / acesso proibido / risco de desabamento”
a informação está escrita em três tamanhos diferentes, sendo
“perigo” o mais destacado e “risco de desabamento” de mais difícil
visualização. A área contínua à fachada foi isolada com ta e cones,
impedindo os transeuntes de utilizarem o passeio público da
calçada, no intuito de evitar acidentes. Ao fundo uma mangueira
carregada e outras árvores, demonstrando que mesmo no século
XXI a conservação dos quintais permanecia na área central de
Silvânia, como o observado por Saint-Hilaire dois séculos antes. À
esquerda, em vizinhança contínua, se encontra o Muro do antigo
Chafariz, considerado P1, que na ocasião não contava com nenhuma
proteção para assegurar sua integridade.
A visita exploratória contou com registro fotográco,
especialmente dos imóveis com características diferentes das
atuais construções; no intuito de perceber as dinâmicas espaciais
e as memórias sobre elas, tanto nos remanescentes imóveis como
sobre as congurações do passado, por meio de acervos fotográcos
existentes aos quais tivemos acesso. Concordamos que a fotograa
“revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma
precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo
assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (LE
GOFF, 1990, p. 466).
As questões patrimoniais podem também ser reetidas a partir
do exposto por Le Go, o “medo de uma perda de memória, de
uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda
retro” (1990, p. 472 – grifos no original). O medo da “amnésia
coletiva” propicia a necessidade de se produzir registros diversos.
Entendemos que a cidade e suas características são demonstrativos
das necessidades e dos desejos humanos, por isso tendem a reetir
a sociedade. Na eminência do bonito, do representativo e do
identitário, determinadas construções são mais valorizadas. De
algumas edicações há mais relatos e registros que outras, assim
surgem as referências.
Le Go também nos chama a atenção ao destacar que “a
memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
470
desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das
classes dominantes e das classes dominadas” (1990, p. 475). O que
em Silvânia pode ser observado ao considerar os contextos pelos
quais a localidade passou, de arraial para vila, depois cidade; ou
ainda pela questão econômica caracterizada pelo ápice e m da
mineração, pela ruralização, chegada da estrada de ferro e mesmo
pelos aspectos culturais como a instalação do Arcebispado de Goiás,
desenvolvimento de colégios que foram referências entre os goianos,
e tantas outras alterações que foram amplamente registradas na
memória ou nas produções bibliográcas e de imagens sobre
Silvânia.
Entretanto, o referido autor adverte que “a memória coletiva é
não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto
de poder” (LE GOFF, 1990, p. 476). Em Silvânia, tal armativa pode
ser ilustrada por meio dos 45 imóveis selecionados para serem
tombados: uma estação ferroviária (símbolo do novo, “moderno”,
elemento de integração e desenvolvimento econômico de uma
época); três edicações da Igreja Católica (em detrimento às demais
expressões religiosas); cinco edicações da administração pública
(biblioteca, centro cultural e a própria prefeitura). Das residências,
34 indicam pertencer a famílias que são ou foram mais abastadas,
sendo que 15 delas estão em processo de inventário, caracterizadas
como “espólios”. Apenas duas outras casas tombadas localizam-se
em “beco” e são, visualmente, mais simples.
Considerações nais
Na visita mais recente a Silvânia realizada em 02 de outubro
de 2023, pela equipe do projeto de pesquisa, registramos o
esvaziamento da Igreja Senhor do Bonm, que abrigava um museu
sacro e contava com uma exposição de grandes quadros de artista
local sobre o casario – entendemos ser uma importante referência
patrimonial. A retirada dos objetos ocorria em função da notícia de
que em seguida teriam início os trabalhos de restauração do imóvel,
símbolo e detentor de representatividade patrimonial da cidade.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
471
Figura 3 – Início da restauração da Igreja do Bonm em Silvânia
Fonte: Jornal Opção, 20/11/2023.
Consideramos ser necessários muitos estudos sobre Silvânia, para
melhor compreender aquele lócus de representatividade de Goiás,
por isso nos propomos a uma breve investigação sobre as políticas
patrimoniais que tangem o município. Nos vários diálogos com o
espaço, com os que o habitam e com as informações existentes sobre
a localidade nos deparamos com relações latentes entre patrimônio
e memória.
Diante do exposto, concordamos ser “a memória, onde cresce
a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado
para servir o presente e o futuro” (LE GOFF, 1990, p. 477). Reexão
pertinente ao abordar políticas patrimoniais em Silvânia.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
472
REFERÊNCIAS
COTRIM, Edmar Camilo. Silvânia: enredo e personagens. Goiânia/Silvânia:
Kelps/Anima, 1998. 149p.
GOIÁS. Lei nº 8.915 de 13 de outubro de 1980. Dispõe sobre
a proteção ao patrimônio histórico e artístico estadual
e dá outras providências. Goiânia: Casa Civil, 1980.
IBGE. Silvânia: panorama. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/
brasil/go/silvania/panorama. Acesso em 10 dez 2023.
IGREJA do Nosso Senhor do Bonm em Silvânia é restaurada. Jornal
Opção, Goiânia, 20 novembro 2023. Cultura. Disponível em: https://www.
jornalopcao.com.br/cultura/igreja-do-nosso-senhor-do-bonfim-em-
silvania-e-restaurada-547032/. Acesso em 30 nov. 2023.
IPHAN. Coletânea de Leis sobre preservação do Patrimônio. Rio de
Janeiro: Iphan, 2006. 320p.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas/
SP: Ed. Unicamp, 1990.
LOBO, José Sêneca. Bonm de Goiás: minha gente e minha terra. 2. ed.
Goiânia: Cânone Editorial, 2020. 260p.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS. Ação Civil Pública nº
201200437841. Silvânia, 2013. 12p.
NASCIMENTO, Lucas Pedro do. “Ele desceu do céu, na bandeira
assentou”: catolicismo popular e devocional a São Sebastião em Leopoldo
e Bulhões e Silvânia, Goiás. Curitiba: CRV, 2021. 158p.
SILVÂNIA. Lei nº 1.294 de 28 de junho de 2001. Dispõe sobre a proteção e
preservação do Patrimônio Cultural do Município de Silvânia, institui
o Conselho Municipal de Cultura e do Patrimônio Cultural e dá outras
providências. Silvânia: Prefeitura de Silvânia, 2001. 7p.
PREFEITURA DE SILVÂNIA. Imóveis Tombados do Patrimônio Histórico e
Cultural de Silvânia. Silvânia, 2004. 48p.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de Goiás. Trad. Regina
Régis Junqueira. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/USP, 1975. 158p.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
473
SANCHES, Cida. De Bonm a Silvânia: um olhar sobre a cidade. Goiânia:
Kelps, 2011. 156p.
SANCHES, Cida. Silvânia em foco: documentário histórico e fotográco.
Goiânia: Kelps, 2012. 106p.
SANTOS, Carmelino Peixoto dos. Decifrando Silvânia. Brasília: Centro
Editorial, 2015. 72p.
PONTE DOS BOIADEIROS, O CASO
DA PONTE CAÍDA: A RELAÇÃO
DO LUGAR ESQUECIDO NA
CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES
TRICORDIANAS
Sarah Meirielle Ferri Naves1
Introdução
O Município de Três Corações, localizado no sul do Estado de
Minas Gerais, tem sua importância histórica marcada por bens
patrimonializados no Município. Ao todo, existem 13 bens materiais
tombados2; entre eles, está a Ponte dos Boiadeiros: datada de 1924,
importante símbolo do ciclo econômico do Gado, foi tombada
em 1999 pelo Conselho do Patrimônio Cultural e Natural de Três
Corações, mas chegou a ruir em agosto de 2020.
1 Museóloga. Graduada em História (2013) e Museologia (2019) pela Universidade
Federal de Ouro Preto/MG (UFOP). Especialista em Educação Patrimonial pelo Instituto
de Pesquisa Pretos Novos em parceria com FATECPR (2022). Membro o Núcleo de
Pesquisa em Direito do Patrimônio Cultural (NEPAC-UFOP/ CNPq). E-mail: sarah.
cultura22@gmail.com
2 Os demais bens tombados no município são: Antigo Banco do Brasil; Antigo Fórum;
Caixa d’água da Rede Ferroviária; Cruzeiro da Praça da Saudade; Maria Fumaça; Matriz
Sagrada Família; Monumento a Djalma Dutra; Parque Infantil Rodrigo Morais Abdalla;
Ponte de Ferro; Portão do Cemitério São João Batista; Praça Pelé e Rede Ferroviária
S/A.
474
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
475
Bens patrimonializados são aqueles, escolhidos dentre vários,
que representam alguma importância, seja arquitetônica, histórica
ou de referência cultural dentro de uma comunidade e uma das
formas de preservação se dá através do tombamento3. A escolha
desses 13 bens de Três Corações que foram tombados em nível
municipal, apresentam grande importância histórica para o
município. Logo, a perda de um desses bens, como aconteceu com
a Ponte dos Boiadeiros, é algo que reete diretamente nas noções de
cultura, identidade, memória e história dos tricordianos.
Como tricordiana, a queda da Ponte dos Boiadeiros trouxe
uma necessidade de conhecer e entender a relação dos bens
patrimonializados de Três Corações com a população local. A
patrimonialização não foi suciente para manter a Ponte em pé,
portanto, existiu uma relação de identidade e esquecimento por
parte da comunidade e do poder público ao longo dos anos com
bem e com a própria história da cidade.
O objetivo desse ensaio é compreender como se deu o
processo de patrimonialização da Ponte dos Boiadeiros e em qual
contexto ela chegou à ruína, mesmo sendo um bem que deveria
ser salvaguardado pelo Município. Como a lacuna material e
imaterial desse bem em especial, que se perdeu, pode interferir e
possivelmente já interfere na relação do povo tricordiano com
seus bens patrimonializados. Entende-se como lacuna material, a
ruína do próprio bem e a questão imaterial, baseada nas relações da
comunidade e as referências culturais, de memória, identidade não
só com o bem, mas com o lugar e entorno.
Para entendermos a importância da Ponte dos Boiadeiros para
o Município de Três Corações, precisamos entender o contexto
econômico do Estado de Minas Gerais nos anos anteriores a
construção da ponte, pois ela está diretamente ligada a Feira de
Gado que existia na cidade nos primeiros anos do século XX. Para
tanto, tomaremos como base o artigo intitulado “Mercado Pontual:
Atuação Estatal na Formação da Feira de Gado de Três Corações
(1900-1920)” de Alexandre Macchione Saes e Elton Rodrigo Rosa.
3 O tombamento é um instrumento instaurado pelo Decreto-Lei n° 25 de 1937,
como forma de preservação do patrimônio cultural que tenham representatividade
na história do país pelo seu valor histórico, artístico ou bibliográco. É a ferramenta
legal para a proteção do patrimônio, com a transferência da responsabilidade de
preservação para o Estado e o registro desses bens nos Livros de Tombo.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
476
Para o embasamento teórico, foram referenciados os trabalhos
de Elsa Peralta da Silva (2000); Marcia Sant’anna (2011); Karoliny
Carvalho (2011); e Maria Celia Paoli (1992), buscando entender
as relações de identidade como uma construção social, pautada
nas memórias coletivas como direito ao passado e a educação
patrimonial como uma forma de exercer a cidadania no acesso aos
patrimônios locais.
Além dessas bibliograas, também se fez necessário pesquisar
sobre os Laudos Técnicos da Ponte ao longo dos anos, seus usos
e justicativa para patrimonialização, a partir de documentos
encontrados na Casa de Cultura de Três Corações, e como o poder
público exerceu seu dever de proteção.
Contextualização histórica
O parecer de tombamento, realizado pelo Conselho do
Patrimônio Cultural e Natural de Três Corações, justica a
patrimonialização da Ponte dos Boiadeiros como “resgata a história
do nosso desenvolvimento econômico que teve como auge a Feira
de Gado, inaugurada em 1900, considerada na época, uma das
maiores da América Latina; daí a sua importância e a justicativa
para o seu tombamento” (RIBEIRO, 1999).
O Sul de Minas, segundo SAES e ROSA (2013), teve importante
papel de abastecimento das cidades mineiras no século XVIII e
da Corte portuguesa nos primeiros anos de 1800 e começaria a
sofrer importantes transformações a partir da segunda metade do
século XIX. Em meados de 1860, Minas Gerais se tornou um dos
maiores comerciantes de animais, em especial o comércio de Gado,
perdendo apenas para a exportação de café no Estado.
Nos ns do século XIX, os criadores do Triangulo Mineiro
vendiam seu gado nas feiras livres para os chamados invernados
ou zonas de engorda em Uberaba ou em Passos, para mais tarde
seguirem para o Rio de Janeiro, passando por Três Corações, para o
corte e distribuição da carne no mercado carioca ou para Barretos,
atendendo assim o mercado paulista. Com a passagem do século
XX, entretanto, um acontecimento mudou a velha estrutura de
comercialização: o transporte ferroviário. Com a inauguração da
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
477
Estrada de Ferro Minas & Rio até Três Corações no ano de 1884, o
Município4 surgia no cenário da comercialização do gado mineiro.
Em suma, as estradas de ferro redeniriam os trajetos pelo qual o gado
seguiria seu caminho para o mercado consumidor: as pastagens e
invernadas tradicionais dos caminhos para o Rio de Janeiro perdiam
espaço para novas localidades próximas às estações ferroviárias.
É nesse contexto que, aproveitando-se de condições favoráveis, o
governo de Minas Gerais rearmaria a prática do abastecimento como
atividade central de sua economia, criando por intermédio da ação do
estado, o chamado mercado pontual, isso é, a Feira de Gado de Três
Corações (SAES; ROSA, 2013, p.757).
A partir de 1898, a Feira de Gado de Três Corações passa a ser
regulamentada pelo Estado e passaria a ser cobrados os devidos
impostos. Ao longo das décadas de 1900 e 1910, a comercialização
de gado na cidade parecia bastante favorável, entretanto, a falta de
infraestrutura como pesagem do gado, ausência de matadouros e
de câmaras de resfriamento fazia com que houvesse dependência
com o comércio paulista e carioca. No início da década de 1920,
a Feira entra em crise e teve suas atividades encerradas em 1928.
A circulação da dita “carne verde” seria substituída pela carne
refrigerada. Com a modernização do setor, não era mais necessário
passar com as tropas no Sul de Minas.
A Ponte dos Boiadeiros foi construída no ano de 1924, período de
decadência da Feira de Gado e estava instalada na Avenida Haroldo
Rezende s/n, no nal do Bairro Jardim Santa Tereza. Segundo
documentado pela Casa de Cultura Godofredo Rangel:
A ponte livrou o centro da cidade das reses que passavam pela Rua
do Passa Boi, antiga 4° Avenida e atual Virgílio de Melo Franco, rumo a
velha ponte de madeira, hoje ponte da Rodoviária, passando pela rua
de trás. Os chifres dos bois batiam nos postes de madeira no centro da
rua e dicultavam a disparada, não respeitando as frágeis proteções
de troncos colocados pela Câmara. Segundo populares, essa ponte foi
construída por um engenheiro de nome “Viotti”. (...) Servia depois de
desativada a Feira de Gado, para travessia de caminhões leiteiros rumo
4 Em 23 de setembro de 1884, a Vila da Freguesia dos Três Corações do Rio Verde
seria emancipada, sendo elevada à categoria de cidade. Em 7 de setembro de 1923,
Três Corações do Rio Verde passa a denominar-se apenas Três Corações.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
478
à Nestlé (Casa de Cultura Godofredo Rangel, Contexto histórico do bem
tombado)5. (Figura 1)
Figura 1: Caminho percorrido pelo gado da Feira até a Estação Ferroviária de Três Corações
- no quadrado vermelho está identicada o local de construção da Ponte dos Boiadeiros, ao
lado da atual., construída na década de 1970.
FONTE: Google Mapas, 2021.
Autor: Sarah Meirielle Ferri Naves
A Ponte dos Boiadeiros foi a primeira ponte edicada do
município, segundo Análise Arquitetônica do bem (Casa de Cultura
Godofredo Rangel), possuía estrutura autônoma de concreto
armado com base de pedra, não utilizando arcada para sustentação;
seus pilares foram construídos com cascalho do rio e cimento.
Apresentava 3,50 metros de largura e 68 metros de comprimento,
contendo balaústres em faixa contínua e duas jardineiras nas
extremidades.
Com o m da Feira de Gado, a ponte passou a ser utilizada por
caminhões de leite in natura da empresa Nestlé e na década de 1970
foi interditada para o trânsito de veículos, pois começou a apresentar
5 Os documentos referentes a Ponte dos Boiadeiros, encontrados na Casa de Cultura
Godofredo Rangel em Três Corações, estão compilados em uma pasta intitulada “Ponte
dos Boiadeiros – Tombado pelo Conselho do Patrimônio Cultural e Natural de Três
Corações - março/1999”.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
479
mostras de desgaste. A construção da ponte não foi pensada para
a evolução industrial que viria com o tempo, a ponte era estreita
e não comportava ao mesmo tempo um caminhão e uma pessoa.
Em 1973, na administração do prefeito José Alves Pereira Sobrinho,
teve início a construção da nova ponte, paralela à antiga (NETTO,
2017).
Em 1990, com a gestão do então Prefeito Milton Gabriel Mendes,
a Ponte passou por obras de recuperação e passou a ser utilizada
por pedestres e ciclistas (Figura 2). No ano de 1999, o Conselho do
Patrimônio Cultural e Natural de Três Corações propõe a inscrição
da Ponte dos Boiadeiros no Livro de Tombos da cidade (Figura
3) e ca aprovada pelo prefeito Fausto Mesquita Ximenes, através
do Decreto n° 994 de 7 de janeiro de 1999. Desde então, a ponte
vinha passando por Laudos Técnicos; o primeiro, realizado em 26
de março de 1999, sob responsabilidade da arquiteta Ana Carolina
Iemini identica:
Atualmente a ponte está livre apenas para passagem de pedestres.
Foram colocadas barras de ferro impedindo a passagem de elementos
maiores e pesados. A caiação do bem foi totalmente desgastada por
efeitos de sua exposição às chuvas. Nas extremidades da mesma,
existem canteiros, os quais se encontram em total estado de abandono
(IEMINI, 1999).
Figura 2: Ponte dos Boiadeiros passou a ser utilizada por pedestres e ciclistas, 1990.
FONTE: Casa de Cultura Godofredo Rangel
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
480
Figura 3: Inscrição da Ponte dos Boiadeiros no Livro de Tombos de Três Corações, 1999.
FONTE: Casa de Cultura Godofredo Rangel
Com a enchente do início de 2000, as estruturas da ponte foram
comprometidas e em dezembro de 2002 ela foi interditada (Figura
4). Mesmo com as ressalvas feitas através de laudos técnicos,
identicando rachaduras e rompimentos causando sérios riscos ao
patrimônio e os pedidos realizados pela Casa de Cultura para que
houvesse transferência de recursos para a recuperação da Ponte,
somente limpezas e manutenções superciais periódicas foram
realizadas.
Figura 4: Ponte interditada, 2002.
FONTE: Casa de Cultura Godofredo Rangel.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
481
Em agosto de 2003, a Defesa Civil da cidade, após vistorias
realizadas devido a denúncias de utilização da Ponte por parte de
moradores e pescadores, constatou que “a estrutura da referida ponte
se encontra condenada havendo necessidade de ser interditada o
mais rápido possível” (NEDER, 2003). Na primeira interdição da
Ponte, foram colocadas cancelas em madeira e, posteriormente,
cancelas de alvenaria; mas como foram destruídas pela população,
o coordenador da defesa civil Márcio Wadi Neder sugeriu a
construção de uma parede de concreto para que não ocorresse o
mesmo problema (Figura 5).
Figura 5: Construção de uma parede de concreto na Ponte dos Boiadeiros, para impedir a
passagem de pedestres, 2003.
FONTE: Casa de Cultura Godofredo Rangel
Em 2006, a Casa de Cultura, acompanhada do Conselho do
Patrimônio Cultural e Natural de Três Corações, procurou buscar
parcerias para a restauração da ponte, acredita-se que sem retorno.
O último Laudo Técnico realizado foi em 2014, com a seguinte
conclusão:
O bem imóvel tombado Ponte dos Boiadeiros apresenta estado de
conservação ruim. Devido aos seus problemas estruturais como o
recalque de um de seus pilares e o abatimento da mesma, apresenta
risco de desabamento. Faz-se necessário a elaboração de projeto de
consolidação da ponte a m de evitar o desmoronamento da mesma
ou o agravamento da situação. Sua balaustrada apresenta danos como
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
482
quebra de elementos, ssuras, desprendimento da pintura e sujidades
aderidas. O revestimento em reboco da ponte como um todo está com
danos e ssuras, perdas e pulverulência. O piso asfáltico apresenta
ssuras e desnivelamentos (RIBEIRO; CORREIA; FRANÇA, 2014).
Em 2016 houve o Projeto de Lei Complementar n°20.166, com o
intuito de alienação de um bem imóvel pertencente a Prefeitura que,
entre outros ns, a verba estava sendo proposta para a revitalização
da Ponte dos Boiadeiros; o projeto foi aprovado, mas não se tem
ciência das realizações planejadas. Em setembro de 2019, ocorreu
uma licitação para contratação de empresa especializada em
serviços para elaboração do Projeto de Reestruturação da Ponte dos
Boiadeiros; a empresa vencedora foi a “ENGETI CONSULTORIA E
ENGENHARIA S/S LTDA” mas não foi encontrado o projeto para
a ponte. Em agosto de 2020, a Ponte dos Boiadeiros, chegaria a sua
ruína (Figura 6.).
Figura 6: Ponte dos Boiadeiros cai em Três Corações, 2020.
FONTE: Jornal EPTV, 2020
Revisão da Literatura
A patrimonialização de um bem signica fazer uma seleção,
dentre todos os possíveis bens, daqueles que se tornarão
patrimônio cultural. Essa seleção se dá por meio de atribuições
de valores coletivos e de apropriação pela sociedade em que está
vinculado. O patrimônio cultural é uma construção social “[...] o
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
483
elemento determinante que dene o conceito de patrimônio é a
sua capacidade de representar simbolicamente uma identidade. E
sendo os símbolos um veículo privilegiado de transmissão cultural,
os seres humanos mantêm através destes, estreitos vínculos com o
passado” (SILVA, 2000, p. 219). O passado deve ser algo trabalhado
constantemente com a população, principalmente a partir de uma
educação patrimonial colaborativa, pois não basta conhecer para
preservar. A memória é construída e reconstruída no presente, a
partir das relações sociais do presente; é uma construção social e
por isso deve ser dinâmica.
O bem material preservado não existe sem sua face imaterial,
pois é ela que lhe dá sentido. A interação do patrimônio material
com o imaterial, segundo SANT’ANNA (2011):
[...] se concretiza de modo privilegiado no lugar e na paisagem -
contribui para a sedimentação de uma noção mais ampla e dinâmica
do patrimônio cultural, enquanto síntese dessas dimensões. Uma não
faz sentido sem a outra, e uma não pode ser compreendida sem a outra,
embora a salvaguarda de cada uma delas demande instrumentos e
abordagens distintos (SANT’ANNA, 2011, p. 197)
A especicidade de um lugar que abarca o bem patrimonializado,
como um espaço diferenciado, vem da sua associação ao mundo dos
valores simbólicos e imaginários construídos a partir da memória
e sendo um elemento construtivo de grupos sociais. Os lugares
guardam lembranças e emoções que podem ser identicados de
modo afetivo e, portanto, que fazem parte das experiências de vida.
Assim, o lugar não pode ser visto como neutro dentro da vida social,
sendo criado e utilizado por diferentes atores sociais que participam
ativamente da formação do seu sentido.
Na construção de identidades, a memória coletiva é essencial. Para
Karoliny Carvalho (2011), “Os lugares de memória materializam
a noção de patrimônio como produto e reexo da sociedade e,
enquanto processo, revela a dinâmica das interações sociais, os
valores e signicados que tecem o cotidiano de uma determinada
localidade” (CARVALHO, 2011, p. 150). A perda desses suportes
de memória é a destruição de um espaço vivido e, portanto, a
perda de reconhecimento da própria história e da importância da
preservação de um bem.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
484
A Educação Patrimonial entra nessa relação como um campo
a ser explorado e como forma de exercer a cidadania. Superando
a ideia de transmissão da cultura como informação e passando
a entendê-lo como processo na construção de uma consciência
crítica, reconhecer o passado apostando nas memórias coletivas,
mesmo que heterogêneas, é o caminho para entender as referências
culturais de um grupo (PAOLI, 1992). A tentativa de silenciamento
de experiências passa a ser questionada a partir do reconhecimento
do passado como identidade, e portanto como direito à cidadania.
A noção de patrimônio histórico deve evocar um passado vivo,
que deve ser preservado porque resiste imerso em um signicado
coletivo, evocando múltiplas dimensões de cultura, identidade e
memória.
Resultados e Hipóteses
A Ponte dos Boiadeiros foi construída para um m especíco no
início do século XX e, com o m da passagem de bois, sua utilização
foi remanejada para a passagem de caminhões e, posteriormente,
só para pedestres e ciclistas. Por 50 anos, desde sua criação, era a
única forma de ligação entre os bairros Jardim Santa Tereza e Feira
de Gado; já que a construção de uma nova ponte só se daria na
década de 1970. Além da sua utilização primária, ela contava com
uma importância histórica e arquitetônica. Não se deve esquecer
que ela era uma ponte, portanto, sua utilização era a transposição de
pessoas de um lugar para o outro. Mesmo com a patrimonialização
da Ponte, na década de 1999, ela já era utilizada pela população e,
portanto, já era de importância para os tricordianos.
Com a enchente do ano de 2000, a fragilidade da sua estrutura
se agravou e ela necessitaria de uma reestruturação. Por falta de
verba, acredita-se, a Prefeitura decidiu fechar a Ponte, impedindo a
circulação de pessoas por aquele lugar e, portanto, descartando sua
utilidade primária. A partir desse momento, a Ponte dos Boiadeiros
entraria no esquecimento pela população, apesar de estar presente
em constantes reivindicações pelo Conselho do Patrimônio de Três
Corações.
Alguns bens culturais patrimonializados na cidade, continuam
em uso e por isso continuam em pé, entretanto temos outras que,
além da falta de uso (como a Ponte de Ferro) não são revisitadas
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
485
pela população como parte da história da cidade. Não basta a
população conhecer os bens tombados sem que ocorra uma relação
de identidade, pois o sentimento de pertencimento se dá através de
uma prática social.
Acredita-se que se a ponte estivesse em uso, com a não demora
de se fazer um projeto de reestruturação, tentativa que se deu
17 anos depois do silenciamento da mesma como produtora de
memórias, a construção das identidades estariam concomitantes
com a importância histórica do bem. Uma andaria ao lado da outra
e as reivindicações por preservação partiriam de uma população
consciente e envolvida com o seu direito ao passado e à história. A
perda material da ponte se deu muito depois da perda identitária
pela população, que perdeu da memória, os valores simbólicos
ligados à Ponte dos Boiadeiros.
Considerações nais
O processo da memória é vivido em um contexto social que
interfere na percepção do passado e também na participação da
comunidade na proteção e permanência de um bem. Através do
sentimento de pertencimento realizado por meio de um grupo que
compartilha memórias, a memória coletiva é um instrumento de
poder, podendo ser usada como forma de legitimar e preservar
um bem cultural pois ele é tido como referência dentro de uma
comunidade. Mesmo estando trabalhando com um bem material
tombado pelo Município de Três Corações, não devemos esquecer
sua face imaterial, que é inerente e também essencial para a
preservação desse bem.
Dentre os bens tombados no município, restam 12, dentre eles
móveis e imóveis. O que ocorreu com a Ponte dos Boiadeiros deve ser
tomada como uma falha no sistema de como o patrimônio cultural
na cidade está sendo relacionado com a vida dos tricordianos. A
primeira ponte edicada de Três Corações, sobreviveu 79 anos
reinventando seu uso pelos diversos atores na sociedade tricordiana,
mas ruiu em 17 anos a partir da impossibilidade de sua utilidade
pelos tricordianos. Se faz necessário sair da noção instrutivista
de educação patrimonial, a relação das pessoas com os bens
patrimonializados deve ser dinâmica, com base na importância
social e nas relações construídas socialmente.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
486
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Karoliny Diniz. Lugar de memória e políticas públicas de
preservação do patrimônio: interfaces com o turismo cultural. Revista
Turismo: Visão e Ação- Eletrônica, vol. 13, núm. 2, maio-agosto, 2011, pp.
149-165. Universidade do Vale do Itajaí Itajai, Brasil. Disponível em: https://
www.redalyc.org/pdf/2610/261019706002.pdf Acesso em 11/06/2021
CASA DE CULTURA GODOFREDO RANGEL. Contexto histórico do bem
tombado, Análise Arquitetônica, Análise do Entorno, Inscrição no
Livro de Tombo da cidade. pasta Ponte dos Boiadeiros – Tombado pelo
Conselho do Patrimônio Cultural e Natural de Três Corações – março/1999.
EPTV. Ponte tombada pelo patrimônio histórico desaba em Três
Corações, MG. Jornal G1 Sul de Minas. 01 de setembro de 2020. Disponível
em: https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2020/09/01/ponte-
tombada-pelo-patrimonio-historico-desaba-em-tres-coracoes-mg.ghtml
Acesso em 14/06/2021
IEMINI, Ana Carolina. Laudo técnico do estado de conservação da Ponte
dos Boiadeiros, 26 de março de 1999. Casa de Cultura Godofredo Rangel.
Pasta Ponte dos Boiadeiros – Tombado pelo Conselho do Patrimônio
Cultural e Natural de Três Corações - março/1999.
NEDER, Márcio Wadi. Laudo da Defesa Civil sobre a Ponte dos Boiadeiros.
19 de agosto de 2003. Casa de Cultura Godofredo Rangel. Pasta Ponte dos
Boiadeiros – Tombado pelo Conselho do Patrimônio Cultural e Natural de
Três Corações - março/1999.
NETTO, José Prado. PONTE DOS BOIADEIROS. Casa de Cultura Godofredo
Rangel. Facebook, 30 de junho de 2017. Disponível em: https://www.
facebook.com/casadaculturagodofredorangel/posts/1911106925769037/
Acesso em: 04/06/2021
PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In.
O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH,
1992, p. 25-28.
PREFEITURA DE TRÊS CORAÇÕES. História de Três Corações. 2014.
Disponível em: https://www.trescoracoes.mg.gov.br/index.php/2014-12-
30-11-10-09/5188-historia-de-tres-coracoes Acesso em 11/06/2021.
RIBEIRO, Nelson Branco. Parecer para tombamento [Ponte dos
Boiadeiros]. Casa de Cultura Godofredo Rangel. Pasta Ponte dos
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
487
Boiadeiros – Tombado pelo Conselho do Patrimônio Cultural e Natural de
Três Corações – março/1999.
RIBEIRO, Carolina Santos; CORREIA Michele Xavier; FRANÇA, Conceição
Linda de. Laudo técnico de Estado de Conservação das Estruturas
Arquitetônicas e Urbanísticas da Ponte dos Boiadeiros, 2014. IEPHA,
ICMS Cultural, 2016.
SAES, Alexandre Macchione; ROSA, Elton Rodrigo. Mercado Pontual:
Atuação Estatal na Formação da Feira de Gado de Três Corações (1900-
1920). Estud. Econ., São Paulo, vol. 43, n.4, p.745-772, out-dez. 2013.
Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/270189295_
Mercado_pontual_atuacao_estatal_na_formacao_da_Feira_de_Gado_
de_Tres_Coracoes_1900-1920 Acesso em: 14/05/21
SANT’ANNA, Márcia. Patrimônio material e imaterial: dimensões de
uma mesma ideia. In: GOMES, M. A. e CORRÊA, E. (Orgs.). Reconceituações
Contemporâneas do Patrimônio. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 193-198
SILVA, Elsa Peralta da. Patrimônio e Identidade. Os desaos do Turismo
Cultural. 2000.
TRÊS CORAÇÕES. Decreto Municipal n°994/1999. Dispõe sobre
tombamento da Ponte dos Boiadeiros. Casa de Cultura Godofredo Rangel.
Pasta Ponte dos Boiadeiros – Tombado pelo Conselho do Patrimônio
Cultural e Natural de Três Corações – março/1999.
TRÊS CORAÇÕES. Projeto de Lei Complementar Nº 20.166/2016. Autoriza
o Município de Três Corações – MG a desafetar imóvel urbano de sua
propriedade, localizado no nal da Avenida Sete de Setembro - Centro,
para ns de alienação e dá outras providências. 2016. Disponível em:
<https://www.legislador.com.br//imgLei/317797542_11_2_20166_2016.
pdf> Acesso em: 11/06/2021
TRÊS CORAÇÕES. Ata dos trabalhos da sessão pública para o recebimento
de documentos de credenciamento, habilitação e proposta de preços
apresentados na licitação [Reestruturação da Ponte dos Boiadeiros].
11 de setembro de 2019. Três Corações -MG. Disponível em: <http://
trescoracoes.mg.gov.br/licitacao/2019/Setembro/TP%2011/ATA%20
TP%2011.pdf> Acesso em 11/06/2021
TRÊS CORAÇÕES. Edital. Tomada de preços n° 00011/2019. Contratação
de empresa especializada em serviços e obras de engenharia para
elaboração de projeto executivo de reestruturação da “Ponte dos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
488
Boiadeiros” – Patrimônio Histórico-Cultural de Três Corações, 2019.
Disponível em: http://trescoracoes.mg.gov.br/licitacao/2019/Setembro/
TP%2011/Edital%20Tomada%20de%20Pre%C3%A7os%20011.2019.pdf
Acesso em: 11/06/2021
ARQUITETURA, AFETOS E
IDENTIDADE: A EXPERIÊNCIA DO
VALE DOURADO - ERECHIM/RS
Mateus André Zagonel1
Introdução
A expressão simbólica da identidade através da arquitetura é
um fenômeno recorrente e que aponta sempre para discussões
sobre pertencimento e reconhecimento de um grupo no espaço em
relação a outro. Esse jogo de visibilidade e representação implica
a sustentação cultural do grupo enquanto os demais podem
encontrar-se sobrepostos.
O surgimento de uma rota turística na cidade de Erechim –
RS com equipamentos dotados de elementos estéticos em suas
fachadas e representantes da arquitetura produzida pelos imigrantes
italianos logo após o assentamento destes no estado levanta algumas
reexões sobre a percepção desses objetos dentro da paisagem em
que se inserem, o Vale Dourado. São equipamentos que servem
à atividade turística que tem se desenvolvido no lugar e que vêm
transformando a paisagem e se estabelecendo como uma dinâmica
concreta de turismo cultural. Como é comum nessa categoria de
turismo, o espaço é organizado am de apresentar uma série de
símbolos que representam o grupo étnico em questão e no caso da
rota do Vale Dourado a etnia italiana é a principal força de expressão
1 Programa de Pós-graduação Mestrado em História. Universidade de Passo Fundo.
489
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
490
na paisagem. A arquitetura é o primeiro contato dos visitantes com
a experiência cultural do espaço e curiosamente não são edifícios
restaurados ou resgatados do desgaste no tempo, são equipamentos
novos construídos a partir de 2012 e que reproduzem em suas
fachadas elementos estéticos que evocam o passado da arquitetura
vernacular desse grupo no estado do Rio Grande do Sul.
Este trabalho busca discutir como a representação desse grupo
através da materialidade simbólica ganha força de expressão e atua
sobre o espaço estabelecendo novas dinâmicas sociais ligadas a
identidade, a região e as fronteiras objetivas e subjetivas. A linha
condutora do texto tem por base o conceito de representação
apresentado pelo sociólogo Pierre Bourdieu no livro intitulado: O
poder simbólico (1989).
Imagem e Representação
O turismo cultural tem se expandido e reproduzido experiências
cada vez mais imersivas que em sua diversidade unem-se na busca
por fortes conexões com os visitantes através dos interesses pessoais,
da história, cultura ou até mesmo das memórias de cada indivíduo.
O fator da etnicidade tem sido uma constante na criação e resgate
de espaços ou tradições de grupos que possuem uma identidade
histórica marcante dentro de determinados contextos sociais que
possibilitam o surgimento de equipamentos dedicados a lembrar tal
cultura e apresentá-la através do turismo para a comunidade local
e aos visitantes.
Estas novas expressões no espaço ganham relevância a partir
da aderência com o local e o interesse externo despertado sobre as
experiências oferecidas. Tornam-se referência para a vericação
das memórias coletivas presentes e desejosas de perpetuação no
tempo e espaço e recebem força de promoção através do espaço
físico construído/reconstruído para esse m. A imagem enquanto
representação simbólica desempenha papel essencial nos contextos
onde existe a intenção de reforçar determinadas estruturas e
identidades am de potencializar a percepção do espaço através da
cenograa.
A materialidade da arquitetura atua como um importante
instrumento na concepção de espaços que possibilitem a imersão
cultural ideal para que os visitantes conheçam com profundidade
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
491
determinadas etnias ou grupos e sua identidade característica. A
profusão e crescimento dessas experiências acaba por abraçar
espaços que genuinamente conseguiram resgatar edifícios com
valor cultural para o contexto local e que até mesmo podem ser
considerados patrimônio cultural daquela região, ainda que não
tenham o reconhecimento legal dos órgãos que efetivam esses
documentos. Diante disso também surgem composições novas na
paisagem que valendo-se da arquitetura e dos símbolos de uma
cultura, recriam através de edicações ou elementos estéticos a
atmosfera ou as memórias do passado que representam grupos ou
momentos históricos importantes.
Uma nova rota turística que se propõe a resgatar a estética através
da arquitetura e as tradições através de diversos equipamentos
representantes da etnia italiana e sua história em uma cidade do
sul do Brasil precisa fazer uso do valor da imagem para apresentar
e representar a identidade que sustenta, e a sua permanência
e concretização no espaço depende da participação local, do
sentimento de pertencimento e atuação conjunta. Como arma
Bordieu (1989, p.108) “uma realidade que, sendo em primeiro
lugar, representação, depende tão profundamente do conhecimento
e do reconhecimento”.
A cidade de Erechim no norte do estado do Rio Grande do Sul
tem percebido o surgimento de uma rota turística sobre a paisagem
do Vale Dourado, região montanhosa localizada no m da área
urbana e por onde passa a rodovia ERS420 que liga Erechim com a
cidade de Aratiba. É uma paisagem natural reconhecida no contexto
local por sua beleza e pela possibilidade de contemplação através
de alguns mirantes, além da própria rodovia que atravessa o vale.
Desde o ano de 2012 alguns equipamentos têm sido instalados sobre
esse espaço e oferecendo atividades ligadas ao lazer e a gastronomia,
constituindo com a concretização desse espaço uma experiência de
turismo cultural bem consolidada. Inicialmente impulsionada pela
população local residente no vale Dourado, e com a resposta positiva
sobre o potencial turístico desse lugar recebe o reconhecimento do
governo municipal vindo a constar nos canais de divulgação da
própria prefeitura de Erechim. A característica comum entre esses
objetos que compõem a rota é o uso de elementos estéticos em suas
fachadas, representantes da arquitetura produzida pelos imigrantes
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
492
italianos no início do assentamento desses sobre o espaço do então
estado do Rio Grande do Sul.
A rota está constituída por restaurantes, cafés coloniais, uma
pousada e algumas residências que recebem e comercializam
produtos da agricultura familiar com os visitantes. Ela faz parte de
um esforço recente que parte da população local e tem obtido sucesso
e ganhando forma com a inserção de novos equipamentos que estão
estruturando essa rota. A rota do Vale Dourado tem se concretizado
na história da comunidade local através do valor simbólico que
traz para o espaço com suas práticas: a gastronomia ofertada nos
restaurantes e cafés relembra os pratos das etnias fundadoras da
cidade, assim também são as opções de lazer, como os passeios
a cavalo, e a arquitetura dos equipamentos é claramente uma
homenagem ao passado com construções repletas de elementos da
arquitetura vernacular italiana. O representante mais signicativo
dessa experiência é o complexo da Vila Trentin, composto por uma
pousada, um restaurante, um espaço para realização eventos e dois
espaços com comércio de móveis, peças de decoração e artesanato.
Suas construções trazem em seu interior e mais claramente em
suas fachadas o uso de elementos característicos da arquitetura
vernacular italiana, praticada pelos imigrantes quando da sua
chegada na região.
A arquitetura desenvolvida pelos imigrantes italianos no estado
do Rio Grande do Sul evoluiu com o tempo e historicamente seu
estudo é divido em fases que abrangem desde o assentamento dos
imigrantes nas novas terras até o estabelecimento das cidades que
se formaram a partir do crescimento da população. A arquitetura
reproduzida nos equipamentos da rota turística Vale Dourado é
representante da última fase da arquitetura vernacular italiana,
popularmente conhecida como fase do Apogeu, e a mesma é
caracterizada pelas casas erguidas em madeira, com coberturas de
duas águas e telhas de barro, muitas vezes não pintadas. A parte
inferior da casa geralmente era construída em pedra e possuía um
“porão” (pavimento térreo da casa) com piso de terra batida e as
aberturas costumavam ser estreitas. Os beirais eram decorados
com placas de madeira recortada em diversos formatos, conhecidos
como lambrequins, uma caraterística muito forte da arquitetura
vernacular italiana.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
493
São justamente esses elementos que, detentores da expressão
simbólica direta desse estilo de arquitetura, são utilizados nos
equipamentos que estão surgindo no conjunto desse espaço. Os
beirais em madeira com os recortes decorativos – lambrequins
– a composição dos telhados com duas e quatro águas, o porão
construído em pedra e a disposição das esquadrias nas fachadas
a partir do princípio da simetria compõem o material simbólico
expoente dentro dessa experiência sobre o Vale Dourado.
A imagem enquanto representação pode construir uma
cenograa em contextos onde aspectos ou elementos produzidos
no passado são trazidos para a atualidade e reconstruídos am
de lembrar ou reforçar a identidade ou cultura de um grupo. É
importante o cuidado com a autenticidade desses objetos que
buscam representar a materialidade do passado e são lidos pelos
visitantes como monumentos de uma época que já não existe e
que apresenta a identidade de um grupo para que essa justicativa
primordial da reconstrução não seja superada no tempo com
a cenograa espetacularizada que serve ao turismo e que muitas
vezes produz espaços e objetos alegóricos.
Enquanto momento inicial dessa experiência na cidade de
Erechim, percebe-se uma vontade legítima dos grupos locais em
promover as memórias reconhecidas naquelas edicações e aquilo
que representam dentro da história, ainda que garantidos sicamente
através da atividade turística, estes se envolvem em um sentimento
de orgulho em apresentar tais memórias aos visitantes e assim
também no desejo de estender essa prática as gerações futuras. Essa
vontade de transmissão da memória, da memória coletiva, como a
própria palavra sugere, depende da atuação conjunta de um grupo
em um espaço de tempo onde um sentimento comum de difusão
de lembranças se reforça e se propaga, como é possível corroborar
com a opinião de historiadores como Pierre Nora que defende
que os lugares de memória podem ser entendidos “como sinais
de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade
que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos” (apud
GONÇALVES, 2015 p. 32), assim também, Claudine Badalotti
aponta em sua pesquisa sobre a cidade de Antônio Prado - RS e
a rota Caminhos de Pedra em Bento Gonçalves – RS experiência
semelhante à rota do Vale Dourado, a importância da atuação local
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
494
na experiência do patrimônio e a vericação do sentimento de
pertencimento sobre o espaço quando arma que,
Esses lugares somente se constituem em espaços de preservação
de uma memória quando a comunidade assim os reconhece. O
sentimento de pertencimento é muito signicativo para a memória
coletiva, incorporando muitas vezes a necessidade de ancorar um
grupo a alguma coisa que permita a sua continuidade, tanto no futuro
quanto no passado. (BADALOTTI, 2015, p. 123)
Esses equipamentos representantes do passado e remanescentes
na paisagem, o hotel, o restaurante, os pequenos comércios
conguram hoje na categoria de monumentos e traçam a
continuidade da memória coletiva da cultura e etnia italiana na
atualidade. Como aponta Gonçalves (1988, p. 268) “os monumentos
são considerados parte orgânica do passado e, na medida em que
os possuímos ou os olhamos, estabelecemos, por seu intermédio,
uma relação de continuidade com esse passado”. É importante
lembrar que a preservação do caráter próprio, enquanto identidade
do lugar, é essencial na instalação de equipamentos novos, uma vez
que a diretriz mais consistente nessas construções é a promoção do
poder cultural da sociedade do entorno imediato. Como destaca
Gonçalves (2002, p. 45), “a poesia de uma igreja brasileira do
período colonial é, para nós, mais comovente do que a do Partenon”.
A reexão é pertinente, porque reconhece o valor simbólico que os
monumentos possuem dentro das sociedades e como a associação
destes com a memória coletiva permite que até mesmo as gerações
que não vivenciaram o momento do seu surgimento sintam-se
identicadas ou representadas como uma extensão de suas próprias
vidas.
A força simbólica do lugar e o fator identitário que se expressa
sobre ele constroem a personalidade do espaço e determinam
o uxo turístico que este receberá. Os lugares de memória ainda
que sejam mais facilmente exemplicados por construções ou
monumentos não se restringem a arquitetura, portanto, podem
ser entendidos como espaços vivos da memória cultural individual
ou coletiva, possuidores de forte caráter simbólico que representa
a identidade dos seus e possibilita também a perpetuação desta
identidade no tempo, mas essencialmente estes lugares são espaços
de onde a memória sempre poderá ser evocada quando houver
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
495
vontade de lembrar, como aponta Nora (1993, p. 7), “são lugares
onde a memória se cristaliza e refugia”. Representações culturais
como a concretização dessa rota dentro da cidade de Erechim
servem também para endossar ainda mais o sentimento de
pertencimento coletivo do equipamento e da própria história. Essas
novas edicações constroem a paisagem como imagem do passado
e potencializam memórias, consequentemente fortalecem Erechim
como lugar de memória e lugar para preservação cultural.
A transformação da paisagem natural do Vale Dourado com
a instalação de objetos arquitetônicos que apresentam em suas
fachadas elementos estéticos característicos de um grupo étnico e
a vericação do potencial de aderência do contexto local e regional
com tal experiência acaba por construir um referencial sobre
o uso de elementos simbólicos praticados no turismo cultural
atual. Como aponta Bourdieu (1989, p. 112) “as propriedades
(objetivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser
utilizadas estrategicamente em função dos interesses materiais e
simbólicos do seu portador.” A possibilidade de ocupação sobre o
espaço e a construção de símbolos nesse contexto também pode
ser entendido como um instrumento de poder que inuencia no
assentamento cultural do grupo sobre o tempo e dentro da história,
essas práticas de reconstrução de símbolos e tradições reativam o
jogo da memória coletiva que atua como força de perpetuação da
identidade na sociedade. Bourdieu expõe esse fato ao escrever que:
As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a
respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem
através do lugar de origem e dos sinais duradouros que lhes são
correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das
classicações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar
a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a denição legitima das
divisões do mundo social e, por este meio de fazer e desfazer os grupos.
Com efeito, o que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do
mundo social através dos princípios de divisão que, quando se impõem
ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido
e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem
a realidade da unidade e da identidade do grupo. (BOURDIEU, 1989, p.
113)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
496
A força de expressão da identidade do grupo que mantém a região
ou toma como relevante o espaço onde se relaciona é garantida
pela dinâmica criada nesse contexto e pelo impacto direto sobre os
usuários que fazem parte do mesmo grupo e sobre aqueles que se
relacionam indiretamente com a região. Como arma Bourdieu,
(1989, p. 116) o discurso regionalista fortalece a dinâmica de
imposição no espaço das fronteiras que constituem a região e faz
conhecer aos que estabelecem relações com o mesmo os limites
através do reconhecimento e diferenciação. A experiência do Vale
Dourado eleva a percepção sobre os símbolos que representam a
etnia italiana dentro da cidade de Erechim, estabelece um novo
referencial através da arquitetura, da gastronomia e todas atividades
oferecidas aos visitantes com a oportunidade de conhecer
determinada cultura e reconhecer sua força dentro do grupo e da
cidade. Essa expressão cultural também se expande e faz perceber
com mais intensidade, ainda que indiretamente, os demais exemplos
de turismo cultural que acontecem dentro do estado do Rio Grande
do Sul e que mantém relações de proximidade através da cultura, do
turismo e das experiências oferecidas.
O surgimento dos equipamentos que compõem hoje a rota do
Vale Dourado se deu a partir da participação da comunidade local,
os moradores atuantes sobre a paisagem percebendo a experiência
positiva após a instalação da Villa Trentin, (equipamento composto
por um restaurante, espaço de eventos e um hotel) a qual teve uma
aceitação muito positiva no contexto, sentiram-se motivados a
compor outras propostas que ajudaram a construir o conjunto de
atividades da rota. Destaca-se aqui a atuação conjunta de um grupo
sobre uma demanda nova que recebe a positivação necessária
do contexto em que se insere para concretizar-se e continuar se
expandindo. O engajamento local passa também por uma sensação
de pertencimento com aquela atividade, o uso das características
estéticas das fachadas não tem sentido de imposição ou regra, mas
a partir da positivação e composição na paisagem torna-se também
expressão cultural daquele grupo que o apreende e reconstrói. A
construção desses símbolos sobre a paisagem até então natural
representa um fenômeno de participação concreta de um grupo que
percebe na materialidade a possibilidade de expressão dele mesmo.
A existência do grupo dentro do espaço/tempo está continuamente
condicionada aos agentes que emitem o discurso e detém o poder
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
497
simbólico para o fazer, e depende da aderência do coletivo que o
compõe. Como esclarece Bourdieu,
O efeito de conhecimento que o facto da objetivação no discurso
exerce não depende apenas do reconhecimento consentido aquele
que o detém; ele depende também do grau em que o discurso, que
anuncia ao grupo sua identidade, está fundamentado na objetividade
do grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e na crença que
lhe concedem os membros deste grupo assim como nas propriedades
econômicas ou culturais que eles têm em comum, pois e somente em
função de um princípio determinado de pertinência que pode aparecer
a relação entre as propriedades. (BOURDIEU, 1989, p. 117)
O coletivo dentro do grupo estabelece a força de mobilização
e atuação dentro das lutas pela manutenção dos símbolos e sua
permanência no tempo, com isso entende-se que o sentimento de
pertença é vital para que essa unidade se mantenha e atue de forma
conjunta. É através desse reconhecimento que a região se consolida
e se mantém e é também por isso que os agentes buscam sempre
fortalecer o ser/pertencer social dos indivíduos, como arma
Bourdieu (1989, p. 124) “nesta luta pelos critérios de avaliação
legítima, os agentes empenham interesses poderosos, vitais por
vezes, na medida em que é o valor da pessoa enquanto reduzida
socialmente à sua identidade social que está em jogo.” O sentimento
de pertencimento advém de um jogo complexo de fatores que
entrelaçados constroem a identidade coletiva de um grupo ou etnia,
esse ser social pode ser despertado através da arquitetura vista em
uma fachada com seus elementos característicos de um estilo, um
momento dentro da história, mas também através da língua, de
palavras especícas, da gastronomia, das cores de uma bandeira,
entre outros tantos símbolos possíveis. Como descreve Bourdieu,
Nada há de menos inocente do que a questão, que divide o mundo
douto de saber se se devem incluir no sistema dos critérios pertinentes
não só as propriedades ditas objetivas (como a ascendência, o
território, a língua, a religião, a atividade econômica, etc.), mas também
as propriedades ditas subjetivas (como sentimento de pertença, etc.),
quer dizer, as representações que os agentes sociais têm das divisões da
realidade e que contribuem para a realidade das divisões. (BOURDIEU,
1989, p. 120)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
498
Na experiência do Vale Dourado os objetos arquitetônicos
assumem o protagonismo enquanto primeiro contato com
identidade do grupo expresso naquele lugar, ainda que não sejam
equipamentos preservados e dotados da qualidade de herança do
passado, mas sim reproduções de uma estética recriada, eles ativam
na memória coletiva local uma cultura de forte expressão para o
contexto, fortalecem a identidade do grupo e expõem aos usuários
externos uma realidade já vivida e remodelada. A potencialidade
dos objetos na transmissão da memória está condicionada assim
como a preservação destes no tempo aos jogos de poder e dinâmicas
sociais de cada época. A preservação da identidade de um grupo
perpassa a vontade de manter íntegra a cultura e os objetos
remanescentes no espaço e impulsiona a recriação de equipamentos
que se transformam em lugares de memória, lugares de atuação
ativa do grupo que mantém viva a identidade que os reconhece
como unidade. Essa representação no contexto social através da
materialidade faz perceber também a distinção do coletivo frente
as demais culturais que convivem no espaço, mais que perceber o
diferente é reconhecer que ele existe, é a constatação de “o fato de
estar em jogo, nas lutas pela identidade, esse ser percebido que existe
fundamentalmente pelo reconhecimento dos outros” (BOURDIEU,
1989, p. 117).
Da mesma forma que a memória coletiva está condicionada
a aqueles que a reproduzem e dentro disso entende-se também
aqueles que a esquecem espontaneamente ou deliberadamente, os
objetos arquitetônicos, os símbolos e a expressão cultural também
cam condicionados aos interesses dos grupos que detém o poder
de decisão nas diferentes épocas. Com isso, entende-se que tanto os
objetos quanto as identidades culturais são fatores essencialmente
vulneráveis e a sua permanência no tempo e espaço dependem de
uma série de fatores que podem ou não manter, esquecer, proteger
ou destruir. A percepção dos objetos enquanto representação da
identidade é fruto dos valores que lhe são atribuídos dentro do
contexto social em que existem, ou seja, dependem exclusivamente
dos grupos que os tem como posse. Portanto a materialidade
tem papel fundamental na caraterização simbólica do grupo no
espaço e Bourdieu (1989, p. 118) expõe isso ao escrever “o mundo
social é também representação e vontade, e existir socialmente
é também ser percebido como distinto.” O jogo de identidades é
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
499
naturalmente um espaço de conitos na dinâmica social e constitui
um espaço de questionamentos e disputas onde a sobreposição de
uma identidade sobre a outra pode signicar o ofuscamento ou
apagamento do poder de expressão de um grupo, sendo assim,
a garantia da legítima atuação do grupo no contexto em que se
desenvolve também signica a sua existência no espaço/tempo e a
sua distinção e reconhecimento sobre as demais identidades. Assim
também aponta Bourdieu:
[...] existir não é somente ser diferente, mas também ser reconhecido
legitimamente diferente e em que, por outras palavras, a existência real
da identidade supõe a possibilidade real, juridicamente e politicamente
garantida, de armar ocialmente a diferença – qualquer unicação,
que assimile aquilo que é diferente, encerra o princípio da dominação
de uma identidade sobre outra, da negação de uma identidade por
outra. (BOURDIEU, 1989, p. 129)
O reconhecimento de um conjunto de equipamentos que
ocupam a paisagem e estabelecem um referencial de cultura através
do nome e da imagem dentro de um contexto que já os reconhece
como parte da sociedade e grupo fundante do território político
é a concretização do material simbólico que mantem a unidade
cultural coesa e passível de ser atravessada no tempo pela memória
coletiva. Entendendo que a percepção de cada indivíduo sobre os
objetos passa por um campo muito particular onde está envolto um
complexo conjunto de sentimentos e experiências que compõem sua
própria experimentação do espaço, como expõe o lósofo Georges
Didi-Huberman ao tecer uma análise sobre imagens que registrou
em uma visita de um espaço que carrega forte apelo emocional para
sua família e ao relatar sua experiência descreve:
O que a casca me diz a respeito da árvore. O que a árvore me diz a
respeito do bosque. O que o bosque, o bosque de bétulas, me diz a
respeito de Birkenau. Essa imagem, naturalmente, como as outras, é
quase insignicante. Quase insignicante, uma coisa supercial: [...]
Sempre tudo na superfície e por superfícies entremeadas. Superfícies
técnicas para testemunhar apenas a superfície das coisas. O que isso
me diz a respeito do fundo, o que isso atinge no fundo? A maioria das
imagens, bem sei, não tem maiores consequências. Milhares de turistas
vieram a Birkenau antes de mim, empunhando câmeras, e milhares de
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
500
vezes posicionaram suas lentes, imagino, exatamente como posicionei
a minha. A cada qual o seu álbum, poderíamos dizer. Essas imagens,
quase sempre, transformam-se em tesouros particulares – como as
imagens oníricas, só são intensas e signicativas na lembrança pessoal
de quem as preza. (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 131)
Dentro do turismo cultural o que está em foco é a
representação de um determinado grupo ou etnia e tudo que
implica o existir deste, objetivamente e subjetivamente no espaço.
A multiplicidade de percepções daqueles que atuam diretamente no
contexto imediato do espaço e daqueles que o visitam motivados
cada qual por seus interesses está envolvida uma indissociável
expressão de posse sobre a imagem que compõe a paisagem. Ainda
que as percepções sejam individualizadas, a materialidade do objeto
impõe a cultura do grupo sobre os usuários e consequentemente
sua identidade sobre a dinâmica social que ali opera. É via de
fato que a imponência do objeto acentua a existência da cultura,
e principalmente a ativação do objeto com o coletivo através das
atividades que ali acontecem.
Considerações Finais
Ao longo desse texto foram levantadas inúmeras questões que
perpassam a complexidade dos estudos sobre a identidade e suas
relações no espaço e tempo e principalmente na manutenção da
memória e construção da história. Frente a dinamicidade do tema
está imbricada sua relevância sobre as dinâmicas que cria e estabelece
no contexto deste estudo. O material simbólico que se constrói com
a instalação de um conjunto de equipamentos sobre uma paisagem
de destaque para a cidade de Erechim torna-se referencial da
cultura deste grupo para o âmbito local e o impulsionamento dessa
experiência com a atividade turística expande de forma expressiva o
poder simbólico dessa etnia sobre a região e para além das fronteiras
conhecidas sobre o espaço em que se desenvolve.
A arquitetura enquanto instrumento na constituição de uma
imagem nova sobre a paisagem e categoria de representação da
identidade desse grupo constrói uma relação afetiva através da
memória coletiva com os usuários que a reconhecem como parte da
própria história, ou seja, percebem o sentimento de pertencimento.
Também é através da arquitetura e da cenograa no espaço que a
identidade desse grupo se impõe sobre aqueles que motivados pelo
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
501
turismo experimentam o espaço e percebem a força de expressão
cultural que o ambiente oferece.
O referencial que se estabelece na paisagem do Vale Dourado
ao encontrar aderência no contexto local e regional garante a
perpetuação da memória coletiva do grupo no tempo e a manutenção
da identidade sobre os símbolos materializados através dos objetos
arquitetônicos que compõem a rota. Sendo assim, é possível denir
o papel simbólico da sicalidade dos objetos enquanto monumentos
como categorias fundamentais de representação daquilo que
mantém coesa a unidade de um grupo e toda a dinâmica cultural
que implica a expressão da sua identidade no espaço. Perceber que os
agentes que detém a possibilidade de atuação na paisagem também
determinam a movimentação do coletivo e, este motivado através
do reconhecimento subjetivo dos símbolos participa da proteção e
promoção destes objetos como garantia da sua própria existência é
trazer luz sobre essa dinâmica que se reproduz em diversas escalas.
A manutenção dos limites de expressão cultural do grupo
enquanto protagonista sobre o espaço é assimilada pelos agentes e
pelos visitantes que percebem na paisagem um recorte importante
da cultura local, possibilitando a compreensão de que na
experiência do Vale Dourado a região é denida no espaço a partir
da representação simbólica do grupo que atua sobre ela.
REFERÊNCIAS
BADALOTTI, Claudine Machado. Arquitetura, Etnicidade e Patrimônio:
As construções da imigração italiana na rota Caminhos de Pedra no
Rio Grande do Sul. Orientador: Dr. João Carlos Tedesco. 2015. 172 p.
Dissertação (Mestrado) - Passo Fundo, Universidade de Passo Fundo -
Programa de Pós-Graduação em História, 2015.
BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: Elementos para uma
reexão crítica sobre a ideia de região. In: BOURDIEU, Pierre. O poder
simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. cap. V, p. 107-132.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução de André Telles. Serrote:
Uma Revista de Ensaios, Artes Visuais, Ideias e Literatura, São Paulo, n. 13,
p. 99-133, mar. 2013.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
502
GONÇALVES, Janice. Lugares de memória, memórias concorrentes e leis
memoriais. Revista Memória em Rede, Pelotas, v. 7, n. 13, p. 15-28, 11
ago. 2015.
GONÇALVES, José Reginaldo. Autenticidade, memória e ideologias
nacionais: o problema dos patrimônios culturais. Estudos Históricos:
Identidade Nacional, [s. l.], v. 1, ed. 2, 1 dez. 1988.
HATUKA, Tali. A obsessão com a memória: o que isso faz conosco e com as
nossas cidades? In: CYMBALISTA, Renato; FELDMAN, Sarah; KÜHL, Beatriz
M. Patrimônio Cultural: Memórias e Intervenções Urbanas. Annablume,
2017.
NORA, P. (1993) Entre memória e história: a problemática dos lugares.
Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, 1993. 22p.
TEDESCO, João Carlos. Ruminantes de memórias: sentimentos,
experiências e silêncios deliberados. Revista História: Debates E
Tendências, [s. l.], v. 13, ed. 2, p. 343-353, 2013.
REMINISCÊNCIAS TERRITORIAIS:
O EQUIPAMENTO URBANO
ESCOLAR COMO PATRIMÔNIO
CULTURAL DE MACAPÁ - AP
Ana Paula de Oliveira Ribeiro1
Dinah Reiko Tutyia2
1. A implantação do Território Federal do
Amapá, breve contextualização
O ano de 1943 trouxe o desmembramento dos Estados do
Amazonas, do Matogrosso, do Paraná, de Santa Catarina e do Pará,
a partir do Decreto-Lei nº 5.812, criando os Territórios Federais, do
Rio Branco do Guaporé, de Ponta Porã, do Iguaçu e o do Amapá. Este
último, desmembrado do Pará, teve sua divisão em três municípios:
Amapá, Macapá e Mazagão (BRASIL, 1943). A capital foi instalada
na cidade do Amapá, como previa o Decreto Lei nº 5.839 daquele
mesmo ano. Macapá passou a ser sede do novo governo em 1944,
quando Janary Gentil Nunes, ocial do Exército, tomou posse como
o governador e transferiu a capital para esta cidade, em virtude de
diculdades de vias uviais para o Amapá.
1 Graduanda e Iniciação Cientíca do Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade
Federal do Amapá (CAU/ PROVIC/UNIFAP). E-mail:analuapribeiro14@gmail.com
2 Profª. Drª. do Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal do Amapá
(CAU/UNIFAP). E-mail: dinahtutyia@unifap.br
503
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
504
Segundo Lobato (2014), a instauração desse governo se deu
aos moldes do discurso do Estado Novo varguista, que vinha
sendo construído desde o governo provisório um Estado nacional,
centralizador e intervencionista. De acordo com o autor, as décadas
de 30 e 40 trouxeram um otimismo na política desenvolvimentista,
que tinha dentre os seus pilares a intervenção do Estado na educação
e na medicina social. O Pará, o Amazonas, o Matogrosso e o Goiás
eram vistos como vazios demográcos e atrasados economicamente
por parte de intelectuais, na primeira metade do século XX, que se
colocaram a discorrer sobre o pós “Revolução de 30”.
A partir dos anos 1930, segundo Tutyia (2023), houve uma
política federal de modernização do Pará, por meio de medidas
superciais que não atendiam a demanda efetiva do espaço urbano
do paraense, se concentrando apenas a áreas centrais de Belém, e
que também não se prolongavam ao Amapá. Túlio Chaves (2016),
arma que a Amazônia voltou a ser pauta do governo federal em
1937 com o Estado Novo (1937-1945), o qual buscou uma política
econômica de integração e ocupação das regiões da federação,
ancorada em um projeto ideológico que visava a “construção da
Amazônia”.
A Amazônia, esteve em foco nessas narrativas, que foram
utilizadas como justicativa da ação intervencionista do Estado.
Com a posse de Janary Nunes em 1944, um discurso de progresso
e modernização do Território Federal do Amapá esteve presente
ao longo de sua permanência no governo, como observado no
“Relatório das atividades do Governo do Território Federal do
Amapá em 1944”, no qual é passado a narrativa de construção de uma
“nova era” para o Amapá, que estava embasada na desqualicação
e desconsideração de uma cultura pré-existente à implantação
do Território Federal. Esse fato é destacado por Lobato (2009) ao
estudar a política de educação no Amapá entre os anos de 1944 a
1956, como também no trabalho “Federalização da fronteira: a
criação e o primeiro governo do Amapá (1930-1956)”, armando
o autor que “[...] ocorria a tentativa de estabelecimento de uma
narrativa histórica para os amapaenses, na qual a posse de Janary
simbolizava o m de um período de pessimismo, abandono, caos,
atraso, doenças, analfabetismo, superstição, pobreza e invisibilidade
[...]” (LOBATO, 2014, p. 289).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
505
O desenvolvimento da sociedade com base na modernização e
no progresso estadonovista tomava forma em diferentes escalas das
diferentes cidades na região norte do país, Silva (2008) ao estudar
a presença do pensamento eugênico nas intervenções urbanas e
arquitetônicas das cidades brasileiras ao longo das primeiras décadas
do século XX, ressalta a relação entre o higienismo, o sanitarismo
e o eugenismo, quando a ordenação urbana atuava como forma
de combate ao que os atuantes dessas áreas denominavam de
“detritos da civilização” (SILVA, 2004). A loucura, a criminalidade
e as doenças despontavam nos grandes aglomerados urbanos e
conduziam à necessidade da criação de edicações para as resoluções
dos problemas sociais especícos. Soma-se a esses modelos de
intervenções nas cidades, a construção da narrativa de que o
trabalho era a força motriz para a dignidade, o desenvolvimento
econômico do homem e do país, tendo sido criadas nesse momento
as políticas trabalhistas, sindicais e previdenciárias.
O trabalho, a saúde, a higiene e a educação eram conduzidos
em programas sociais e recaiam na construção física e moral do
brasileiro (SILVA, 2018), e segundo o discurso do governo varguista,
reetiria no progresso da nação. As escalas dessas intervenções, se
adaptavam às demandas nas cidades, o modo de vida da população
que preexistia em Macapá fora constantemente menosprezado e
criticado por membros do “projeto civilizatório” de implantação do
governo na década de 40 (LOBATO, 2014). Segundo Silva (2018,
p.204):
[...] os programas de saneamento inuenciaram diretamente nas
políticas sociais do governo, pois os ideais sanitaristas coincidiam com
os ideais de Vargas. Os sanitaristas apontavam o brasileiro como um
povo doente e analfabeto, e somente através da saúde e da educação,
o país conseguiria livrar-se do seu atraso social.
O discurso da “nova era” propagado nos meios de comunicação
daquele período, não cou restrito ao Amapá, mas também
esteve nas páginas do jornal paraense “A Província do Pará”, como
também no “Jornal do Commercio” na capital federal da época
Rio de Janeiro, ao longo da década de 40 e 50, como destacado a
seguir. As propagandas do governo eram marcadas pelo contraste
entre o período “pré-janarista” e “pós-janarista”, na dicotomia
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
506
retrocesso x progresso, e dentro deste contexto, uma série de
imagens e notas do Território do Amapá guravam nas páginas e
auxiliavam na construção e consolidação do discurso estadonovista
de modernização e progresso.
O “Jornal Commercio” da capital federal Rio de Janeiro, também
trazia esse olhar, podemos observar em dois breves exemplos. Em
fevereiro de 1948, em pequena nota sobre as notícias dos estados
brasileiros, há uma relativa ao Amapá, com uma fala do governador
Janary Nunes com o seguinte texto:
[...]O Amapá era considerado o pior dos Territórios. O mais doentio, o
mais difícil de recuperar, o mais pobre. Pesava sobre o seu nome um
conceito unanime: o da insalubridade. O Amapá de 1948 mudou sua
sionomia. Os principais núcleos de populações já estão saneados [...]
Transformou-se numa região que se reputa possuir condições proprias
para se constituir motivo de orgulho da Amazônia e do Brasil [...]
(AMAPÁ…, 1948, p.2).
O “retrocesso” do passado e as “glórias” do presente também
esteve em um artigo “Viagem ao Amapá” da escritora Dinah
Silveira de Queiroz em 1948, publicada originalmente no “Jornal do
Commercio” em 1 de fevereiro e posteriormente no “A Província do
Pará”, em 12 de fevereiro do mesmo ano. A cronista relatou que após
a publicação do artigo “Tragédia no Amapá”, o deputado federal do
Amapá, Coaracy Nunes, havia enviado para ela jornais publicados
no “jovem” território, assim como livros sobre a região, para que a
mesma conhecesse as mudanças pelas quais o Amapá passava.
[...] com uma dedicação enorme pela terra que representa, numa
recente noite calorenta, esteve em minha casa o deputado com seu
cinema. E em minha sala viajei calmamente, comodamente, para as
setentrionais regiões brasileiras [...] Conheci o recente passado do
Amapá: escolas caindo aos pedaços, onde as crianças se sentavam
no chão batido, no meio da miséria mais miserável. Casas arruinadas,
população sem higiene, infância sem assistência. Vi o presente - ao que
se chegou em três anos de trabalho. O grande edifício do Grupo Escolar,
com capacidade para quatrocentos alunos em cada turno. Os postos
de assistência à infância, as novas casas, bonitas casinhas de madeira,
de tipo americano, o tratamento das febres, o novo e confortável hotel
Macapá (QUEIROZ, p.3, 1948).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
507
Nota-se no excerto o empenho daqueles que estavam à serviço
da consolidação do Território Federal do Amapá, como o deputado
Coaracy Nunes, irmão de Janary Nunes, para contornarem qualquer
crítica ao Amapá. Na fala da escritora pode-se perceber a visão
dicotômica do passado decadente e o surgimento de um “novo”
Amapá.
Esses fatos nos auxiliam a analisar uma Macapá que surgiu na
década de 40 e 50 do século passado. Os objetos aqui apresentados
compõem/compuseram os documentos de uma época, um conjunto
arquitetônico projetado para atender e consolidar a implantação
do Território Federal do Amapá. Enfatizamos a necessidade de
uma leitura crítica dessas arquiteturas, em dois momentos: como
parte constitutiva do discurso varguista na Amazônia e como uma
arquitetura inserida na contemporaneidade da cidade.
Parte das fontes desta pesquisa recaem em relatório de governo
e propaganda governista nos jornais da época, em um conjunto
documental da História Tradicional que dão ênfase aos grandes
feitos de grandes homens, com uma visão centrada em sujeitos
líderes e na elite, um modelo de História objetiva, na qual os fatos são
apresentados “como eles realmente aconteceram” (BURKE, 1992), e
segundo Burke (1992) isto é irreal. A objetividade da ação de olhar
para o passado é feita de um ponto de vista particular: “nossas mentes
não reetem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo
através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos,
um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra” (BURKE,
1992, p.15).
Assim, este trabalho visa ampliar o olhar sobre o conjunto
constituinte de um projeto político pautado na construção de
uma “nova era” e na desconguração de estruturas pré-existentes.
A pesquisa enfoca o equipamento urbano escolar, objetivando
a caracterização arquitetônica quanto à linguagem adotada no
primeiro governo territorial no Estado e ressaltar o processo de
apagamento e descaracterização pelas quais tais edicações vêm
passando ao longo do tempo.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
508
Arquitetura educacional na implantação do
Território Federal do Amapá
Gregolin (2015) ao analisar o dispositivo escolar republicano na
paisagem das cidades brasileiras, a partir da perspectiva foucaultiana
pela via da linguagem, destaca que a estrutura arquitetônica escolar
– prédios marcados pela monumentalidade, pelo estilo neoclássico
e pela forma de implantação na cidade - instalada em vários estados
da federação, nas primeiras décadas do século XX, tiveram um
papel signicativo para o reconhecimento desse dispositivo na
construção de uma identidade republicana. Um dos elementos dos
dispositivos de Foucault, são as curvas de visibilidade, que Gregolin
(2015) destacou neste caso, sendo um determinado modelo
arquitetônico, de uma determinada linguagem arquitetônica, que se
localizava em um lugar com vias de bastante movimento, predicados
que constituíram o lugar da escola nas cidades remodeladas nas
primeiras décadas do século XX, a visibilidade desse dispositivo no
tecido das cidades contribuíram para sedimentação ideológica da
república.
Podemos reetir de modo análogo, o dispositivo escolar na
implantação do território Federal do Amapá, os dois objetos de
estudo dessa pesquisa, a Primeira Escola Industrial de Macapá e o
Grupo Escolar Barão do Rio Branco, uma vez que, ambos situados
no centro da cidade, em frente à praça remanescente do período
pombalino e em uma das principais avenidas do município de
Macapá, a Av. FAB, constituindo parte importante na paisagem,
seja por suas características arquitetônicas, seja por sua relevância
histórica.
Entre o processo de institucionalização de ações políticas
administrativas como consequência da gestão territorial, o discurso
predominante fundamentado em ideais republicanos que se baseavam
na educação e higienização e o projeto político centralizador
administrado por Janary Nunes, a implementação dessas duas
escolas, apresentam-se como um dos principais instrumentos para
a efetivação de um projeto político intervencionista.
Ao se referir à educação, o quadro geral descrito por Janary Nunes
na década de 40 foi de um cenário de abandono e atraso, atribuindo a
imagem da população local ao pauperismo e necessitada de políticas
de desenvolvimento, de modo que, com a alfabetização, leitura e
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
509
ensino de regras higiênicas e sanitárias, a política de progresso seria
efetivada. Os excertos abaixo demonstram esse aspecto:
[...] Estava em completo abandono, sem nunca ter sido eciente. Para a
população de 25.000 mil almas do território apenas existiam 7 escolas,
aliás, péssimas, instaladas em casas e barracas em ruínas: 2 na cidade
de Macapá, 1 no rio Pedreira, 1 na cidade de Amapá, 1 no povoado de
Tucumã, outra no de São Miguel e 1 na vila de Mazagão velho. (NUNES,
1946, p.06)
[...] Divulgando as regras higiênicas e sanitárias e criando a mística do
caboclo sadio para combater o conformismo à doença; executando
processos novos de cultura da terra, de assistência à criação; de
organização administrativa e social; lutando contra o nomadismo, a
casa miserável, família sem tradição, o pauperismo (NUNES, 1946, p.
32)
Logo, a escolha da implementação do modelo de ensino
caracterizado pelos Grupos Escolares, Escolas Normais e demais
equipamentos urbanos escolares na cidade de Macapá, compõem
parte signicativa do Governo de Janary. Saviani et al. (2017)
ao apontar a origem do grupo escolar no Brasil, no ano de 1890
em São Paulo, o descreve como um modelo de organização
do ensino elementar racionalizado e padronizado criado para
atender um grande número de crianças. Já, Gonçalves (1996), ao
elencar características da arquitetura escolar, também no período
republicano, ratica a busca por um destaque à educação na
paisagem da cidade, sempre localizadas no centro da capital, em
terreno muitas vezes elevado, de maneira que os equipamentos
escolares assumiam características bem delimitadas.
À exemplo dessa realidade tem-se a Primeira Escola Industrial,
denominada também por Escola Prossional Getúlio Vargas,
construída entre as décadas de 1947 e 1949, localizada no centro da
cidade de Macapá, na Av. FAB.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
510
Figura 1 - Primeira Escola Industrial de Macapá
Fonte: Acervo dos Municípios Brasileiros, IBGE.
A Primeira Escola Industrial tinha características neocoloniais,
que dialogavam com o mission style, assim como algumas edicações
implementadas pela Primeira Intendência por meio do discurso
de “renovação” da cidade. O partido arquitetônico composto por
arcos sequenciais na sua fachada, pelo pórtico de entrada marcado
por uma estrutura em arco que se destaca do corpo da edicação e
dá acesso ao hall. A cobertura em telha de barro do tipo Marselha,
acabamentos de forro e telhado em madeira, bem como, beirais
aparentes, como mostra a Figura 1.
O ensino técnico-prossionalizante amapaense havia sido
traçado, em 1944, por parte da Divisão de Educação do Território, na
divisão de uma Escola Doméstica Feminina e uma Escola Prossional
Masculina (LOBATO, 2014), e se materializou na Primeira Escola
Industrial ofertando cursos técnicos relacionados à mecânica, bem
como ao manuseio de máquinas industriais,ferraria, sapataria, para
a população masculina. Além de uma grade curricular composta
por aulas de higiene, escotismo, entre outros.
O Grupo Escolar Barão do Rio Branco é outra escola importante
na história da cidade de Macapá, e também com características
neocoloniais. Foi inaugurado em 1946 por Janary Nunes, visando
atender a um grande número de crianças, sendo um dos primeiros
implementado na cidade e atendia ao ensino primário.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
511
Figura 2 - Fachada e Planta Baixa do Grupo Escolar Barão do Rio Branco
Fonte: Relatório de Atividades da Primeira Intendência, 1946.
Como observa-se na Figura 2, a fachada principal apresenta o
corpo central destacado com o arco, que dá acesso ao hall e interliga
ao corpo da edicação com um pátio frontal e lateral com as aberturas
de janelas formadas por um conjunto de arcadas. O acabamento de
cobertura e forro em madeiras, a planta da edicação apresenta 2
pavimentos, com de 12 salas de aula.
Gregolin (2015) aponta a racionalização dos espaços, funções e
usos, assim como também, a normatização de plantas e fachadas,
como característica principal do equipamento urbano escolar,
enquanto difusor do caráter republicano das primeiras décadas do
século XX. A implementação dos grupos escolares na cidade de
Macapá também possibilitava processos burocráticos de avaliação
no governo territorial, salas de aulas separadas com diferentes
professores, e um maior controle sobre os alunos, de maneira que
o espaço planejado pela Primeira Intendência fosse instrumento na
efetivação da realidade do Amapá.
Os equipamentos urbanos escolares na atual
paisagem macapaense
As escolas trabalhadas nesta pesquisa, ainda que reconhecidas ao
olhar dos usuários da cidade, por sua trajetória histórica e afetiva,
passam por um “desconhecimento” de sua signicância cultural
para com o poder público na atualidade. A edicação, que foi sede
da Primeira Escola Industrial da cidade de Macapá, hoje intitulada
de Escola Estadual Antônio Cordeiro Pontes, e que atende alunos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
512
do Ensino Fundamental II e Ensino Médio pela rede estadual de
ensino, nos últimos anos vem passando por uma série de reformas
por parte do órgão responsável pela manutenção dos prédios
públicos estaduais.
Figura 3 - Vista da Atual Fachada da Escola Antônio Cordeiro Pontes
Fonte: Autoras, 2023.
Apesar da edicação já ter sido alvo de reparos e intervenções de
manutenção desde o seu processo de criação, sua fachada, mesmo
que com alterações, remonta às características neocoloniais, como
ca evidente no conjunto de arcadas e no pórtico de entrada, ainda
remanescentes, como mostra a Figura 3. Entretanto, por meio
de levantamentos fotográcos realizados no segundo semestre
de 2023, pôde-se realizar análises comparativas que atestaram
mudanças signicativas em sua estrutura interna, uma vez que a
reforma estava em andamento e continha uma ala que ainda não
tinha sofrido intervenções.
Quadro 1: Imagem A - Corredores antes da Intervenção; Imagem B - Jardim Interno antes da
Intervenção; Imagem C - Esquadrias antes da Intervenção.
Fonte: Autoras, 2023.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
513
Quadro 2: Imagem A - Corredores da Edicação depois da Intervenção; Imagem B - Jardim
Interno depois da Intervenção; Imagem C - Esquadrias depois da Intervenção.
Fonte: Autoras, 2023.
Nota-se no Quadro de imagem 1, algumas características
neocoloniais, como é o caso da utilização do reboco grosso até
meia parede nos corredores e em toda a parte interna da edicação,
como também os acabamentos de forro e cobertura em madeira,
o revestimento do piso em São Caetano, assim como as aberturas
em cobogós e as esquadrias em venezianas de madeira, materiais
utilizados na sua concepção original, foram retirados. Pode-se, por
meio do Quadro de imagem 2, visualizar as mudanças signicativas
ocorridas após a intervenção realizada por órgãos estaduais
responsáveis pela manutenção dessas edicações. Fica evidente o
processo de descaracterização dessas reminiscências e a ausência
de políticas efetivas de preservação do patrimônio cultural, uma
vez que os materiais anteriores foram totalmente desconsiderados e
substituídos integralmente por materiais que nada dialogam com a
identidade arquitetônica neocolonial.
O revestimento cerâmico são caetano deu lugar ao piso em
granilite, as esquadrias venezianas de madeira deram lugar às
esquadrias em vidro e alumínio, o forro em madeira deu lugar ao
forro em pvc, o jardim interno com canteiros oridos deu lugar à
ausência total de um paisagismo nas áreas de transição internas,
saindo de uma realidade diversa em texturas e cores para uma
realidade aparentemente mais “cinza” e branca.
Ademais, foram realizadas entrevistas no início do ano de 2024
com algumas alunas inseridas na realidade anterior à reforma e
também depois dela. Aida Ferreira, Girlane Nascimento e Roberta
Iasdilau são alunas do 9º ano do Ensino Fundamental II, 1º e 2º ano
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
514
do Ensino Médio, respectivamente e ao serem questionadas sobre
como receberam a notícia da reforma, as entrevistadas de modo
geral, assimilaram a notícia de intervenção na edicação como uma
iniciativa boa.
[...] Quando nos informaram que as aulas iriam ser paralisadas porque
a escola iria entrar em reforma, a gente achou que seria algo bom
pra nossa escola porque ela estava velhinha, com algumas coisas
quebradas, dentro das salas era muito calor e por mais que tivessem
centrais de ar, elas não funcionavam e estavam quase caindo aos
pedaços3
As entrevistadas alegaram que a reforma trouxe a introdução
de climatizadores novos e a troca de materiais que precisavam de
manutenção, o que proporcionou um conforto maior. A partir
de questionamentos inerentes à percepção e funcionalidade dos
espaços, materiais utilizados, e se sentiam falta de alguma coisa
após a intervenção, obteve-se as seguintes respostas:
[...] No início, quando a gente retornou às aulas, estranhamos um
pouco a escola toda branca, a gente até brincou que estava parecendo
um manicômio mas depois de algumas semanas nos acostumamos…
sobre a gente sentir falta de alguma coisa, o que mudou, que a gente
preferia antes, foi o refeitório. Antes ele era ao ar livre e com a reforma,
colocaram a gente em um espaço menor que é quente e não cabe todo
mundo4
Observa-se que a percepção estética dos novos materiais gerou
um incômodo inicial na entrevista, fazendo-a comparar à um
“manicômio”, pela linguagem asséptica adotada na escola. Este
fato também foi destacado por um grupo de funcionários, os quais
relataram que a escola iria car “igual a um hospital, tudo branco,
igual ao Barão”, se referindo a escola Barão de Rio Branco, que
também passou por uma reforma, demonstrado mais adiante neste
trabalho. Quando questionadas sobre os materiais empregados na
reforma da escola, e quais eram as percepções referentes à eles,
3 Entrevista concedida por Roberta Iasdilau a Ana Paula Ribeiro em 10 de Janeiro
de 2024.
4 Entrevista concedida por Girlane Nascimento a Ana Paula Ribeiro em 10 de Janeiro
de 2024.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
515
todas apontaram que os materiais anteriores precisavam realmente
serem trocados por novos, como ocorreu após a intervenção.
Entretanto, alegaram que algumas coisas, por mais que fossem
novas, já não funcionavam mais ou quebraram, como é o caso
de algumas lâmpadas, tampa de sanitários, e alguns utensílios de
banheiro, elementos pontuais que poderiam ser trocados ou passar
por manutenção.
As escolhas adotadas na reforma da Escola Estadual Antônio
Cordeiro Pontes, evidenciam diretrizes construtivas próprias da
atuação, por parte da gestão pública, no processo de intervenção
em obras públicas de signicância cultural e que não estão restritas
somente à Escola Estadual Antônio Cordeiro Pontes, como também
ao antigo Grupo Escolar.
Quadro 3 - Imagem A - Vista da Fachada antes da Intervenção; Imagem B - Vista da Fachada
do Grupo Escolar na década de 50.
Fonte: Portal G1 Fonte: IBGE
A atual Escola Estadual Barão do Rio Branco, uma das primeiras
escolas inserida no circuito de reformas e segundo objeto de estudo
contemplado nesta pesquisa, também é um exemplo de atuação que
se distancia de alternativas de preservação efetivas.São notáveis as
alterações que se assemelham ao caso da Escola Estadual Antônio
Cordeiro Pontes, no que tange à escolha dos materiais, alteração
de esquadrias, pisos, pintura em branco - há um tendência nesta
escolha cromática - como pode ser observado no Quadro de
imagens abaixo:
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
516
Quadro 4: Imagem A - Vista da Fachada após a Intervenção; Imagem B - Vista dos
corredores internos após a Intervenção; Imagem C - Vista das salas de aula após a
intervenção.
Fonte: Governo do Estado do Amapá, 2020.
Considerações Finais
O Estado do Amapá, e a cidade de Macapá, conta atualmente
apenas com o IPHAN, dotado de instrumentos para a
institucionalização dos bens materiais. A arquitetura territorial, é
apontada nesta investigação como patrimônio cultural, seja por
suas características arquitetônicas, seja como documento histórico
de implantação do Território Federal do Amapá, ou por seu valor
enquanto memória histórica para a população. Tal conjunto ainda
não se encontra resguardado por instrumentos legais que impeçam
sua descaracterização ou apagamento total, cando exposto de
forma recorrente às transformações e perdas ao longo do tempo.
Assim, ressaltamos a importância de reconhecimento cultural, por
parte das instâncias preservacionistas, desse conjunto edicado nas
décadas de 40 e 50 no Amapá.
REFERÊNCIAS
AMAPÁ. Jornal do Commercio, 9-12 de fev. de 1948, p.2.
BRASIL, Decreto Lei nº 5.839 de setembro de 1943. Dispõe sobre a
administração dos Territórios Federais do Amapá, do Rio Branco, do
Guaporé, de Ponta Porã e do Iguassú. Disponível em: https://www2.
camara.leg.br
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
517
CHAVES, Túlio Augusto Pinho de Vasconcelos. O Plano de Urbanização de
Belém: Cidade e Urbanismo na Década de 1940. 2016. Tese (Doutorado
em História Social da Amazônia) – Universidade Federal do Pará, Programa
de Pós-Graduação em História da Amazônia, Belém, 2016.
GREGOLIN, Maria do Rosário. O dispositivo escolar republicano na paisagem
das cidades brasileiras: enunciados, visibilidades, subjetividades. Moara:
Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras UFPA,
jun-jul 2015. https://periodicos.ufpa.br/index.php/moara/issue/view/131.
Aceso em: 28 jun 2023.
GONÇALVES, Rita de Cassia Pacheco et al. Arquitetura escolar: a essência
aparece. Fábrica e escola confundem-se no desenho da polivalente.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro
de Ciências da Educação, 1996.
LOBATO, Sidney da Silva. Educação na fronteira da modernização: a
política educacional no Amapá (1944-1956). 2009. Dissertação (Mestrado
em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2009.
LOBATO, Sidney da Silva. Federalização da fronteira: a criação e o primeiro
governo do Amapá (1930-1956). Revista territórios e Fronteiras, vol. 7,
n.1, jan.-jun., 2014 Cuiabá
NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território
Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.
QUEIROZ, Dinah Silveira de. Viagem ao Amapá. Jornal do Commercio, 1
de fev. de 1948, p.3.
SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XIX. São Paulo:
Autores associados, 2017.
SILVA, Daniela Teles. Eugenia, sáude e trabalho durante a Era Vargas. Em
tempo de Histórias, Brasília, n.33, agosto-dezembro 2018.
SILVA, Marcos Virgílio da. Detritos da civilização: eugenia e as cidades no
Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 4, n.048.09, Vitruvius, maio 2004.
SCHAFFRATH, Marlene dos Anjos Silva. A Escola Normal em Maringá–Pr:
O Ensino Público como Projeto Político. Maringá: Universidade Estadual
de Maringá, 2000.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
518
TUTYIA, Dinah Reiko. Ernesto Cruz: um diálogo entre a história e a
construção do patrimônio cultural no Pará (1940-1960). 2023. Tese
(Doutorado em História Social da Amazônia) – Universidade Federal do
Pará, Programa de Pós-Graduação em História da Amazônia, Belém, 2023.
O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-
CULTURAL DO MUNICÍPIO
DE SERRARIA/PB: A
MATERIALIDADE COMO
INSTRUMENTO DE
PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
COLETIVA
Luiz Ricardo Sales1
INTRODUÇÃO
O município de Serraria localiza-se na microrregião do Brejo,
distante a 128,3 km da cidade João Pessoa, capital do Estado da
Paraíba. Limitando-se ao norte, com os municípios de Solânea e
Borborema; ao sul com Areia; ao leste Pilões e, a oeste com Arara.
Com uma população estimada em 4.885 habitantes, clima quente e
úmido, e uma extensão territorial de aproximadamente 65,062 km²
(IBGE, 2022).
1 Doutorando em Arquitetura e Urbanismo, UFRN. E-mail: salespesquisa@gmail.
com
519
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
520
Figura 1: Localização geográca do município de Serraria, Paraíba, Brasil.
Fonte: Autor, 2023.
Os aspectos históricos e culturais de Serraria, revelam o
desenvolvimento tardio como núcleo urbano, mas, geogracamente
envolvida nos traçados dos tropeiros que admirados com a
exuberância natural e a fertilidade do solo, sentiram-se atraídos em
explorar e povoar o território. Nesse contexto, o município esteve
interligado ao processo de povoamento do Estado da Paraíba,
inicialmente, desenvolvido no litoral e, posteriormente, direcionado
para o interior do território. Assim, as vias de comunicação,
facilitaram o escoamento de mercadorias e impulsionaram o
surgimento de diversos povoados e das redes de comércio.
Os vales verdejantes que ainda perduram em Serraria, integram
a paisagem das tradicionais agroindústrias (engenhos) os quais
rememoram o período da aristocracia rural do século XIX e XX,
particularmente, as casas-sedes que ainda ostentam seus belos estilos
arquitetônicos. O conjunto de características sociais e culturais
da civilização da cana-de-açúcar e do café, deixaram marcas no
núcleo urbano como, por exemplo, a construção da Igreja Matriz
do Sagrado Coração de Jesus e as edicações que integram o centro
histórico da cidade.
Em sua trajetória, as potencialidades naturais e geográcas,
foram determinantes para os rumos do município, alicerçadas em
três bases: princípios econômicos liberais, produções agrícolas e o
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
521
turismo rural. Nesse contexto, o presente estudo tem como tema
a formação histórica de Serraria-PB. Justica-se, tomando como
parâmetro, a necessidade de identicar e analisar o processo sócio-
histórico de formação urbana e das dinâmicas transformações
que inuenciaram no declínio e no ressurgimento econômico do
município.
A m de alcançar tal intento, os procedimentos metodológicos
foram pautados em observações e analises empíricas, assim sendo,
procedeu-se na revisão bibliográca do temário proposto, análise
do patrimônio arquitetônico do município. Assim, o levantamento
de dados foi realizado a partir da análise de fontes primárias e
secundárias sobre os tópicos supracitados.
Desta forma, o estudo constitui-se no início de um debate
teórico que visa alargar as discussões sobre a importância do fator
econômico como reorganizador de um espaço geográco, além de
suscitar reexões sobre a dinamização da atividade turística a partir
da conversão do patrimônio arquitetônico e natural como atrativo.
OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO
MUNICÍPIO DE SERRARIA
O processo de povoamento iniciou a partir do século XVIII, com
os primeiros colonizadores oriundos das terras de Mamanguape
e demais regiões do entorno que, posteriormente formaram a
Missão de “Santo Antônio” da Boa Vista. Geogracamente devido
as características naturais da região, estabelecidas com áreas de
mata atlântica e a disponibilidade de recursos hídricos, tornaram
propícias para a prática da agricultura, inicialmente, as culturas de
mandioca, feijão e milho.
Antes era o período obscuro da colonização, durante a qual nada
aconteceu digno de nota ou, se aconteceu, cou sepultado no passado,
sem registro dos coevos. As condições de vida apenas permitiam a
xação do homem à terra, ocupando em desbravar o campo para
rudimentares explorações agrícolas, cujo desenvolvimento esbarrava
nas diculdades oriundas do isolamento (ALMEIDA, 1958, p. 17).
O desenvolvimento econômico da região começa com a
fundação do primeiro engenho no lugarejo, em 1850, pelos
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
522
agricultores Firmino José Fernandes de Maria e sua esposa, Maria
Isabel Fernandes de Maria. A agroindústria do setor canavieiro,
chamava-se Engenho Velho, o qual tinha suas atividades dedicadas
a fabricação da rapadura. De acordo com Viana (2020, p. 13), este
produto “passou a ser produzida quando os primeiros engenhos
chegaram no país. [...] principal fonte de trabalho e rentabilidade
econômica para as cidades que os tinham no século XVIII”.
Na zona propriamente do Brejo exuberante, vegetação cobria a terra
feraz. A mataria verde, de árvores gigantescas, na virgindade dos
seus bosques, dominava pelas encostas dos morros até o alto das
quebradas, enquanto lá em baixo, nas várzeas de massapê, entre os
perenes de água corrente, os partidos de cana completavam o fundo
da paisagem. Foi ali, naquelas baixadas úmidas e férteis, que a cana de
açúcar encontrou campo favorável de cultura (ALMEIDA, 1958, p. 50).
Segundo Andrade (2009), o topônimo do município originou-se
em 1851, a partir de uma serraria edicada no centro do lugarejo,
administrada pelo proprietário Manoel Birindiba, dono de diversas
terras que, por sua vez, explorou economicamente o uso da madeira,
assim como, impulsionando o surgimento de novas residências. Tal
edicação foi erguida, precisamente onde hoje encontra-se a Igreja
Matriz do Sagrado Coração de Jesus.
Serraria, tornou-se vila de Pilões pela Lei Provincial nº 755, em 4
de dezembro de 1883, e foi desmembrada de Areia pela Lei Estadual
nº 26, em 2 de março de 1895. Em 1897 foi desmembrada de Pilões
pela Lei Estadual nº 80, em decreto assinado pelo presidente da
Província da Paraíba, Antônio Alfredo da Gama e Melo, tornando-
se ocialmente município no dia 13 de outubro do mesmo ano
(SANTOS, 2015, p. 19).
O núcleo urbano foi se desenvolvendo ao sopé de uma das
ramicações da Serra da Borborema, caracterizada pelo terreno
ondulado que inuenciou no traçado das ruas e nas ligações entre a
área mais alta à baixa da cidade. Quanto as edicações, à medida que
a economia circulava, às tradicionais construções de taipa cederam
lugar as elegantes de alvenaria.
Desde o início da colonização no século XVIII, a atividade
agrícola se evidenciou como importante meio de captação de
recursos nanceiros para o município. Silva (2013, p. 14), salienta
que o predomínio da cultura da cana-de-açúcar no século XIX,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
523
promoveu o desaparecimento dos cafezais. Desta forma, os engenhos
se destacaram pela produção de rapadura, principal produto
comercializado, devido as facilidades de fornecimento e transporte
em reduzidas ou signicativas quantidades (CAVALCANTE, 2019).
Contudo, no início do século XX o contexto econômico do Brejo
Paraibano ganha novos contornos com o surgimento das usinas
sucroalcooleiras, particularmente, a Usina Santa Maria, em Areia e, a
Usina Taques, em Alagoa Grande. As unidades possuíam modernas
máquinas e ecientes processos de produção, assim, tornaram-se
elementos do progresso tecnológico da agroindústria canavieira.
Por outro lado, os proprietários dos engenhos não possuíam
capital para investir no aprimoramento dos sistemas e em
maquinários, tal situação provocou a desativação de diversas
unidades, em um processo popularmente conhecido como “fogo
morto”. Desse modo, com intuito de amenizar os prejuízos, vários
proprietários passaram apenas a trabalhar com o fornecimento de
cana-de-açúcar para as usinas, enquanto isso, o funcionamento de
seus engenhos permaneciam metaforicamente como referências no
imaginário social.
Neste período, várias áreas de cobertura vegetal e pequenas
lavouras de subsistência foram substituídas pela cultura das
plantações canavieiras que gradualmente formaram um continuum
na paisagem rural. No entanto, Rodrigues (2020, p. 149), destaca as
grandes modicações que ocorreram na agroindústria canavieira e
a política errônea do governo federal, caracterizada pelo seu aspecto
intervencionista
O Norte/Nordeste foi se caracterizando por uma economia canavieira
cada vez mais débil, perdendo seu mercado interno e externo devido
a problemas conjunturais, mas também estruturais, da sua indústria,
sendo que em meados da década de 1960 o único fator que justicava a
manutenção da atividade era o baixo custo da mão de obra e a política
assistencialista governamental (RODRIGUES, 2020, p. 149).
Acerca dessa questão, Sales (2020, p. 23), arma que “as décadas
de 1970 e 80, foram marcadas pelo período que culminou com a
crise PRÓALCOOL do setor sucroalcooleiro, resultando na falência
da Usina Santa Maria”. Portanto, a crise scal do Governo, o excesso
de produção e os preços baixos, foram determinantes para a falência
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
524
de inúmeras usinas e, consequentemente, o abandono dos seus
complexos arquitetônicos.
A partir disso, desencadeou-se uma grande instabilidade
socioeconômica entre os municípios que forneciam a cana-de-
açúcar para esta Usina, inclusive Serraria, no qual os tradicionais
engenhos Baixa Verde, Paulo Afonso e Laranjeiras substituíram as
lavouras canavieiras por bananeiras, além da criação de bovinos nas
áreas de pastagem (SILVA, 2013).
A cultura da bananeira é praticada em áreas de topograa
acidentada e se destaca por ser uma importante base econômica
do município. Além disso, o caráter natural, cultural e paisagístico
favorecem o desenvolvimento sustentável do turismo rural e, ao
mesmo tempo, incentiva a geração de emprego e renda. Va le destacar,
que os antecedentes históricos da formação do município não se
sucederam isoladamente, mas a partir de signicativas mudanças
e inuências de cunho econômico, social e político, reetidas tanto
na organização agrária, como no espaço urbano.
O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-
ARQUITETÔNICO
As edicações históricas no centro da cidade de Serraria,
estabelecem um vínculo entre o passado e o presente perante o
imaginário social e o simbolismo que carregam sobre si. Dentre as
construções remanescentes, destacam-se a Igreja Matriz do Sagrado
Coração de Jesus, e os casarões comerciais que compõem o eixo
histórico-arquitetônico da fase intermediária da ocupação urbana
do município.
A história da edicação de caráter religioso remonta o ano de
1860, quando foi fundada a capela, pelo agricultor Firmino José
Fernandes de Maria, popularmente conhecido na região pelo seu
incentivo ao progresso. Santos (2015, p. 18), descreve que “antes de
ser propriamente, uma igreja, foi uma humilde capela no interior
da qual existia um altar em louvor a Nossa Senhora da Boa Morte”.
Com o passar dos anos e o crescimento da população, tornou-
se necessária a construção de um espaço amplo e com elementos
ornamentais, sendo assim, em fevereiro de 1899, foi iniciada a
construção da edicação religiosa, sob o comando do pároco João
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
525
Maranhão. Segundo Costa (1997), em seu livro Serraria Princesa do
Brejo, destaca o momento de grande importância histórica.
Então vigário de Pilões, o que diante da oferta de um conto de réis
de cada um dos cavalheiros supracitados, não hesitou em começar
a obra, o que fez a 28 do mesmo mês e ano. Por motivo de melhor
interesse espiritual a 2 de outubro de 1900, foi por decreto de Sª Excia.
Remª. Bispo Dom Adauto de Miranda Henriquez transferida a Sede
da Freguesia de Pilões para Serraria, onde o Excia. Vigário xou sua
residência, e em uma casa (adrede) preparada, celebrava todos os atos
religiosos (COSTA, 1997, p. 42).
Em 2 de janeiro de 1907, a capela foi promovida à condição de
Igreja Matriz do Bom Jesus e, posteriormente com alteração do
nome para Sagrado Coração de Jesus, sendo seu primeiro vigário
João Maranhão. Quanto aos elementos arquitetônicos, destacam-se
o interior da cobertura em ordem Corinthia, forro da capela mor
a estuque, corredores a zinco e madeira, torre no segundo andar,
colunas imponentes, ladrilhos e o altar mor (COSTA, 1997).
Figura 2: Igreja Matriz do Sagrado Coração de Jesus.
Fonte: Autor, 2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
526
A igreja foi construída com elementos de composição e de
arquitetura, de notável qualidade estética para época. Sua nave é
coberta com telhado capa-canal em formato de duas águas, sendo a
fachada principal de inspiração Palladiana com uma torre sineira no
centro. O conjuntos de pilastras, destacam-se por serem elementos
ornamentais de importância compositiva, além das marcações
horizontais, adornos trabalhados e platibanda vazada.
A edicação encontra-se em eximo estado de conservação
e substancialmente em adequado cenário de preservação dos
atributos originais. Com relação aos casarões que compõem o eixo
histórico-arquitetônico, destacam-se a composição das fachadas
com tipologias formadas pelos estilos eclético e neoclássico. Silva
(2013, p. 14), descreve que “a primeira casa do lugar pertenceu a
Faustino do Rosário e foi construída em 1860”.
Figura 3: Casarões do centro histórico de Serraria.
Fonte: Autor, 2023.
Ao analisar as condições de preservação, verica-se que alguns
foram restaurados, outros sofreram algum tipo de alteração/
descaracterização e os demais em estado de abandono. Neste cenário
Santos (2015, p. 9), arma que “esse patrimônio arquitetônico
vem se perdendo ao longo do tempo, soterrado por um crescente
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
527
processo de transformação urbana, no que se refere à edicação de
construções “modernas”, o que tem acelerado desde a década de 90”.
Comparada a outras cidades com centros históricos delimitados,
como por exemplo, Areia, Alagoa Grande e Bananeiras, o município
de Serraria possui um acervo arquitetônico relativamente reduzido,
mas integra edicações que documentam a época da modernização
do Brejo Paraibano.
Por outro lado, observa-se que o centro urbano de não é tombado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da
Paraíba (IPHAEP), estando sob risco a preservação da memória
e da arquitetura do lugar. Para Le Go (2013, p. 435), a memória
é um elemento essencial da identidade, individual ou coletiva,
tornando-se uma das atividades imprescindíveis dos indivíduos e
das sociedades contemporâneas.
Zanirato (2016, p. 205), arma que “os riscos da perda dos
bens patrimoniais advêm da insustentabilidade do modelo de
desenvolvimento baseado na produção capitalista e no consumo
irrestrito de objetos, pessoas e lugares”. De acordo com Franco (2015,
p. 164), o conceito de patrimônio está diretamente relacionado com
“aquilo que é transmitido como herança”.
Côrtes e Vale (2021), argumentam que o patrimônio atrelado a
salvaguarda se insere na cadeia de consumo e valoriza os centros
históricos, por sua vez, promove a evasão da população tradicional
para o subúrbio e, consequentemente, na perda identitária. De
modo geral, constatar-se uma área homogênea, caracterizada por
especicidades e valores reconhecidos como patrimônio cultural.
[...] O patrimônio edicado apresenta massa construída, conguração
espacial, relação entre volume edicado e vazio, ritmo e cores, inserção
na paisagem urbana ou natural. As alterações que vêm sendo feitas,
principalmente nos centros urbanos, por vezes violentas e rápidas,
têm acentuado a conscientização da necessidade de se preservar o
conjunto dessas construções (KÜHL, 1998, p. 208).
Rolim (2013, p. 4), destaca a importância do patrimônio histórico-
cultural na função de resguardar uma memória predominante.
Contudo, apesar dos edifícios ali existentes, registros de distintas
linguagens arquitetônicas, o centro urbano é, via de regra, ameaçado
pelas dinâmicas socioculturais, políticas e econômicas. A Carta de
Atenas (1933, p. 25), reitera que a vida de uma cidade se “manifesta
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
528
ao longo dos séculos por obras materiais, traçados ou construções
que lhe conferem sua personalidade própria e dos quais emana
pouco a pouco sua alma”.
De acordo com Figueiredo et al. (2012. p. 357-358), alguns
elementos são fundamentais para denir se a edicação é um bem
relevante para ser preservada, tais como: o testemunho histórico
o qual representa; a originalidade; o caráter especial atribuído;
e a identidade. No entanto, ressalta-se que o novos materiais,
processos de construção e as interações entre indivíduos com o
habitat, revelam a diferenciação entre as edicações históricas e as
‘modernas’ e, como resultado, ampliam o papel da preservação do
bem material para a sociedade (SIMÃO, 2007).
Ainda que pequena, se comparada com outros centros
históricos, as edicações de Serraria passaram por transformações
e adaptações a partir das dinâmicas da região – ideais políticos e
discursos de época, que por sua vez, provocaram rupturas em âmbito
patrimonial, seja através da descaracterização e/ou arruinamento
de edicações. Sob a ótica das permanências, constatar-se a carga
cultural e identitária de algumas edicações que perseveram de
algum modo documentando a passagem do tempo.
Desta forma, considera-se de relevante o estabelecimento
de ações que permitam de alguma forma a revalorização destes
importantes exemplares, sobressaindo a compreensão dos processos
históricos, econômicos e culturais, mas, substancialmente, como
ativo econômico no cenário real, e geral, da urbe.
O “RESSURGIMENTO” DO MUNICÍPIO
ATRAVÉS DO TURISMO RURAL
A região Nordeste sofreu com grandes perdas econômicas
após a falência das usinas sucroalcooleiras, no qual o período de
transição do século XX para o XXI, foi marcado pelos desaos
da diversicação da produção agrícola, na formação de uma
classe média rural, estabelecidas em cooperativas e, a busca por
modelos e estratégias promissoras que envolvessem as instalações
agroindústrias com segmentos de mercados que até então não havia
exploração.
Neste cenário, destaca-se o surgimento do turismo rural como
alternativa econômica, especialmente aos pequenos produtores,
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
529
onde a paisagem agrícola e natural tornam-se atrativas aos visitantes
oriundos dos centros urbanos. Luz et al. (2020, p. 43.008), armam
que “o consumidor do turismo no espaço rural busca aproximação
com ambientes naturais e com a ruralidade e, em muitos casos, a
atividade turística é desenvolvida por propriedades de agricultura
familiar”.
No tocante ao município de Serraria, constatar-se que o turismo
rural atrelado aos tradicionais engenhos, Baixa Verde, Martiniano
e Laranjeiras, como efeito multiplicador na economia, através do
incremento nestas agroindústrias envolvidas, elevação na demanda
por mão-de-obra, aumento da demanda por produtos locais e maior
arrecadação de impostos.
O Engenho Martiniano é produtor de Cachaça. Apesar de ser da década
de 1920, o casario do engenho está em ótimas condições. O Engenho
Baixa Verde surpreende com uma construção de 1883, o qual passou
por uma única reforma nos anos 1950. É tombado como Patrimônio
Histórico, conserva móveis e uma grande área onde funcionavam a
senzala e duas vendas. O engenho vivenciou vários ciclos econômicos
no Nordeste (SILVA, 2013, p. 24).
Figura 4: Casa-sede do Engenho Baixa Verde.
Fonte: Albéra Gomes Fotograa, 2021.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
530
O complexo arquitetônico do Engenho Baixa Verde, se destaca
por seus elementos estruturais e alto nível de conservação, o que
levou ao tombamento da edicação pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP), tornando-se
o único bem protegido legalmente pelo órgão estadual no território
do município. A área dispõem de um remanescente orestal
conhecido como Parque do Grilo, com vegetação exuberante e uma
gruta, que foi utilizada como antiga morada pelos índios cariris.
Desta forma, o meio rural deixa de ser um espaço essencialmente
voltado para produção agrícola e passa a ser um ambiente
multifuncional ao incorporar o ecoturismo e o agrocomércio
(RIBEIRO, 2017). De acordo com Silva et al. (2018), a conversão
dos ambientes agrários para o turismo foram denidos através
das particularidades e atrativos geográcos, como por exemplo, as
belezas naturais e a cultura regional.
Em Serraria, o turismo rural está correlacionado aos processos
históricos de ocupação, a estrutura fundiária e aos elementos
arquitetônicos e paisagísticos, assim, considera-se a atividade
turística como estratégica para o desenvolvimento sustentável do
município, na medida que ultrapassa as vantagens econômicas e
socioculturais, ao estabelecer inuências na sociedade.
Portanto, esse tipo de atividade constitui um componente
promissor do desenvolvimento local, ao valorizar o patrimônio
arquitetônico e natural como atrativo, além da participação direta
da comunidade. Ainda sobre essa questão, observa-se a troca de
vivências, ao haver o entrelaçamento do contemporâneo ao passado
em torno das histórias de vida dos seus protagonistas (produtor
rural e família empreendedora) e, a interação com os visitantes e
sua diversidade e pluralidade cultural.
Outro exemplo deste ressurgimento com o turismo rural, é o
Engenho Martiniano com seu complexo arquitetônico, datado de
1872. O ambiente integra os aspectos histórico-culturais, estéticos
e os seus equipamentos, bens móveis e máquinas, exibindo sua
suntuosidade ao público. Todo esse conjunto mantém em atividade
a produção da tradicional Cachaça Cobiçada e, enaltece a imagem
do município no cenário estadual, o qual vem assumindo maior
valoração na sociedade contemporânea.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
531
Figura 5: Casa-sede do Engenho Martiniano.
Fonte: Autor, 2023.
Na atualidade, em Serraria percebe-se o reconhecimento das
potencialidades do patrimônio arquitetônico e a sua consequente
valorização enquanto bem de manifestação da cultura material (valor
histórico) e, objeto de consumo da comunidade (valor econômico),
além de suprir às necessidades de ordem prática (valor funcional/
turístico). Segundo Ciolac et al. (2019), o turismo rural favorece
à diversicação econômica, possibilitando uma renda alternativa,
através da qualidade e autenticidade dos produtos tradicionais.
Neste contexto, às contribuições socioeconômicas decorrentes
do espaço rural, inuenciam o desenvolvimento do espaço urbano,
na medida em que são abertos novos restaurantes, pousadas,
lojas comerciais, além da valorização do mercado imobiliário,
intervenções paisagísticas e de infraestrutura para melhor atender
os visitantes e, consequentemente, sua própria população. Cunha
(2008, p. 23), ressalta que “[…] a capacidade de atração de cada
localidade depende dos recursos existentes e as potencialidades
turísticas variam de localidade para localidade”.
Nessa perspectiva, constatar-se que o processo de ressurgimento
econômico de Serraria foi desencadeado graças à iniciativa
particular dos empreendedores familiares, cujos esforços deniram
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
532
os novos rumos agrários, socioculturais e turísticos. Dessa forma,
apresentam-se condições para que o seu patrimônio arquitetônico
seja conhecido e reconhecido como tal, além do turismo rural como
atividade viável e autossustentável, na cadência das suas atividades
e serviços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de adaptação do turismo ao espaço rural e às
atividades tradicionalmente agrícolas é uma realidade cada vez mais
crescente, tal fato deve-se principalmente em virtude do interesse
das próprias famílias rurais que através dos serviços turísticos,
adquirem melhores condições de renda, autoestima, ocupação e
conhecimento histórico- cultural. Assim, este importante segmento
também contribuiu para a produção agrícola que tornou-se objeto
de consumo dos visitantes, através da comercialização, degustação
e visitas guiadas.
No que tange aos complexos arquitetônicos, o turismo manifesta-
se como meio de ampliação das funções e na percepção enquanto bem
cultural, de valor simbólico e histórico. Ressalta-se que os recursos
captados através do turismo, são revertidos em investimentos nas
propriedades rurais e nos pequenos e médios empreendimentos
da cidade, possibilitando à manutenção e recuperação física das
edicações, bem como no custeio das produções agrícolas.
Contudo, o turismo em Serraria, ainda depara-se com a falta
de sensibilização e o planejamento estruturante que alavanque
as inter-relações econômicas de sua comunidade com o entorno.
Desse modo, torna-se necessária a implementação de estudos que
atuem diretamente na percepção do turismo enquanto estratégia
econômica, considerando as potencialidades da propriedade.
Por m, este estudo evidencia o entendimento sobre as
potencialidades turísticas do patrimônio arquitetônico rural e
urbano, ressaltando a importância da sua conservação enquanto
bem histórico-cultural, além das novas oportunidades de inserção
socioeconômica que promovem o ressurgimento do município e
contribui para a valorização dos saberes e fazeres.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
533
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Horácio de. Brejo de Areia: Memórias de um Município. Rio de
Janeiro: MEC, 1958.
ANDRADE, Martinho Alves de. Serraria, a Princesa do Brejo Paraibano.
Cidades: História e Cotidiano. Disponível em: http://martinhoalves.
blogspot.com/2009/06/serraria-princesa-do-brejo-paraibano.html.
CAVALCANTE, Carla Delania Monteiro. Os engenhos de açúcar como
espaços de educação não formal no ensino de química. Monograa
(Química), Universidade Federal da Paraíba, Areia, 2019.
CÔRTES, Aline Soares; VALE, Marilia Maria Brasileiro Teixeira. As inexões
entre a conservação do patrimônio cultural e a sustentabilidade: um
estudo sobre as capelas rurais do triângulo mineiro e alto Paranaíba.
Revista Projetar, v. 6, n. 2, 2021.
COSTA, José Nunes da. Serraria a Princesa do Brejo. Multimagem: João
Pessoa, 1997.
CIAM — CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA MODERNA. Carta
de Atenas: Atenas, 1933.
CIOLAC, Ramona; ADAMOV, Tabita; IANCU, Tiberiu; POPESCU, Gabriela;
LILE, Ramona; RUJESCU, Ciprian; MARIN, Diana. Agritourism-A
Sustainable Development Factor for Improving the ‘Health’ of Rural
Settlements. Case Study Apuseni Mountains Area. Sustainability, v.11,
p.1-24, 2019.
CUNHA, Licínio. Avaliação do Potencial Turístico. Cogitur: Journal of
Tourism Studies, Évora, v.1, p. 21-40, 2008.
FIGUEIREDO, Silvio Lima; NÓBREGA, Wilker; BAHÍA, Mirleide Chaar; PIANI,
Auda. Planicación y gestión de las visitas al patrimonio natural y cultural
y a los atractivos turísticos. Estudios y Perspectivas en Turismo, v. 21, p.
355-371, 2012.
FRANCO, José Luiz de Andrade. Patrimônio Cultural e Natural, direitos
humanos e direitos da natureza. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; CUREAU,
Sandra. (Org.). Bens Culturais e Direitos Humanos. São Paulo: Edições
Sesc, 2015, p. 155-184.
GALVÃO, Suênia de Fátima Silva. Interfaces cultural, política
organizacional do projeto “Caminhos do Frio - Rota Cultural” no
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
534
contexto da regionalização do turismo no Brejo Paraibano. Dissertação
(Turismo), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.
IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades.
Serraria-PB. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/
serraria/panorama.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 7. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2013.
LUZ, Jéssica Becker da; FARIÑA, Luciana Oliveira de; FONTANA, Rosislene
de Fatima. O potencial turístico das agroindústrias no meio rural do
município de Cascavel/PR, Brasil. International Journal of Development
Research, v. 10, n. 12, p. 43008-43011, 2020.
KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do Ferro e Arquitetura Ferroviária
em São Paulo. São Paulo: Ateliê Editorial, Fapesp, Secretaria da Cultura,
1998.
RIBEIRO, Halley Dayane dos Santos. Rancho Nova Vida: um
empreendimento rural de agroturismo gerador de desenvolvimento local.
Monograa (Agronomia), Universidade Federal da Paraíba, Areia, 2017
RODRIGUES, Gelze Serrat de Souza Campos. A trajetória da cana-de-
açúcar no Brasil [recurso eletrônico]: perspectivas geográca, histórica
e ambiental / Gelze Serrat de Souza Campos Rodrigues, Jurandyr Luciano
Sanches Ross. Uberlândia: EDUFU, 2020.
ROLIM, Eliana de Souza. Patrimônio histórico, memória, história
e construção de saberes. In: XXVII Simpósio Nacional de História,
2013, Natal. Anais [...]. Natal: ANPUH, 2013. Disponível em: https://
www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371265630_ARQUIVO_
ArtigoXXVIISimposioNacionalversaonal.pdf.
SALES, Luiz Ricardo. A Integração das Construções Rurais no Brejo
Paraibano. Dissertação (Engenharia Agrícola), Universidade Federal de
Campina Grande, Campina Grande, 2020.
SANTOS, Cristiano Domingos dos. Patrimônio Histórico e Cultural
de Serraria. Monograa (História), Universidade Estadual da Paraíba,
Guarabira, 2015.
SILVA, Wallyson Klebson de Medeiros; OLIVEIRA, Alunilda Janúncio de;
SILVA, Kardelan Arteiro da. Turismo e Desenvolvimento regional: o Brejo
Paraibano como Destino Turístico. Revista FSA, v.15, n.1, p.104-123, 2018
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
535
SILVA, Jakeline de Souza. Potencialidades Turísticas do município de
Serraria-PB. Monograa (Geograa), Universidade Estadual da Paraíba,
Guarabira, 2013.
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em
cidades. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
VIANA, Mirella Oliveira. Análises físico-químicas de rapaduras produzidas
em Areia-PB. Monograa (Química), Universidade Federal da Paraíba,
Areia, 2020.
ZANIRATO, Sílvia Helena. Patrimônio Cultural e Sustentabilidade: uma
associação plausível? Revista Conuências Culturais, v. 5, n. 2, 2016.
ARQUITETURA FRANCISCANA
NA PARAHYBA COLONIAL: O
CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO
COMO EXPOENTE PATRIMONIAL
DE POTENCIAL CULTURAL
Ivan Cavalcanti Filho1
Laís Maria Rocha Bezerra2
Mariana Dutra de Lucena3
Antecedentes históricos
Ao remeter à História do Brasil, notadamente ao seu
descobrimento, verica-se que os franciscanos foram os primeiros
religiosos a aportar na antiga Terra de Vera Cruz (FONSECA,
1988), já que integravam a expedição lusitana destinada à Índia que,
acidentalmente atracara em Porto Seguro, na Bahia. Entretanto,
1 Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba
(1980), mestrado em Urban Development Planning - University College, London (1991),
e doutorado (PhD) em História da Arte - Oxford Brookes University, Oxford (2009). É
professor Associado IV da Universidade Federal da Paraíba, com experiência na área
de Arquitetura e Urbanismo, notadamente em Teoria e História da Arquitetura. E-mail:
icavalcantilho@yahoo.com.br
2 Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: lais.bezerra@academico.ufpb.br
3 Estudante da Universidade Federal da Paraíba de Arquitetura e Urbanismo. E-mail:
mariana.dutra@academico.ufpb.br
536
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
537
só após oitenta e cinco anos, eles aportariam de forma ocial no
território. Segundo Rower (1942), Jorge de Albuquerque Coelho,
donatário interessado no desenvolvimento econômico e religioso
da Capitania de Pernambuco, deu os passos necessários para que os
franciscanos fundassem uma missão no Brasil. Por meio do Decreto
de 13 de março de 1584, o Padre Geral da Ordem franciscana
instituiu em Portugal a Custódia de Santo Antônio do Brasil, a qual
conferia ao superior, Frei Melquior de Santa Catarina, autorização
e a licença para fundar conventos onde lhe parecesse oportuno na
colônia.
Na Parahyba, os franciscanos chegaram em 1589, atendendo
a um pedido da população local, desejosa por uma assistência
religiosa mais ecaz, especicamente na cidade de Nossa Senhora
das Neves, sede da capitania. Nela iniciaram no ano seguinte sua
quarta casa religiosa na colônia, o convento de Santo Antônio da
Parahyba (BURITY, 1988).
Corria o ano de 1589 quando o governador Frutuoso Barbosa, a Camara
e o pôvo da Paraíba, (1) à maneira do que fez o da Bahia e Iguarassú,
pediram a fundação de uma casa de religiosos franciscanos que se
encarregassem da conversão do gentio e da manutenção do culto
nesta cidade (BARBOSA, 1953, p. 29).
Ainda, segundo Barbosa (1953), o lugar ideal para a edicação
do convento, de acordo com as necessidades da catequese e dos
ofícios religiosos, Frei Melchior encontrou num sítio ao nordeste
da cidade, numa área que não cava inteiramente dentro, nem
totalmente fora dela. Apesar da abundância de madeira para
construção, pedra calcária e excelente água no sítio escolhido, as
condições para iniciar a construção foram dicultadas pela carência
de frades, sempre ocupados com as demandas catequéticas. Assim,
atendendo à solicitação do superior local, Frei Antônio do Campo
Mayor, juntamente com outros religiosos vieram de Olinda à
Paraíba a m de executarem a construção do convento. Com ele,
outro frade, Frei Francisco dos Santos assumiria a responsabilidade
da construção, e delinearia a planta do edifício, o qual foi executado
de maneira provisória até 1591 (BARBOSA, 1953).
Assim, por ter sido executado em um ano, e com poucos recursos,
o convento precisou ser reedicado, a m de obter um caráter
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
538
permanente. No entanto, a data em que recomeçaram os trabalhos
é ignorada, cando a imprecisão no intervalo entre os anos de
1591 e 1639, quando, em decorrência da ocupação da Capitania da
Parahyba pelos holandeses, os trabalhos foram interrompidos com
a evasão dos frades (BARBOSA, 1953).
De acordo com Burity (1988), a invasão holandesa na Paraíba foi
o mais trágico acontecimento socioeconômico da época, trazendo
consequências diretas à organização administrativa da capitania, e
também à Ordem franciscana. A primeira tentativa de ocupação
ocorreu em 1631, mas a defesa da Paraíba conseguiu conter os
invasores. A segunda, no entanto, ocorrida três anos depois, teve
êxito, quando os batavos, sob o comando do General Sigismundo
Van Schokoppe, tomaram o forte de Santa Catarina em Cabedelo, e
dominaram toda a Capitania.
Apenas em 1656, dezessete anos sem benfeitorias no convento,
as obras tiveram continuidade com o guardião Frei Manuel dos
Martírios, sendo seguidas por outras importantes realizações. Frei
Jaboatão (1858) destaca que a igreja conventual foi consagrada pelo
Bispo José Fialho em 1734. Sua fachada, entretanto, só seria nalizada
em 1779, conforme inscrição em baixo relevo na cantaria do seu
frontispício (BARBOSA, 1953). O último quartel do século XVIII
marca a conclusão de outros conventos franciscanos localizados no
Nordeste do Brasil, que, como o cenóbio paraibano, impactaram
a organização social, política e religiosa da região. O pesquisador
francês Germain Bazin (1983) foi o pioneiro a registrar os aludidos
conventos que, em número de treze, apresentaram características
morfológicas semelhantes, constituindo, segundo o autor, uma
verdadeira escola de construtores pertencentes à Ordem.
Organização espacial do convento franciscano
Com relação à sua morfologia, os conventos franciscanos do
Nordeste do Brasil eram muito próximos, conforme alude o autor
francês:
Todo o prédio do convento está reunido em volta do claustro, de um
lado da igreja, geralmente à esquerda (Olinda, João Pessoa, Serinhaém,
Igarassu, Penedo, Marechal Deodoro, Salvador) mas às vezes à direita
(Ipojuca, Paraguaçu). [...] A portaria, que dava para o claustro, sempre
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
539
se localizava perto da igreja; era vizinha do parlatório e continha um
altar; o mirante, ou belveder, era uma construção mais alta, com
grandes janelas (e às vezes, como na Idade Média, tinha bancos de
pedra) para permitir aos monges o relaxamento na contemplação da
natureza (BAZIN, 1983, p. 141).
No caso do convento franciscano da Paraíba, objeto do presente
trabalho, assim como nos seus pares, o claustro constitui o núcleo
para o qual convergem quase todos os espaços conventuais, os quais
são identicados como segue: o adro, o campanário recuado, a galilé,
a nave da igreja conventual, a capela-mor, o coro alto, a sacristia, as
vias sacras, o claustro, a Capela do Capítulo, a Capela da Ordem
Terceira e a Casa de Exercícios da Ordem Terceira (Figura 01).
Figura 01: Convento de Santo Antônio da Paraíba - Planta baixa
Fonte: IPHAN/20ª SR - João Pessoa, PB. Editada pelos autores sobre edição Cavalcanti Filho
(2009)
(1) Adro - Anterior ao conjunto edicado e posterior ao cruzeiro
– estrutura em forma de cruz sobre pedestal monumental com a
função de sinalizador da presença franciscana na cidade – o adro do
convento da Paraíba tem formato trapezoidal, e serve de espaço de
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
540
intermediação entre o profano (urbe) e o sagrado (igreja). Segundo
Burity (1988), sua extensão corresponde à altura exata do templo,
partindo-se da soleira ao ponto mais elevado da torre,
(2) Campanário - A torre única recuada possui planta quadrada
e revestimento de azulejos nas cores azul e branco, com janelas em
arco pleno e cunhais de pedra nos vértices, coroados com pináculos
e bulbo de arestas. Os azulejos que a revestem apresentam a data
de 1783, e o bulbo é encimado por um galo de folha metálica que
indica a direção dos ventos (BURITY, 1988).
(3) Galilé - A galilé se constitui como um pórtico anterior à nave
da igreja, aparecendo em todos os conventos da Ordem, sendo
posteriormente adotado nos cenóbios beneditinos (BAZIN, 1983).
O espaço funciona como um ambiente de proteção para a portada
da igreja.
(4) Nave - A nave possui formato retangular; é destinada à oração
e à realização das cerimônias litúrgicas (Fig. 02) Apresenta capela-
mor (5), o espaço mais sagrado da igreja, a ela acoplado, onde cava
localizado o altar-mor. Seu forro abobadado apresenta pinturas a
óleo sobre madeira com os milagres do padroeiro, Santo Antônio.
Situado na extremidade oposta ao presbitério, no pavimento
superior, o Coro Alto (6) era uma espécie de mezanino dotado de
cadeiral destinado aos coristas para a realização dos cânticos e a
recitação do Ofício Divino.
Figura 02: Nave da igreja com vista da capela-mor.
Fonte: Acervo dos autores (2023)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
541
(7) Sacristia - Localizada por trás da capela mor, era o espaço
onde os religiosos se organizavam para celebrar a missa. As vias
sacras (8) são os corredores laterais à capela-mor, por onde passavam
os religiosos em procissão antes e depois das cerimônias litúrgicas.
(9) Claustro – Disposto como pátio central aberto, o claustro
representa o núcleo principal do convento, espaço destinado ao
trabalho, e à moradia dos frades no pavimento superior.
O claustro de João Pessoa, no qual se trabalhava por volta de 1720-
1730, mostra um enriquecimento de formas. No cunhal entre a coluna
embutida e o núcleo quadrado, existe a interposição de uma pilastra
de apoio: o capitel combina com todos os ressaltos dessa forma
complexa. O tímpano triangular, entre as arcadas, possui uma faixa
em relevo saliente. A parte lisa da parede, entre a faixa divisória e a
moldura de apoio das colunas altas, está adornada com um friso de
azulejos decorativos. A faixa de apoio das colunas altas tem cornijas
com vários ressaltos (BAZIN, 1983, p. 146).
(10) Capela do Capítulo – Situada na parte térrea do claustro, a sala
era destinada às reuniões da comunidade dos frades: congregações
e capítulos. Já a Capela da Ordem Terceira (11) ca perpendicular à
nave da igreja, sendo destinada aos irmãos leigos (Figura 03). Está
separada da nave por uma arcada em talha de madeira, e elaborada
no mesmo diapasão da igreja: com três altares trabalhados na talha
dourada, denidos por colunas retorcidas (BARBOSA, 1953).
Figura 03: Capela da Ordem Terceira da Penitência
Fonte: Acervo dos autores (2023)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
542
(12) Casa dos Exercícios – Espaço de oração vinculado à capela
da Ordem Terceira, onde os noviços eram treinados para o ingresso
na confraternidade dos leigos (Figura 04). Apresenta três altares
com colunas em espiral e talha dourada e policromada (BARBOSA,
1953). Seu forro em madeira apresenta pintura ilusionista alusiva ao
temário da Ordem.
Figura 04: Casa de Exercícios da Ordem Terceira da Penitência
Fonte: Acervo dos autores (2023)
Uma vez caracterizados os espaços que compõem o monumento
religioso em questão, cumpre destacar sua forma arquitetônica, sua
ornamentação e seu esplendor artístico, que tornam o conjunto um
dos mais requintados do Brasil, mormente os espaços destinados
ao louvor, como a nave com capela-mor, o coro alto, a sacristia, a
capela do capítulo e o claustro (IPHAN, 1978).
Forma arquitetônica, ornamentação e arte
De acordo com Nóbrega (1974), num contexto de Contra-
Reforma, os franciscanos usaram a arte como ferramenta básica
para atrair éis para seus espaços, consoante as recomendações
tridentinas. Nesse sentido, a forma elaborada, a na ornamentação
e a rica imaginária se somavam numa desenfreada competição
estética, imaginativa e exuberante (BURITY, 1988).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
543
A arte religiosa barroca, em confraternização com o mundo, expressa
a característica fundamental do franciscanismo, qual seja a sua íntima
ligação com Deus irmanado ao homem, aos animais, à natureza e
a todos aqueles elementos que exaltam a glória do Criador (BURITY,
1988, p. 70).
Nesse sentido, segundo Fonseca (1975), os conventos
franciscanos, tomando por base a sua própria losoa humanista,
não podem ser considerados de forma isolada. Até os frontispícios
das suas igrejas, precedidos por seus cruzeiros, apesar de diferentes,
compreendem, de maneira geral, elementos formais que sugerem
uma unidade. No caso do cenóbio paraibano, o imponente
monumento, erguido anteriormente ao adro, anuncia a hegemonia
da Igreja Católica e a devoção dos franciscanos à Paixão de Cristo
(Figura 05). Feito de pedra calcárea, e sobre pedestal, a cruz tem à
sua volta uma coroa de esculturas em forma de pelicano, e quatro
águias bicéfalas (BURITY, 1988).
Figura 05: Vista geral do cruzeiro
Fonte: Acervo dos autores (2023)
O espaçoso adro do convento, como já foi mencionado na
seção anterior, é anqueado por dois muros com revestimento
em azulejo português nas cores azul e branca, apresentando
seis nichos simetricamente dispostos de cada lado, onde são
representadas cenas da Paixão, já em estado de conservação crítico
em 1988, quando relatado por Burity. Nos citados muros, nas suas
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
544
extremidades anteriores, se elevam dois majestosos leões de Fô, que,
na mitologia indochinesa, representam guardiães de palácios, uma
clara demonstração das inuências orientais trazidas por missões
franciscanas já espraiadas pelo mundo (Figuras 06, 07).
Considerando o frontispício, sua estrutura possui forma de
retábulo com alçado triplo. O inferior apresenta cinco aberturas em
arco pleno que dão acesso à galilé. O intermediário corresponde ao
coro alto, destacando as três janelas com balaustradas em pedra, e o
superior é demarcado por frontão coroado por uma cruz (Figura 08).
De acordo com Cavalcanti Filho (2009), a perspectiva da frontaria
enriquecida com a torre sineira recuada (já citada), empresta o
arremate nal do modelo franciscano nordestino aludido por Bazin
(Figura 09).
Figura 08: Frontispício da igreja Figura 09:Torre sineira
Fonte: Acervo dos autores (2023) Fonte: Acervo dos autores (2023)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
545
Delimitada ao sul por cinco portentosos arcos romanos
guarnecidos de gradis em jacarandá, a galilé unica os acessos à
igreja, ao convento e às instalações da Ordem Terceira. O espaço
apresenta rigor artístico nos relevos em arenito constantes na rica
portada da igreja. Burity (1988) exalta os motivos ali explorados,
como a Cruz de Malta, folhagens, frutos tropicais, com especial
destaque para o caju, e elementos geométricos (Figura 10).
Figura 10: Vista externa da galilé
Fonte: Acervo dos autores (2023)
Na nave única da igreja, um dos seus pontos altos (no sentido
literal da palavra) é a pintura ilusionista que recobre seu forro. De
autoria desconhecida, São Francisco de Assis é ali representado em
grandioso painel pintado a óleo onde o patriarca da Ordem, sob a
supremacia da Imaculada Conceição, irradia a fé franciscana aos
quatro continentes então conhecidos: América, Europa, Ásia e África
(Figura 11). Os anjos querubins, os serans e os arcanjos compõem
o magníco painel perspectivado onde elementos arquitetônicos
constantes no seu perímetro apontam para as sobreditas imagens
como pontos de fuga.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
546
Figura 11: Forro da nave da igreja
Fonte: Acervo dos autores (2023)
A capela-mor da Igreja de S. Antônio, junto com seu arco cruzeiro,
devido à má conservação ao longo dos anos, foram criminosamente
desmontados no início do século XX, constituindo uma perda
irreparável do patrimônio artístico da Paraíba e do Brasil (Figura
12). Apenas os altares colaterais foram preservados, apesar de serem
indevidamente recobertos com pintura sobre sua douração (Figura
13).
Figura l2: Vista geral original da nave e capela mor Figura 13: Vista atual da nave e Capela
Fonte: Fotograa s/autoria exposta na capela-mor Fonte: Acervo dos autores (2023)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
547
Ainda com referência ao legado do monumento, Bazin (1983)
exalta o rigor artístico da já mencionada Capela de Ordem Terceira.
Seu altar-mor é dedicado às chagas de São Francisco, o do Evangelho
à N. S. do Ó, e aquele do lado da Epístola a São Luiz, rei de França
(Fig. 14).
Frente ao púlpito, no coração do templo, abre-se a Capela Dourada e
que bem poderíamos chamar Capela Eucarística - dada a profusão de
símbolos relativos a Eucaristia - o sacrário, a Ceia Larga, os pelicanos -
riquíssima sala de oração, onde o barroco franciscano pompeia em sua
magna suntuosidade (NÓBREGA, 1974, P. 119)
Figura 14: Decoração em talha dourada e policromada
Fonte: Acervo dos autores (2023)
A Casa de Exercícios dos Terceiros igualmente apresenta
rigor artístico na talha dourada. O altar principal é dedicado ao
Crucicado (em tamanho natural), e os dois colaterais dedicados
à N.S. da Conceição (lado do Evangelho) e à S. Joaquim (lado da
Epístola). No meio da capela, há uma cripta subterrânea acessada
por escadaria em pedra (BAZIN, 1983).
Formado de um lado pela igreja, e pelos outros três, por
diferentes espaços do convento, o claustro, delimitado por galerias
com arcadas e colunas de ordem toscana, também se congura
como espaço tratado com rigor artístico, sobretudo por acolher
procissões internas da comunidade dos frades. A quadra claustral
apresenta dois pavimentos, tendo suas respectivas frontarias
separadas por estreita faixa de azulejos gurativos (Figura 15).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
548
As paredes das galerias do térreo também são ornamentadas com
azulejos gurativos tipo tapete (Figura 16).
Figura 15: Claustro do convento
Figura 16: Azulejos gurativos no claustro inferior
Fonte: Acervo dos autores (2023)
Fonte: Acervo dos autores (2023)
Convento de Santo Antônio: patrimônio com
potencial cultural
Com uso secular, a igreja e convento Santo Antônio que outrora
serviu às atividades religiosas da cidade, funciona hoje como
centro cultural, resultando da obra de restauração executada pelo
Governo de Estado, através da Fundação Cultural do Estado da
Paraíba (FUNCEP), com a orientação técnica da Subsecretaria
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Fundação PRÓ-
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
549
MEMÓRIA, fator que assegura de forma inconteste sua preservação
(BURITY, 1988).
Espaços como o adro, a nave da igreja, a capela da Ordem
Terceira, a Casa de Exercícios da Ordem Terceira, a via sacra da
Epístola, o claustro inferior e seu pavimento superior (antigas
celas) servem atualmente a atividades culturais diversas. O adro
é eventualmente utilizado para apresentações teatrais, a exemplo
da Paixão de Cristo na Semana Santa, enquanto a nave da igreja
conventual acolhe apresentações musicais, a exemplo da Orquestra
Sinfônica Municipal, que nela se apresenta mensalmente (Figuras
17, 18).
Na capela da Ordem Terceira ocinas de desenho têm sido
desenvolvidas como atividades integrantes de simpósios e
congressos ligados às artes e à arquitetura, a exemplo do Urbicentros,
evento promovido pela UFPB, realizado em agosto de 2003. A Casa
de Exercícios dos Terceiros tem sido igualmente utilizada como
auditório para apresentação de trabalhos acadêmicos em eventos
culturais, além de ainda acolher cerimônias litúrgicas como missas
e casamentos (Figuras 19, 20).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
550
Atualmente a via sacra do lado da Epístola acomoda exposições
de artes visuais (pinturas, esculturas, desenhos). O claustro inferior
(pátio) é utilizado para apresentações musicais, peças teatrais e
saraus poéticos (Figuras 21, 22). O pavimento superior, onde eram
localizadas as celas dos religiosos, funcionam hoje como salas de
exposição do Museu de Arte Sacra e Arte Popular.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
551
Considerações nais
A trajetória do convento de Santo Antônio da Paraíba, atual
João Pessoa, desde sua fundação em 1589 até sua consolidação
como ícone arquitetônico colonial, destaca-se não apenas como
patrimônio eclesiástico de época, mas também como um elemento
vital na formação histórica e cultural da urbe. Ao longo de dois
séculos, o convento passou por transformações que o dignicaram
num patamar de requinte e importância, reetindo não apenas a
devoção a Santo Antônio, mas também as inuências tridentinas
que moldaram sua exuberante estrutura.
O presente ensaio buscou não apenas reconhecer a relevância
histórica e arquitetônica do convento, mas também ressaltar sua
potencialidade como centro cultural contemporâneo, o que assegura
sua preservação e utilização para as gerações futuras. A análise
detalhada dos espaços sagrados, sua disposição e ornamentação,
fundamentada numa cuidadosa revisão da literatura e num bom
levantamento fotográco, possibilitou uma melhor compreensão
do monumento.
Nesse sentido, o convento franciscano da Paraíba, emerge
não apenas como um tesouro arquitetônico, mas como um elo
entre o passado e o presente, conectando a rica herança cultural
colonial com as possibilidades contemporâneas de preservação e
revitalização, e reforçando a importância de reconhecer e valorizar
o patrimônio histórico, não apenas como testemunho do passado,
mas como fonte de inspiração e enriquecimento cultural para o
futuro.
Referências
BARBOSA, Florentino. Monumentos Históricos e Artísticos da Paraíba.
João Pessoa: A UNIÃO Editora,1953.
BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Tradução
Glória Lúcia Nunes. Rio de Janeiro: Editora Record,1983.
BURITY, Glauce. A Presença dos Franciscanos na Paraíba Através do
Convento de Santo Antônio. Rio de Janeiro: Bloch Editores,1988.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
552
CAVALCANTI FILHO, Ivan. The Franciscan Convents of Northeast Brazil:
Function and design in a colonial context 1585-1822. 2009. 265 f. Tese
(Doutorado em Arquitetura) - School of Arts and Humanities, Oxford
Brookes University, Oxford.
Centro Cultural São Francisco. [Ocina “Desenhar para ver”]. João Pessoa,
9 mar. 2023. Instagram: centroculturalsaofrancisco. Disponível em: https://
www.instagram.com/p/Cpka3dZp7yh/?igsh=MWx5ZXcwYjg4MGFwaQ==
Acesso em: 28 nov. 2023.
Centro Cultural São Francisco. [Sarau Poético no claustro]. João Pessoa,
30 set. 2023. Instagram: centroculturalsaofrancisco. Disponível em: https://
www.instagram.com/p/Cx1EeVZJl4F/?igsh=b2Y1c3Q3MmdmcG1m.
Acesso em: 28 nov. 2023.
Centro Cultural São Francisco [Exposição de Arte na via sacra]. João Pessoa,
27 abr. 2023. Instagram: centroculturalsaofrancisco Disponível em: https://
www.instagram.com/p/Cc31GL3LXnk/?igsh=d2R0eDVhMmRndmdq
Acesso em: 12 jan. 2024.
FONSECA, Fernando. O Convento de São Francisco do Conde. Salvador:
Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, 1975.
FONSECA, Fernando. Santo Antônio do Paraguaçu e o Convento de São
Francisco do Conde. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1988.
IPHAN. Livro dos guardiães do Convento de São Francisco da Bahia. Rio
de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1978.
JABOATÃO, Frei Antonio de S Maria. Novo Orbe Seráco Brasílico ou
Crônica dos Frades Menores da Província de Santo Antônio do Brasil.
Rio de Janeiro: Impresa Nacional, 1858.
NÓBREGA, Humberto. Arte Colonial da Paraíba. João Pessoa: Imprensa
da UFPB, 1974.
Orquestra Sinfônica apresenta obras de Mozart e Haydn nesta sexta-
feira. Disponível em: <https://www.joaopessoa.pb.gov.br/noticias/
orquestra-sinfonica-apresenta-obras-de-mozart-e-haydn-nesta-sexta-
feira/>. Acesso em: 28 nov. 2023.
Paixão de Cristo tem última apresentação neste domingo e se consolida
no calendário cultural de João Pessoa. Disponível em: <https://www.
joaopessoa.pb.gov.br/noticias/secretarias-e-orgaos/funjope-noticias/
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
553
paixao-de-cristo-tem-ultima-apresentacao-e-se-consolida-no-calendario-
cultural-de-joao-pessoa/>. Acesso em: 28 nov. 2023.
Plataforma Urbicentros. [Mesa temática: moradia_sempre]. João
Pessoa. 21 jul. 2023. Instagram: urbicentros. Disponível em: https://www.
instagram.com/p/Cu9Gj4HqP0m/?igsh=azJ4N3M1dHN4aGl2. Acesso em:
28 nov. 2023.
ROWER, Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Vozes
LTDA, 1942.
COMPLEJO AUDIOVISUAL
IGLESIA DE PIRIA, PIRIÁPOLIS,
URUGUAY: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A ELABORAÇÃO DE UMA
PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
EM UMA PREEXISTÊNCIA DE
INTERESSE CULTURAL1
Marcela da Rosa Dias2
Aline Montagna da Silveira3
Larissa Mörschbächer4
1 O presente trabalho consiste em uma releitura dos procedimentos realizados
no trabalho intitulado “Complejo Audiovisual Iglesia de Piria”, requisito parcial
para a obtenção do título de Arquiteta e Urbanista na Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal de Pelotas desenvolvido pela autora principal do texto (DIAS,
2022).
2 Arquiteta e Urbanista (FAUrb/UFPel). Pesquisadora Colaboradora do Núcleo de
Estudos de Arquitetura Brasileira (UFPel). E-mail: marcelar.dias@outlook.com
3 Doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP). Professora Associada do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAUrb/FAUrb/UFPel) e do Programa
de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU/UFPel). Coordenadora
do Núcleo de Estudos de Arquitetura Brasileira (UFPel) e Coordenadora Adjunta do
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU/UFPel). E-mail:
alinemontagna@yahoo.com.br
4 Mestra em Arquitetura e Urbanismo (FAUrb/UFPel). Pesquisadora Colaboradora do
Núcleo de Estudos de Arquitetura Brasileira (UFPel). E-mail: larissa.morschbacher@
gmail.com
554
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
555
Introdução
O campo disciplinar do restauro objetiva discutir a forma como
atuar em obras reconhecidas por seu valor artístico, documental e
cultural (KÜHL, 2017). Na sua concepção, o termo restauro está
centrado na ideia de Monumento Histórico, cujo processo de
valoração parte de uma análise pictórica, reconhecendo o valor
cognitivo e artístico no bem em questão (CHOAY, 2011). A partir
do século XX, essas formas simbólicas também passam a ser
reconhecidas como objeto losóco e social (RIEGL, 2014) e, desde
então, a problemática da fruição do sujeito em relação ao objeto
tornou-se um dos aspectos centrais do campo.
Ao longo dos séculos XX e XXI, pesquisadores têm desenvolvido
estudos e teorias abordando o tema (BRANDI, 2004; CARBONARA,
2014). Além disso, organizações internacionais e iniciativas públicas
nacionais têm elaborado documentos com resoluções e orientações
para a atuação em edicações (ICOMOS, 1964; IPHAN, 2018).
Neste debate, observa-se uma crescente problematização sobre a
importância do uso social e o engajamento comunitário em relação
a espaços de interesse comum (MENESES, 2017).
Sob essa perspectiva, o objetivo da pesquisa consiste em analisar
a elaboração de uma proposta de intervenção a partir da revisão
crítica dos elementos e procedimentos adotados. Para atender a
esta nalidade, utiliza-se como objeto de estudo de caso o Complejo
Audiovisual: Iglesia de Piria. A edicação localizada na cidade
de Piriápolis, no Uruguai, encontra-se em um estado avançado
de deterioração, no entanto, mantém preservada a sua unidade
potencial, passível de ser adaptada a um novo uso.
A relevância do estudo reside na necessidade de impulsionar
debates em torno da atuação em bens reconhecidos como de
interesse cultural, considerando tanto aspectos materiais quanto
imateriais, e trazendo à tona discussões contemporâneas sobre
intervenções nesses bens. O método de abordagem adotado para a
estruturação do presente texto é desenvolvido a partir da descrição
e análise das etapas de desenvolvimento da proposta, cotejando o
referencial teórico, abordagem metodológica e soluções projetuais.
Por meio da reexão prática, o trabalho busca contribuir para as
questões contemporâneas relacionadas às intervenções em bens
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
556
de interesse cultural, servindo como suporte para os debates que
permeiam o campo da preservação patrimonial.
Estudo de Caso: Leitura do Contexto e
Construção do Programa
A Iglesia de Piria localiza-se em Piriápolis, no Departamento
de Maldonado, Uruguai (Figura 1). Esta cidade, situada em região
litorânea, recebe um número signicativo de visitantes durante
o período de verão, chegando a duplicar a população local (INE,
2011). Dessa forma, o turismo é a sua principal atividade econômica.
O município também é sede de diversos festivais, dentre os quais
destaca-se o Festival Internacional Piriápolis de Película (2022)
voltado ao audiovisual. No âmbito educacional, destaca-se o polo
da Universidade da República, que oferta o curso de Bacharelado em
Linguagens e Mídias Audiovisuais.
Figura 1 - Localização da Cidade de Piriápolis
Fonte: Adaptação de Uruguay Digital (DIAS, 2022)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
557
Apesar do ambiente socioeconômico favorável à realização de
eventos culturais, constatou-se, por meio de pesquisas em notícias
de jornais, manifestações em redes sociais e pelo próprio estudo
do contexto, uma demanda por mais espaços de uso cultural
(LA PRENSA, 2020). Adicionalmente, observa-se uma demanda
especíca por ambientes fechados devido às condições climáticas
predominantes na cidade, caracterizadas pela frequência de dias
chuvosos (METEOBLUE, 2006).
O bairro no qual a igreja está inserida, Pueblo Obrero, é composto
por uma arquitetura predominantemente residencial, de baixa
densidade, e apresenta uma elevada quantidade de áreas verdes e
vazios urbanos. Dentro deste contexto, a preexistência da igreja
constitui um marco visual no bairro, destacando-se na paisagem
(Figura 2).
Figura 2 - Imagem Aérea de Pueblo Obrero, Piriápolis
Fonte: Adaptação de IDEUY (DIAS, 2024)
A edicação, atualmente em estado avançado de degradação,
teve sua construção iniciada em 1914. Enquanto a estrutura externa
foi concluída em 1933, o interior permaneceu inacabado, nunca
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
558
sendo utilizado para nalidade religiosa ou qualquer outra. Sua
implantação ocupa metade do quarteirão no qual está inserida,
sendo uma de suas faces voltada para uma das principais vias
arteriais de acesso à cidade. Quanto à forma do edifício religioso,
esta é caracterizada por uma única nave central com estilo eclético,
incorporando elementos neogóticos e neoromânicos (Figura 3).
Figura 3 - Registros Fotográcos da Iglesia de Piria
Fonte: Acervo da autora (DIAS, 2022)
Embora não haja proteção legal para o bem a nível municipal,
departamental ou nacional, a preocupação com sua degradação e
desuso e a visualização de suas potencialidades são identicadas
através de documentários e reportagens em jornais locais
(CIUDADANO PIRIA, 2015; LA PRENSA, 2020). Nessas
manifestações, são destacadas tanto as potencialidades voltadas
ao turismo da região quanto a oferta cultural e histórica para os
próprios habitantes da cidade.
O deslocamento do centro de interesse do Monumento Histórico,
ligado à história e à obra de arte, para o patrimônio urbano,
paisagístico e cultural (SANT’ANNA, 2015) e, ainda, interesses
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
559
estratégicos, evidencia a necessidade de maior articulação entre a
obra reconhecida e as dinâmicas sociais que nela se dão. Dessa forma,
além do respeito artístico e histórico, uma arquitetura qualicada
também deve articular as diferentes demandas que se inserem sobre
o bem, tais como utilitas, rmitas, venustas, legislativas, econômicas
e outras (CARBONARA, 2014).
A Política de Patrimônio Cultural Material consiste em um
conjunto de normativas apresentadas por meio de um documento
brasileiro consolidado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN, 2018). Tais normativas têm como
objetivo guiar as ações de identicação e preservação de obras
reconhecidas como de interesse coletivo a partir de um compromisso
com o diálogo e a participação social.
Dentre suas resoluções, destaca-se o Princípio do Direito à Cidade.
De acordo com ele, “todos têm direito a um ambiente urbano que
garanta o usufruto da estrutura, dos serviços, equipamentos e
espaços públicos e comunitários da cidade de forma equânime e
inclusiva” (IPHAN, 2018, p. 10). Ainda, destaca-se o Princípio do
Desenvolvimento Sustentável, no qual “a geração atual deve ser
capaz de suprir suas necessidades, sem comprometer a capacidade
de atender às necessidades das futuras gerações” (IPHAN, 2018, p.
10).
Por se tratar de uma resolução brasileira, o documento não
tem validade no Uruguai. No entanto, por suas contribuições
possibilitarem apoio reexivo, bem como por se tratar de um
trabalho acadêmico que atesta as competências da autora para atuar
no Brasil, o documento foi utilizado como suporte para a proposta
projetual que propõe a reutilização da edicação como o Complejo
Audiovisual: Iglesia de Piria.
Com vistas aos princípios do direito à cidade e ao desenvolvimento
sustentável, a construção do programa para o complexo audiovisual
levou em consideração as demandas sociais identicadas no contexto
e a compatibilidade com a edicação preexistente. As demandas
contextuais, além da necessidade de espaços culturais, demonstram-
se propícias especicamente à temática do audiovisual, isso por já
terem uma cultura voltada ao tema. Para tornar o espaço propício
à utilização da comunidade local e, ao mesmo tempo, atrativo para
os turistas, foram propostos usos relacionados a ações educacionais.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
560
Em relação à compatibilidade da preexistência com o novo uso
proposto, destaca-se, primeiro, o fato da edicação ser um marco
visual na cidade e ser previamente pensada como um espaço de
encontro. Além disso, destaca-se a localização e acessos privilegiados
e a disposição da edicação no lote que permite a proposição de
atividades externas, fortalecendo a relação interior/exterior.
O conceito da proposta partiu da ideia de ressignicação da
simbologia atribuída à edicação e da sua espacialidade, através da
introdução de usos relacionados às diferentes temporalidades da
linguagem audiovisual.
Foram identicadas aproximações entre a igreja e o meio
audiovisual, como a semelhança de ambos espaços em instigar seus
frequentadores ao culto, a crítica, a reexão, ao encontro próprio
e com o outro. Para favorecer o ambiente a essas reexões e ações,
a igreja utiliza estímulos visuais através de pinturas, imagens,
adornos e efeitos de luz e sombra, assim como estímulos sonoros
presentes nas músicas e efeitos de ecos. Tais estímulos também
estão presentes em produções audiovisuais, como, por exemplo, na
fotograa e trilha sonora de um lme que despertam sentimentos
em quem com ele interage. Essas sensações da proposta original
são ressignicadas na contemporaneidade, como se observa na
fotomontagem conceitual (Figura 4).
Figura 4 - Fotomontagem Conceitual da Iglesia de Piria. Uso original da edicação (a
esquerda) e sua ressignicação na atualidade (a direita)
Fonte: Acervo da autora (DIAS, 2022)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
561
Além da ressignicação no âmbito simbólico, propõe-se a releitura
dos elementos da arquitetura. Os espaços de projeção individual
partem do conceito de retábulos, pequenas capelas de culto e
adoração, encontrados nas igrejas. A nave central, originalmente
destinada ao altar e ao espaço de culto coletivo, torna-se um
espaço comunitário e multiuso, onde projeções e apresentações
são realizadas. A espacialidade do coro é reinterpretada pelos
mezaninos. A relação de introspecção/introversão é promovida pela
contemplação interna e externa da ruína, facilitada pelos mezaninos
junto às janelas, o mirante no campanário e as estruturas expostas
no interior da construção.
O programa é composto por seis zonas: 1. geral: recepção,
banheiros e circulação; 2. administrativa: sala de administração,
copa e banheiro; 3. externa: cinema a céu aberto, cine drive, cine
bike e percurso contemplativo; 4. área técnica: gerador e depósito; 5.
educacional: ocina de atuação, ocina de animação (stop-motion),
ocina de música para o cinema, sala de informática, ocina de
edição de imagens e vídeos/criação de banners de divulgação,
sala de aula e ocina de roteiro, história e crítica do cinema; 6.
cultural: espaços expositivos, projeções individuais, sala multiuso
e apresentações/estar/projeções, acervo, salas de projeção imersiva,
sala convencional de cinema e café/bomboniére;
Assim como uma preexistência, deteriorada pela ação do
tempo, é composta por diversas camadas, que através da sua pátina
testemunham a passagem dos anos (RODRIGUES, 2017), a história
do cinema também é feita de uma série de fases (BRAGA, 2023)
que, além da sua própria evolução, corroboram com a história
dos “divertimentos populares, dos instrumentos óticos e das
pesquisas com imagens fotográcas” (COSTA, 2006, p. 17-18). A
partir disso, as camadas e a pátina do tempo encontradas na Iglesia
de Piria, inspiraram a utilização das diferentes temporalidades
da linguagem audiovisual como referência para a concepção do
programa do projeto. Foram inspiração para os espaços de projeção
individual o cinematógrafo (1895) e a realidade aumentada
(contemporaneidade). O ciné-dancing (1926), no projeto
representado pela sala de projeções, inspirou a sala multiuso, com seu
conceito livre, aberto, multifuncional e de encontro entre pessoas.
Além disso, o projeto prevê uma sala de cinema convencional
(1924), uma sala de projeções imersivas (contemporaneidade), e
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
562
um estúdio de gravação Stop-motion (1910). Na área externa, estão
localizados o cine drive (1933), o cinema a céu aberto (1916) e o
cine bike (contemporaneidade) (Figura 5). Este último consiste em
projeções itinerantes no Uruguai, e foi trazida como um uso xo
do programa do complexo (BRAGA, 2023; COSTA, 2006; CRUZ,
2021; FERNANDES, 2023; RIBEIRO, 2009).
Figura 5 - Espacialização do Programa a Partir de Imagens Referenciais das Temporalidades
da Linguagem Audiovisual
Fonte: Elaboração da autora (DIAS, 2024)5
5 Cine bike: ARCHDAILY. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/787202/
mostra-de-cinema-movida-a-energia-de-pedal-percorrera-5-cidades-brasileiras>.
Acesso em: 15 jan. 2024. Cine drive-in: FAUNO FILMES. Disponível em: <https://www.
faunolmes.com/post/como-a-hist%C3%B3ria-do-cinema-ao-ar-livre-pode-auxiliar-o-
futuro-do-audiovisual>. Acesso em: 15 jan. 2024. Ciné-dancing: ARCHDAILY. Disponível
em: <https://www.archdaily.com.br/br/891832/por-que-arquitetos-sao-tao-obcecados-
pela-obra-de-mondrian/5ab18da9f197cc7d4900007b-why-are-architects-so-
obsessed-with-piet-mondrian-photo>. Acesso em: 15 jan. 2024. Cinema a céu aberto:
ARCHDAILY. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/01-178121/cineteca-
nacional-s-xxi-slash-rojkind-arquitectos>. Acesso em: 15 jan. 2024. Cinematógrafo:
MATINAL. Disponível em: <https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/ensaio-
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
563
A Carta de Veneza (1964), formulada a partir do II Congresso
Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos,
é considerada o principal documento de preservação do ICOMOS
(KÜHL, 2010). Nela, além de ser tratada a importância da função
útil à sociedade no artigo 5º, é também abordada a compatibilidade
física do novo uso com a edicação preexistente. Utilizando o
documento como referência, a proposta buscou tirar partido das
potencialidades da conguração preexistente, evitando adaptações
invasivas que prejudicassem o bem de valor cultural.
As áreas que demandam uma maior espacialidade, abertas a um
público mais amplo, foram alocadas na nave central, previamente
também um espaço que seria destinado a receber grande público.
As atividades que exigiram adaptações maiores do espaço e/ou mais
complexas como, por exemplo, salas administrativas e de apoio, que
demandam espaços menores e salas que necessitam de isolamento
e infraestrutura acústica especíca, foram alocadas nos espaços das
galerias e anexo à edicação.
Os principais elementos que moldaram o programa incluíram
a combinação das qualidades físicas e sociais através de estudos
históricos, pesquisas das dinâmicas locais e diálogo com os
moradores. O suporte físico e simbólico da edicação foi
considerado, destacando a importância de preservar a integridade
histórica do monumento enquanto se adaptava às necessidades
contemporâneas.
A curto prazo, o programa da proposta projetual responde a
demandas imediatas identicadas, como a criação de espaços de lazer
e encontro, combinando atividades para públicos diversicados.
Além disso, a proposta também possibilita que o espaço atue como
um polo ativador, tanto para o bairro quanto para a cidade. A longo
prazo, o programa contribui para a ressignicação do Monumento
parentese/as-diversoes-opticas-na-porto-alegre-do-seculo-xix-o-cinematografo/>.
Acesso em: 15 jan. 2024. Projeção imersiva: MATINAL. Disponível em:<https://www.
matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/notas/monet-se-une-a-van-gogh-em-mostra-no-
multiverso-experience-no-cais-embarcadero/>. Acesso em: 15 jan. 2024.
Realidade aumentada: ARCHDAILY. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/
br/931809/realidade-virtual-na-arquitetura-desafios-limitacoes-e-possibilidades>.
Acesso em: 15 jan. 2024. Sala de cinema: ARCHDAILY. Disponível em: <https://www.
archdaily.com.br/br/01-178121/cineteca-nacional-s-xxi-slash-rojkind-arquitectos>.
Acesso em: 15 jan. 2024. Stop-motion: HONEYMILL. Disponível em: <https://www.
thehoneymill.com/got-milk-for-california-milk-board/>. Acesso em: 15 jan. 2024.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
564
Histórico, explorando investigações acadêmicas conduzidas por
instituições como a universidade, o Estado e a cidade.
Como desao, observa-se que, embora o estudo realizado tenha
se esforçado em produzir um programa emergente das necessidades
identicadas no contexto, a distância física e contextual dicultaram
um espaço de troca mais próximo com a comunidade, que, dentre
outras formas, poderiam ter ocorrido através da realização de
entrevistas mais sistematizadas. No entanto, tal desao não anula as
qualidades da proposta desenvolvida, que foi amplamente delineada
conforme os estudos das qualidades locais.
Considerações Finais
Embora não seja recente no discurso teórico, o debate acerca da
relevância de um uso que estimule a participação da comunidade
local assume uma posição de cada vez mais relevância, especialmente
à medida que se evidenciam os diversos interesses convergentes em
torno de um único bem cultural.
A apropriação do Complejo Audiovisual: Iglesia de Piria,
fundamentada tanto em aspectos materiais quanto imateriais,
desempenhou um papel importante na formulação de diretrizes
conceituais, na denição do programa e no desenvolvimento do
desenho do projeto. O estudo justica a necessidade de uma análise
contextual que considera ambas as esferas, material e imaterial,
na abordagem da preservação patrimonial e contribui para as
discussões teóricas sobre as intervenções em preexistências de valor
cultural.
REFERÊNCIAS
BRAGA, N. T. dos S. Cinema, cidade e arquitetura: Pelotas/RS. 2023. 154
f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
de Pelotas, 2023.
BRANDI, C. Teoria da Restauração. 4 ed. São Paulo: Editora Ateliê, 2004.
CARBONARA, G. Il restauro non é conservazione. Roma: Facoltà di
Architettura Univeristá di Roma Sapienza, 2014.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
565
CHOAY, F. O patrimônio em questão: antologia para um combate. 1 ed.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.
COSTA, F. C. Primeiro Cinema in MASCARELLO, F. (Org.) História do cinema
mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 17-52.
CRUZ, K. M da; JESUS, G. V. de; ROCHA, I. de O. Cinema drive-in para
eventos durante a pandemia de COVID-19 em Jurerê Internacional,
Florianópolis, Santa Catarina. Turismo e Sociedade, Curitiba, v. 14, n. 1,
janeiro-abril de 2021. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/turismo/
article/view/77369>. Acesso em: 20 de nov. de 2022.
DATOS climáticos y meteorológicos históricos simulados para Piriápolis.
Meteoblue, 2006. Disponível em: <https://www.meteoblue.com/
es/tiempo/historyclimate/cli- matemodelled/piri%C3%A1polis_
uruguay_3441074>. Acesso em: 20 de mar. de 2022.
DIAS, M. da R. Complejo Audiovisual Iglesia de Piria. 2022. 52 p. Trabalho
Final de Graduação 1 - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas. Disponível em: <https://wp.ufpel.edu.br/neab/
trabalho-nal-de-graduacao-patrimonio/>.
EL EQUIPO. Piriápolis de Película, 2021. Página inicial. Disponível em:
<http://www.piriapolisdepelicula.com.uy/>. Acesso em: 20 de mar. de
2022.
FERNANDES, B. Cinema ao ar livre: O antes e o depois do “drive-in”.
National Geographic Portugal, 2023. Disponível em: <https://www.
nationalgeographic.pt/historia/cinema-ar-livre-portugal-historia_4140>.
Acesso em: 12 de jan. de 2024.
ICOMOS. Carta de Veneza. Veneza. Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, 1964. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/.
Acesso em: 1 out. 2022.
IDEUY. Ideuy: infraestructura de datos espaciales, 2018. Visualizador.
Disponível em: <https://visualizador.ide.uy/ideuy/core/load_public_
project/ideuy/>. Acesso em: 05 de mar. de 2022.
INE. Instituto Nacional de Estadística. Página inicial. Disponível em:
<https://www.ine.gub.uy/inicio>. Acesso em: 20 de mar. de 2022.
IPHAN. Portaria nº 375, de 19 de setembro de 2018. Institui a Política de
Patrimônio Cultural Material do Iphan e dá outras providências. Brasília,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
566
2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/. Acesso em: 10 de set.
2023.
KÜHL, B. M. Questões Contemporâneas de restauro: a viabilidade da
restauração. In: BACA SALCEDO, R. F.; BENINCASA (org.). Questões
Contemporâneas: Patrimônio Arquitetônico e Urbano. 1 ed. Bauru: Canal
6 Editora, 2017.
KÜHL, B. M. Notas sobre a Carta de Veneza. Anais do Museu Paulista:
História e Cultura Material, v. 18 (2), 2010. p. (287-320).
MENDOZA, G. L. Ciudadano Piria. Youtube, 24 de mar. de 2020.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G9iahWyGg40&ab_
channel=GustavoLeonelMendoza>. Acesso em: 19 de mar. de 2022.
MENESES, U. T. B. de. Repovoar o patrimônio ambiental urbano. Revista
do Patrimônio, Brasília, n. 36, 2017.
RIBEIRO, T. F. Animação em stop-motion: Tecnologia de produção através
da história. 2009. 148 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado, Escola
de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.
RIEGL, A. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua
origem. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
RODRIGUES, A. R. Ruína e patrimônio cultural no Brasil. 2017. 301 p.
Tese (Doutorado - Área de Concentração: História e Fundamentos da
Arquitetura e do Urbanismo) - FAUUSP, São Paulo, 2017.
SAN´ANNA, M. Preservação como prática: sujeitos, objetos, concepções e
instrumentos. In: REZENDE, M. B.; GRIECO, B.; TEIXEIRA, L; THOMPSON, A.
(Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro;
Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015.
SILVANA González trabaja en proyecto de restauración de la Iglesia de
Piria. La Prensa, 2020. Disponível em: <https://semanariolaprensa.com/
silvana-gonzalez-trabaja-en-proyecto-de-restauracion-de-la-iglesia-de-
piria/>. Acesso em: 19 de mar. de 2022.
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO E
DESENVOLVIMENTO URBANO
COMERCIAL: UMA ANÁLISE
DO CENTRO HISTÓRICO DE
BARBALHA-CE
Emanuel Ewerton Matias1
Introdução
Frente ao crescente debate sobre a proteção e conservação do
patrimônio histórico edicado, torna-se evidente a complexidade
de estabelecer uma conexão entre a preservação desses bens e o
desenvolvimento urbano das cidades. Ao longo do tempo, os centros
urbanos tornaram-se um poderoso instrumento de transformação
cultural para a sociedade, o que, por sua vez, contribui para a
formação da identidade de cada povo. Neste contexto, faz-se
necessário compreender a conceituação de patrimônio histórico e
patrimônio cultural a m de entender o valor desses equipamentos
para a sociedade e como eles devem ser inseridos no processo de
desenvolvimento urbano.
1 Graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo Centro Universitário Paraíso (UniFAP).
E-mail: ewmatias04@gmail.com.
567
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
568
A Lei n° 25 de 30 de novembro de 1937 dene o patrimônio
histórico e artístico nacional como “o conjunto dos bens móveis
e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história
do Brasil” (BRASIL, 1937, p.1). Já a Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988), pontua que o patrimônio cultural brasileiro é
formado pelo conjunto dos bens de natureza imaterial e material,
seja individualmente ou mesmo em conjunto, sendo eles portadores
de referência à ação, à identidade e à memória dos diferentes grupos
que formam a sociedade brasileira. Nota-se, portanto, que ambas
as denições reconhecem que os patrimônios históricos e culturais
possuem uma relação intrínseca à população e, consequentemente,
com as cidades em que vivem.
Diante das aludidas denições e considerando a íntima relação
dos patrimônios materiais e imateriais brasileiros com a sociedade,
é possível armar que esse vínculo está presente no meio urbano
nacional desde os tempos mais remotos até a atualidade. Ao longo
dessa trajetória, desenvolveu-se um vasto conjunto de patrimônio
histórico legado pelos povos brasileiros antecedentes. Neste viés,
é imperioso perceber que a proteção a estes bens é de caráter
fundamental para a valorização e conservação da identidade cultural
do Brasil. Ressalta-se que tal identidade garante a perpetuação dos
costumes e culturas em âmbito nacional, estadual e municipal.
Neste ínterim, pontua-se o surgimento na Primeira República
dos primeiros indícios de uma preocupação com a preservação do
patrimônio histórico; àquela época, obras de arte saíam do país de
forma contrabandeada, enquanto diversas edicações históricas
eram danicadas e demolidas. Contudo, apenas na década de
1930, durante a Era Vargas, houve a adoção de medidas práticas
governamentais direcionadas à preservação desses bens, tendo
sido criada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - SPHAN que posteriormente se tornou o atual Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN (WESTIN,
2020).
Desde sua criação, o IPHAN atua na proteção e preservação
do Patrimônio Histórico como autarquia federal, tendo como
principal missão contribuir para o reconhecimento e valorização da
diversidade cultural e resguardar o patrimônio cultural brasileiro de
maneira sustentável, consoante Portaria do nº 63, de 29 de dezembro
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
569
de 2022 do Ministério do Turismo (BRASIL, 2022a). Além disso,
o Ministério da Cultura arma que a instituição é uma das mais
antigas do país, com um histórico de mais de 20 anos de atuação,
carregando o título de primeira corporação a atuar na preservação do
Patrimônio Cultural na América Latina e colecionando realizações
como o desenvolvimento de uma política pública aplicada ao
Patrimônio Cultural Imaterial, que visa descobrir, reconhecer e
conservar os bens culturais imateriais brasileiros (BRASIL, 2022b).
Todavia, é cediço que o debate acerca da conservação dos
patrimônios históricos, apesar de ter amparo em legislações que
regem a preservação desses bens, se comporta de maneira tímida no
Brasil. Mesmo com a atuação do IPHAN e da proteção concedida
pela Constituição Federal de 1988, que assegura a preservação e
proteção ao patrimônio cultural brasileiro (BRASIL, 1988), ele
se encontra ameaçado devido ao descaso social e à negligência
governamental. Nessa toada, é importante relembrar o incêndio
do dia 2 de setembro de 2018 no edifício tombado do Museu
Nacional na cidade de São Cristóvão/RJ, no qual, a maioria do
acervo foi destruído marcando o episódio como uma grande
perda para a história nacional. De acordo com Pennafort e Fometti
(2018) o diretor do Museu Nacional, Alex Kellner, responsabilizou
o governo federal pelo ocorrido, além de armar que foi uma
tragédia anunciada, uma vez que o incêndio foi causado por falta de
investimento e manutenção adequada do prédio (SOUZA, 2021).
Somekh (2015) cita no Manual de preservação do patrimônio
histórico do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo que
a preservação do patrimônio histórico consiste em uma questão de
natureza urbana e ressalta que a cidade contemporânea é pautada
na perda de vínculos e na destruição da memória de forma rápida.
Assim, percebe-se que a indiferença do poder público em relação a
patrimônio histórico gera um grande problema de conciliação das
novas demandas urbanas com a preservação desses bens, visto que,
uma das principais características da sociedade contemporânea é
a sua velocidade de mudança e, consequentemente, o patrimônio
histórico passa a ocupar nesse cenário um lugar de não
pertencimento.
Outrossim, impera acentuadas que a problemática exposta
não se restringe aos grandes centros urbanos e atinge pequenas
cidades do interior, como é o caso do Centro Histórico da cidade
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
570
de Barbalha-CE, objeto de estudo dessa pesquisa por sofrer do
mesmo dilema. A cidade de Barbalha está localizada no estado do
Ceará, na Região Metropolitana do Cariri, a uma distância de 550
km da capital cearense Fortaleza, sendo conhecida nacionalmente
por sua riqueza folclórica e sendo palco de uma das maiores festas
juninas do Brasil: a festa de Santo Antônio. A referida festividade
é popularmente conhecida como festa do Pau da Bandeira e, em
2015, foi reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro, pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Custódio e Rodrigues (2018) armam que Barbalha é um dos
municípios com maior acervo de imóveis históricos, no entanto,
não conta a devida proteção desses prédios, pois apenas duas dessas
edicações são tombadas pelo IPHAN: o Casarão Hotel e o Palácio
Três de Outubro.
As construções históricas da cidade de Barbalha estão localizadas,
precisamente, no centro urbano composto pelas principais ruas da
cidade. Tal fato gera um problema de conciliação urbano, no qual
os equipamentos comerciais invadem as edicações históricas de
maneira desordenada e com intervenções, na maioria das vezes,
feitas sem o conhecimento técnico adequado. Além disso, a falta de
comprometimento dos órgãos públicos com a manutenção dessas
edicações enseja perdas irreparáveis, como o incidente de 2004,
em que parte da construção do Palácio Três de Outubro desabou
durante uma forte chuva na cidade.
Imagem 1. Desabamento de parte da construção do Palácio Três de Outubro.
Fonte: Getúlio Moura (2004)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
571
Neste caminho, percebe-se que debater sobre patrimônio
histórico se mostra necessário e urgente, uma vez que a inecácia da
aplicação das normas de proteção ameaça sua existência. Cumpre
neste momento destacar a fala de Somekh (2015):
Preservar o patrimônio histórico e arquitetônico é manter viva a
memória de uma cidade, de um país. Um povo que não preserva sua
história dicilmente conseguirá planejar o seu futuro. O patrimônio
construído e preservado é um ativo urbano de fundamental importância
para as futuras gerações (SOMEKH, 2015, p.7).
Assim, considerando que a preservação do patrimônio histórico
e o desenvolvimento urbano são temas que estão diretamente
relacionados, a presente pesquisa tem por motivação estimular o
debate cientíco sobre a preservação do patrimônio edicado, uma
vez que segundo Medeiros e Silva (2022, p.2) “apesar de existir uma
preocupação em preservar o patrimônio cultural, o mesmo tem
sofrido perdas irreparáveis, essencialmente, no que concerne ao
patrimônio edicado”. Diante do contexto do objeto de estudo dessa
pesquisa, percebe-se desde o início que, caso não ocorra alguma
mudança acerca das políticas públicas que regem a preservação do
patrimônio histórico edicado de Barbalha-CE, poderão acontecer
perdas signicativas e o estado de conservação das construções
alcançar patamares irreversíveis.
A urbanização desenfreada e suas
consequências sociais
Desde a antiguidade, as cidades passam por um processo
contínuo de transformação urbana. Esse fenômeno decorre do
surgimento de novas demandas sociais e da necessidade consequente
de desenvolvimento e crescimento. Assim, novas estruturas surgem
na mesma velocidade que desaparecem, tanto na área da habitação
quanto no desenvolvimento urbano. Vias são abertas, pontes
são construídas, prédios são levantados, ao mesmo tempo em
que equipamentos públicos são demolidos, casas desmoronam e
edicações históricas cam obsoletas; essas mudanças representam
o processo evolutivo das cidades. Nesse cenário, Oliveira, Mussi e
Engerrof (2020) declaram:
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
572
É evidente que a cidade é fruto do desenvolvimento acelerado, tanto
urbano quanto social, é transformada pelas ações humanas, por vezes,
através de um planejamento adequado e, outras, sem o mesmo –
mas tudo é resultado da expansão, crescimento da população e das
peculiaridades do espaço que modicam-se e alterando o cenário
urbano (OLIVEIRA; MUSSI; ENGERROFF, 2020, p.8).
Todavia, essa evolução instiga reexões relevantes sobre o
atual comportamento urbano instigando a produção de pesquisas
realizadas sobre o crescimento urbano desordenado que atribuem
esse desenvolvimento acelerado ao surgimento de grandes problemas
sociais. Murta e Albano (2005) apontam que a urbanização
desenfreada desencadeia em uma série de questões urbanas, tais
como o processo de favelização, mendicância, desmoronamentos,
engarrafamentos, acidentes e assaltos. Abelém (2018), por sua vez,
reete sobre esse avanço desordenado das cidades armando:
O processo de industrialização e a busca pelo desenvolvimento
que acompanham o avanço do capitalismo têm levado as cidades a
crescerem desordenadamente. Cada vez mais migrantes chegam à
cidade atraídos pela ilusão de uma fonte de renda estável e em busca
de “melhores condições de vida”, enfrentando vários tipos de entraves,
como mercado de trabalho saturado, falta de oferta de habitações e
decientes serviços de infraestrutura (ABELÉM, 2018, p.30).
No Brasil, essa problemática se agrava ao longo dos anos.
Segundo dados do Censo Demográco, em 2022, o país contava
com uma população de 124,1 milhões de pessoas vivendo em
áreas urbanas. Esses dados, comparados aos do Censo de 2010,
representam um aumento de 9,2 milhões de pessoas vivendo em
concentrações urbanas, o que evidencia um crescimento urbano
exponencial (IBGE, 2023). Assim, verica-se que o país passa por
uma constante transformação nas dinâmicas urbanas e que cada vez
mais pessoas se deslocam para as zonas de urbanização.
O referido processo acarreta mudanças tanto sociais quanto
urbanísticas, sendo válido pontuar que essa questão não é um fato
apenas dos dias atuais. Segundo Milton Santos (1993, p. 104) “o
espaço nacional conheceu transformações extensas ou profundas.
A modernização é o principal elemento motor dessas mudanças,
acarretando distorções e reorganizações, variáveis segundo os
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
573
lugares, mas interessando a todo o território”. Já, Ascher (2010),
sugere que o processo de urbanização brasileiro cresce de forma
contínua em função do capitalismo, sem dar a devida atenção às
necessidades básicas do homem e, consequentemente, gerando
uma cidade difusa com uma urbanização dispersa que compromete
o futuro das próximas gerações.
Essa problemática se estende também à manutenção e
preservação do patrimônio histórico edicado das cidades, uma
vez que o crescimento do sistema capitalista, junto ao processo da
industrialização e da modernização reete na desvalorização da
propriedade imobiliária e afeta as edicações históricas de maneira
destrutiva. De forma a complementar essa ideia, ressalta-se que
“muitos centros urbanizados em diversos períodos anteriores foram
expandidos sem a necessária atenção ao seu patrimônio edicado,
resultando em perdas incalculáveis” (HARDT et al., 2017, p. 43) .
Para os aludidos autores, é necessário relacionar as demandas da
sociedade atual com a proteção desses bens históricos, para garantir
a memória histórica viva.
Diante do exposto acerca do desenvolvimento urbano, resta
evidente que esse processo ocorre de forma acelerada, muitas vezes
negligenciando as devidas preocupações com o entorno. Essa falta de
planejamento das cidades resulta em um crescimento desordenado
com consequências em todos os âmbitos socioespaciais. É possível
ainda notar que essa problemática reete diretamente na proteção do
patrimônio arquitetônico das cidades, concluindo que “o patrimônio
histórico precisa ser integrado ao planejamento da cidade, sob pena
de car à deriva em um mar de interesses puramente econômicos”
(SOMEKH, 2015, p.14).
O centro histórico da cidade de Barbalha-CE
A presente pesquisa tem como objeto de estudo o centro histórico
da cidade de Barbalha-CE. Através de uma revisão bibliográca
do patrimônio edicado da cidade, notou-se que existem poucas
fontes referentes ao centro histórico, devido à escassez de estudos
e registros técnicos. No entanto, este obstáculo evidencia a
necessidade de realizar um estudo acerca das referidas edicações e
gerar um contributo não só no meio acadêmico, como também na
preservação do patrimônio histórico.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
574
Nacionalmente reconhecida por suas riquezas naturais, tendo
parte do seu território situado na Floresta Nacional do Araripe, e por
sua riqueza folclórica, devido sediar uma das mais notórias festas
juninas do país, a Festa do Pau da Bandeira, Barbalha, faz fronteira
com Juazeiro do Norte, Missão Velha, Crato e Jardim, constituindo
a Região Metropolitana do Cariri, situada ao sul do Ceará.
Historicamente, a cidade é conhecida como “terra dos verdes
canaviais”; a região carrega esse título desde o período colonial, pois
a principal fonte de renda da época vinha do cultivo da cana-de-
açúcar. Segundo Silva (2009), Barbalha tinha destaque por ser um
dos maiores centros produtores de rapadura no interior do Nordeste
devido ao funcionamento de mais de 70 engenhos.
A cidade de Barbalha tem sua história enraizada no período
colonial, época em que os fazendeiros e colonizadores faziam
doações para a igreja católica com objetivo de solicitar licença para
construções de capelas. Foi nesse contexto que Francisco Magalhães
de Sá Barreto, em 1778, concedeu terras à igreja para construção
de uma capela em homenagem a Santo Antônio, atual Igreja da
Matriz. A partir dessa edicação o centro urbano da cidade foi
desenvolvido, este fato, junto ao processo migratório, inuenciou as
características urbanas do município. Na segunda metade do século
XIX, a arquitetura colonial se mesclava com outras edicações da
cidade, sendo representada por sobrados e solares (SILVA, 2009).
Sobre a evolução urbana do município, Leite e Freire (2019)
apontam que:
As primeiras ocupações se desenvolveram no entorno da capela
inaugurada pelos fundadores da cidade, no atual bairro centro. As
edicações concentraram-se formando um trapézio em volta da igreja
e da praça, conguração típica das cidades do século XVIII, algumas
edicações públicas compunham também o cenário [...] Em 1860 foi
dado início a construção da Igreja do Rosário que foi nalizada só em
1921. A igreja atraiu diversos moradores e tornou-se o principal vetor
da expansão urbana dessa época. Como tentativa de ligar a Igreja
do Rosário a Matriz, foi criada a Rua do Vidéo. Com uso residencial,
ela comporta um número considerável de edicações históricas.
Conquistou um status importante que carrega até hoje, possuindo
grande visibilidade em festejos religiosos (LEITE; FREIRE, 2019, p.5).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
575
Segundo o Dossiê de registro da Festa do Pau da Bandeira de
Santo Antônio elaborado pelo IPHAN (2015), havia cerca de 738
casas em Barbalha em 1888, sendo 6 sobrados; já em 1910, o número
já alcançava 1.000 casas e 16 sobrados. O dossiê ainda aponta que o
desenvolvimento urbano da cidade era reexo da produção agrícola
e comercial local. Nesse contexto histórico, a cidade desenvolveu
um rico acervo de patrimônio histórico edicado.
Carleial (2015) relata que, devido à inuência dos senhores
de engenho, Barbalha desenvolveu uma conjuntura política
oligárquica e uma sociedade aristocrática, o que contribuiu para
que o município construísse um relevante conjunto de patrimônio
arquitetônico, que se mantêm parcialmente preservado até os dias
atuais.
A autora também arma que a Igreja Católica demarca nessa
história um elemento de bastante relevância no desenvolvimento
urbano da cidade, visto que as construções das igrejas promoviam
o surgimento de novos aglomerados urbanos (CARLEIAL, 2015).
Além disso, o acervo arquitetônico dos templos católicos compostos
pela Igreja Matriz de Santo Antônio e Igreja do Rosário contribuem
com o enriquecimento do centro histórico da cidade.
Imagem 2. Igreja Matriz de Santo Antônio
Fonte: João José Rescala (1941)
Neste cenário, em meados do século XIX, no processo de
colonização do Cariri, novas famílias se juntavam à região e as
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
576
construções apresentavam aspectos arquitetônicos mais nobres.
Essas novas edicações surgiram a partir de 1857 e estavam
localizadas nas principais ruas da cidade. Desse modo, na esteira
do pensamento de Carleial (2015), pode-se armar que Barbalha
possui um acervo arquitetônico que se destaca na região. As
edicações que compõem o centro histórico vão desde os casarões
do século XIX até o emblemático Engenho Tupinambá. Assim, “a
história da cidade pode ser traduzida pelo patrimônio histórico e
pelas relações socioeconômicas que promoveram a ocupação e o
agrupamento dessas edicações” (CARLEIAL, 2015, p. 50).
Considerações sobre cidades e centros
históricos no contexto comercial
Com o passar do tempo, as cidades revelam características que
evidenciam suas transformações, seja nas ruas, construções ou
espaços públicos. Desde os primórdios das aglomerações urbanas até
as atuais metrópoles, essas cidades expressam suas funções sociais,
econômicas e burocráticas, tornando-se referências na construção
da memória da sociedade. Desse modo, torna-se perceptível que os
centros dessas localidades concentram as áreas mais dinâmicas e
ativas, impulsionando atividades nanceiras e comerciais. Através
delas, é possível compreender o processo de transformações urbanas
e perceber que a cidade pode ser interpretada como uma síntese da
civilização.
Silva (2013, p. 2) dene o centro como uma área ampla
de “concentração de atividades econômicas dentro do tecido
urbano, sendo visível na paisagem verticalizada, na densidade de
estabelecimentos comerciais e de serviços, bem como no volume de
pessoas transeuntes durante o horário comercial”. Por outro lado,
Bezerra e Cavalcante (2013) armam que o centro urbano é onde
se concentram as congurações espaciais que possibilitam fatores
econômicos importantes para o desenvolvimento social, devido às
proximidades das atividades e funções urbanas. Nas palavras de
Sposito (1991):
[...] o centro da cidade não está necessariamente no centro geográco,
e nem sempre ocupa o sítio histórico onde esta cidade se originou,
ele é antes um ponto de convergência/divergência, é o nó do sistema
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
577
de circulação, é o lugar para onde todos se dirigem para algumas
atividades e, em contrapartida, é o ponto de onde todos se deslocam
para a interação destas atividades aí localizadas com as outras que se
realizam no interior da cidade ou fora dela. Assim, o centro pode ser
qualicado como integrador e dispersor ao mesmo tempo (SPOSITO,
1991, p. 2).
Neste viés, no decorrer da história, os centros das cidades foram
adjetivados de diferentes maneiras, como urbano, comercial,
histórico, de mercado, entre outros. Em todos os casos o centro
ocupa uma posição de destaque em relação ao restante da cidade.
No entanto, apenas os centros históricos “possuem o papel de
reproduzir experiências, gerar uma visão da cultura, e contar como
sucedeu o desenvolvimento dos grupos sociais anteriores ao do
presente” (MARTINS, 2022, p. 21). Portanto, os centros históricos
são espaços que simbolizam o passado e que por meio das histórias
que carregam alimentam as memórias da sociedade. Assim, além
de ser um lugar de celebrar o passado, é também um lugar de
contemplar as sensações do agora.
Seguindo o pensamento dos autores supracitados, entende-
se que o centro é um espaço de grande relevância dentro da
sociedade e que, devido às suas características socioespaciais,
esses bairros se articulam como as principais zonas comerciais das
cidades e, consequentemente, passam por transformações urbanas
constantemente para suprir as novas demandas da população. Em
contrapartida, Sebastião (2010) estabelece que de maneira geral os
centros urbanos das cidades contemporâneas foram originados das
áreas mais antigas da cidade, precisamente nos centros históricos, o
que gera um conito ideológico, no qual a busca pelo moderno tem
desencadeado impactos irreversíveis nestes espaços de memória
que, inclusive, são ferramentas essenciais para a formação da
identidade local (RONCONI, 2015).
Complementando essa ideia, Martins (2022) arma que:
Com o passar dos anos, as cidades sofreram processos de reestruturação
urbana pela busca do seu desenvolvimento, esses processos foram
motivadores da descentralização dos serviços e consequentemente
ocasionaram a desvalorização dos centros históricos que deram origem
às cidades (MARTINS, 2022, p.7).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
578
Conclui-se, portanto, que todas as cidades sofrem processos de
reorganização urbanas visando o desenvolvimento e, assim, nos
últimos trinta anos, esse fato desvalorizante provocou mudanças
nos centros históricos (MARTINS, 2022). Desse modo, esses centros
guardam diversos desaos, tais como, lidar com as dinâmicas
comerciais, dialogar com a modernidade e equilibrar a preservação
com as constantes demandas socioespaciais. Finalmente, é possível
notar que todas essas questões devem estar em harmonia para
que a identidade cultural que esses centros possuem não seja
descaracterizada.
Considerações nais
Diante do exposto, evidencia-se a intrincada relação entre a
preservação do patrimônio histórico edicado e o desenvolvimento
urbano nas cidades brasileiras. A análise da trajetória histórica revela
o papel crucial desempenhado pelos centros urbanos na construção
da identidade cultural de uma sociedade, tornando os patrimônios
históricos e culturais elementos fundamentais nesse processo.
Entretanto, observa-se que, apesar das medidas legais em vigor e
da atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), o debate acerca da conservação desses patrimônios
mantém-se em um estágio incipiente no cenário brasileiro. Essa
problemática transcende os limites dos grandes centros urbanos,
alcançando também localidades de menor porte, exemplicado
pelo caso de Barbalha-CE. Mesmo diante da riqueza folclórica e
do reconhecimento dos festejos junina como patrimônio imaterial
nacional, o patrimônio histórico edicado dessa cidade enfrenta
a carência de proteção adequada. A desordem urbanística e
as intervenções inadequadas comprometem a integridade das
edicações, expondo-as a danos irreparáveis.
Considerando as ponderações de Medeiros e Silva (2022) acerca
das perdas irreparáveis no patrimônio edicado, torna-se imperativo
reexaminar as políticas públicas que orientam a preservação em
Barbalha-CE. A inércia diante dessa necessidade de mudança
pode culminar em perdas signicativas e no comprometimento
irreversível do estado de conservação das construções históricas. A
preservação do patrimônio histórico edicado transcende a mera
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
579
preservação da memória; representa um investimento no futuro, na
identidade cultural e no desenvolvimento urbano sustentável.
REFERÊNCIAS
ABELÉM, Auriléa Gomes. Urbanização e remoção: por que e para quem?
Belém: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA, 2018. E-book.
ASCHER, François. Os novos princípios do Urbanismo. São Paulo:
Romano Guerra Editora, 2010. E-book.
BEZERRA, Maria do Carmo de Lima; CAVALCANTE, Cláudia Varizo. O Plano
Diretor e os elementos formadores de novas centralidades intra urbanas.
Revista Ciência & Trópico (C&Trópico), v. 33, p. 219 - 241, jan. 2013.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível
em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm.> Acesso em: 30 maio 2023.
BRASIL. Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional. Rio de Janeiro: Presidência da
República, [1937]. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-lei/del0025.htm> Acesso em: 30 maio 2023.
BRASIL. Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Dia do Patrimônio Cultural relembra a história do Iphan.
Brasília, DF. Ministério da Cultura. 04 nov 2022b. Disponível em: <https://
www.gov.br/iphan/pt-br/assuntos/noticias/dia-do-patrimonio-cultural-
relembra-a-historia-do-iphan> Acesso em: 07 jul. 2023.
BRASIL. Ministério do Turismo. Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Portaria do Iphan Nº 63 de 29 de dezembro de 2022.
Brasília, DF. Ministério do Turismo, 30 dez 2022a. Disponível em: <https://
www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-iphan-n-63-de-29-de-dezembro-
de-2022-455017542> Acesso em: 07 jul. 2023.
CARLEIAL, Christianne Coelho Silton. O patrimônio cultural na construção
de Barbalha-CE como destino turístico. 2015. Dissertação (Mestrado
Prossional em Gestão de Negócios Turísticos) – Universidade Estadual do
Ceará, Fortaleza, 2015. Disponível em: <https://siduece.uece.br/siduece/
trabalhoAcademicoPublico.jsf?id=88888> Acesso em: 15 jul. 2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
580
CUSTÓDIO, Gabriela: RODRIGUES, Lia. Para preservar o patrimônio
histórico de Barbalha. [S.l]. Jornal o Povo. 16 de julho de 2018. Disponível
em: <https://www20.opovo.com.br/app/revistas/cultura/2018/07/16/
notrcultura,3681394/para-preservar-o-patrimonio-historico-de-barbalha.
shtml> Acesso em: 12 jul. 2023.
HARDT, L. P. A.; HARDT, C.; HARDT, M. Memória e cidade: contribuições à
gestão do patrimônio cultural. Revista Conuências Culturais, v. 6, p. 35-
45, set. 2017.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. De 2010 a 2022,
população brasileira cresce 6,5% e chega a 203,1 milhões. [S.l]: 04 de
julho de 2023. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/
agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37237-de-2010-a-
2022-populacao-brasileira-cresce-6-5-e-chega-a-203-1-milhoes> Acesso
em: 15 jul. 2023.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL . Dossiê
de Registro da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha.
Fortaleza: IPHAN, 2015.
LEITE, A. R. M.; FREIRE, G. G. A aplicabilidade do SIG para a elaboração
de uma rota acessível no Centro de Barbalha, Ceará. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE MOBILIDADE URBANA, 2019, São Paulo. Anais
Eletrônicos [...]. São Paulo, 2019. Disponível em: <http://antp.org.br/
anais-do-congresso-questoes-urbanas-meio-ambiente-transporte-nao-
motorizado-.html> Acesso em: 15 jul. 2023
MARTINS, Amanda Fogaça. Gestão de centros históricos: O caso da
cidade de São Paulo, Brasil. Mestrado em Planeamento e Projecto Urbano
- 2021/2022 - Departamento de Engenharia Civil, Faculdade de Engenharia
da Universidade do Porto e Faculdade de Arquitetura Universidade do
Porto, Porto, Portugal, 2022. Disponível em: <https://repositorio-aberto.
up.pt/bitstream/10216/142948/2/572922.pdf> Acesso em: 20 jul. 2023.
MEDEIROS, Mércia Carréra de; SILVA, Eri Johnson Ribeiro da. PATRIMÔNIO
EDIFICADO: memória, identidade, preser vação. ARCHITECTON - Revista
De Arquitetura E Urbanismo, v. 6, 28 de maio de 2022. Disponível em:
<https://revistas.faculdadedamas.edu.br/index.php/arquitetura/article/
view/2342>. Acesso em: 20 maio 2023
MURTA, Stela Maris; ALBANO, Celina. Interpretar o patrimônio: Um
exercício do olhar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. E-book.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
581
OLIVEIRA, T. D.; MUSSI, A. Q.; ENGERROFF, F. Z. A preservação do patrimônio
arquitetônico e suas relações com o planejamento e desenvolvimento
urbano. Revista Missioneira, v. 22, p. 23-34, jan./jun. 2020.
PENNAFORT, Roberta: FOMETTI, Ligia. Reitor da UFRJ e diretor do
Museu Nacional responsabilizam governo federal pela falta de recursos.
[S.l]: Estadão. 09 de novembro de 2018. Disponível em: <https://www.
estadao.com.br/brasil/reitor-da-ufrj-e-diretor-do-museu-nacional-
responsabilizam-governo-federal-pela-falta-de-recursos/> Acesso em: 11
jul. 2023.
RONCONI, Richard Vieira. O processo de urbanização e o patrimônio
histórico edicado de Araranguá (1970-2015). 2015. Trabalho de
Conclusão de Curso - TCC (Licenciatura em História) Universidade
do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2015. Disponível em: <http://
repositorio.unesc.net/handle/1/3870> Acesso em: 20 jul. 2023
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Editora de
Humanismo, Ciência e Tecnologia HUCITEC, 1993. E-book.
SEBASTIÃO, Ana Soa Camoêsas. Planejamento estratégico para o
Centro Histórico de Torres Vedras. 2010. Dissertação (Mestrado em
Geograa – Gestão do Território e Urbanismo) - Universidade de Lisboa,
Lisboa, Portugal, 2010. Disponível em: <https://repositorio.ul.pt/
handle/10451/3862> Acesso em: 20 jul. 2023
SILVA, Josier Ferreira da. O círculo operário de Barbalha como expressão
do catolicismo social na educação e na cultura (1930 a 1964). 2009. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009. Disponível
em: <https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3197/1/2009_Tese_
JFSilva.pdf> Acesso em: 15 jul. 2023
SILVA, Oséias Teixeira da. O conceito de centro e centralidade como
um instrumento de compreensão da realidade urbana. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA, 18., 2013, Rio de Janeiro. Anais
Eletrônicos [...]. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <https://www.
researchgate.net/publication/346697094_O_conceito_de_centro_e_
centralidade_como_um_instrumento_de_compreensao_da_realidade_
urbana> Acesso em: 16 jul. 2023.
SOMEKH, Nadia. Preservando o patrimônio histórico: um manual
para gestores municipais. São Paulo, SP. Conselho de Arquitetura e
Urbanismo de São Paulo. 2015. Disponível em: <https://www.causp.gov.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
582
br/wp-content/uploads/2015/11/Manual-Patrimonio_completo_baixa.
pdf> Acesso em: 11 jul. 2023.
SOUZA, Talita. Incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro,
completa três anos; relembre, 2021. Disponível em: <https://www.
correiobraziliense.com.br/brasil/2021/09/4947344-incendio-no-museu-
nacional-no-rio-de-janeiro-completa-tres-anos-relembre.html>. Acesso
em: 30 maio 2023.
SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Estructuração urbana e
centralidade. In: ENCUENTRO DE GEÓGRAFOS DE AMERICA LATINA,
3., 1991, Toluca, México. Anais Eletrônicos [...]. Toluca, México, 1991.
Disponível em: <http://observatoriogeogracoamericalatina.org.mx/
egal3/Geograasocioeconomica/Geograaurbana/04.pdf> Acesso em: 16
jul. 2023.
WESTIN, Ricardo. Modernistas, reformas urbanas e contrabando de arte
zeram Brasil acordar para proteção da cultura. [S.l]: Agência Senado,
03 ago. 2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/
especiais/arquivo-s/ha-100-anos-modernistas-reformas-urbanas-e-
contrabando-de-arte-zeram-brasil-acordar-para-a-cultura> Acesso em:
06 jul. 2023.
NOTAS SOBRE CONSTRUÇÃO DE
VALORES PATRIMONIAIS NA
GESTÃO DA IGREJA DE SANTA
LUZIA/RJ
iago Santos Mathias da Fonseca1
Introdução
O Centro do Rio de Janeiro sofreu ao longo do século XX
profundas transformações que resultaram em tecido urbano
fragmentado. Na gestão do prefeito Pereira Passos, realizaram-se
intervenções relacionadas à criação de legislação de posturas, de
novos logradouros – como a Avenida Central, atual Avenida Rio
Branco – e alargamento dos logradouros existentes. Já na gestão
do prefeito Carlos Sampaio, como parte dos preparativos das
festividades da Exposição Internacional para comemoração do
Centenário da Independência, foi arrasado o Morro do Castelo,
um dos marcos fundacionais da cidade. Dessa operação, resultou
uma grande área esvaziada em pleno Centro, acrescida de aterro
que permaneceu desocupado até o início da promulgação do Plano
Agache na gestão do prefeito Prado Júnior (FONSECA, T. 2019).
Sua aplicação foi interrompida por decreto municipal em 1936 e,
1 Arquiteto e Urbanista pela UFF; Especialista em Patrimônio Cultural pelo CEFET/RJ;
Pós-graduando em Conservação e Restauração do Patrimônio Cultural pela FUNDAJ;
atualmente Arquiteto da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:
thiagosmfonseca@gmail.com
583
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
584
em 1938, a Comissão do Plano da Cidade instituída pelo prefeito
Henrique Dodsworth lançou novos balizamentos para a ocupação
da Esplanada do Castelo (Ibidem, 2019), que seriam alterados com
a construção do Elevado da Perimetral na década de 1960. Na
segunda metade do século XX, deram-se na região rompimentos
de escala com implementação de tipologias de escritório de altura
elevada (FONSECA, T. 2023).
Figura 1: Igreja de Santa Luzia a partir de foto do Google Street View, 2022. A imagem
elucida as atuais características de implantação urbana, bem como a diversidade tipológica
dos arredores.
A abordagem de projetos territoriais pontuais no Centro
propiciou conguração urbana de difícil leitura e apreensão. Em
função da sobreposição dos vários estratos temporais no território,
remanescem elementos construídos diversos de épocas variadas
que hoje são compreendidos como patrimônio cultural pelas
esferas federal, estadual e municipal. Não obstante, com frequência
esse patrimônio edicado é afetado pelas desarticulações presentes
nesse recorte espacial, que lançam empecilhos à compreensão da
inserção pretérita dos objetos valorados no contexto urbano.
Esse é o caso de um estacionamento localizado entre a Igreja de
Santa Luzia (gura 1) e a antiga sede do Ministério da Educação
e da Saúde (MES), também conhecida como Palácio Gustavo
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
585
Capanema, dois bens tombados em nível federal. O lote foi objeto
de monograa de especialização (Ibidem, 2023) que se propôs
a estudar a sua ocupação do ponto de vista das possibilidades de
articulação entre os tecidos que ali se sobrepõem, e à luz dos valores
envolvidos na patrimonialização desses dois bens.
Durante a elaboração da referida monograa, restou evidente,
em detrimento à Igreja de Santa Luzia, o agrante protagonismo
do Palácio Gustavo Capanema, expoente da arquitetura modernista
brasileira, nos discursos do órgão de preservação federal, apesar da
edicação ter sido completada apenas na década de 1940. O templo
constitui, em tese, exemplar dos tempos coloniais, que é justamente
o repertório sobre o qual o atual Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN2) atuou de forma mais intensa nos
seus anos iniciais – o patrimônio de “pedra e cal” da “Fase Heroica”,
tal como a própria instituição convencionou (SPHAN/PRÓ-
MEMÓRIA, 1980). De forma semelhante, mesmo na edicação
religiosa existiam profundas ressalvas do órgão em relação às
porções e volumes que deveriam ser preservadas. Há aparente
contradição de um corpo técnico que, de forma geral, valorizava
a produção arquitetônica tradicional luso-brasileira e que, no caso
do objeto deste estudo, conferiu ao templo em questão papel menor
nas considerações sobre entorno urbano, bem como entendeu como
digna de proteção apenas partes do templo.
Nesse sentido, o presente trabalho, partindo do aprofundamento
das reexões já realizadas em especialização, busca tecer
considerações sobre as contradições acerca da atuação do IPHAN na
gestão da Igreja de Santa Luzia e a construção do reconhecimento dos
valores culturais no referido bem. Buscaremos resgatar em momento
inicial, a partir de revisão bibliográca, a inuência da atuação dos
arquitetos modernistas na proeminência do recorte da arquitetura
colonial que guiou o modus operandi do órgão em seus anos iniciais.
Posteriormente, com os subsídios de iconograa histórica que são
objeto de outro trabalho relacionado à especialização3, serão feitas
2 O órgão teve várias denominações. No recorte deste trabalho, chamou-se Serviço
de Patrimônio Histórico e Artístico – SPHAN, contudo, para ns de convenção,
utilizaremos a nomenclatura atual (IPHAN).
3 Trata-se do artigo “Apontamentos sobre alterações na Igreja de Santa Luzia (RJ)
e evolução urbana a partir do redesenho de iconograa (sécs. XIX-XXI)”, apresentado
no 49º Encontro Nacional de Estudos Urbanos e Rurais (CERU), ocorrido em Nova
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
586
ponderações breves acerca da evolução da volumetria do tempo
e de suas imediações urbanas imediatas. Finalmente, a partir dos
documentos existentes no Arquivo Noronha Santos do IPHAN,
com foco no recorte da década de 1940, serão buscados indícios
de decisões de gestão que paralelamente evidenciem os valores
culturais então preconizados – ainda que sem menção expressa
no ato de tombamento – e o seu alinhamento com a política
institucional então vigente. Tal recorte temporal se dá na medida
em que nele foram encontrados vestígios mais expressos referentes
aos valores culturais, haja vista que então se discutia a possibilidade
de intervenções no bem e no seu entorno imediato.
Assim, veremos como a Santa Luzia se insere como exemplo da
atuação do IPHAN na fase heroica que, apesar da origem colonial
do bem cultural, desconsidera partes da construção por motivos
que aqui entenderemos ligados ao conceito de autenticidade –
consolidado apenas ao longo do século XX – e o compreende
enquanto monumento isolado de relações mais profundas de
inserção urbana.
Patrimônio histórico e artístico, uma política
forjada pelo moderno
No âmbito brasileiro, as incursões no campo do Patrimônio se
tornaram objeto de política pública sistemática a nível nacional a
partir do Decreto-Lei nº 25/1937, que determinou a criação do atual
IPHAN4. Nele, criou-se o instrumento do tombamento, atualmente
compreendido como ato administrativo de reconhecimento, por
parte do Estado, de determinado valor cultural de um Bem, e o qual,
como consequência, outorga tutela que opera a favor do direito
coletivo de preservação da memória, garantindo sua proteção
física. Enuncia-se, no referido Decreto, que os valores a serem
reconhecidos estavam ligados à construção da narrativa identitária
nacional:
Iguaçu/RJ em dezembro de 2023. Os anais não se encontram disponíveis no momento
de elaboração do presente trabalho, mas a homepage do evento está disponível em:
https://www.even3.com.br/ceru2023/; acesso em 21/12/2023.
4 Aconteceram outras iniciativas pontuais, como a Inspetoria Nacional de Monumentos.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
587
Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto
dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja
de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográco, bibliográco ou artístico.5
É preciso sublinhar que a criação da referida legislação se deu em
pleno Estado Novo. O projeto do governo incluía estratégias para a
construção de uma identidade nacional compatível com a leitura
de um Brasil moderno, tanto economicamente quanto socialmente.
Por isso, verica-se a instrumentalização de pautas culturais a favor
de projeto ideológico totalitário e centralizador do qual a criação do
IPHAN fez parte. Percebe-se a inuência desse contexto na redação
do Art. 1º, que guiou a atuação do órgão no sentido de eleger
exemplares paradigmáticos da cultura, institucionalizando-os como
elementos de costura das amplas narrativas culturais brasileiras.
No afã da construção de uma identidade moderna, a decisiva
participação dos modernistas é objeto de farta bibliograa, da qual
destaca-se o trabalho de Maria Fonseca (2005), que sintetiza a
atuação do IPHAN durante o século XX e início do XXI. Também
era pauta do modernismo a questão identitária; já na Semana de
Arte de 1922 percebia-se crítica à imagem nacional cristalizada pela
República Velha (Ibidem, 2005), e, nesse aspecto, o Estado Novo e o
modernismo possuíam anidade. Lauro Cavalcanti (2006), por sua
vez, destaca que a participação dos modernistas fez parte de uma
perspectiva mais ampla que levou à construção de uma historiograa
da arquitetura e urbanismo que se pretende hegemônica:
A construção de monumentos estatais para o Estado Novo, a
instauração deum Serviço de Patrimônio responsável pela constituição
de um capital simbólico nacional – com seleção e guarda das obras
consideradas monumentos nacionais – e, nalmente, a proposição de
projetos de moradias econômicas, para a implantação, no país, de uma
política de habitação popular. (...)
Um fenômeno singular, no caso brasileiro, é que são, fundamentalmente,
os mesmos indivíduos que atuam nas três frentes anteriormente
descritas. (CAVALCANTI, 2006, p. 10).
5 Decreto-Lei nº 25/1937. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-ei/del0025.htm; acesso em 25/01/2022.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
588
Na Europa, o modernismo constituiu movimento de vanguarda
que propunha radicais rupturas com referências pretéritas e, por
isso, admira que no Brasil esteja ligado à institucionalização da
prática preservacionista. Contudo, na experiência brasileira, o
marco estilístico objeto de rompimento mais pronunciado foi
composto pelas tendências ecléticas do século XIX, que agregavam
simultaneamente o estrangeirismo e as tradições das belas-artes, na
contramão da valorização das expressões e manifestações originadas
no território brasileiro ou inuenciadas pela cultura nacional. Para
ambos os aspectos – o estrangeirismo e as tradições das belas-artes
– houve esforço, cuja gura mais proeminente era Lúcio Costa, para
o estabelecimento de analogia entre a arquitetura tradicional luso-
brasileira e a moderna (WISNIK, 2004) com a dupla consequência
de legitimar a produção arquitetônica contemporânea e articular
a identidade nacional. Assim, os exemplares coloniais ganharam
primazia na prática da proteção e salvaguarda.
A inuência do moderno se estende para além da noção da
tutela do próprio bem cultural. O Decreto-Lei nº 25/1937 também
estabeleceu, por meio do Art. 18, restrições para as imediações do
objeto tombado, o que posteriormente evoluiu para a atual noção
de conceito de área de entorno após embates judiciais no terceiro
quartel do século XX (MOTTA; THOMPSON, 2010). Tal área se
difere da tombada na medida em que seu interesse é subsidiário à
compreensão do que se inscreveu no livro do tombo.
A abordagem das áreas envoltórias foi alvo de reexões cujas
liações modernistas poderão ser percebidas no estudo de caso.
Neste momento do artigo, é suciente assinalar que a Carta de
Atenas de 1933, ao indicar a demolição de cortiços nas redondezas
de monumentos em favor da circulação, saúde e higiene, lamenta
a perda de ambiência secular, apesar da operação ser considerada
inevitável. Para substituição do tecido urbano demolido, há a
sugestão de implantação de superfícies verdes, que oferecem
“ambiência nova, inesperada talvez, mas certamente tolerável, e da
qual, em todo caso, os bairros vizinhos se beneciarão amplamente”
(CURY, 2004, p. 54).
Infere-se que tal indicativo teve inuência considerável nas
soluções para as imediações dos bens edicados. A Carta sintetiza
a doutrina modernista6, a qual prezou, no âmbito do urbanismo,
6 Segundo Scherer (1993), a versão de maior circulação da Carta foi redigida por
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
589
por edicações isoladas da rua cercadas por extensas áreas verdes:
cada imóvel, à sua própria maneira, teria tratamento que destacasse
a sua monumentalidade. Pode-se entender a inserção de jardins
em torno de prédios de interesse histórico, em certa medida, como
maneira de transplantar esse olhar para os remanescentes pretéritos,
suprimindo-lhes reminiscências urbanas associadas às ruas-
corredores7 e proporcionando-lhes ambiente que se pretendia
livre de interferências visuais.
A pretensa neutralidade é pressuposto próprio da losoa
modernista, cuja expressão tipológica e estética, no âmbito da
arquitetura e urbanismo, aspirava ser consequência direta e pura
de respostas racionais e funcionais às necessidades humanas na
era da máquina8 (EISENMANN, 2006). Esse olhar característico
permeou o imaginário de muitos arquitetos e urbanistas que
regularmente, durante do século XX, deram preferência, como
solução paisagística, a estratégias relacionadas ao isolamento e
ajardinamento de bens culturais – inclusive na própria Igreja de
Santa Luzia.
Breves apontamentos históricos sobre a Igreja
de Santa Luzia
Segundo Augusto Maurício (1977), em 1592 já existia nas
franjas do Morro do Castelo – àquela época Morro do Descanso
– a pequena ermida de Santa Luzia, construída por iniciativa dos
pescadores que ali trabalhavam. No mesmo ano, chegaram da Bahia
Le Corbusier a partir da compilação das conclusões do Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna (CIAM) de 1933, às quais acrescentou suas próprias ponderações,
contudo, a publicação é de apenas 1941. Apesar de atas terem sido publicadas
ainda em 1933 pela Câmara Técnica de Atenas, a versão não é a que mais se utiliza
atualmente. Neste trabalho, portanto, considera-se a Carta como referência da síntese
das discussões que então eram correntes no âmbito da arquitetura e urbanismo, e não
necessariamente como documento de consulta corrente dos técnicos em função do
lapso temporal explicitado nesta Nota.
7 Para mais informações, em Reidy (1938) há síntese que elucida tanto o conceito de
rua-corredor, ou seja, aquelas pontuadas por edicações à testada do lote, como a
lógica levou os arquitetos da época a rechaçarem esse tipo de conformação.
8 Apesar da citação a Eisenmann ser uma síntese sobre os preceitos modernistas,
cabe ressaltar que a utilização do termo “era maquinista” é referência direta às
reexões de Le Corbusier.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
590
frades franciscanos que se instalaram na capela até se mudarem
denitivamente para o Morro de Santo Antônio, onde foi construído
Convento homônimo (Ibidem). A partir de então, inicia-se período
de arruinamento até que, em 1752, a pedido de Diogo da Silva, a
capela foi refeita no local onde se localiza a atual Igreja de Santa
Luzia, em terreno doado por João Pereira Cabral (FAZENDA,
1921). O culto era conduzido sobretudo por pescadores: durante a
maior parte de sua existência, o bem era vizinho ao mar.
Figuras 2, 3 e 4: (esquerda) aquarela de Richard Bate, 1808, NONATO; SANTOS, 2000,
p. 3; (centro) foto de Georges Leuzinger, 1865 c., Instituto Moreira Salles; (direita) foto de
Guilherme Santos, 1915, Instituto Moreira Salles.
Na primeira perspectiva conhecida sobre o bem, nota-se que
a ermita possuía uma nave singela acrescida de volume posterior,
possivelmente a capela-mor (gura 2), e era isolada do tecido urbano
central mais denso. Contudo, ao longo do século XIX, observa-se a
consolidação de vetor de crescimento entre a região da Ajuda (atual
Cinelândia) e o Calabouço, bem como a paulatina inserção do
templo em área densicada. A Rua de Santa Luzia, que margeava a
orla, passou a ser pontuada por construções contíguas de dois e três
pavimentos, e foi reticada. De forma semelhante, a própria igreja
passou por transformações, inicialmente com a adição de uma
primeira torre sineira (gura 3), e depois uma segunda torre na
década de 1880, seguida do refazimento da torre primitiva para ns
de manutenção das proporções (gura 4). No nal do século XIX, o
imóvel também passou por acréscimos nos corredores laterais.
Em 1922, com a comemoração do Centenário da Independência,
foi realizada campanha pela prefeitura para a demolição do Morro
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
591
do Castelo, que dominava a dinâmica paisagística daquela região.
A operação foi efetivada e a elevação foi desmontada, gerando
duas áreas vazias (gura 5) – uma referente à própria projeção do
antigo Morro, outra referente a um aterro criado com os escombros
obtidos pela operação, ampliado na década de 1960 com o Parque
do Flamengo. Após o m das festividades e a demolição dos
pavilhões, em maioria efêmeros, a região permaneceu esvaziada,
e planos urbanos foram ali propostos sem que houvesse política
de continuidade, conforme indicado na parte introdutória deste
trabalho. Como consequência, a Igreja de Santa Luzia passou por
ruptura violenta na medida em que foi privada de dois elementos
com os quais estava profundamente relacionada – o Morro e o mar,
do qual cou irremediavelmente afastada. Por outro lado, ainda
vericava-se a permanência de tecido urbano composto por antigos
armazéns e trapiches que faziam parte da inserção imediata do
templo antes do aterro (guras 5 e 6), demolidos na década de 1940
em favor de lotes previstos em projetos de alinhamento que não se
consolidaram.
Figuras 5 e 6: (esquerda) foto aérea de S. M. Holland, 1930 c., Biblioteca Nacional,
icon855564; (direita) foto do Museu Aeroespacial, 22/12/1938, Album 0260 006.
Em 1938, a edicação foi tombada pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) por meio do processo de
tombamento 12-T-38, e inscrita no Livro das Belas Artes. Nessa
época, os terrenos vazios posteriores estavam em processo de
ocupação pelos ministérios do Estado Novo (gura 6), notadamente
o Ministério do Trabalho, da Fazenda, da Educação e Saúde. O
último, também conhecido como Palácio Gustavo Capanema, é
um dos marcos da arquitetura modernista brasileira, que alcançou
status de prestígio internacional, e foi tombada por meio do processo
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
592
de tombamento 375-T-1948, pouco após sua conclusão na década
de 1940 (FONSECA, T. 2023). Não só a edicação propriamente
dita foi protegida; também foi incluído no tombamento o terreno
resultante da demolição dos trapiches e armazéns da Rua Santa
Luzia. A justicativa para tal inclusão era a manutenção de
perspectiva monumental que favorecesse a apreensão do Palácio
Gustavo Capanema (Ibidem, 2023), ainda que tenha sido tutelado
posteriormente à Igreja de Santa Luzia. Similarmente, havia temor
de que a alienação do referido terreno pudesse propiciar ocupações
inadequadas por terceiros.
É interessante notar que a patrimonialização da Igreja de
Santa Luzia não teve o mesmo rigor em relação ao seu entorno.
Não obstante, é conveniente levar em consideração que a igreja
foi tombada menos de um ano após a edição do Decreto-Lei nº
25/1937; tratava-se, logo, de uma legislação nova, cujos limites e
entendimentos ainda seriam testados e, portanto, seria razoável
inferir que o conceito de entorno ainda não havia sido amadurecido.
Ainda assim, a edicação modernista mereceu anotação no próprio
tombamento para inclusão de terreno que não lhe pertencia com
vistas à preservação de visada, enquanto para o templo jamais foram
ponderados de maneira ocial e detida os impactos que a supressão
dos trapiches e armazéns trouxeram à sua ambiência. Pelo contrário:
até hoje o IPHAN rearma o caráter non aedicandi do terreno
vago, sobretudo em função do Palácio vizinho. Esse posicionamento
acaba por corroborar os preceitos anunciados na Carta de Atenas de
1933, e não aventa estratégias do terreno fazer menção conceitual,
arqueológica ou de sinalização, ao tecido urbano que ali existiu e
que, com suas ruas – ou ruas-corredores, se assim preferirmos – e
lotes densamente ocupados, poderiam auxiliar na compreensão das
condições passadas de implantação urbana da Igreja de Santa Luzia.
Valores culturais a partir de decisões de
gestão na década de 1940
Apesar do processo de tombamento da Igreja de Santa Luzia
ser sucinto, há outros documentos no Arquivo Noronha Santos,
mantido pelo IPHAN, que evidenciam os valores culturais que os
gestores e técnicos tinham em mente na década de 1940 em relação
ao bem. Por exemplo, em fala do então ministro da Educação e da
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
593
Saúde, Gustavo Capanema, arma que “em todos os recantos do
país, a Igreja de Santa Luzia, pela sua antiguidade e pelo signicado
do seu culto, merece ser conservada” (Pasta Inv_RJ 074-1-01, p.
29). Na mesma pasta, consta anotação informando que se trata do
“mais antigo templo católico da cidade, embora muito modicada
a arquitetura jesuítica. Não oferece agora nenhum aspecto notável”
(Pasta Inv_RJ 074-1-01, p. 1)9.
A partir dos trechos acima, parece ser o valor histórico o
dominante, contudo, o templo foi inscrito no Livro das Belas Artes.
Sobre a escolha do Livro do Tombo até meados do século XX, Maria
Fonseca fez a seguinte observação:
Até o nal dos anos 50, eram pouco numerosas as inscrições apenas
no LH [Livro do Tombo Histórico], sendo o caso, em geral, de casas
natais, algumas fortalezas e ruínas. (...) embora não fosse admitido
explicitamente, na prática, o Livro Histórico, e também, em certa
medida, o Livro Arqueológico, Etnográco e Paisagístico, terminaram
por servir para abrigar aqueles bens que, por alta de maior interesse
estético, ou por se acharem adulterados ou parcialmente destruídos,
não tinham condições de atender às exigências para inscrição no
Livro de Belas Artes. A autenticidade desses bens era assegurada
pela dedignidade das fontes documentais que atestassem seu valor
enquanto documento. (FONSECA, M. 2005, p. 114).
A lógica acima exposta traz à tona a contradição que vem sendo
pontuada desde a introdução – ou seja, a primazia das igrejas do
período colonial nas ações de salvaguarda, a inscrição no Livro das
Belas Artes, e, por outro lado, a perspectiva de falta de elementos
notáveis no templo expressa pelo órgão. A partir das considerações
da Pasta de Inventário, seria natural inferir que a inscrição foi
efetivada no Livro Histórico, o que, como vimos, não ocorreu. É
possível que a natureza religiosa do bem cultural tenha sido fator
determinante para essa escolha e tenha sido protegida, junto com
outros bens ans que fazem parte das primeiras inscrições, no
9 Efetivamente não parece haver registros de participação dos jesuítas na criação da
antiga ermida. Contudo, o termo “arquitetura jesuítica” com frequência era utilizado
como sinônimo de arquitetura religiosa colonial nos anos iniciais da atuação do IPHAN
em função da inuência da Companhia de Jesus na consolidação das tipologias
instaladas no país. Nesse sentido, consultar o famoso artigo “A arquitetura dos jesuítas
no Brasil” (COSTA, 1941).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
594
mesmo Livro do Tombo. Poderia se tratar, portanto, de uma política
institucional de armação da importância, inclusive estética, das
igrejas coloniais enquanto tipologia, ainda que, no caso especíco,
haja as ressalvas que vimos nos documentos do IPHAN.
Outra anotação de interesse na Pasta de Inventário é a que a
edicação “não mais desfruta a primitiva situação à beira da praia.
Contudo, acha-se em realce.” (Pasta INV_RJ 074-1-01, . 15). No
mesmo documento, há comparação com Teatro 7 de Abril, em
Pelotas/RS, enfatizando sua situação de “relíquia incrustrada entre
modernos prédios” (Ibidem). Note-se que o destaque do isolamento
da igreja não faz menção às sucessivas e violentas alterações que o
tecido urbano passou, mas, no que diz respeito à arquitetura, tais
modicações foram indicadas de forma demeritória, como vimos.
Essa postura marca posição em relação à estrutura urbana que
ali existia, em forma de “ruas-corredores”, amplamente criticada
pelos modernistas. Percebe-se, portanto, que a proteção, de
nascença, foi moldada tendo em vista o templo – em sua dimensão
arquitetônica – como reminiscência despretensiosa do passado
colonial. A dimensão estética teria sido, no discurso purista dessa
fase do IPHAN, comprometida, e a dimensão urbanística foi pouco
ponderada: desde o início foi aceita a implantação isolada, a qual
propicia a dupla analogia desse bem como objeto escultórico e
como documento exposto em museu, este constituído pela própria
cidade.
Os pressupostos acima elencados pautaram a atuação do IPHAN
na década de 1940. Em julho de 1944, o ministro Gustavo Capanema
realizou visita à igreja, segundo reportagem10, em função das
discussões referentes à remodelação urbana da área. Não resta
clara na matéria de qual intervenção urbanística se tratava, mas
depreende-se que havia intenção, por parte da Prefeitura, de reduzir
a área ocupada pelas dependências da irmandade, abrigadas por
anexo contíguo ao templo. Nesse cenário, a interveniência do IPHAN
foi solicitada no sentido de compreender quais as prerrogativas do
tombamento e a melhor forma de executar a operação urbana que
então se pretendia.
O preâmbulo da matéria chama atenção para o fato de que a
demolição do Morro do Castelo havia colocado em evidência o
10 “Será conservada como monumento histórico a igreja de Santa Luzia”. Correio da
Noite. Rio de Janeiro: 14/07/1944. Consta cópia na Pasta INV_RJ 074-1-01, s. 17-18.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
595
anexo do consistório, o que seria inconveniente. Nisso o Correio da
Noite foi acompanhado pelo discurso adotado pelo ministro:
Após contemplar por algum tempo o interior da vetusta igreja, S. Excia.,
apesar de não se achar acompanhado de engenheiros especializados,
mostrou-se vivamente interessado em localizar o primitivo corpo da
mesma, isto é, a sua parte arquitetônica realmente colonial, que é a
que mais interessa à conservação, como monumento histórico. (...)
(...) a Igreja de Santa Luzia pela sua antiguidade e pela signicação do
seu culto merece ser conservada, ainda mais quando a sua existência
não vem prejudicar nenhum plano urbanístico. De conformidade
com o que observara, julga, porém, que deve se deixar nela apenas
como monumento histórico, aquilo que representa realmente a
arquitetura colonial. Para as demais dependências, que o próprio culto
exige e de administração, pode-se erguer, anexa ou separadamente,
uma construção adequada. Esta, por sua natureza, independente
do verdadeiro templo que se deseja conservar, tratando-se de uma
construção da atualidade - acrescenta o ministro - pode ser feita em
estilo moderno. (Arquivo Noronha Santos, Pasta INV_RJ 074-1-01, s.
17-18 – grifos meus)
A palavra “realmente”, empregada duas vezes, reforça que,
na década de 1940, a parte da edicação compreendida como
bem cultural legítimo era aquela que remetia aos anos iniciais da
ermida, livre dos acréscimos executados durante o século XIX
(gura 7). Para tanto, seria necessária a demolição do consistório,
a ser conveniente remanejado de maneira a auxiliar na visualização
do corpo primitivo. De forma semelhante, o valor histórico é
ressaltado com menção “antiguidade e signicação do seu culto”,
sem, contudo, que a relação com os éis, predominantemente
pescadores até a implantação do aterro, fosse reetida. Por m, o
novo anexo deveria ser contemporâneo, e nisso inuíam tanto as
tendências de reversibilidade já bastante discutidas no campo do
patrimônio cultural quanto a estética modernista.
Documento expedido pela Irmandade da Virgem Mártir Santa
Luzia (Obras-RJ_Cx.418-P.1809.1, docs. 344-345) indica que
possivelmente as tratativas evoluíram para a celebração de acordo
entre a proprietária do templo, a prefeitura do Distrito Federal e
o IPHAN, em que este elaboraria projeto de restauração com
vistas à sua execução pela municipalidade. Em troca, a Irmandade
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
596
doaria seus terrenos remanescentes ao Município para a operação
urbanística.
Figuras 7, 8 e 9: (esquerda) Igreja com marcação da volumetria primitiva do século XVIII.
Arquivo Noronha Santos, pasta Inv_RJ 074-2-01, foto 7.834, com alteração de Thiago
Fonseca; (centro e esquerda) proposta do IPHAN para reorganização dos volumes do templo.
Arquivo Noronha Santos, pasta Obras-RJ_Cx.418-P.1809.2, prancha 7.
Plantas chegaram a ser elaboradas pelo IPHAN e estão
arquivadas na pasta Obras-RJ_Cx.418-P.1809.2. A solução adotada
pelos arquitetos (ver guras 8 e 9) da repartição propõe a demolição
completa do consistório, bem como a supressão dos acréscimos
laterais que atuam como corredores. A área construída seria
transferida para anexo justaposto à fachada posterior da Igreja,
que é constituído por empena cega a qual, até a demolição do
Morro do Castelo, era pouco visível. Tal empena ganharia volume
simples, com cobertura plana, e suas fachadas adotariam linguagem
curiosamente híbrida – uma única e generosa abertura em ta
coberta por brises, que contrasta com o tratamento das empenas,
cuja representação gráca sugere pedra seca ou algum revestimento
com expressão plástica similar.
Percebe-se que o partido não adotou linhas estilísticas puramente
baseadas no modernismo, e buscou por meio do tratamento da
empena estabelecer relação de continuidade entre o embasamento
da igreja e o novo volume contíguo. Na mesma toada, as supressões
previstas parecem ter o intuito de facilitar a visualização do corpo
primitivo da antiga capela. Apesar das tratativas, não há, no Arquivo
Noronha Santos, documentos posteriores que indiquem a efetivação
da contratação dos serviços necessários, e o bem permanece hoje,
do ponto de vista volumétrico, tal como se agurava na década de
1940.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
597
Outro caso breve auxilia na compreensão das decisões de gestão
sobre a edicação. Em 29 de outubro de 194611, foi dada entrada
em requerimento (Obras-RJ_Cx.418-P.1809.1, . 16) solicitando a
construção de posto de gasolina na quadra da Igreja (ver guras 10 e
11). A manifestação do IPHAN foi contra o empreendimento, “uma
vez que impediria a visibilidade de grande parte da igreja de Santa
Luzia, além de desgurar o aspecto tradicional do monumento”
(Ibidem, . 15), decisão questionada pelo requerente em 20 de
dezembro do mesmo ano (Ibidem, . 14), que é a data de protocolo
da planta do projeto existente no Arquivo Noronha Santos. Não
consta resposta na documentação.
Figuras 10 e 11: posto de gasolina proposto para a quadra da Igreja. Arquivo Noronha
Santos, pasta Obras-RJ_Cx.418-P.1809.2, prancha 5.
11 Na mesma pasta, em requerimento feito em 20 de dezembro do mesmo ano (.
14), consta que já havia sido apresentado pleito similar em 1943. Contudo, não foi
localizado registro do protocolo, e tampouco plantas ou outras peças grácas que
elucidem o partido então proposto.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
598
Novo requerimento foi feito em 08 de março de 1948 (Ibidem,
. 19), dessa vez solicitando tão somente a instalação de bombas de
gasolina sem abrigos. O parecer da área técnica do IPHAN (Ibidem,
. 20) se deu da seguinte forma:
A área em questão interessa a dois monumentos: a Igreja de Santa
Luzia e Ministério da Educação e Saúde.
Somos de parecer que nos terrenos circunvizinhos de tais edifícios
não se deva permitir instalações comerciais, qualquer que seja o
seu gênero, maximé instalações de bombas de gasolina por se tratar
de material inamável. (Arquivo Noronha Santos, pasta Obras-RJ_
Cx.418-P.1809.1, . 20)
As preocupações do órgão ao longo da evolução do projeto,
portanto, levaram em consideração a visibilidade da edicação
e questões de segurança. Contudo, chama atenção o reparo à
interferência sobre o “aspecto tradicional”, haja vista que também o
anexo do IPHAN para o consistório adotaria linhas contemporâneas,
porém, em estilo moderno e com alguma tentativa de mimetização,
enquanto o abrigo empregava linhas de inspirações compositivas
que remetem ao Art Déco. Por outro lado, a posição contra
estabelecimentos comerciais reforça a construção de uma ambiência
austera, neutra e institucional que evidencia a dignidade da Igreja
como documento do passado colonial.
Considerações nais
As considerações do IPHAN e as decisões de gestão evidenciam
que a atuação do órgão na Fase Heroica podia seguir diretrizes
complexas e por vezes díspares em relação a patrimônio religioso
colonial. Nos vários estudos amplos sobre o recorte temático, é
pacíca a primazia dessa tipologia nas ações de salvaguarda no
início da atuação do órgão, conforme já explorado neste trabalho.
Contudo, ao nos aproximarmos de caso especíco, percebemos que
o olhar dos técnicos se aproximava de noções puristas que adiantam
debates posteriores referente à autenticidade dos bens culturais.
Natália Vieira (2008) sinaliza que as questões referentes à
autenticidade não são novas, mas que se consolidaram enquanto
conceito ao longo da segunda metade do século XX, e culminou
na publicação da Carta de Nara em 1994. Esse documento
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
599
patrimonial destaca que a qualicação do autêntico está relacionada
aos valores atribuídos a um bem e ao contexto cultural em que
se encontra inserido. Nesse sentido, podemos entender que a
atuação preservacionista em relação à Igreja de Santa Luzia na
década de 1940 parte de valores tipológicos – aqui compreendendo
tipo enquanto síntese abstrata de um recorte de produção
arquitetônica – estabelecidos para o fortalecimento da construção
de uma identidade nacional e da retórica modernista no âmbito do
patrimônio. Ao levarmos em consideração que esse foi o referencial
utilizado, explica-se a contradição entre a primazia da tipologia e a
rejeição à maior parte dos acréscimos realizados no século XIX na
medida em que o objeto da patrimonialização deveria se adequar
a um tipo – aqui compreendendo o tipo enquanto ideal – que
sustentou a narrativa do discurso nacionalista.
Curiosamente, nos documentos pesquisados não se coloca em
xeque a autenticidade das torres sineiras do século XIX. Sobre isso,
neste momento da pesquisa, pode-se apenas especular: seriam elas
elementos já agregados ao repertório religioso colonial? Para elas,
teria inuenciado a imagem afetiva – haja vista que seu peso na
composição da fachada é mais signicativo do que o consistório
– e, portanto, seriam elementos de difícil desvinculamento da
imagem do templo? Se as indagações forem pertinentes, suas
eventuais respostas podem evidenciar as tensões correlatas ao
amadurecimento do conceito de autenticidade na acepção ampla
proposta pela Carta de Nara.
Por outro lado, do ponto de vista urbanístico, assistimos
à completa desconsideração do tecido urbano ao qual estava
associado o templo. Vê-se que, nesse momento, a participação da
cidade na construção dos valores é coadjuvante, e o processo de
urbanização engendrado ao longo do século XIX foi rechaçado
enquanto elemento de contextualização da edicação.
Desde atribuições de valor distintas para cada volume até o
descarte de reexões aprofundadas sobre o papel da cidade pretérita
nos valores culturais do bem, a Igreja de Santa Luzia constitui
instigante caso que revela as inquietações e complexidades que
envolvem a atuação na Fase Heroica. Trata-se de um processo
complexo, eventualmente contraditório, que evidencia a diversidade
do patrimônio cultural e a possibilidade (ou não) da sua proteção
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
600
não enquanto materialidade estática, mas enquanto processo
histórico.
REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova
linguagem na arquitetura (1930-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2006, pp. 1-63.
COSTA, Lúcio. Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. Revista do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: SPHAN, nº 5,
pp. 105-169.
CURY, Isabelle (org.). Cartas Patrimoniais. IPHAN: Rio de Janeiro, 2004,
3ª ed.
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro (vol. 1).
In: Revista do Instituto Histórico e Geográco Brasileiro. Rio de Janeiro:
imprensa nacional, 1921.
EINSEMANN, Peter. O m do clássico: o m do começo, o m do m. In:
NESBITT, Kate (org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura: Antologia
Teórica. São Paulo: Cosac Naify, 2006, pp. 232-251.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: trajetória
da política federal de preservação no Brasil. 2 ed. rev. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ; MinC – IPHAN, 2005.
FONSECA, Thiago Santos Mathias. Permanências do Plano Agache:
discussão, formação e prática da disciplina do Urbanismo no Rio
de Janeiro (1927-1945). Monograa (Graduação em Arquitetura e
Urbanismo). Escola de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
Fluminense. Niterói: 2019.
_______ Ver o Patrimônio: redesenho de paisagem da Igreja de
Santa Luzia e Palácio Gustavo Capanema. Monograa (especialização
em Patrimônio Cultural). Rio de Janeiro: Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET), 2023, 113 pp.
MAURÍCIO, Augusto. Igrejas Históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Livraria Kosmos Editora, 1977.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
601
MOTTA, Lia; THOMPSON, Analucia. Entorno de Bens Tombados. Rio de
Janeiro: IPHAN/ DAF/ Copedoc, 2010. Disponível em: http://portal.iphan.
gov.br/uploads/ publicacao/SerPesDoc4_EntornoBensTombados_m.pdf;
acesso em 05/01/2021.
NONATO, José Antonio; SANTOS, Nubia Melhem. Era uma vez o Morro do
Castelo. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000, 368 pp.
REIDY, Aonso Eduardo. Urbanização da Esplanada do Castelo. Revista
Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro, n.5, vol. V, pp. 604-607,
setembro, 1938.
SCHERER, Rebecca. Apresentação. In: LE CORBUSIER. A Carta de Atenas.
São Paulo: HUCITEC: EDUSP, 1993.
SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA. Proteção e revitalização do patrimônio cultural
no Brasil: uma trajetória. Brasília: Sphan/Pró-Memória, 1980. Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/cknder/arquivos/Protecao_
revitalizacao_patrimonio_cultural(1).pdf; acesso em 02/01/2023.
WINSK, Guilherme. Mod/ernidade Congênita. In: FORTY, Adrian; ANDREOLI,
Elisabetta (org.). Arquitetura Moderna Brasileira. Londres: Phaidon,
2004, pp. 20-55.
ENTRE LINHAS E LEMBRANÇAS:
CABO FRIO NAS TRAMAS DE
CLIO - PATRIMÔNIO HISTÓRICO,
ENQUADRAMENTO DE MEMÓRIA
E HISTORIOGRAFIA
André Luiz Garrido Barbosa1
Considerações iniciais
Esta reexão tem como ponto de partida a análise dos bens
tombados2 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN3) em Cabo Frio. A seleção desse estudo é
1 Doutorando em História Social – PPGHS – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). E-mail: garrido-andre@hotmail.com
2 Entendemos o tombamento a partir da perspectiva de José Reginaldo Gonçalves,
como um ato de incorporação de um bem ao patrimônio histórico e artístico nacional.
Sendo o tombamento um importante instrumento legal usado para que o Estado se
aproprie dos bens culturais que integram o chamado patrimônio nacional. Uma vez
tombado, o referido bem é inscrito e um ou mais livros do Tombo, classicados em:
Livro do Tombo Arqueológico, Etnográco e Paisagístico; Livro do Tombo Arqueológico;
Livro do Tombo de Belas Artes e o Livro do Tombo das Artes aplicadas.
3 Como o IPHAN ao longo de sua trajetória teve diversas denominações, a m de
evitar a utilização repetida dessas variadas siglas no decorrer do trabalho, utilizaremos
a perspectiva adotada por Leila Bianchi Aguiar, que elucida de maneira breve essas
transformações: “Optamos por chamar de IPHAN a agência federal de preservação
criada como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937.
602
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
603
fundamentada pelo fato de que esses monumentos representam
símbolos importantes vinculados à história local, recebendo o
reconhecimento da autarquia governamental responsável pela
preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe a essa
instituição a incumbência de salvaguardar e fomentar os bens
culturais do país.
Como fonte de pesquisa sobre os bens tombados pelo IPHAN
em Cabo Frio, foi conduzido um levantamento da documentação
disponível no escritório do IPHAN em São Pedro da Aldeia,
em busca de informações sobre os bens tombados. Além disso,
foram realizadas pesquisas nas principais instituições de pesquisa
na cidade do Rio de Janeiro, incluindo a Biblioteca Nacional, o
Instituto Histórico e Geográco Brasileiro e a Biblioteca Noronha
Santos (pertencente ao IPHAN). Adicionalmente, foi realizado um
levantamento de fontes no Arquivo Central do IPHAN, através de
inventários e dos processos de tombamento relacionados a Cabo
Frio conduzidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico.
Nessa etapa da pesquisa, vale também a recorrência à leitura
do que constam os processos dos bens tombados pelo IPHAN na
cidade de Cabo Frio: 447-T-51 de 1951, 0757-T-65 de 1965 e 1492-
T-2002.
O processo inicial, datado de 1951, refere-se ao tombamento dos
conjuntos arquitetônicos e paisagísticos do Morro da Guia e da Ponta
do Forte. Esses conjuntos incluem, respectivamente, o Convento e
Igreja de Santa Maria dos Anjos, a Capela Nossa Senhora da Guia e
as ruínas do Forte São Mateus4.
Sobre esse tombamento, é relevante notar que, decorridos 14
anos desde a sua abertura, um novo processo foi iniciado, desta vez
com caráter de urgência, em relação à preservação do patrimônio
histórico e paisagístico local, bem como à expansão da área de
Em 2 de janeiro de 1946, o Decreto-Lei 8.534 transformou o Serviço em Diretoria
(DPHAN). Em 27 de julho de 1970, o Decreto n° 66.967 transformou a DPHAN em
Instituto (IPHAN). Em 26 de novembro de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei
no 6.757, criando a Fundação Nacional Pró-Memória, órgão operacional do IPHAN. Um
resumo cronológico com as principais transformações sofridas pela agência pode ser
encontrado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 22, 1987, p. 343.”
AGUIAR, Leila Bianchi. Desaos, permanências e transformações na gestão de um sítio
urbano patrimonializados: Ouro Preto, 1938-1975. Revista: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol.29, no 57, p.87-106. 2016.
4 Conforme informações obtidas no processo nº 447-T-51 de 1951, página: 1.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
604
proteção. Isso se deve ao alegado processo de degradação, resultante
da falta de cuidados e da destruição provocada pela expansão
imobiliária na cidade. Os casos emblemáticos mencionados no
processo incluem a destruição da cadeia pública, a existência de
projetos para a construção de edifícios próximos à orla da praia e a
construção de um hotel em uma área de dunas5 próxima à praia.
Nos processos de tombamento realizados em Cabo Frio, observa-
se o discurso voltado para a preservação dos bens construídos
na cidade. Isso é evidenciado através da correspondência entre o
DPHAN, a Prefeitura Municipal, a Procuradoria da República no
Estado do Rio de Janeiro, a Mitra Diocesana e a Ordem Terceira.
Nessas comunicações, destaca-se a necessidade de proteção dos
monumentos históricos, devido à ameaça do crescimento urbano
desordenado e à falta de cuidado com esses patrimônios6.
Em uma carta dirigida ao Procurador da República no Estado
do Rio de Janeiro em 1961, o diretor do DPHAN, Rodrigo Melo
Franco de Andrade, expressou a preocupação com as construções
irregulares na área e no entorno do Convento e da Igreja de Nossa
Senhora dos Anjos em Cabo Frio. Na correspondência, ele solicitou
ao procurador que tomasse medidas para resolver o problema7.
Diante das denúncias de ameaças ao patrimônio histórico e
natural em Cabo Frio, foi iniciado, em 1965, um novo processo de
tombamento, com o objetivo de redenir a proteção do conjunto
paisagístico da cidade8. A partir desse processo de reestruturação
dos monumentos tombados, houve uma nova conguração em
relação às áreas protegidas, com os seguintes elementos a serem
preservados:
5 Conforme informações obtidas no processo nº 7575-T-65 de 1965, volume:1, página:
2.
6 Processo: 0447-T-51: ofício no 70 do DPHAN para prefeitura de Cabo Frio de 1951;
ofício no 89/51 da Prefeitura de Cabo Frio para o DPHAN; correspondência para vigário
da paróquia de Cabo Frio em 1956; telegrama do DPHAN para a Mitra Diocesana em
Niterói e resposta da mesma no ano de 1956; noticação no 775 do DPHAN para o
Ministro Provincial Franciscano de1956; noticação no 806 do DPHAN para o Ministro
Provincial Franciscano de 1958; ofício no 1796 do DPHAN para o Procurador da
República no Estado do Rio de Janeiro em 1961.
7 Processo 0447-T-51: ofício no 1796 do DPHAN para o Procurador da República no
Estado do Rio de Janeiro em 1961.
8 Ibid. volume:2, página: 2.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
605
1. “Conjunto arquitetônico do Convento Nossa Senhora dos Anjos,
Capela e Cemitério da Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência, inclusive o adro fronteiro, o cruzeiro e mais o largo de
Santo Antônio até a orla do canal. O tombamento foi estendido à
capela e Morro de Nossa Senhora da Guia.
2. Morro do Telégrafo e os baixios que foram aterrados como
acréscimo de Marinha no canal de acesso à lagoa.
3. Forte São Mateus, inclusive o Penedo em que ele se assenta e toda
a ponta da praia, constituindo uma área de quinhentos metros de
raio traçada a partir do centro geométrico do Forte.” (IPHAM, 1951,
p. 69)
Para o órgão responsável pelo patrimônio, a rapidez no processo
de tombamento estava associada ao elevado estado de abandono
desses monumentos e de sua área circundante, aliado à ameaça
que o crescimento acelerado da cidade de Cabo Frio representava
para a preservação dessa memória local. Segundo a compreensão
da autarquia estatal, essa preservação era considerada de interesse
nacional.
O argumento recorrente da perda é frequentemente empregado
pelos especialistas do IPHAN para fundamentar os processos
de tombamento realizados em Cabo Frio. Esse argumento ganha
força a partir da apropriação desses bens pelo Estado, que assume o
papel de guardião de uma memória construída, visando preservar
esses fragmentos do passado para protegê-los da transitoriedade a
que estão sujeitos. Essa ameaça pode surgir tanto das intempéries
do tempo quanto da falta de cuidado por parte de particulares ou
do poder público, de desvios de nalidade e da descaracterização
desses bens, transformando-os em referências simbólicas coletivas.
Nessa perspectiva, o presente, assim como tudo o que é espacialmente
próximo, aparecerá corroído por um processo de perda oposto aquela
situação original – distante no tempo ou no espaço – denida por
coerência, integridade e continuidade. Os efeitos desse esquema
de pensamento em termos de práticas envolvendo os chamados
patrimônios culturais será o de desenvolver um interminável trabalho
de resgaste, restauração e preservação de fragmentos, visando
estabelecer uma continuidade com aquela situação originária
(GONÇALVES, 1996, p. 23)
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
606
Ao analisarmos os processos de patrimonialização conduzidos
pelo IPHAN na cidade, notamos que os tombamentos realizados
nas décadas de 1950 e 1960 foram organizados a partir de uma
abordagem de integração. Nessa perspectiva, elementos da paisagem
histórica e natural foram alvo da seleção e objeticação por parte
dos técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico, em diversos
contextos nos quais esses processos foram executados.
A abordagem integrada no processo de tombamento nos faz
lembrar a concepção de Reinhart Koselleck, que, ao considerar o
espaço e o tempo como categorias passíveis de estudo histórico,
observa que o espaço também passa por um processo de
historicização.
... espaço e tempo representam, como categorias, as condições de
possibilidade da história. Mas também o “espaço” tem uma história.
O espaço é algo que precisamos pressupor meta-historicamente para
qualquer história possível e, ao mesmo tempo, é historicizado, pois se
modica social, econômica e politicamente. (KOSELLECK, 2014, pág.
77).
Relacionando isso ao contexto do tombamento realizado em
Cabo Frio pelo IPHAN, podemos observar esse processo de
historicização experimentado por esses espaços culturais e naturais.
Isso ocorre em função das mudanças ocorridas no ambiente
urbano da cidade ao longo do tempo e das diversas atribuições de
signicados que esses objetos receberam durante seu espaçamento
temporal.
No ano de 2002, ocorre o terceiro processo de tombamento, cerca
de cinquenta anos após o processo inicial. Esse procedimento tem
como foco a Fazenda de Santo Inácio de Campos Novos, localizada
no distrito de Tamoios. Remanescente da antiga propriedade que
pertencia à ordem dos jesuítas durante o período colonial, a fazenda
será tombada pelo IPHAN. O principal argumento para esse
tombamento é a relação histórica entre a fazenda e a Companhia de
Jesus durante o primeiro período colonial. 9
Esse processo de tombamento abrange as construções da fazenda,
que datam do século XVII, e a área circundante em uma extensão
de 100 metros além desse perímetro. Sua nalidade é regulamentar
9 Conforme informações obtidas no processo nº 1492-T-2002.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
607
a ocupação desse espaço, assegurando a preservação da área aberta
ao redor e mantendo sua inuência sobre a paisagem ao redor. 10
Conforme evidenciado, o processo de identicação e tombamento
de bens patrimoniais e paisagísticos em Cabo Frio é fundamentado
na preocupação com sua preservação. Isso inclui a consideração
de ações de degradação, destruição, bem como as transformações
ocorridas na cidade, resultantes das mudanças urbanas e rurais que
o município experimentou ao longo dos anos.
A análise da história local de Cabo Frio e dos processos de
patrimonialização conduzidos pelo IPHAN deve ser abordada dentro
do contexto dos estudos históricos, seguindo a perspectiva de Lucien
Febvre, que concebe a história como “um estudo cienticamente
conduzido” (FEBVRE, 1989, p. 30). Nessa abordagem, o historiador
emprega ferramentas de pesquisa especícas e aborda problemáticas
relacionadas às questões do tempo presente em que está inserido.
Ao explorar o passado, o historiador procura construir respostas
para suas indagações, qualicando o discurso histórico como uma
narrativa de natureza cientíca.
Reetir sobre a pesquisa do patrimônio histórico em Cabo
Frio e da história local por meio desses espaços sociais estabelece
canais de diálogo entre as práticas sociais examinadas e viabiliza a
problematização dessas expressões culturais na pesquisa histórica.
A abordagem da história local e da análise do patrimônio cultural
em Cabo Frio, por meio dos processos de patrimonialização, nos
conduz à reexão sobre a relevância de problemas e hipóteses
como recursos essenciais para validar o discurso gerado pelos
historiadores (FEBVRE, 1989).
Num cenário de crítica à chamada história factual e exaltadora de
algumas guras históricas de liderança, Febvre advoga em favor de
uma abordagem histórica problematizadora. Essa abordagem não
se restringe a louvar feitos singulares de personalidades políticas,
mas sim busca reetir sobre o aspecto social, abrangendo desde
as massas anônimas até as estruturas sociais e a sociedade global.
Isso é alcançado por meio da reconstrução dos eventos em séries
passíveis de compreensão e explicação (VAINFAS, 1997).
A aplicação de problemas e a elaboração de hipóteses por Lucien
Febvre e Marc Bloch em seus estudos históricos tornar-se-ão
inuentes com a criação da revista e o movimento historiográco
10 Ibid.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
608
conhecido como Annales. Esse enfoque pioneiro pavimentou o
caminho para transformações signicativas no curso da história e
nas produções historiográcas (VAINFAS, 1997).
Ao adotar essa perspectiva de uma história problema e aplicá-la
ao objeto de pesquisa que nos propomos a analisar, percebemos que
o estudo dos bens tombados pelo IPHAN em Cabo Frio representa
um referencial simbólico signicativo para a compreensão da
história local e para a construção de uma memória histórica
alicerçada nesses monumentos. Nesse contexto, utilizaremos como
base o processo de patrimonialização conduzido pelo IPHAN no
município, reconhecendo a importância de criar uma narrativa
com suas próprias regras e objetos, visto que isso é fundamental
para a produção de inteligibilidade a partir do conhecimento desses
locais de memória (NORA, 1993).
Ao encararmos o patrimônio histórico como o conjunto de todo
legado cultural que detém signicado e relevância histórica para
uma sociedade ou grupos sociais, podemos categorizar os bens
tombados como lugares de memória, conforme a abordagem de
Pierre Nora (1993). Nessa ótica, ao serem considerados lugares de
memória, os bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico,
visando preservar uma forma especíca de memória, perdem
seus signicados originais e passam por uma ressignicação. Isso
ocorre em função dos usos que lhes são atribuídos e da condição de
monumentos a serem reverenciados.
O patrimônio é, portanto, resultado de uma produção marcada
historicamente. É ao m de trabalho de transformar objetos, retirando-
lhes seu sentido original, que acedemos à possibilidade de transformar
algo patrimônio. Adjetivar um conjunto de traços do passado como
patrimônio histórico é mais do que lhes dar uma qualidade, é produzi-
los como algo distinto daquilo para o qual um dia foram produzidos e
criados. (GUIMARÃES, 2012, p. 100)
O processo de desritualização, ressignicação e atribuição de
novos signicados aos bens tombados pelo IPHAN em Cabo Frio,
ao longo de sua própria historicidade, ocorre em parte quando as
edicações deixam de ser utilizadas para suas nalidades originais e
passam a ter novos propósitos. Um exemplo é o Forte São Matheus,
que deixou de ser empregado para ns defensivos, assim como o
Convento Franciscano, que foi transformado no Museu de Arte
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
609
Sacra. Além disso, a Fazenda Campos Novos, após ter passado
por diferentes proprietários, tornou-se a sede atual da Secretaria
Municipal de Agricultura. É importante ressaltar que, no caso
desses monumentos, esse processo já estava em andamento muito
antes do tombamento, quando enfrentavam degradação ou eram
objeto de novos usos por parte de seus utilizadores.
Os locais de recordação remodelados em memoriais e museus estão
sujeitos a um paradoxo profundo: a conservação desses locais em favor
da autenticidade signica inegavelmente uma perda de autenticidade.
Enquanto se preserva o local, também não se pode evitar ocultá-
lo e substituí-lo. Apenas uma pequena parte do acervo pode ser
preservada como representativa, e também nesse tipo de prédio
é preciso reformar e substituir as partes em ruínas. Com o tempo, a
autenticidade se retrairá, passará dos elementos remanescentes ao
“aqui” da localidade. (ASSMANN, 2011, pág.354)
O processo de tombamento realizado pelo IPHAN em Cabo Frio
e a conversão de locais com uma história construída em espaços
musealizados, como o Convento Nossa Senhora dos Anjos, ou em
lugares de recordação histórica, como o Forte São Mateus, que é
visitado por turistas e moradores, e inclusive a Fazenda Campos
Novos, utilizada pela administração municipal como local de
trabalho em sua estrutura burocrática, transformam-se em locais
de lembranças encobertas. Essas lembranças, devido aos processos
de uso e ressignicação desses espaços, conservam algumas de suas
características originais, mesmo diante das mudanças ao longo do
tempo.
O local da recordação é de fato uma “tecitura incomum de espaço e
tempo”, que entretece presença e ausência, o presente sensorial e o
passado histórico. Se a marca da autenticidade é a ligação entre o aqui
e o agora, então o local de recordação como um aqui sem agora, não
passa de autenticidade parcial. (ASSMANN, 2011, p. 360)
Apesar dos esforços empreendidos pelos prossionais do
IPHAN, pela administração municipal, pelo IBRAM e por outros
agentes, tanto públicos quanto privados, que se envolvem na
preservação, guarda e evocação da memória construída para manter
as características originais desses locais, o processo de perda de
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
610
autenticidade é algo inevitável e intrínseco aos diversos usos desses
semióforos temporais. Essa dinâmica contribui para a criação de uma
espécie de simulacro de épocas passadas, permitindo àqueles que
utilizam esses espaços perceber sensorialmente o distanciamento e
a separação do passado.
As narrativas nacionais sobre patrimônio cultural estão estruturalmente
articuladas por essa oposição entre transitoriedade e permanência,
sendo que as práticas de resgate, restauração e preservação incidem
sobre objetos que podem ser pensados como análogos a ruínas,
quando não se constituem literalmente em ruínas. Como tais, esses
objetos estão sempre em processo de desaparecimento, ao mesmo
tempo em que provocando uma permanente reconstrução. Esse
interminável jogo entre desaparecimento e reconstrução é que move
as narrativas sobre patrimônio cultural em sua busca por autenticidade
e redenção (GONÇALVES,1996, p. 28).
Dominique Poulot (2012), ao discutir a ampliação do conceito
de patrimônio como um vínculo social que mobiliza diversos
indivíduos e instituições, sejam públicas ou privadas, para a
preservação de heranças culturais, que podem ser compreendidas
por meio de conjuntos materiais, conhecimentos, valores e sistemas
de signicado, demonstrará que a aplicação desse campo de estudo
resultará em diversas atribuições de sentido e compreensão.
A valorização do patrimônio como um bem e sua conceituação
surgem a partir do contexto da Idade Moderna na Europa. Nessa
época, houve uma ênfase na exaltação da cidade ou nação e na
preservação dos bens a eles associados. No século XIX, além das
preocupações preservacionistas e da manutenção de uma memória
e tradição vinculadas a um telos do passado, relacionado à ascensão
dos estados-nações, observa-se uma progressiva instauração
de um academicismo voltado para a conservação e restauração
patrimonial. Ao longo do século XX, a ideia de conservação11
11 A perspectiva de “preservar tudo”, como marcas de um passado glorioso, é muito
utilizado quando a preservação vem vinculada ao discurso nacionalista que foi muito
inuente nas questões de patrimônio e que vai variar ao longo do tempo, de acordo
com a história de cada nação, sendo muito utilizado esse viés quando percebemos, no
caso do Brasil a valorização do bens edicados como representantes de fragmentos
de uma história nacional e que a preservação desses bens estaria vinculada a uma
narrativa histórica nacionalista.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
611
passa a incorporar uma representação de historicidade, tratando
o patrimônio como um vestígio do passado no presente. Como
resultado, há uma ampliação do próprio conceito de patrimônio,
que deixa de se concentrar exclusivamente na conservação de bens
materiais, passando a valorizar também a preservação de recursos
culturais imateriais (GONÇALVES, 1996; CHUVA, 2009, 2012;
POULOT, 2012).
É importante ressaltar que, a partir do século XX, uma das
ênfases na preservação do patrimônio histórico está centrada
na dinâmica preservacionista, fundamentada na ideia da perda
iminente ou já ocorrida. Para alcançar esse objetivo, é necessário,
por meio da evocação desse passado, estabelecer uma conexão
entre o passado e o presente, procurando resgatar o sentido de
uma experiência passada. Isso possibilita a criação de um tipo de
elo entre os indivíduos da época atual e aquele passado evocado
(HARTOG, 2019).
A partir do entendimento do patrimônio histórico como algo
ligado à preservação de um passado, que está associado ou é
vinculado a memórias de natureza individual ou coletiva, seja por
meio das experiências sensoriais do(s) sujeito(s) ou através de
uma memória construída, sua legitimação como um bem cultural
está intrinsecamente relacionada ao contexto histórico em que foi
originado. O patrimônio é construído historicamente e, portanto,
sujeito a uma historicidade própria (GUIMARÃES, 2012).
A memória, seja por meio de testemunhos diretos ou indiretos
dos indivíduos, ou por monumentos e espaços que evocam as
narrativas de eventos atribuídos ao passado, desempenha um papel
crucial na construção e preservação de uma identidade social. Ela
contribui para a formação de um sentimento de ligação emocional,
ao mesmo tempo em que proporciona durabilidade e vivacidade
aos que mantêm essa lembrança, por meio de sua evocação.
Aleida Assmann (2011), ao buscar distinguir memória de
recordação, concebe a memória como algo que é reetido e passível
de armazenamento ao longo do tempo e frente ao esquecimento,
constituindo uma forma de conhecimento que pode ser adquirida
individualmente ou transmitida. Por outro lado, a recordação está
vinculada às experiências pessoais que não podem ser ensinadas
e que, no momento de sua evocação, estão sujeitas a processos de
deslocamento, reformulação, distorção e reavaliação.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
612
A memória pode ser categorizada a partir de uma perspectiva
cultural ou comunicativa. Na primeira dimensão, temos a memória
formativa, na qual um indivíduo pode, por exemplo, desenvolver
vínculos com uma nação ou região, e a memória de aprendizagem,
tratada por Aleida Assmann como mnemotécnica12. (ASSMANN,
2011) A segunda dimensão da memória é o que a autora denomina
como uma memória comunicativa, “que normalmente liga três
gerações consecutivas e se baseia nas lembranças legadas oralmente”
(ASSMANN, 2011, p. 17) Ambas as dimensões da memória
contribuem, cada uma à sua maneira, para a formação de laços de
pertencimento identitário entre os indivíduos e as coletividades em
que estão inseridos.
Em vários aspectos, podemos considerar que os processos de
tombamento realizados pelo IPHAN contribuem para a construção
de um patrimônio cultural que muitas vezes estabelece suas raízes
em uma relação de conexão com o passado local ou nacional,
dependendo do tipo de narrativa historiográca que está sendo
desenvolvida. Utilizando a metáfora da ruína, pois em diversas
justicativas de tombamento apresentadas pelos técnicos do
Instituto do Patrimônio, argumenta-se que esses bens estão em vias
de desaparecimento, e o tombamento serviria para proteger esses
espaços contra destruição, perda ou homogeneização. Além disso,
há um repertório completo de adjetivações13 que fundamentam as
práticas de intervenção por parte dessa autarquia do poder público
(GONÇALVES, 1996).
Nesse contexto, é possível armar que a preservação do
patrimônio material e natural da cidade de Cabo Frio segue
essa lógica, ou seja, a de conservar um bem que possui ou pode
ser associado a uma relação de memória material, institucional e
coletiva com a comunidade em que está inserido. Isso considera
12 Aleida Assmann, chama a mnemotécnica como a arte ou técnica da memorização,
que remonta a uma tradição que vem da antiguidade romana e que consiste no
desenvolvimento de diferentes técnicas de armazenamento de informações através
da memorização.
13 Destacamos como alguns dos principais adjetivos usados pelos técnicos do IPHAN,
outros setores do poder público ou da sociedade para justicar as intervenções que
irão levar aos processos de tombamento perpetrados: destruição, evasão, ruína,
dispersão, desaparecimento, deformação e substituição.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
613
o seu uso ao longo do tempo e sua possível representatividade
material e simbólica.
É importante destacar que tanto a análise das semelhanças,
diferenças ou deslocamentos nas narrativas entre a patrimonialização
promovida pelo IPHAN em Cabo Frio quanto a formação de
uma memória histórica legitimada por esse órgão governamental
ocial, capaz de conduzir a construção e produção de signicados,
permanência e seleção do que deve ser enfatizado como memória
ocial, estão inseridas na perspectiva do emprego do conceito de
enquadramento de memória desenvolvido por Michael Pollak
(POLLAK, 1989).
A memória pode ser considerada um fenômeno individual
que engloba todos os indivíduos de maneira única e pessoal,
relacionando-se às suas experiências passadas e interpretações do
mundo. Além disso, a memória é também um fenômeno coletivo
e social, onde as experiências compartilhadas ou características
identitárias entre os sujeitos, dentro de um determinado corpo
social sujeito a uma temporalidade e espacialidade especícas,
promovem uma aproximação ou uma troca de perspectivas entre as
diversas narrativas de um mesmo evento passado (POLLAK, 1992).
Dessa forma, a problematização do emprego da memória na
prática do historiador se congura como um instrumento crucial
para a preservação de informações do passado, atuando como uma
ferramenta essencial na construção de narrativas históricas acerca
de um determinado período.
A diversidade das fontes históricas possibilita interpretações
multifacetadas sobre o passado, incluindo o uso da memória como
uma das fontes para a pesquisa do desenvolvimento histórico a serem
empregadas pelo historiador. Isso permite que a problematização
da memória contribua para a potencial formação ou perpetuação
de identidades compartilhadas por um ou mais grupos sociais ou
instituições, seja por meio de uma consciência de pertencimento ao
grupo ou pela transmissão de hábitos a outras gerações através da
participação direta ou indireta nos eventos passados.
Com o intuito de entender as normas que orientam a escrita
da história e como os indivíduos ou uma comunidade estabelecem,
desenvolvem e percebem o tempo, assim como o impacto dessa
consciência de si e da comunidade na narrativa produzida por eles
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
614
e pelos historiadores, adotaremos, nesta pesquisa, o conceito de
regime de historicidade (HARTOG, 2019).
Neste trabalho, empregamos o conceito de regime de historicidade
para analisar aspectos da memória dos monumentos tombados pelo
IPHAN em Cabo Frio, utilizando o conceito de enquadramento
de memória proposto por Pollak. Nesse contexto, valendo-se dos
recursos da pesquisa histórica e das narrativas elaboradas por
historiadores e intelectuais de diversas áreas, como arquitetos e
arqueólogos, que desempenham papéis de relevo nos processos
de tombamento e na seleção das memórias a serem preservadas,
procuramos compreender por que algumas memórias são mais
enfatizadas do que outras, adquirindo um status de veracidade
histórica (POLLAK, 1989, 1992).
Portanto, após reconhecer a importância do patrimônio histórico
como meio de preservar fragmentos do passado e construir uma
memória histórica que busca legitimidade por meio de uma narrativa
com regras e objetos próprios do contexto em que é desenvolvida, e
que inclui a produção de inteligibilidade, consideramos signicativo
o estudo desses locais de memória por meio de seus processos de
patrimonialização. Dessa forma, busca-se uma aproximação entre o
conhecimento gerado pela academia no campo da História sobre as
políticas de tombamento conduzidas pelo IPHAN, responsável por
determinar ou enquadrar o que deve ser destacado ou preservado
como patrimônio histórico.
FONTES E REFERÊNCIAS
1-Fontes:
1.1 Arquivo Noronha Santos
1.1.1 Processos de tombamento:
0447-T-51 Conjunto arquitetônico e paisagístico do Morro da Guia e da
Ponta do Forte.
0757-T-65 Conjunto paisagístico de Cabo Frio.
1492-T-02 Sítio da Antiga Fazenda de Santo Inácio de Campos Novos, Cabo
Frio, Estado do Rio de Janeiro.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
615
2- Artigos e Obras gerais:
AGUIAR, Leila Bianchi. Desaos, permanências e transformações na
gestão de um sítio urbano patrimonializados: Ouro Preto, 1938-1975.
Revista: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.29, no 57. p.87-106. 2016.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da
memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: Sociogênese
das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (1930-1940).
Rio de Janeiro: UFRJ. 2009.
______. História e Patrimônio: entre o risco e tração, a trama. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 34, 2012, p. 11-24.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa. Editorial Presença, 1989.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do
patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora: UFRJ; IPHAN, 1996.
______. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição.
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 28, nº 55, p. 211-228. 2015.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “História, memória, patrimônio”.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 34, 2012, p. 91-112.
HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências
do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
IPHAN: Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872.
Acessado em 26/02/2017.
IPHAN: Informações sobre bens tombados em Cabo Frio – Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/379/. Acessado em
26/02/2017.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de
Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014.
NORA, Pierre. “ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA: A problemática dos lugares”.
In: Projeto História. São Paulo. V. 10, 1993, p.7 – 28. In: http://revistas.
pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763. Acessado em
20/01/2017.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
616
POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In Revista Estudos
Históricos.V,2, n. 3, 1989, p. 3-15.
______. “Memória e identidade social”. In Revista Estudos Históricos. V,
5, n. 10, 1992, p. 200-212.
POULOT, Dominique. “A razão patrimonial na Europa do século XVIII ao
XXI”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 34, 2012,
p. 27-44.
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História Cultural. In:
Cardoso, Ciro & Vainfas, R. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus,
1997, p.127-164.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
617
PARTE IV
PATRIMÔNIO CULTURAL:
MATERIAL, IMATERIAL E
INDUSTRIAL
ESTRADA DE FERRO RIO GRANDE
- PELOTAS - BAGÉ: PATRIMÔNIO
FERROVIÁRIO DA REGIÃO SUL
Alexsandra de Los Santos1
Antonio Soukef Junior2
Aline Montagna Silveira3
Introdução
A Revolução Industrial foi responsável por uma série de
transformações, tanto urbanas quanto sociais, sendo o transporte
ferroviário uma delas. A ferrovia tornou-se a propulsora da
industrialização, da urbanização e da transformação do estilo de vida
em todas as camadas sociais. As linhas ferroviárias desencadearam
também novas perspectivas, como por exemplo novas estratégias
militares e a integração de povos e territórios (KLIEMANN, 1977).
O modal tornou-se tão importante que as Estações passaram a
ter um status de “portas da cidade”, uma vez que em “(...) todas as
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU).
E-mail: alexsandradarosa1@hotmail.com
2 Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor Visitante do Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU). E-mail: asoukef@gmail.com.
3 Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professora Associada do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
(PROGRAU) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: alinemontagna@
yahoo.com.br
618
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
619
grandes cidades europeias, o trem passou a ser o principal meio
de locomoção interurbano, (...)” (FINGER, 2013). Além das
transformações físicas:
As ferrovias ocasionaram transformações não somente por sua
existência física e “real”, desenvolvendo o transporte, propiciando ou
impedindo a urbanização. Os trens passaram a adentrar a imaginação
das pessoas, metaforicamente ou não, modicando a forma como
estas se anavam com o tempo, com a velocidade e seus estímulos e
com o próprio espaço. (SCHMITZ, 2013, p. 28).
No Brasil, foi empreendida por capital estrangeiro, inicialmente
o britânico, e teve como base a busca pelo progresso, pela
industrialização e pela urbanização. Os primeiros projetos de linhas
férreas surgiram após a Guerra do Paraguai em um contexto de
grande otimismo e investimento na indústria do país. O projeto para
a malha ferroviária no Rio Grande do Sul foi apresentado ao Governo
Imperial em 1872, denominado “Projeto Geral de uma Rede de Vias
Férreas Comerciais e Estratégicas para a Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul” e propunha a criação de linhas-tronco nos
sentidos norte-sul e leste-oeste (FINGER, 2013). A primeira linha
a ser construída no estado seguiu a experiência do restante do país,
tendo o capital britânico como primeiro nanciador.
Diante disso, o presente trabalho é parte da pesquisa de mestrado
da autora, a qual integra o Projeto “Cidades de médio porte do
extremo do sul do Brasil e em zona de fronteira: qualicação e
proposição de espaços públicos sensíveis às relações intergeracionais,
inclusivas e sustentáveis” do Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU) da Universidade Federal de
Pelotas (UFPel). o qual, tem como objetivo principal investigar a
Estrada de Ferro Rio Grande - Pelotas - Bagé localizada na região
sul do Rio Grande do Sul, incorporada à extinta Rede Ferroviária
Federal SA (RFFSA) em 1957, para compreender as espacialidades
e territorialidades de seu contexto. Este estudo justica-se tendo
em vista que a inserção da linha férrea ocasionou transformações
urbanas e sociais, as quais repercutem nas cidades até os dias de
hoje, em seus remanescentes. Nesse sentido, este trabalho apresenta
os resultados parciais da etapa de pesquisa histórica.
Destaca-se que esta pesquisa possui a colaboração de bolsistas
e voluntários do Núcleo de Arquitetura Brasileira (NEAB) da
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
620
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAUrb - UFPel) para
coleta e levantamento de dados. Além disso, o Projeto no qual a
pesquisa está inserida conta com o apoio do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico (CNPQ), por meio
de uma bolsa de pós-graduação, na qual a autora deste trabalho é
titular.
Caminhos Metodológicos
Para a realização da pesquisa serão utilizadas metodologias
para investigar, catalogar e analisar os bens móveis e imóveis
remanescentes, bem como serão realizadas entrevistas, as quais
terão um tratamento próprio. Os procedimentos metodológicos da
pesquisa como um todo possuem 5 etapas, sendo estas: I. Pesquisa
Histórica; II. Levantamento Teórico; III. Análise de Políticas
Públicas do Patrimônio Ferroviário; IV. Visitas de campo e V.
Entrevistas com ex-funcionários.
A etapa de Pesquisa Histórica, a qual terá os resultados
parciais apresentados neste trabalho, refere-se à primeira etapa da
investigação. Nela, foram consultados acervos físicos documentais,
como o Centro de Documentação de Obras Valiosas (CDOV) da
Biblioteca Pública Pelotense, o acervo da Bibliotheca Rio-grandense
e o acervo do Museu do Trem em São Leopoldo, além de acervos
digitais, como o Arquivo Nacional.
Estrada de Ferro Rio Grande - Pelotas - Bagé
Denominada Tronco Sul, a Estrada de Ferro Rio Grande - Pelotas
- Bagé foi inaugurada em 1884, após sua aprovação em Decreto
Imperial, e percorria uma das regiões mais prósperas do estado,
conectando o tripé econômico da zona: porto - charque - gado
(FINGER, 2013). O primeiro concessionário da Linha foi Higino
Correia Durão4, que não conseguiu o nanciamento necessário
para sua construção. Posteriormente, a concessão foi dada a Miguel
G. da Cunha e James G. Taylor em 1878, os quais dois anos depois,
repassam a concessão para a companhia francesa Compagnie
Imperiale du Chemin de Fer du Rio Grande do Sul. Com o intuito de
4 Higino Correia Durão também havia incorporado em 1871, as Companhias
Hidráulicas de Pelotas e Rio Grande. (SILVEIRA, 2009).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
621
prolongar a linha até o entroncamento Porto Alegre-Uruguaiana,
cuja concessão era da empresa inglesa Southern Brasilian Rio
Grande do Sul Railway, em 1883 ambas empresas se fundem
e, no ano seguinte, dão início às obras. No ano de 1905, a linha,
juntamente com outras do Rio Grande do Sul, foram arrendadas
para a Compagnie Auxiliaire, de origem Belga (KLIEMANN, 1977).
A Estrada de Ferro era composta por três estações principais,
tendo seu ponto inicial e nal em Rio Grande e Bagé, respectivamente,
e ainda uma estação intermediária na cidade de Pelotas (cf. Figura
1). As estações principais foram inauguradas no mesmo ano, 1884,
e eram idênticas (cf. Figura 2), possuindo dois pavimentos e alas
térreas laterais. O fotógrafo Augusto Amoretty documentou a
construção das estações e das pontes, disponível no acervo digital
da Biblioteca Nacional. Conforme Anna Finger:
O corpo central contava com cobertura em quatro águas e as alas
laterais em três, parcialmente ocultas por platibandas vazadas,
apresentando ainda águas furtadas nas alas laterais. Aos fundos, uma
marquise em ferro anexada ao corpo dos edifícios fazia a proteção das
plataformas, e outra pequena cobertura metálica protegia o acesso
principal dos edifícios. (FINGER, 2013. p. 259).
Figura 1: Traçado da Estrada de Ferro Rio Grande - Pelotas - Bagé.
Fonte: Fonte: Mapa elaborado pela autora, 20245
5 Mapa elaborado com base no mapa do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária da
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
622
Figura 2: Estação de Rio Grande, Pelotas e Bagé.
Fonte: GERODETTI & CORNEJO, 2005. p. 212-213
Ao longo do tempo, algumas modicações nas estações
principais foram realizadas: a Estação de Pelotas foi ampliada em
1929, adicionando depósitos de bagagens nas extremidades laterais
com terraços, a Estação de Rio Grande teve seu telhado alterado,
de acordo com imagem de 1885 (IPHAE, 2002) e a Estação de Bagé
que, segundo a prefeitura da cidade devido a um incêndio em 1926
ela foi destruída, entretanto, segundo informações do Relatório da
VFRGS, a Estação original foi demolida em 1929 para a construção
de um novo prédio (IPHAE, 2002).
A linha também possuía estações de pequeno porte bem mais
simples, “eram térreas, em alvenaria com cobertura em duas águas,
e contavam com uma estrutura independente anexada ao edifício
para proteção das plataformas, (...)” (FINGER, 2013). De acordo com
o Inventário das Estações Ferroviários do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do Rio Grande do Sul - IPHAE (2002), a linha
possuía 21 estações intermediárias, as quais foram inauguradas
juntamente com a Estrada de Ferro, sendo estas: Marítima, Junção,
Quinta, Povo Novo, Teodósio, Capão do Leão, Cerrito, Cruz, Basílio,
Erval, Cerro Chato, Lajeado, Nascente, Pedras Altas, Jorge Sartori,
Bilboca, Candiota, Seival, Hulha Negra, Quebracho e Santa Tereza
(IPHAE, 2002). (cf. Figura 3).
Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul de 1966.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
623
Figura 3: Traçado da Estrada de Ferro com as Estações Intermediárias.
Fonte: Mapa elaborado pela autora, 20246
Conforme informações em documentações, a Estação de Seival
era originalmente chamada de Santa Rosa e, por essa razão, há essa
divergência nos mapas e documentos consultados. O mesmo caso
ocorre com Hulha Negra, que anteriormente era conhecida por
Rio Negro, bem como a Estação de Cerrito, que inicialmente era
chamada de Estação Piratini. Entretanto, em 1887 foi construída
uma maior no lado direito do Rio Piratini, cando a segunda
conhecida como Estação Pedro Osório e/ou Estação Piratini, e a
primeira como Estação Cerrito. Na região do município de Capão
do Leão, estudos indicam: I. a Estação Passo das Pedras também
é chamada de Estação Engenheiro Chaves e, II. a existência de
outra estação chamada de Estação Agente Gomes, popularmente
chamada de Desvio do Descanso (SILVA, 2018).
Os pátios ferroviários, juntamente com as Estações principais,
ocupavam uma grande extensão dentro das cidades com todo um
aparato para o funcionamento da linha composto por armazéns,
ocinas, depósitos, áreas para limpeza de locomotivas, carvoeiros,
6 Mapa elaborado com base no mapa do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária da
Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul de 1966. A Estação intermediária de
Hulha Negra (Rio Negro) não foi identicada.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
624
salas de inspeção, casas de lubricantes, fornos de areia, balança,
espaços administrativos, área para descarga de cinzas, usinas,
ferraria, carpintaria, silos, guindastes e a mesa giratória de
locomotivas. Além disso, as pontes também foram importantes
para o funcionamento da linha, marcando a paisagem (cf. Figura 5).
Figura 4: Projeto para novo depósito no pátio ferroviário de Bagé
Fonte: Museu Ferroviário de São Leopoldo.
Figura 5: Vista Panorâmica da Ponte de Bagé.
Fonte: Augusto Amoretty, 1884.7
7 Coleção Instituto Histórico e Geográco Brasileiro. Disponível na Enciclopédia Itaú
Cultural.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
625
A Estrada de Ferro tornou-se tão importante para a região, que
as notícias de sua inauguração ganharam destaque na imprensa.
Para Schmitz “A inauguração, fato que toma uma proporção ao
mesmo tempo de acontecimento isolado, determina no imaginário
a sequência que o lugar, ou coisa inaugurada carregará consigo.”
(SCHMITZ, 2013). Os periódicos consultados nesta etapa da
pesquisa foram o Echo do Sul e o A Discussão, editados e publicados
nas cidades de Rio Grande e Pelotas no ano de 1884. Sabe-se ainda
que estes não são os únicos que circularam no período, entretanto,
foram os disponíveis nos acervos da Biblioteca Pública Pelotense e da
Bibliotheca Rio-grandense. Uma das características dos jornais que
circulavam na época era a forte inclinação político-partidária, uma
vez que funcionam como veículos de transmissão da ideologia dos
proprietários e/ou grupos da direção e nanciadores (SCHMITZ,
2013). Nesse sentido, é importante destacar o cunho totalmente
parcial dos textos veiculados nos periódicos e o público-alvo a qual
era destinado: a elite intelectual e econômica.
A “disputa” inicia-se antes mesmo da inauguração, com o
surgimento do boato de que seria um evento em duas etapas a partir
de uma notícia veiculada em outro periódico,
Nesta notícia, não se tem certeza se a primeira seção se iniciaria na
cidade do Rio Grande, ou de Pelotas. A dúvida se justica ao observar
as chamadas “Missivas Rio-Grandenses” do jornal A Discussão, em
24 de novembro, onde se aponta a existência de um boato de que a
inauguração se daria em Pelotas e não em Rio Grande, início da linha –
rumor logo desmentido. (SCHMITZ, 2013. p. 56).
O Ministro da Agricultura, por meio de um telegrama, põe m
a este rumor e conrma a inauguração para o dia 2 de dezembro
na cidade de Rio Grande. A partir disso, ao ser responsabilidade
do evento a cidade de Rio Grande, “qualquer festejo elaborado pela
cidade inicial do traçado seria alvo de críticas.” (SCHMITZ, 2013).
No dia da inauguração, o jornal Echo do Sul dedicou uma parte de
sua página inicial para celebrar a Estrada de Ferro,
Um acontecimento grandioso que o Rio Grande começa hoje a festejar.
Um acontecimento que na modesta história desta cidade marcará uma
data memorável, por que será o início de uma nova era de prosperidade
e de engrandecimento. (ECHO DO SUL, 1884. p.1).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
626
O editorial também destaca a importância para todo sul da
província, sendo esta a “zona que mais de perto vai gozar dos
benefícios desse notabilíssimo melhoramento.” (ECHO DO
SUL, 1884). Entretanto, esse otimismo não era unânime entre os
periódicos, indicando a forte disputa política entre as cidades. Um
dia após a inauguração da linha, A Discussão, jornal da cidade de
Pelotas, publicou:
Inaugurou-se ontem, de uma forma fria e contristadora para nós, a
estrada de ferro do Rio Grande a Bagé. Às 8 horas chegou à estação o
primeiro trem, conduzindo as comissões representantes do Rio Grande
e mais algumas pessoas em número muito limitado. Na gare achava-se
um regular concurso de povo, que para lá se dirigia atraído tão somente
pela curiosidade e não pelo entusiasmo que um fato tão transcendente
como seja a inauguração do livre trânsito de uma estrada de ferro,
ocasiona em toda a parte. O primeiro trem, depois de ter recebido os
poucos passageiros que daqui seguiram para Bagé, partiu como tinha
chegado, - sem uma saudação, sem um hurrah ao progresso do sul da
província! A este seguiram-se mais três ou quatro trens, que chegaram
e partiram como o primeiro. (A DISCUSSÃO, 1884, p. 2).8
A crítica a inauguração da linha férrea é explícita no trecho
destacado. Em contrapartida, em um texto publicado no dia 6 de
dezembro, informa-se que uma grande festa será realizada para
celebrar a ligação entre Pelotas e Bagé pela ferrovia:
Amanhã, uma numerosa comissão representando todos os diferentes
ramos do comércio, em trens especiais frequentados pela soma
superior a 50 contos de réis, se dirigirá à cidade de Bagé no intuito de
saudar e felicitar o comércio bageense pela inauguração da estrada
de ferro entre as duas cidades, estrada que, mais aproximando não só
8 Trecho com correção de graa. Original: “Inaugurou-se hontem, de uma fórma fria
e contristadora para nós, a estrada de ferro do Rio Grande a Bagé. Ás 8horas chegou
á estação o primeiro trem, conduzindo as commissões representantes do Rio Grande
e mais algumas pessoas em numero muito limitado. Na gare achava-se um regular
concurso de povo, que para lá se dirigia atrahido tão somente pela curiosidade e não
pelo entusiasmo que um facto tão transcendente como seja a inauguração do livre
transito de uma estrada de ferro, occasiona em toda a parte. O primeiro trem, depois de
ter recebido os poucos passageiros que daqui seguiram para Bagé, partiu como tinha
chegado, - sem uma saudação, sem um hurrah ao progresso do sul da província! A este
seguiram-se mais três ou quatro trens, que chegaram e partiram como o primeiro.” (A
Discussão, 1884, p. 2)
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
627
estreitará e ampliará suas relações comerciais como será o prenúncio
do seu futuro engrandecimento.” (A DISCUSSÃO, 1884).
Dessa forma, ao evidenciar a tristeza da inauguração ocial e
posteriormente noticiar o grande evento que se dará entre as cidades
de Pelotas e Bagé, enfatizando essa ligação, ignora outras cidades,
principalmente Rio Grande e assim mantêm a velha questão das
relações inter-urbanas (SCHMITZ, 2013).
Nesse sentido, por meio da discussão política e inter-urbana,
nota-se a forte ligação da estrada de ferro com a região, tendo sido
inserida no cotidiano da população, seja pela leitura dos periódicos,
seja pela transformação urbana. Dessa forma, sua conexão pode
ser entendida como material e imaterial, pois “Seus trilhos foram
domando os terrenos, burlando o relevo, cruzando as águas. Criou
e modicou paisagens, em um misto do moderno com o antigo,
de fumaça e ferro com o verde” (SCHMITZ, 2013). A presença da
ferrovia transformou as cidades ao intervir na forma dos espaços,
inserindo novos elementos e armando o quanto a estrada de
ferro serve como mola propulsora e reguladora da urbanização
das cidades. Além disso, ao tornar-se alvo de disputa inter-urbana,
percebe-se sua inserção no imaginário da sociedade.
Resultados Esperados
A partir dos dados obtidos nesta fase da pesquisa, em sua
maior parte em documentos ociais, foi possível analisar uma das
narrativas sobre a temática que, posteriormente, será cotejada com
outros discursos e atores. Pretende-se que, a partir desses diversos
olhares, o trabalho possa ampliar as discussões e reexões sobre a
preservação do patrimônio ferroviário no sul do Rio Grande do Sul.
A pesquisa ainda pretende, por meio das demais etapas dos
procedimentos metodológicos, espacializar os sítios históricos, com
o intuito de compreender as ambiências e suas relações com o entorno,
com a cidade e com o cotidiano das pessoas. A realização das visitas
de campo, serão necessárias para compreensão da espacialidade
que a ferrovia ocupou/ ocupa dentro da malha urbana. Ademais,
juntamente com as narrativas coletadas serão fundamentais para
compreensão das territorialidades e do cotidiano.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
628
Com a inserção da pesquisa no Projeto “Cidades de médio
porte do extremo do sul do Brasil e em zona de fronteira:
qualicação e proposição de espaços públicos sensíveis às relações
intergeracionais, inclusivas e sustentáveis”, espera-se contribuir
para o estabelecimento de parâmetros de avaliação e construção
dos espaços urbanos no aspecto histórico-cultural e que o estudo
possa colaborar para compreensão, conhecimento e divulgação do
patrimônio ferroviário da região.
Considerações Finais
Considerando a importância da Estrada de Ferro para a
região, bem como sua intervenção no processo de urbanização e
industrialização, torna-se essencial o estudo de sua formação para
compreensão desta zona. A investigação da linha nas três cidades
(Rio Grande, Pelotas e Bagé) como uma rede, contribuirá também
para um entendimento dos uxos entre os municípios.
Ademais, entende-se que o processo de preservação do
patrimônio é precedido da identicação e compreensão dos bens
móveis e imóveis remanescentes. Nesse sentido, esta pesquisa
objetiva contribuir para compreensão destes artefatos e evidenciar
sua ligação com a sociedade, contribuindo para o fortalecimento da
memória ferroviária e do pertencimento na região.
REFERÊNCIAS
A Discussão. Estrada de Ferro. Pelotas, 03 dez. 1884. nº 286, Correio do
Dia, p. 2.
Echo do Sul. Estrada de Ferro. Rio Grande, 02 dez. 1884. nº 277, p.1.
FINGER, A.E. Um Século de Estradas de Ferro – Arquiteturas das ferrovias
no Brasil entre 1852 e 1957. 2013. Tese (Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo) Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de Brasília – Unb – Brasília, 2013.
IPHAE. Patrimônio Ferroviário do Rio Grande do Sul. Inventário
das Estações: 1874 - 1959. Instituto Histórico e Artístico do Estado da
Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pallotti, 2002.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
629
GERODETTI, J.E. & CORNEJO, C. As Ferrovias do Brasil nos Cartões
Postais e Álbuns de Lembranças. São Paulo: Solaris Edições Culturais,
2005.
KLIEMANN, L.H.S. A Ferrovia Gaúcha e as Diretrizes da Ordem e
Progresso. 1905-1920. In: Revista Estudos Ibero-Americanos. Vol. II N.2
PUC/RS. Departamento de História. Porto Alegre. Dezembro de 1977.
SCHMITZ, M.E. Nas asas do vapor: construção do espaço ferroviário
em Pelotas/RS (m do séc. XIX – início do séc. XX). 2013. Dissertação
(Mestrado em História) Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Pelotas - UFPel - Pelotas, 2013.
SILVA, A. V. Estações Ferroviárias do Capão do Leão. Capão do Leão:
IHGCL. 2018. Acesso em 05 jan 2024. Disponível em: https://drive.google.
com/le/d/1QrtLlMXWHjKfCUu9dImzgoYJnuHof1qK/view.
Vista Panorâmica da Ponte de Bagé, na Estrada de Ferro do Rio Grande
a Bagé, Rio Grande do Sul. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://
enciclopedia.itaucultural.org.br/obra16531/vista-panoramica-da-ponte-
de-bage-na-estrada-de-ferro-do-rio-grande-a-bage-rio-grande-do-sul.
Acesso em: 11 de janeiro de 2024. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-
7979-060-7
POLÍTICAS DE
PATRIMONIALIZAÇÃO E
MEMÓRIA: PATRIMÔNIO
INDUSTRIAL FERROVIÁRIO EM
PARNAÍBA-PI, 1916-1980
Lêda Rodrigues Vieira1
Considerações iniciais
Nos primeiros anos do século XX, o governo federal incentivou
a construção de estradas de ferro no nordeste do país como
forma de integrar as regiões e diminuir as calamidades da seca.
Nesse período, essa região era identicada como área-problema
devido, especialmente, ao fenômeno da seca e suas consequências
socioeconômicas. O governo central, no sentido de diminuir esses
efeitos, promoveu políticas públicas, dentre as quais a criação da
Inspetoria das Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909, sendo
transformada em 1945 no Departamento Nacional de Obras Contra
as Secas (DNOCS). Essas ações governamentais privilegiavam a
construção de açudes, poços, estradas, ferrovias etc. (VIDAL, 2007).
Nos primeiros anos do século XX, o Piauí ainda não possuía
um quilômetro sequer de trilhos assentados. Foi somente em 19 de
1 Doutoranda de História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI). E-mail: ledarodrigues@
phb.uespi.br
630
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
631
novembro de 1916 que ocorreu a inauguração do primeiro trecho
ferroviário na região norte do estado, entre Portinho e Cacimbão,
com 24km de extensão. Nesse mesmo dia foi também lançada a
pedra fundamental da Estação Ferroviária de Parnaíba.
A ferrovia chegou ao Piauí num momento em que o governo
federal começava a se preocupar em integrar e desenvolver as
diversas regiões brasileiras através da construção de rodovias em
todo o país. Nesse sentido, as ferrovias assumiram posição secundária
nos programas de transporte do governo federal, cando muitos
projetos ferroviários esquecidos ou abandonados durante anos.
No Piauí não seria diferente. Antes da implantação dos primeiros
trechos ferroviários, muitos estudos e projetos foram produzidos
e mantidos no esquecimento durante os anos nais do século XIX
e iniciais do século XX, mas, por iniciativa do governo federal,
acabaram sendo efetivados alguns desses trechos, especialmente
aqueles que interligavam Amarração (Atual cidade de Luís Correia)
às principais cidades da região norte do estado: Parnaíba (1920),
Cocal (1923) e Piracuruca (1923).
Durante os anos de 1920 a 1980, a maioria das cidades que
possuíam estruturas ferroviárias usufruíram da ferrovia para o
transporte tanto de passageiros quanto de produtos da economia
piauiense. Isso reetiu signicativamente no desenvolvimento
comercial e econômico das cidades e povoados.
No entanto, a partir do nal dos anos 1980, a ferrovia passou
por processo de desativação, ocasionando a derrocada ferroviária
no norte do Estado do Piauí. A maioria das estruturas ferroviárias
passaram a sofrer o desgaste do tempo, tendo trilhos arrancados
e outras construções foram ocupadas pela prefeitura das cidades,
que geralmente transformaram as estações em museus, como forma
de preservação da memória ferroviária ou urbana. Nesse sentido, a
pesquisa propõe responder aos seguintes questionamentos: quais as
representações sociais, relações identitárias e os lugares de memória
dos ferroviários da Estrada de Ferro Central do Piauí em Parnaíba?
Como se deu o processo e as consequências da desativação da
Central do Piauí, principalmente nos aspectos da memória e do
patrimônio ferroviário?
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
632
1. TREM DE FERRO: MEDO E ADMIRAÇÃO
A memória ferroviária piauiense se encontra nos lugares onde
parte da população conviveu em seu cotidiano com a locomotiva
parando nas estações ferroviárias das cidades do interior. O
historiador que se enveredar por esse caminho, poderá encontrar
uma história repleta de magia e encantamento, quando uma
população soube receber de braços abertos a chegada de um grande
símbolo da modernidade – o trem de ferro. A memória de uma
cidade se constrói com os vários símbolos que a representam ou a
representaram e, as estações ferroviárias guardam as lembranças dos
murmurinhos das pessoas em dias em que o trem chegava em sua
esplanada, deixando a população alegre com a chegada de parentes
e amigos e, ao mesmo tempo, triste com a partida.
Entre a população existiam aqueles que tinham medo da
locomotiva que soltava no ar faíscas que muitas vezes provocavam
incêndios nas casas próximas aos trilhos de ferro, além de acidentes
que vitimavam os transeuntes e os trabalhadores. Francisco Marques
(2006) lembra de incêndios que ocorreram em cidades como “Bom
Princípio, por exemplo, Bom Princípio foi o lugar que mais queimou
casas por aqui. Bom Princípio sempre queimava casa, sempre. Era
tal que na hora que o trem passava o povo botava água, cava com
a lata d’agua”.
O medo da locomotiva também veio acompanhado pela
admiração da população do interior pelo novo meio de transporte
que aparecia, pela sua velocidade e segurança em se transportar as
mercadorias e os passageiros. Segundo Cecília Nunes, “essas pessoas
viam o trem como algo fantástico, maravilhoso, de grande utilidade”,
principalmente pelo transporte de mercadorias do extrativismo
vegetal. (NUNES, 1996)
A ferrovia guarda a história e memória de ferroviários que
trabalharam de sol a sol para ver concluído um grande sonho, ver
o território piauiense cortado por trilhos de ferro. São ferroviários
representados por operários, maquinistas, foguistas, graxeiros,
chefes de trem, guarda-freios, conservadores de linha, feitores, chefes
de turma, tunileiros, ferreiros, soldadores, torneiros, eletricistas,
bagageiros, carregadores, um mundo de homens povoando as
estações ferroviárias de várias cidades do interior.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
633
2. O FIM DO MOVIMENTO FERROVIÁRIO:
MEMÓRIA E PATRIMÔNIO
O complexo arquitetônico mais importante da Estrada de Ferro
Central do Piauí foi a estação ferroviária de Parnaíba, inaugurada
em 1920 e situada na região central da cidade, no cruzamento das
atuais avenidas Chagas Rodrigues e Presidente Getúlio Vargas
(Antiga rua Grande). Os primeiros trilhos chegaram à cidade
depois de implantados no litoral, ligando Amarração a Parnaíba.
Nessa cidade, os trilhos se conectavam em um prédio conhecido
como Guarita (Atual bairro São Francisco), onde era feito o desvio
da estrada de ferro Cocal ou Igaraçú e, em seu entorno foram
construídos casebres onde morava a maioria dos trabalhadores da
ferrovia, além de estabelecimentos comerciais “começando assim
um comércio com seus famosos cabarés e cortiços”. (RAMOS, 2008,
p. 110-111)
Na Estação Ferroviária de Parnaíba pode ser encontrado um
aparato completo que auxiliava os operários e passageiros da
ferrovia como uma estação de passageiros, pátio de manobra,
inspetoria de transportes e comunicação, arquivo, almoxarifado,
posto médico, tipograa e uma ocina de manutenção das linhas
férreas, da locomotiva, dos vagões, locomoveis, gôndolas, trolleys
etc. Nesse lugar de memória atualmente está sendo utilizado como
Museu do Trem do Piauí onde são conservados um grande acervo
da estrada de ferro e da própria estação em seu período áurea de
funcionamento.
O que faz parte do Museu do Trem do Piauí é a estação de
passageiros, com duas plataformas, rampas e gradis com portões, o
pátio interno com as diversas linhas férreas; o pátio onde funcionava
a Inspetoria de Telégrafo e Iluminação; o prédio onde funcionou a
tipograa; a Caixa d’água, que abastecia as locomotivas, com imóvel
contínuo, e o espaço do velho curral, onde desembarcava o gado
transportado pelo trem. Dentro do museu pode ser encontrado
um acervo de fotograas que retratam a história inicial da ferrovia,
o primeiro engenheiro (Miguel Furtado Bacelar), as primeiras
locomotivas da estrada, as vestimentas e materiais de manutenção
dos operários etc.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
634
Figura 1. Alguns dos materiais identicados no Museu do Trem do Piauí, antiga
Estação Ferroviária de Parnaíba.
Fonte: Acervo Particular da Autora (2009).
As ferrovias quando de sua implantação transformaram paisagens
fazendo parte das representações do próprio espaço das cidades.
Elas eram representadas de diversas maneiras pelos moradores que
tiveram seus hábitos e costumes moldados pela técnica ferroviária.
Nesse sentido, a memória de uma cidade se constrói com os vários
símbolos que zeram parte de sua história. As estações ferroviárias,
por exemplo, guardam em suas paredes, em suas plataformas, em
seus trilhos, o murmurinho das pessoas em dias em que o trem
“quando em movimento, produzia um barulho rústico e deixava o
ar envolvido por rolos de fumaça escura, enquanto seu estrídulo
apito chamava a atenção da população”. (ARAÚJO, 2002, p. 137)
A estação de Parnaíba ainda hoje persiste no cenário social da
cidade resistindo às transformações inerentes ao espaço urbano
e, ao mesmo tempo permite contar a história local e possibilita
entender o processo de desenvolvimento da cidade e sua relação
com a ferrovia. Nas memórias de antigos trabalhadores a estação
era caracterizada como espaço múltiplo, onde convergiam para
lá muitas pessoas movidas por interesses diversos: aguardar a
chegada do trem, trabalhar, observar o movimento dos transeuntes
e, principalmente pela curiosidade. Para seu Aluísio da Costa
Quaresma, que trabalhou no restaurante do trem no nal da década
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
635
de 1960 até 1980, a estação ferroviária era bastante movimentada:
“Era, o movimento era muito grande, gente demais né? esperando a
chegada do trem porque nesse tempo vinha muita coisa pra vender
[...]”. (QUARESMA, 2009)
Ao percorrer a estrada de ferro que ligava Parnaíba à Teresina
pode se perceber que grande parte dessa estrutura ferroviária está
atualmente em péssimo estado de conservação (a maioria das
estações encontram-se abandonadas ou foram cedidas às prefeituras
para realizarem algum trabalho de revalorização dos espaços) ou
foi arrancado todo o material rodante (dormentes, trilhos etc.),
sinalizando a desativação do sistema ferroviário no Piauí.
No entanto, nas narrativas de alguns ferroviários aposentados
existem elementos que marcam a memória de um tempo em que o
trem mantinha um intercâmbio com diversos povoados e cidades
vizinhas, transportando passageiros e mercadorias. O senhor José
Ricardo, que trabalhou como assistente de manutenção da estrada
de ferro piauiense, ao ser questionado sobre o movimento da
estação ferroviária em dias da chegada do trem lembrava que era:
“[...] um movimento mais monstro do mundo porque o trem trazia
muita coisa né? [...] Vinha gente de todo lugar, vinha gente do, de
Piripiri para cá, esses comerciantes vinham fazer tudo compra era
aqui, daqui levava pro trem porque o frete era barato né? Acabou-se
tudo, acabou com tudo”. (SILVA, 2009)
Na estação de Parnaíba foi montado um grandioso pátio de
operação que conciliavam diversas funções: operação ferroviária
e de caráter administrativo, o que incluía a diretoria e os demais
serviços da ferrovia. Nesse sentido, concomitante a estação foram
surgindo outras edicações que auxiliavam os trabalhos ferroviários
como ocinas de manutenção, concerto e reforma; almoxarifado,
para administração interna; posto telegráco, comunicação entre
as estações; caixas d’água, abastecimento das locomotivas; posto
médico, atendimento aos funcionários e passageiros acidentados;
vila ferroviária, que servia para dar suporte ao funcionamento e
à manutenção das linhas e abrigava os funcionários da via férrea.
Alguns dos entrevistados mencionavam as estruturas da ferrovia
e da estação de Parnaíba. O senhor Geraldo Alves (2009), que
trabalhou na Rede Ferroviária Federal S.A lotado no sexto distrito
de Parnaíba como artíce de via permanente, quando questionado
sobre a estação armava que havia diferentes espaços de trabalho
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
636
desde a bilheteria para vender as passagens até as ocinas onde
ocorriam a manutenção do material rodante da ferrovia.
Atualmente, a ferrovia passou a ser patrimônio cultural2 no
Piauí ao fornecer novos signicados e representações as diversas
estruturas construídas e denominar com nomes que faz referência
ao mundo ferroviário as avenidas, ruas e praças de várias cidades.
Em Parnaíba, um dos exemplos digno de homenagens foi o primeiro
diretor da Estrada de Ferro Central do Piauí, o engenheiro Miguel
Furtado Bacelar, nascido em 1877 na cidade de Brejo (MA), formou-
se em Engenharia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e,
atuou como scal da antiga construção ferroviária do Estado. Como
forma de homenagear as ações deste engenheiro na construção dos
primeiros trilhos ferroviários em solo piauiense passou a ser nome
da praça em frente ao edifício da estação da EFCP, agraciado com
um busto.
2 Segundo Gonçalves: Os patrimônios culturais são estratégias por meio das quais
grupos sociais e indivíduos narram sua memória e sua identidade, buscando para elas
um lugar público de reconhecimento, na medida mesmo em que as transformam em
“patrimônio”. Transformar objetos, estruturas arquitetônicas e estruturas urbanísticas
em patrimônio cultural signica atribuir-lhes uma função de “representação”, que funda
a memória e a identidade. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Monumentalidade
e cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso. In: OLIVEIRAS, Lúcia
Lippi (Org.). Cidade: história e desaos. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas,
2002. p. 121.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
637
A antiga Rua Grande (Atual Avenida Getúlio Vargas) era a porta
de entrada das elites parnaibana nas primeiras décadas do século
XX, pois residir nessa rua signicava sinônimo de riqueza e poder,
os casarões de importantes famílias da cidade situavam-se nela que
era conhecida como grande corredor da vida social do período.
Dentre as edicações existentes próximo a antiga Rua Grande se
pode destacar a estação ferroviária composta de outras edicações
anexas: plataformas, rampas, prédios onde funcionavam a Inspetoria
de Telégrafo e Iluminação, a Tipograa, a Caixa d’água, além de um
espaço do velho curral, onde desembarcava o gado transportado
pelo trem.
O governo federal através da Secretaria do Patrimônio da União
vem organizando um Programa de Destinação do Patrimônio
da Extinta RFFSA com objetivo de apoiar ações locais nas áreas
de desenvolvimento social, urbano e ambiental mediante a
regularização, cessão ou compartilhamento da gestão de imóveis
da União oriundos da extinta Rede Ferroviária Federal S.A.,
- RFFSA, visando, por sua vez, assegurar o cumprimento da
função socioambiental desse importante patrimônio público. Este
programa destina-se aos Municípios e entidades privadas sem ns
lucrativos interessados na utilização de imóveis da União da extinta
RFFSA para ns de implantação de programas, projetos e ações
sociais de preservação do patrimônio ferroviário. Nesse sentido, a
estação ferroviária de Parnaíba atualmente abriga um pequeno e
representativo museu, o Museu do Trem do Piauí, inaugurado em
2002. Foi criado através de convênio entre a prefeitura de Parnaíba
e a Rede Ferroviária Federal S. A., que concedeu à prefeitura todo
o terreno do parque da antiga estação de passageiros com seus
diversos imóveis e uma coleção de peças e equipamentos da época
de funcionamento da ferrovia.
Em Parnaíba, o acervo de bens móveis históricos do Museu
do Trem do Piauí é constituído de um aparato completo que
auxiliava os operários e passageiros da ferrovia como uma estação
de passageiros, pátio de manobra, inspetoria de transportes e
comunicação, arquivo, almoxarifado, posto médico, tipograa e
uma ocina de manutenção das linhas férreas, da locomotiva, dos
vagões, locomoveis, gôndolas, trolleys, etc. Além de fotograas que
retratam a história da ferrovia (do primeiro engenheiro, Miguel
Furtado Bacelar, das antigas locomotivas, de operários, do universo
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
638
do trabalho, etc.) e equipamentos de apoio da estação e dos
funcionários (relógios, cadeiras de passageiros, telefones, carimbos,
alicates perfuradores de passagens, carregador de bateria, relógio
de pressão, tacógrafo de locomotiva, máquinas de calcular, dentre
outros).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante disso, podemos perceber que existe muito a ser desvendado
da história e memória ferroviária piauiense. A ferrovia no Piauí
representou em seu período áureo, na segunda metade do século
XX um sistema de grande utilidade, principalmente nas cidades do
interior situadas na região norte do Estado como Parnaíba, Cocal
e Piracuruca. Nessas cidades podem ser encontradas pessoas que
trabalhavam na estrada de ferro ou que conviveram em seu dia a dia
com a locomotiva a passar próximo as suas casas ou utilizado para
transporte de passageiros e mercadorias. Além disso, grande parte
das estruturas da ferrovia Central do Piauí encontra-se abandonada,
necessitando de ações concretas de preservação para que não ocorra
o esquecimento da importância que foi para o desenvolvimento das
cidades da região norte do Estado.
REFERÊNCIAS
ALVES, Geraldo Graças. Entrevista concedida a Lêda Rodrigues Vieira.
Parnaíba, 10 mar. 2009.
ARAÚJO, Maria Elita Santos de. Parnaíba: o espaço e o tempo. Parnaíba:
SIEART, 2002.
DE AMARRAÇÃO a Piracuruca. O Piauhy. Teresina, ano 34, n. 708, 22 nov.
1923. p.1.
MARQUES, Francisco de Sousa. Depoimento concedido a Lêda Rodrigues
Vieira. Cocal, 22 dez. 2006.
NUNES, Maria Cecília de Almeida. O trem de ferro no imaginário popular
piauiense. Espaço e Tempo. Teresina, v.4, p.96-100, dez. 1996.
QUARESMA, Aluísio da Costa. Entrevista concedida a Lêda Rodrigues
Vieira. Parnaíba, 11 mar. 2009.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
639
RAMOS, José Nicodemos Alves. Parnaíba de A a Z: Guia afetivo. Brasília:
MultCultural Arte e Comunicação, 2008.
SILVA, José Ricardo da. Entrevista concedida a Lêda Rodrigues Vieira.
Parnaíba, 24 fev. 2009.
VIDAL, F. B. Considerações em torno da validade atual da discussão sobre as
desigualdades regionais no Brasil. Observa Nordeste, Recife, 19 jun. 2007.
43 p. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/
fvidal2.pdf Acesso em: 14 jun. 2009.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM
CONFLITO: AS BARRAGENS EM
MINAS GERAIS
Ariane Cristina Paes Da Paixão1
1. INTRODUÇÃO
Esse artigo visa discutir os conceitos de paisagem cultural
minerária e patrimônio sensível, segundo Anielle Freitas e
Leonardo Castriota, que analisam o subdistrito de Bento Rodrigues
em Mariana (MG), localidade destruída pela barragem de rejeito
de Fundão em novembro de 2015. A partir desta análise, procura-
se compreender a situação da comunidade do Socorro, em Barão
de Cocais (MG), assombrada pela possibilidade do rompimento da
barragem Sul superior desde fevereiro de 2019, conhecido como
o “terrorismo de barragem”,2 e da destruição de um cotidiano
pela “lama invisível” para, nesse sentido, tentar articulá-la –nas
classicações de patrimônio. Dessa forma, serão exploradas as
semelhanças e diferenças entre o subdistrito e a comunidade citados,
pensando-o como um patrimônio sensível regional, buscando
1 Licenciada em História. Graduanda em Bacharel em História pela Universidade
Federal de Viçosa (UFV). E-mail: paixaoarianec@gmail.com
2 No supracitado dossiê elaborado pela AIAAV, MAM e Margarida Alves, chegou-se
a denir o “terrorismo de barragens” como “qualquer ação ou omissão ocorrida no
contexto da exploração minerária que cause pânico, comoção ou mobilização de
pessoas e comunidades em decorrência de suposto risco de acidente ou desastre que
posteriormente se mostre injusticado” (FARACO e SEFERIAN, 2021, p. 19).
640
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
641
contribuir para a sua conservação e para o não esquecimento do
crime cometido, assemelhando-se aos objetivos do tombamento de
Bento Rodrigues. Essa análise é parte de um trabalho mais amplo
que pretende estudar o papel da história local no fortalecimento de
identidades e no combate às ameaças que rodeiam o patrimônio, em
especíco na região conhecida como quadrilátero ferrífero, onde se
situam as cidades mencionadas acima.
2. AS CIDADES NO QUADRILÁTERO
FERRÍFERO
O quadrilátero ferrífero é uma região do estado de Minas Gerais
que tem como base econômica a exploração mineral, principalmente
do ouro e do minério de ferro. A predominância dessa atividade
traz para o cotidiano dos habitantes problemas crônicos, como:
minério dependência (falta de diversicação econômica), altos
preços de produtos e serviços, grande quantidade de população
utuante e falta de estrutura para recebê-la, alto índice de problemas
respiratórios proporcionados pela poeira, casas danicadas pela
trepidação, sujeira nas ruas, ruídos e, agora, o perigo das barragens.
Apesar de, rotineiramente, não ser classicado como tal, essa
região abriga grande quantidade de patrimônios industriais
minerários em suas diversas classicações, o que veremos
mais à frente. Esses bens foram pensados como patrimônio,
principalmente, no primeiro momento do que viria a ser o IPHAN,
em 1937, que buscava a representação da identidade nacional.
Casarões, fazendas, cavas, minas, vilas, capelas e igrejas entram
nessa classicação. Um bom exemplo é a cidade de Ouro Preto,
originária da prática econômica dos séculos XVII e XVIII, no auge
da extração aurífera, que é considerada patrimônio da humanidade.
Não só esta como diversas outras cidades da região possuem seus
bens reconhecidos e tombados pelos órgãos gestores do patrimônio.
Passado o auge da exploração aurífera, a mineração permaneceu
na região diversicando os materiais explorados e a tecnologia
usada, expandindo sua área de domínio e inuência. Assim, além
dos patrimônios frutos da atividade mineradora nos séculos
anteriores, o estado passou a lidar também com as consequências
da atividade predatória e seus riscos. Concomitantemente, essas
empresas fomentam a cultura nas cidades – e nas circunvizinhas -
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
642
em que se localizam por meio de shows, feiras, festas, contribuições
em projetos sociais e educacionais ou ajudando as prefeituras a
cumprirem suas metas.3
Em 2015, essas relações conituosas vieram à tona com o
rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, e a destruição
quase total do subdistrito Bento Rodrigues. Dentre as 180 casas,
restaram apenas 22, gerando prejuízos humanos - com a morte
de 19 pessoas no momento do desastre -, materiais e naturais que
ultrapassaram as fronteiras do estado, chegando ao litoral do Brasil,
percorrendo cerca de 663 km (CASTRIOTA, 2019). A localidade
mais afetada foi o subdistrito, onde os moradores foram obrigados
a sair das suas casas e, até hoje, lutam pelo direito de reconstruir
suas vidas.
A cidade de Barão de Cocais entrou em cena em fevereiro de
2019 quando, no meio da madrugada, as comunidades do Socorro,
Piteiras e Tabuleiro foram obrigadas a abandonar suas casas devido
ao risco de rompimento da barragem Sul Superior da Mina do
Gongo Soco. Mesmo com a barragem não se rompendo, cinco anos
depois, as famílias ainda não foram autorizadas a retornar para seus
lares, o que cou conhecido como “lama invisível” (GOMES, 2019).
Por ser um caso mais recente e de menor proporção, há poucas
pesquisas sobre a comunidade do Socorro. Dessa forma, usar Bento
Rodrigues como ponto de partida auxiliará no processo da pesquisa
e na identicação de aspectos pertinentes que ajudem a entender
melhor o caso de referência.
3. PAISAGEM CULTURAL MINERÁRIA, POR
ANIELLE FREITAS
Anielle Freitas, em sua dissertação de mestrado publicada em
2018, “Bento Rodrigues: Paisagem Cultural Minerária”, realiza
uma revisão dos conceitos de patrimônio e paisagem associados à
indústria, em particular à mineração, identicando essas paisagens,
bem como suas problemáticas, pelo mundo. A autora alega a
amplitude da subclassicação ao unir patrimônio industrial e
3 A autora Sibele Passo, em “(Des)Construindo uma Comunidade Imaginada: O
caso da comunidade de Bento Rodrigues atingida pelo rompimento da barragem de
Fundão em Mariana (MG)”, disserta melhor sobre o mito da vocação minerária e suas
problemáticas.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
643
paisagens culturais, porém limita sua análise à questão minerária e
completa dizendo que “(...) todas as paisagens culturais minerárias
são paisagens culturais industriais, não sendo necessário chamá-las
de paisagens culturais industriais minerárias, pois acredita-se que
isto seria uma redundância, visto que a mineração é fruto de uma
prática industrial” (FREITAS, 2018, p. 58). Além disso, recorre a
Accioly para demonstrar a importância do recorte, armando que
a atividade mineradora realiza grande alteração na paisagem e
apresenta largo potencial de transformação e degradação, além de
uma força capaz de alterar relações sociais e práticas culturais em
seu entorno, podendo levar até à destruição (ACCIOLY, 2012, p. 24.
apud FREITAS, 2018, p. 58). “Deste modo, tem-se que a paisagem
cultural minerária equivaleria a uma porção do território tal como
percebida por um grupo social, na qual, o homem e a mineração
são os agentes” (FREITAS, 2018, p. 58).
No processo de compreensão de Bento Rodrigues, Freitas realizou
um levantamento das paisagens e patrimônios industriais presentes
na lista de bens tombados dos órgãos Unesco, IPHAN, IEPHA
(MG) e IPAC (MG). A partir disso, construiu uma classicação
tomando as descrições dos bens como base, observando como era
descrita sua relação com a indústria/mineração, que foi estruturada
da seguinte forma:
1. Paisagem Cultural Minerária: bens listados como paisagens
culturais, que tenham relação direta com a mineração,
podendo ser cidades, vilas operárias, instalações industriais,
antigas cavas, antigos sistemas de mineração, complexos
minerários desativados, etc.;
2. Patrimônio Minerário: bens que tenham relação direta
com a mineração, podendo ser instalações industriais,
antigas cavas, antigos sistemas de mineração, complexos
minerários desativados, antigos núcleos urbanos em ruínas/
abandonados, etc.;
3. Núcleos urbanos originados por atividade minerária: bens
listados como cidades, vilas operárias, capelas (representando
seus respectivos núcleos urbanos) e fazendas, que tiveram sua
origem diretamente relacionadas às atividades de mineração;
4. Paisagem cultural industrial: bens listados como paisagens
culturais, que tenham relação direta com a história da
industrialização, podendo ser cidades, vilas operárias,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
644
instalações industriais, complexos industriais desativados,
etc.;
5. Patrimônio Industrial: bens que tenham relação direta
com a história da industrialização, podendo ser instalações
industriais, complexos industriais desativados, engenhos,
fábricas, antigos núcleos urbanos em ruínas/ abandonados
e bens integrados como maquinário, ou pontes metálicas e
outros símbolos da industrialização e siderurgia;
6. Patrimônio Ferroviário: bens que tenham relação direta
com ferrovias e seus equipamentos e maquinários, como
estações desativadas, antigas locomotivas, galpões de
manutenção, etc.;
7. Núcleos urbanos originados por outras atividades
Industriais: bens listados como cidades, vilas operárias,
capelas (representando seus respectivos núcleos urbanos) e
fazendas, que tiveram sua origem diretamente relacionadas
às atividades industriais;
8. Patrimônio em conito: bens listados que contenham em
sua justicativa ou descrição risco devido à existência de
mineração ou interesse de mineração em sua área protegida
ou seu entorno imediato, e/ou que tenham sido protegidos/
inscritos devido ao risco que corriam de desaparecerem
devido à este tipo de atividades exploratórias.( FREITAS,2018,
p. 67)
A autora defende que Bento Rodrigues é uma Paisagem Cultural
Minerária. Entretanto, para entender a comunidade do Socorro,
ampliaremos o olhar, destacando também os “Núcleos urbanos
originados por atividade minerária” e o “Patrimônio em conito”.
A cidade de Barão de Cocais:
(...) foi fundada no início do século XVIII, por bandeirantes portugueses
e paulistas que descobriram o lugar depois de descer o rio São João,
a partir do povoado Socorro. (...) O historiador Waldemar de Almeida
Barbosa, arma que os bandeirantes decidiram se xar no lugar
porque encontraram Boa Pinta, ou seja, descobriram novas minas de
ouro (Barão de Cocais, 2013).
No povoado do Socorro (atualmente comunidade) nesse período,
construiu-se uma igreja em devoção à Nossa Senhora Mãe Augusta
do Socorro, cuja imagem de representação é de madeira no estilo
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
645
barroco, ambos tombados em nível municipal.4 A igreja, com a
evacuação do território, foi abandonada e a imagem levada para
a paróquia da cidade, o que enquadra a comunidade nos pontos
citados. Em relação à cidade de Barão de Cocais, a arquiteta cita
as Ruínas do Gongo Soco, um antigo casarão símbolo da extração
do ouro da região, classicado como patrimônio em conito,
ameaçado pela expansão da mineração, mas não se atém a ele nem
cita a comunidade.
4. BENTO RODRIGUES COMO PATRIMÔNIO
SENSÍVEL
Em “Lidando com um patrimônio sensível: O caso de Bento
Rodrigues, Mariana MG”, Leonardo Castriota complementa a
discussão de Anielle Freitas ao relatar o processo de tombamento de
Bento Rodrigues, apresentando o subdistrito como um patrimônio
sensível e um sítio de consciência. A partir do reconhecimento
da comunidade do Socorro como patrimônio histórico e sua
subclassicação dentro dos critérios estabelecidos por Freitas , o
debate de Castriota apresenta possibilidades de preservação dos
bens afetados nesse conito e a necessidade de não esquecimento,
motivando a consciência social.
Segundo Castriota, o tombamento de Bento Rodrigues buscava
a defesa de seu patrimônio para resguardar o que restou do acidente
tecnológico e evitar, assim, o seu esquecimento. O autor considera
esta uma situação extremamente particular e, por isso, entende que
o método comumente usado para conservação, baseado na matéria,
é insuciente para essa conjuntura. Dessa forma, ele recorre a uma
perspectiva baseada em valores.
(...) mais importante que os próprios resquícios materiais do antigo
vilarejo de Bento Rodrigues – que se mostravam extremamente
frágeis frente à magnitude da tragédia – seria o próprio processo de
transformação daquele sítio em referência cultural para a sociedade
brasileira, através do qual ele passava a simbolizar um evento
signicativo na história brasileira (...) (CASTRIOTA, 2019).
4 Veja a lista de bens tombados pelo município. Disponível em: https://www.
baraodecocais.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/conselho-municipal-de-
patrimonio-cultural/6507. Acesso em: 21/12/2023.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
646
Ele considera mais importante do que a estrutura que restou, o
processo que o deu origem, visto que este ressignicou o ambiente
e mudou o seu valor e, portanto, merece atenção diferenciada,
focando não somente na tragédia, mas em toda mudança de
signicado social e sua importância nacional.
(...) o seu valor não seria apenas intrínseco a ele, não estaria apenas
em sua materialidade, neste caso muito reduzida pela tragédia,
mas residiria, em última instância, no próprio processo de sua
patrimonialização através do qual ele se transforma, por associação,
numa referência para o país (CASTRIOTA, 2019).
Assim, ao considerar a conservação baseada em valores, há
a possibilidade de análise de sua multiplicidade e compreensão
acerca das variabilidades, quando associados a seus patrimônios
e conitos. Tudo isso partindo da perspectiva dos envolvidos no
processo que são indispensáveis para a construção desse estudo
(CASTRIOTA, 2019).
Complementando a discussão, Castriota incorpora ao debate os
conceitos de Pierre Nora: “meio de memória” e “sítio de memória”.
Como “meio de memória”, ele compreende “(...) um ponto onde
espaço e tempo encontrariam a memória, um lugar de memória
viva e constantemente rearmada”, enquanto entende “sítio de
memórias apenas como traços de circunstâncias interrompidas ou
vidas arruinadas” (CASTRIOTA, 2019).
Nosso interesse no lugar de memória onde a memória se cristaliza e
se secreta ocorre em um momento histórico particular, um ponto de
inexão em que a consciência de uma ruptura com o passado está
ligada ao sentimento de que a memória foi rompida – mas rompida de
tal maneira que coloca o problema da incorporação da memória em
certos locais onde persiste um sentido de continuidade histórica. Há
lugares de memória, sítios de memória, porque não há mais meios de
memória, ambientes reais de memória (NORA, 1989 apud. CASTRIOTA,
2019).
O sítio de memória apresenta as marcas da ruptura, no caso,
o desastre. A sua conservação é necessária exatamente para
entender esse processo e o crime, para que ele não seja esquecido
nem repetido, e para que suas implicações sejam questionadas
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
647
em todas as dimensões que abrange. Para além disso, é necessária
para compreender a visão que a comunidade desapropriada tem
em relação ao seu espaço, as novas relações que são estabelecidas,
os novos signicados e valores, além da luta e resistência por seus
direitos, que o caracteriza como patrimônio sensível.
O autor ainda complementa a ideia com o conceito de “sítio
de consciência”, que seria um lugar que “confronta ativamente a
história do que aconteceu naquele sítio e estimula os seus visitantes
a reetir e agir sobre as implicações contemporâneas da história”
(CASTRIOTA, 2019). Esse tipo de patrimônio não é destinado
a ser um cenário para fotograas e poses, mas objeto de reexão
sobre todo um processo, de modo a gerar críticas, visto que, como
mencionado anteriormente, ele vai além das estruturas palpáveis
ao tocar os valores, que os grupos que nele se enxergam atribuem
a dor, luto, resistência, e/ou cultura, sinalizando um compromisso
ético com o futuro.
5. A COMUNIDADE DO SOCORRO COMO
PATRIMÔNIO SENSÍVEL REGIONAL
Ao revisar os conceitos à luz de Castriota e Freitas e olhar para
a comunidade do Socorro em Barão de Cocais, é possível traçar
semelhanças e, a partir destas, diferenças. Observar ambos os
casos proporciona a possibilidade de utilizar as mesmas ideias para
classicar a situação, além de criar novas subclassicações e formas
de preservação.
A comunidade do Socorro pode ser vista como um “Patrimônio
Minerário” e um “Núcleo urbano originado por atividade minerária”
dada a sua história, e como um “Patrimônio em conito” dada a sua
situação e localização geográca. A localidade, partindo do conceito
de Nora, seria um “meio de memória” onde se mantinham relações
sociais, a manutenção de uma tradição, práticas de subsistência e
uma vida simples e calma em “relativo isolamento” (CASTRIOTA,
2019). Nesse sentido, a ruptura desse espaço ocorre com o soar
das sirenes e a evacuação da comunidade em meio a madrugada,
obrigando todos os moradores a deixar seus bens e rotinas e
modicando radicalmente a paisagem. Esse processo geraria um
“sítio de memória”.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
648
Diferentemente de Bento Rodrigues, não há ruínas, sujeira e
morte provocadas pela lama, mas um vazio, sinais de abandono,
com arbustos invadindo o que antes era um lar. Os moradores
mudaram seus modos de vida e foram privados de suas liberdades,
até mesmo do luto. A “lama invisível” tomou conta do Socorro e
sepultou todo patrimônio que ali existia. Os bens continuam lá, mas
inacessíveis como um ente querido desaparecido e a esperança de sua
volta, embora não se saiba quando e como. Assim, uma constante
incerteza domina o imaginário dos afetados sobre o estado dos seus
bens e se ainda existe o risco da barragem destruí-los por completo.
A lama que não existe, mas destrói relações, rotinas, práticas
culturais, econômicas e de subsistências ligadas ao espaço; o
emocional dos entes envolvidos e o patrimônio que, devido
ao desuso, desfaz-se com o tempo. A distância entre os bens e a
comunidade motivou uma ressignicação dos rituais e práticas
que, embora esta ação presumisse a destruição delas, os moradores
não pararam de comemorar a tradicional festa da padroeira,
mantendo-a o mais semelhante possível ao modo como ocorria
anteriormente, buscando manter o espírito de comunidade vivo e
exercer a manutenção da identidade local.
Com patrocínio da empresa responsável pela barragem -
reivindicado pelos moradores -, as comemorações foram realizadas
em um local próximo à região de risco. Os próprios moradores
identicaram essa ação como uma prática de resistência em relação
à expansão da mineração e à tomada de suas terras (GOMES, 2019).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que diz respeito à dimensão das consequências do rompimento
da barragem, a situação da comunidade do Socorro é incomparável
a Bento Rodrigues, que teve um impacto nacional. Logo, seu caráter
sensível também se difere. Entretanto, as implicações do terrorismo
de barragem ocorrido em Barão de Cocais, regionalmente localizado
no quadrilátero ferrífero, deixaram marcas sociais e econômicas,
principalmente no que tange saúde mental e o turismo, tornando-o,
também, um patrimônio sensível. Dessa forma, pode-se entendê-lo
como um sítio de consciência de caráter regional.
Mesmo que os moradores do Socorro voltem para suas casas,
muitos morreram sem esse privilégio. Crianças cresceram sem os
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
649
seus quintais, moradores desenvolveram ansiedade, depressão,
alcoolismo e outros problemas, em decorrência do evento.
Assim, “lama invisível” permanece uma ferida aberta,
independentemente de seu desfecho, e não pode ser esquecida,
visto que sua lembrança denuncia os males da minério dependência
e os excessos praticados por empresas que colocam em risco não
só comunidades tradicionais, mas também patrimônios ligados a
mineração que foram considerados, anteriormente, indispensáveis
para a compreensão da história do país. A lembrança desses crimes
questiona a identidade da vocação minerária dada ao estado e
manifesta o seu caráter de consciência, concretizando, como
apresentado por Castriota, seu compromisso de conscientizar e
modicar a sociedade em uma dimensão regional.
A discussão apresentada, no entanto, ainda apresenta lacunas
a serem preenchidas, tais como buscar as limitações dos conceitos
anteriormente citados, entender a representatividade de outros
patrimônios em situação semelhante na região e explorar as
complexidades do terrorismo de barragem na comunidade do
Socorro, para que se possa, efetivamente, denominá-lo como
patrimônio sensível regional.
Isso se tornará possível com o desenvolvimento da pesquisa de
campo e com a leitura de uma ampla bibliograa. O resultado, fruto
deste trabalho, será apresentado como Trabalho de Conclusão de
Curso.
REFERÊNCIAS
CASTRIOTA, Leonardo. Lidando com um patrimônio sensível: O caso de
Bento Rodrigues, Mariana MG. Revista Arquitextos. 2019. Disponível em:
https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.230/7423
FREITAS, Anielle Kelly Vilela. Bento Rodrigues: Paisagem Cultural
Minerária. 2018. Dissertação (Mestrado em Ambiente Construído e
Patrimônio Sustentável) – Escola de Arquitetura, Universidade Federal de
Minas Gerais. Minas Gerais, 2018. 144 Disponível em: https://repositorio.
ufmg.br/handle/1843/MMMD-BBXHT5
GOMES, Rafael Augusto. Violência Cultural: como a barragem ameaça a
identidade cocaiense. Revista Quadrilátero. Barão de Cocais, 15/04/2019.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
650
GOMES, Rafael Augusto. Festa de Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro:
resistência cultural. Revista Quadrilátero. Barão de Cocais, 28/08/2019
PASSOS, Sibele Fernanda de Paula. (Des)Construindo uma Comunidade
Imaginada: O caso da comunidade de Bento Rodrigues atingida
pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG). 174 s.
Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) - IPHAN,
Rio de Janeiro, 2022.
História de Barão de Cocais. Prefeitura de Barão de Cocais. Disponível
em: https://www.baraodecocais.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/
historia/6495
VELOSO FARACO, V.; SEFERIAN, G. Limites e Potências quanto ao Uso
do Termo “Terrorismo de Barragens” na Lida de Conitos Minero-
Energéticos em Minas Gerais. Revista de Estudos e Pesquisas sobre
as Américas, [S. l.], v. 15, n. 3, p. 11–33, 2023. DOI: 10.21057/10.21057/
repamv15n3.2021.40589. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.
php/repam/article/view/40589. Acesso em: 29 dez. 2023.
OS “HOMENS ORDINÁRIOS”
DA PEDREIRA DO CERRO DO
ESTADO, NO ESTUDO DA OBRA DE
MICHEL DE CERTEAU
Gladis Rejane Moran Ferreira1
Carla Rodrigues Castaud2
Considerações iniciais
Este trabalho, que é parte da tese de doutoramento em andamento
no PPGMP/UFPEl que tem como título provisório “A memória da
Pedreira do Cerro do Estado, nos indícios, nos restos industriais
e nas narrativas operárias” tem por objetivo apresentar algumas
reexões propiciadas pelas Disciplinas de Estudos Avançados I, II e
III, cuja proposta foi conhecer parte da obra de Michel de Certeau.
Na medida que avançava nas leituras propostas, percebi que alguns
aspectos abordados pelo autor se adequaram aos operários ouvidos
por mim o que me fez ter um novo olhar sobre o trabalho de memória
nas narrativas operárias de dez trabalhadores da Pedreira do Cerro
do Estado, na cidade do Capão do Leão, que é de responsabilidade
do Porto do Rio Grande.
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural. Universidade Federal de Pelotas. E-mail: gladisbiblio@gmail.com
2 Professora Dra. do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural. Universidade Federal de Pelotas. E-mail: crgastaud@gmail.com
651
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
652
Como metodologia de trabalho foi realizado estudo bibliográco
proposto pelas disciplinas de Seminário de Estudos Avançados I, II e
III para que podesse pensar o meu objeto a partir de minhas análises.
Como métodos de estudo foram utilizados a história oral, que deu
embasamento para as entrevistas e o paradigma indiciário, onde
se percorreu pistas e sinais que possibilitaram as reexões obtidas.
Na escrita da tese destaco a memória dos excluídos da história
da Pedreira do Cerro do Estado, neste caso, o “outro” silenciado,
são os operários anônimos que não têm seus nomes destacados
nos documentos e relatórios arquivados sobre a história do Porto
do Rio Grande. Para Certeau “(...) poderia justamente revelar
incidentalmente o olhar lançado pelo outro para uma sociedade que
se constrói sobre o silêncio e a exclusão do outro”(CERTEAU, 1995,
p.29). Porém, juntamente com outros tantos operários do passado,
que os antecederam, estes trabalhadores guardam técnicas e rotinas
de trabalho que os faz manter a memória coletiva deste grupo.
A Pedreira do Cerro do Estado começou a ser constituída
a partir do início do processo de extração do granito instaurado
pela Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul, no
início do século XX, com a nalidade de construir os Molhes da
Barra3, na cidade do Rio Grande. Neste século a maior aspiração
da comunidade rio-grandina era a construção dos molhes, uma
obra que garantiria a abertura da barra de forma permanente
e proporcionaria a profundidade necessária para a circulação
das embarcações maiores com regularidade e segurança, e que
simbolizaria progresso para toda a província. Com esse intuito no
ano de 1907 o Governo Federal contrata a Compagnie Française du
Port do Rio Grande do Sul, com o objetivo de construir os Molhes
da Barra e um novo porto, de maior calado, ambos na cidade do Rio
Grande.
Para que as obras de construção do novo porto e a ligação deste
ao Porto Velho4 fossem possíveis a companhia francesa comprou
extensas áreas de terras na cidade do Rio Grande e duas pedreiras
localizadas na cidade de Pelotas, a de Monte Bonito5 (FIGURA
3 São terminações de pedras que avançam mar adentro para dar segurança à
navegação marítima para entrar no canal de acesso ao Porto do Rio Grande.
4 Como o porto natural da cidade do Rio Grande passou a ser chamado a partir da
construção do Porto Novo.
5 Apesar de deixar de ser explorada no ano de 1915 a Pedreira de Monte Bonito
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
653
1), que posteriormente se tornou insuciente para a extração das
pedras, e a do Cerro do Estado, no lugar conhecido como Capão
do Leão6 (FIGURA 2), em ambas foram construídos complexos
industriais para a extração do granito suciente para a construção
dos molhes da barra.
FIGURA 1 – Pedreira de Monte Bonito
Fonte: Acervo de Fotos da Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul. Biblioteca do
Porto do Rio Grande
continuou a pertencer a Compagnie Française du Port do Rio Grande de Sul e integrou
o seu inventário. Posteriormente o Governo Federal retoma a área que deixa de estar
sob a guarda do Porto do Rio Grande.
6 Atualmente, este local faz parte da cidade de Capão do Leão, que se emancipou de
Pelotas, em 1982.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
654
FIGURA 2 – Pedreira do Cerro do Estado. Capão do Leão
Fonte: Acervo de Fotos da Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul. Biblioteca do
Porto do Rio Grande
Outras áreas foram compradas, por onde foram transportadas
pedras7, que serviram para ligar por linha férrea as pedreiras
de Monte Bonito e do Cerro do Estado às cidades de Pelotas e
Rio Grande. Para o transporte outros lugares foram criados ou
partilhados, como é o caso das estações férreas8 de Capão do
7 Os documentos de compras de áreas fazem parte do acervo notarial da Biblioteca
do Porto do Rio Grande.
8 O uso das Estações era compartilhado entre a Compagnie Auxiliaire de Chemins de
Fer du Brésil e a Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
655
Leão9, Teodósio10 ; Pelotas11;Capão Seco12; Povo Novo13; Quinta14;
Junção15 e Rio Grande16. Concomitante a construção da estrada
férrea nas pedreiras fora construída as moradias para operários
e encarregados; as usinas elétro-pneumáticas17; os galpões, que
abrigaram as ocinas, as máquinas e o almoxarifado; as britadeiras
e foram montados os equipamentos de trabalho. As linhas férreas
caram concluídas em dezembro de 1911 e o transporte das pedras
começou com regularidade em 1 de janeiro de 1912 (PRADEL, 1979,
p.16). A construção de ambos os molhes levou 3 anos e 10 meses
de trabalho para car concluída onde foram empregadas 3.389.800
toneladas de pedras, distribuídas entre o Molhe Leste que consumiu
1.852.700 toneladas e o Molhe Oeste, que usou 1.537.100 toneladas.
As obras de construção dos molhes da barra e do novo porto foram
concluídas no ano de 1915 passando o operar na cidade Rio Grande
dois portos.
A companhia francesa trouxe mão de obra especializada, formada
por engenheiros e técnicos franceses e por trabalhadores europeus
de outras nacionalidades, principalmente a italiana. Grande parte
dos trabalhadores que construíram a estrada ferroviária para o
transporte das pedras eram empregados belgas da Compagnie
9 O prédio desta estação, atualmente abriga a Casa de Cultura Jornalista Hipólito
José da Costa, preservando os trilhos da linha férrea.
10 Essa estação encontra-se em ruínas, com a linha férrea, no entorno, preservada.
11 Essa estação foi desativada em 1996 e o prédio foi totalmente restaurado pela
Prefeitura Municipal de Pelotas e inaugurado em 2014. Esta Estação continua com
a linha férrea que atualmente é utilizada somente para a o transporte de carga pela
Empresa Rumo, detentora da concessão da rede férrea no Estado do Rio Grande do
Sul.
12 A estação foi construída em 1884. O prédio está demolido e os trilhos estão
mantidos.
13 O prédio não é mais utilizado como estação da linha férrea e sim como moradia. A
linha férrea se mantém e é utilizada pela Empresa Rumo.
14 Esta estação foi desativada entre os anos de 1980 e 1990 e o prédio se mantém.
15 A estação encontra-se descaracterizada e usada para moradia.
16 A estação abrigava a sede da linha Rio Grande-Bagé. O prédio se mantém, mas
seus armazéns e ocinas estão em ruínas. Parte da linha ainda é mantida. O prédio
principal da estação atualmente é ocupado por uma secretaria municipal da cidade
do Rio Grande.
17 Processo de geração de energia autossustentável.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
656
Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil. A oferta de trabalho nas
pedreiras chamou atenção de trabalhadores da região e de outras
partes do estado que chegaram pelos portos de Rio Grande e
Pelotas, alguns, oriundos da pecuária e agricultura, sem nenhuma
experiência na extração do granito. Estes empregados formaram
a primeira geração de trabalho na Pedreira do Cerro do Estado.
Também vieram contratados de Portugal, Espanha, Alemanha,
Rússia, Hungria, Romênia, Uruguai e Argentina. Segundo (DIAS,
2010) no ano de 1910 a Vila do Capão do Leão tinha cerca de
710 habitantes, quatro anos depois contava com 1400 habitantes,
sobretudo em função dos trabalhadores da Pedreira de Cerro do
Estado.
Os operários ouvidos para tese fazem parte da segunda e terceira
geração de trabalhadores da Pedreira do Cerro do Estado, três deles,
são os últimos sobreviventes da segunda e sete são da terceira geração.
Dos sete, o administrador é formado em eletrotécnica e Geograa
e é autor de livros que retratam a Pedreira do Cerro. Para Certeau,
os demais são homens sem estudo, “homens ordinários”18, que
foram ativos no que receberam por tarefa e no que produziram, se
tornando os narradores ao denirem o “lugar (comum) no discurso
e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento” (CERTEAU, 2014,
p.61). Aqui, destacarei parte da fala de três operários da segunda
geração e de um operário da Terceira geração, o administrador da
pedreira.
Procurei saber sobre a chegada destes trabalhadores na Pedreira
do Cerro do Estado; se nasceram ali ou são de outro lugar e vieram
para trabalhar; quis saber sobre o trabalho da extração do granito;
sobre o carregamento dos trens e o transporte das pedras até os
Molhes da Barra. Investiguei se estes trabalhadores sofreram ou
presenciaram acidentes com colegas durante o trabalho. Investiguei
sobre as rotinas de trabalho e lembrei Ecléia Bosi ao armar que
“caminhar e ver confundem-se nos conns da lembrança: o tempo
de lembrar traduz-se enm, pelo tempo de trabalhar” (BOSI, 1979,
prefácio).
A seguir, serão apresentadas parte dos relatos destes idosos,
operários aposentados, que apesar de serem histórias individuais
criam sentido social, se constituindo em memória coletiva. O
primeiro entrevistado, o senhor Lauro, com 89 anos de idade,
18 Um anônimo sem privilégio losóco ou cientíco, e sim, o ordinário, o comum.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
657
me recebeu na varanda de sua casa na cidade do Capão do Leão,
é natural de Arroio Grande e trabalhou em outras funções mas a
principal foi a de maquinista de locomotiva. Lembrou que quando
jovem trabalhava no campo com a família e que ouvia de longe o
apito do trem, sem saber o que era e que conheceu o trem quando,
ao completar maior idade, foi para cidade servir ao exército. Seu
Lauro narrou que,
quando comecei na Pedreira do Cerro do Estado levei as locomotivas a
carvão, as Maria Fumaça, e depois passei para as locomotivas a diesel.
As locomotivas a diesel, as Toshiba, chegaram aqui nos anos 80. Os
blocos de pedras eram carregados nas plataformas com o Kra aqui...
nas plataformas que tinha. A gente colocava os eucaliptos botavam em
cima, pra pedra não correr. Os blocos iam nas plataformas de vagão
com os eucaliptos, uns paus para passar as correntes por baixo pra eles
não correrem. Ele ia preso em correntes. Já ia pronto para o guindaste
tirar das plataformas. (Entrevista do Sr. Lauro Gonçalves, concedida
em 05/04/2022).
O segundo entrevistado, o Senhor Nedi, com 86 anos de idade,
me recebeu na varanda de sua residência no Cerro do Estado na
companhia de dois lhos. Contou que é natural de Piratini e que
chegou em Capão do Leão com dois anos de idade com a família,
quando seu pai veio trabalhar em outra pedreira da região19. Seu
Nedi contou que,
foi a nalidade toda nossa quando entramos para a pedreira foi para
tirar material para os molhes, as pedras. Nós era morroeiros. Nós
cortava pedras com ponteiros. Colocava o ferrinho assim (seu Nedi
faz o gesto), chamava de pochote e então batia assim (seu Nedi faz o
gesto) pra abrir a pedra pra car pequena, porque eles davam uns tiros
(usavam a dinamite) na rocha e largava pedra de tudo que tamanho.
A gente pegava aqueles blocos, botava na cancha pra nós trabalhar,
fora da rocha, fora da parece, pra nós trabalhar e aí a gente cortava,
desmanchava em pedra, em Moellon, pedras de trinta quilos, aí
colocava nas caçambas, agarrava entre dois. Aí vinha as caçambas e
levava para a mangueira para manter a areia e a água não invadir, não
avançar. Ali tudo tem pedra tirada daqui (Entrevista do St. Nedi Souza
em 20 de junho 2023).
19 O pai do seu Nedi trabalhou na Pedreira do Cerro das Almas.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
658
O terceiro entrevistado foi o senhor Heitor, que no momento da
entrevista tinha 85 anos de idade. Nascido na Pedreira do Cerro do
Estado, numa família de trabalhadores do lugar. Ele nos recebeu
na sala de sua casa, localizada do Cerro do Estado, na companhia
de sua lha e esposa20. Contou que segiu a prossão do pai, que
também era guindasteiro. Além da memória individual do trabalho
diário seu Heitor herdou a memória passada por seu pai, pois foi
quem lhe ensinou o ofício de manobrar o guindaste para segurar as
pedras. Contou que iniciou o trabalho na pedreira ainda menino,
aos 14 anos, ligando a corda ao guindaste elétrico e passou por
outros ofícios até se aposentar como maquinista de locomotiva. Seu
Heitor iniciou sua narrativa contando:
Eu comecei como aprendiz, com 14 anos de idade eu ligava a corda
elétrica dos guindastes, depois passei a trabalhar nos guindastes.
Trabalhava ligando a corda e quando dava uma folguinha entrava no
guindaste pra aprender a trabalhar nele. Não me deixavam entrar era
tudo escondido né? Eu era uma criança e o trabalho era muito perigoso.
Depois trabalhei nos guindastes trazidos pela companhia francesa
e depois comecei a trabalhar numa máquina a carvão, uma Kra a
fogo, que andava nos trilhos e depois mais tarde passei a trabalhar na
locomotiva. A máquina Kra e a locomotiva também eram as máquinas
dos franceses (Entrevista do Sr. Heitor Vieira da Fonseca, concedida no
dia 05/04/2022).
Outra reexão propiciada pela leitura da obra do autor foi a
respeito da “estratégia”, pensada por Certeau, como uma forma de
controle articulada pelo poder dominante, enquanto a “tática”
seria a arte do fraco, do operário que opera golpe por golpe, lance
por lance, aproveitando ocasiões. A tática é uma ação calculada
que burla o poder para ns próprios, é “arte de fazer” pelo desvio
do tempo do trabalho e reaproveitamento de materiais, que muitas
vezes cam despercebidos por nós cientistas, sendo para Certeau
um ato de agir, transgressor e político do “homem ordinário”.
Neste sentido, durante as entrevistas para a tese, os trabalhadores
relataram que quando estavam em ócio, mas não queriam deixar
de ganhar uma graticação percebida por produção, cavam no
20 A esposa do sei Heitor é lha do ex capataz da pedreira, já falecido.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
659
local de trabalho, parados, com um deles cuidando do movimento
do capataz da pedreira. Quando este se aproximava eles batiam
nos metais e nas pedras fazendo barulho e assim ngindo estar
trabalhando.
Quanto ao aproveitamento de materiais para ns próprios,
através do uso da “sucata” dos restos industriais da pedreira, foi
observado que os operários tiram proveito, obedecendo a outras
regras e que as operações de reemprego dos objetos, se multiplicam.
Para Certeau, “isso não impede que correspondam a uma arte muito
antiga de “fazer com”” (CERTEAU, 2014, p.74). Concordo com o
autor ao armar que ao trabalhar com sucata o trabalhador se serve
de restos e que o ato é coberto de silêncio.
Pude perceber o reuso da sucata na casa do atual administrador
da Pedreira do Cerro do Estado. A casa, que foi construída para ser
utilizada pelos sucessivos administradores da pedreira, é localizada
nas dependências do Cerro do Estado. O administrador Jairo, ao
mostrar os objetos reaproveitados, deu destaque para a tampa da
antiga usina e contou que quando a usina foi desmanchada pelo
Porto do Rio Grande, e o material levado para ser vendido como
ferro velho ele retirou a tampa e a reaproveitou para um tampo de
mesa de seu jardim e falou,
aqui em casa, eu posso preservar parte dos objetos da pedreira, porque
eu não tirei da pedreira, eles ainda estão aqui, só que protegidos. Se
eu tivesse deixado eles levar, hoje, ela não estaria mais aqui. Eles não
viram quando eu tirei, mas eu tirei do monte de ferro (Entrevista do Sr.
Jairo Humberto Pereira Costa em 20/06/2023).
Para (CERTEAU, 2014, p.87), a arte da sucata é um contraponto
no mesmo lugar da cadeia industrial, uma variante da atividade que
fora da fábrica (pedreira), (noutro lugar), tem forma de bricolagem,
com os trabalhadores fazendo de um outro jeito, inventando um
espaço onde tudo é possível, não obedecendo a lei do lugar.
Concordo com o autor quando se refere aos operários como
heróis anônimos que criam o murmúrio das sociedades e que estão
invisibilizados na “historiograa ocial”(CERTEAU, 2014, p.57).
Os dez operários da pedreira do Cerro do Estado, são somente
uma cha funcional na história. Para (CERTEAU, 2014, p.58) ,
estes homens são uma sociedade de formigas, onde o anti-herói é
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
660
também o ninguém, homens sem posição de domínio. Apesar disso,
os narradores, ao narrarem, denem o lugar do discurso.
Com este trabalho vou na contramão da ordem social que se
impõe como natural, a favor do “vencido da história” (CERTEAU,
2014, p.73), do sem fala que é parte de forças desiguais. Reeti
sobre as histórias dos meus narradores, aquelas ausentes dos
documentos ociais, porque nestes aparecem somente nomes
dos administradores, engenheiros, diretores ou outros cargos
de destaque para o discurso ocial. Os “homens ordinários” na
Pedreira do Cerro do Estado, são os anônimos da história, aqueles
que cortaram e dinamitaram as pedras, que as carregaram com
guindastes até o trem, que dirigiram as locomotivas até a cidade do
Rio Grande e que construíram os Molhes da Barra. Também são
aqueles que perderam suas vidas, nas explosões e acidentes com
máquinas e queda de pedras durante a construção dos molhes. Os
dez operários compartilharam comigo suas histórias de astúcias,
que para o autor são insurgências, táticas para ir contra as estratégias
de poderes instituídos.
Certeau também me fez reetir sobre os “passos perdidos,
armando que os jogos de passos moldam espaços e tecem lugares”
(CERTEAU, 2014, p.163). Hoje, olhando para os vazios da Pedreira
do Cerro do Estado os passos remetem aquilo que passou, aos
esquecimentos. Mas o autor complementa que se há uma ordem
espacial que organiza um conjunto de possibilidades (um lugar onde
é possível circular) e proibições (por exemplo, por um muro que
impede prosseguir) o caminhante atualiza alguma delas, fazendo-
as ser e aparecer. Mas também se deslocando e inventando outras.
Concordo com o autor quando se refere aos lugares como espaços
vividos, lugares com presença de ausências que mostram o que não
é mais e que estamos ligados a eles por lembranças.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.
Queiroz, 1979.
CERTEAU, Michel. O imaginário da cidade. In:_________. A cultura no
plural. Campinas: São Paulo, Papirus, 1995.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
661
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
DIAS, Joaquim. Blog Professor Joaquim Dias. Disponível em:http://
professorjoaquimdias.blogspot.com/ acesso em:
http://www.estacoesferroviarias.com.br/rs_bage_riogrande/capaoseco.
htm
PRADEL, Antonio. Histórico da Barra do Rio Grande: comemorando os
135 anos de fundação da Câmara do Comércio. 1979.
FERROVIAS BRASILEIRAS:
UMA REFLEXÃO DA
HISTÓRIA, MEMÓRIA E
PATRIMONIALIZAÇÃO
Heoclizia Aparecida Alves de Mautas Mesquita1
Juliana Borges de Souza2
Introdução
Incluso no grupo de bens declarados como patrimônio cultural,
os objetos ferroviários encontram-se em uma circunstância recente,
onde os bens são agrupados e nomeados de patrimônio cultural
ferroviário. O engenheiro Hélio Suêvo Rodriguez, em seu livro “A
formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro resgate das suas
memórias”(2004) narra que este conjunto referese ao acervo móvel
e imóvel proveniente da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) e
evidencia a relação do desenvolvimento ferroviário brasileiro com
a economia e a cultura do país, por meio da nalidade desses bens
(transporte de alimentos, de pessoas e desenvolvimento econômico).
O patrimônio ferroviário, segundo David (1985) está intimamente
conectado a conjuntura econômica e social, e sua percepção não
1 Mestranda em História Social da Cultura na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio). Bolsista CNPQ. E-mail:heoclizia01@gmail.com
2 Doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). E-mail: juliana_borges_souza@ufrrj.br
662
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
663
deve afastar-se da história e da memória. Devendo assim, ser
pesquisado de modo conjunto com as modicações econômicas,
sociais e culturais vivenciadas pelo mundo, produzindo novas
formas de olhar e de estar no mundo, como as noções de produção,
progresso e locomover-se.
O entendimento do mecanismo de proteção do patrimônio
cultural brasileiro passa por assimilar o conceito de patrimônio
cultural. Gonçalves (2002) enfatiza que a palavra patrimônio faz
parte do nosso cotidiano, usa-se diariamente para denir um legado
em várias áreas — familiar, nanceiro, econômico, imobiliário,
arquitetônico, histórico, artísticos ecológico e artístico. Logo, o
Patrimônio Cultural é o conjunto de bens materiais e imateriais que
representam a identidade de um povo passada de geração a geração.
A cultura e a história de uma nação provêm dessa herança legada,
reetindo seus valores, crenças, tradições e costumes.
Para Chuva (2009), patrimônio é um locus em que se reúnem
representações e práticas congruentes aos mais variados programas
políticos estatais. Os confrontos de representação, em diversos
contextos, que marcaram a história do IPHAN, desde a sua criação,
tiveram como fruto, a invenção dos seus próprios objetos, das suas
ferramentas e sua autoridade como órgão de proteção.
Os direitos do patrimônio é uma abrangência de direitos reais
e pessoais ou obrigacionais. Segundo Venosa (2004, p.298), “O
patrimônio é um conjunto de direitos reais e obrigatórios, ativos
e passivos, pertencentes a uma pessoa”. O ministério da fazenda
atribui valor econômico ao termo patrimônio ao conceitua-lo
como um conjunto de direitos, bens e obrigações de uma instituição
(BRASIL, 2015). De forma simplicada, a Constituição Federal
apresenta os bens que integram o patrimônio cultural brasileiro:
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro de bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem:
I - As formas de expressão;
II - Os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações cientícas, artísticas e tecnológicas;
IV - As obras, objetos, documentos, edicações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
664
V - Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e cientíco (IPHAN,
1988, p.1).
Nesse contexto de assimilação do conceito de patrimônio
cultural, enfatiza-se importância da memória, pois de acordo com
Le Go (1990), a memória por guardar informações, corrobora
para que o passado não seja esquecido, facultando ao homem
atualizar informações e sentimentos pretéritos, levando a história
a se eternizar na consciência humana. Le Go arma que (1990,
p.477) “a memória onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,
procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”, ressalta a
importância do passado quando está a serviço da lembrança emotiva
e também como elemento formativo da sociedade contemporânea.
Nesse sentido, a natureza material e imaterial do patrimônio tem
importância igual, sendo de interesse da sociedade o tombamento
e o registro dos bens.
Em sua materialidade, o patrimônio salvaguardado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
constitui de bens culturais classicados segundo sua natureza, e a
partir disso, são tombados, ou seja, inscrito em um livro de tombo
(arqueológico, paisagístico e etnográco; histórico; belas artes; e
das artes aplicadas), podendo esses bens ser imóveis como cidades
históricas, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais;
ou móveis, como coleções arqueológicas, acervos museológicos,
documentais, bibliográcos, arquivísticos, videográcos,
fotográcos e cinematográcos.
Ferrovias brasileiras: um breve contexto
O Brasil de meados do século XIX era um grande produtor de
café e outros produtos agrícolas, concentrando estas produções
nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com
as exportações realizadas quase por completo pelo porto do Rio
de Janeiro. Foi nesse panorama que os fazendeiros, começavam a
pressionar o governo para a criação de um transporte mais moderno
para o transporte até o embarque portuário (LUCAS, 2010).
Assim, em 30 de abril de 1854, a história do transporte ferroviário
no Brasil inicia-se com a inauguração da Estrada de Ferro Mauá, que
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
665
ligava o Porto de Mauá a Fragoso, inaugurado por D. Pedro II, com
a extensão de 14,5 km de trilhos e mais tarde, em 16 de dezembro
de 1856 é aberto o tráfego até a estação de Raiz da Serra, chegando
a 16,2 km (IPHAN, 2022). Foi a partir dessa estrada de ferro que
surgiu o que foi considerado o primeiro transporte intermodal3
no Brasil, integrando o transporte aquaviário e o ferroviário. As
embarcações aportavam no fundo da Baía de Guanabara, então,
a carga passava para o transporte ferroviário. A empresa Imperial
Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis,
era quem operava essa ferrovia e, ela pertencia ao Visconde de
Mauá (AENFER4, 2018).
De acordo com Finger (2013), foram muitos acontecimentos que
contribuíram para implantação da malha ferroviária no Brasil, como
o fato da Inglaterra, após 1850, ter concluído sua via-férrea e seu
mercado doméstico iniciar um processo de saturação, levando o país
a buscar novos mercados. Conscientes de que sua economia estava
constituída sobre o setor ferroviário, uma crise no setor causaria
instabilidade no país. Assim, no Brasil imperial, a implantação dos
projetos de ferrovia se deveu muito a aprovação de uma legislação
que favoreceu a entrada de capitais estrangeiros interessados em
investir nos caminhos de ferro.
Em 1950, o governo, com base em estudos unicou a
administração de 18 estradas de ferro pertencentes à União, o que
totalizava 37 mil km de linhas no país. Em 1957 foi criada pela Lei
n.º 3115 a sociedade anônima Rede ferroviária Federal S.A.- RFFSA,
para administrar, explorar, conservar, reequipar, ampliar e melhorar
o tráfego das estradas de ferro da União a ela incorporadas, cujos
trilhos atravessavam o País, servindo as regiões nordeste, sudeste,
centro-oeste e sul (NUNES, 2003).
Diversos são os motivos apontados para que ocorresse a
privatização da malha férrea no Brasil, entre eles a crise do café; JK
e o nascimento da indústria automobilística; A extinção das linhas
3 “Transporte Intermodal refere-se a uma mesma operação que envolve dois ou mais
modos de transporte, onde cada transportador emite um documento e responde
individualmente pelo serviço que presta. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.
br/dspace/bitstream/handle/10438/16440/artigo_-_intermodalidade.pdf. Acesso em:
22 out. 2023.
4 Associação de Engenheiros Ferroviários (AENFER).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
666
de passageiros e a estagnação do corredor de commodities5 foram
determinantes para que a malha ferroviária chegasse ao cenário
atual (MOTA, 2021).
A autora Finger (2013) em sua tese de doutorado esclarece que
após a primeira guerra, com o cenário econômico internacional
tendo mudado, queda no consumo, especialmente de produtos
primários, várias companhias férreas foram a falécia como a “Brazil
Railway e a Great Western”, que controlava grande extensão de
trilhos no Brasil, obrigando o governo brasileiro a car responsável
pela administração das linhas da empresa. Ademais, o governo
também dava garantias as demais empresas do setor por meio de
juros ou outros, pois era a única forma das empresas funcionarem.
Os acontecimentos pontuados, contribuíram de maneira direta
para o quadro que se apresenta hoje na malha ferroviária, contudo,
não somente eles. Para a Associação Nacional dos Transportes
Ferroviários-ANTF, a política e as ferrovias brasileiras estão
ligadas desde sua criação até os tempos de hoje. O cenário do
desenvolvimento da malha ferroviária passa pelo Segundo Reinado
de 1835–1873, 1873–1889, República Velha 1889–1930, Era Vargas
1930–1960, pós-guerra 1960 – 1990 até chegar à Nova República
(1985), quando acontece a privatização da malha férrea em 1999.
O decreto n.º 3.277, de 7 de dezembro de 1999, foi assinado
pelo então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso,
determinando a extinção da Rede ferroviária Federal S.A.-
RFFSA (BRASIL, 1999). Com a extinção da RFFSA, os ativos
como locomotivas, vagões e infraestrutura foram arrendados as
companhias ferroviárias que operava as ferrovias (Companhia
Ferroviária do Nordeste — CFN, MRS Logística S.A., Ferrovia
Centro Atlântica — FCA, Ferrovia Novoeste S. A., Ferrovia
Bandeirantes — Ferroban, América Latina e Logística — ALL,
Ferrovia Teresa Cristina S.A.), contudo, cava a cargo da RFFSA a
scalização dos ativos arrendados (SOUSA; PRATES, 1997).
Portanto, os acontecimentos que marcaram as ferrovias, da sua
implantação em 1854 até sua desestatização em 1999, levaram a
5 Commodities são produtos principalmente, de origem primária, de origem
agropecuária ou de extração mineral, em estado bruto ou pequeno grau de
industrialização, produzidos em larga escala e destinados ao comércio externo.
Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16440/
artigo_-_intermodalidade.pdf. Acesso em: 22 out. 2023.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
667
reexões e perguntas, o que fazer com objetos pertencentes a ferrovia
que não mais cumpria sua função original? Ou até mesmo, como
manter preservado a história da implantação e desenvolvimento
da malha férrea, se grande parte dos seus objetos entrava em
desuso? O resgate da sua memória por meio da patrimonialização
a partir de 2007, mostrou-se imperativo para proteção de objetos
que foram parte integrante da cultura do país. Pois, como enfatiza
Pelegrini (2006), a percepção do patrimônio cultural está ligada as
recordações da memória, indispensável nas práticas patrimoniais,
dado que os bens culturais são salvaguardados em prol da ligação
que tem com as identidades culturais.
Memória e patrimônio cultural
A memória pode ser compreendida como a faculdade humana
de guardar e rememorar experiências e informações pregressas, das
quais, parte integrante do processo de interação do sujeito com seu
meio.
Quado pensamos em patrimônio, associamos a herança, bens
materiais e imateriais produzidos pelos nossos antepassados,
resultando em memórias e experiências, individuais ou coletivas
a serem preservadas. Essas heranças culturais interiorizadas são
capazes de dar informações expressivas da sociedade e do país. Por
ter essa incumbência, acaba por auxiliar na construção identitária
da nação, no agrupamento social e na rememoração, resultando na
ligação entre o indivíduo e suas raízes históricas. Preservá-lo então,
torna-se essencial no desenvolvimento da sociedade, visto que
constitui sua construção sociocultural.
É no contexto de memória coletiva desenvolvido por Halbwachs
(2003), que reetimos sobre a formação da memória da ferrovia,
onde em seu livro “A memória coletiva”, discursa que “É como
se estivéssemos diante de muitos testemunhos” (p. 30). Frente ao
ponto de vista que a pessoa nunca está só, por mais que vivencie
acontecimentos sozinhos, estes, em forma de lembranças, perduram
coletivamente, pois para o autor, é por meio da memória coletiva
que se constrói a memória individual. O autor ainda salienta que
para trazer a memória uma lembrança ou prová-la não é necessário
um espectador, “no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos
presentes sob uma forma material” (HALBWACHS, 2003, p. 31).
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
668
Para Candau (2011), a memória coletiva é prática, pois
ajuda constituir um formato de consciência do passado que são
teoricamente partilhados por um grupo de pessoas. De acordo
com Le Go (1990), a memória é um elemento essencial do que
se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é
uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades
de hoje. Mais do que uma aquisição, a memória coletiva é um
mecanismo de poder, pois “A memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o
presente e o futuro” (LE GOFF, 1990, p. 477).
Tendo como norte essa constituição de pensamento, vislumbra
uma justicativa e relevância de pesquisar a memória. Pois, para
Le Go (1990), a memória como formadora de identidade é parte
da sua construção, já que, a identidade de um povo, faz algumas
distinções da memória, além disso, formula algumas tendências
que conduz o sujeito a absorver algumas características individuais
do passado.
Assim, quando assimilamos o patrimônio como algo que
auferimos do passado, tendemos a vivenciá-lo no presente e
buscamos transmiti-lo para gerações vindouras, pois para Pelegrini
(2007, p.3), ao fazê-lo, estamos testemunhando “que o patrimônio é
historicamente construído e conjuga o sentimento de pertencimento
dos indivíduos a um ou mais grupos”, sensação essa, que garante
uma identidade cultural.
Patrimonialização: a legislação sobre os
objetos
O artigo 216, da lei federal de 1988, alargou a compreensão de
patrimônio descrito no decreto n.º 25, de 30 de novembro de 1937,
substituindo a nomenclatura “Patrimônio Histórico e Artístico,
por Patrimônio Cultural Brasileiro”. Essa ação integra a ideia de
referência cultural juntamente com bens aptos ao reconhecimento,
especialmente os de natureza imaterial. Também estabelece institui a
colaboração do poder público com as comunidades para promover a
salvaguarda do Patrimônio Cultural Brasileiro, mantendo, contudo,
a gestão da documentação e do patrimônio referente aos bens como
incumbências da administração pública (BRASIL,1988).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
669
Assim, enquanto o decreto de 1937 determinava como
patrimônio os bens móveis e imóveis do país onde a preservação
era de interesse público, por sua associação com fatos memoráveis
da história do Brasil, pelo valor “arqueológico ou etnográco,
bibliográco ou artístico”, o Artigo 216 da Constituição estabelece
outra visão, conceitua o patrimônio cultural “como sendo os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (IPHAN.
2014a, online).
Logo, o Patrimônio Cultural é o conjunto de bens materiais e
imateriais que representam a identidade de um povo passada de
geração a geração. A cultura e a história de uma nação provêm dessa
herança legada, reetindo seus valores, crenças, tradições e costumes.
O Patrimônio Cultural inclui bens tangíveis — monumentos e
edifícios históricos, artefatos, ou arquitetura —, bens intangíveis
— música, culinária, dança, rituais e línguas. Nesse sentido,
Patrimônio Cultural é uma das principais heranças deixadas pelos
ancestrais, implicando grande responsabilidade manter e preservar.
A proteção do Patrimônio Cultural exige o trabalho de governos, e
também de grupos comunitários e ativistas culturais.
Em âmbito internacional, o Brasil é signatário da Convenção
sobre Proteção do Patrimônio Mundial e Natural, aprovada pela
Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Ao nível mundial,
a preservação do Patrimônio Cultural ca a cargo da referida
entidade. Para a UNESCO, a preservação do Patrimônio Cultural
é importante para a humanidade e tem estado na vanguarda de
seu desenvolvimento. A organização cria programas e diretrizes
para a preservação e restauração de bens culturais, e trabalha em
colaboração com as instituições dos diferentes países (BRASIL,
1977).
De acordo com a UNESCO, o patrimônio cultural é composto
por:
[...] monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham valor
universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, arqueológico,
cientíco, etnológico ou antropológico. Incluem obras de arquitetura,
escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueológico, e, ainda,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
670
obras isoladas ou conjugadas do homem e da natureza (IPHAN, 2014,
online).
O artigo 216 da constituição que versa sobre o patrimônio
cultural, se soma a denição da UNESCO e pode ser considerado
um avanço, pois diz que o patrimônio cultural é constituído de
bens materiais e imateriais, tomados individuais ou em conjunto,
carregados de referências a identidade, a ação, a memória dos
distintos grupos que compõe a sociedade brasileira (BRASIL, 1988).
Nesse contexto, o patrimônio cultural ganha abrangência e
visibilidade e é incluído nos regulamentos brasileiros frente à
importância de situar e preservar aspectos históricos e culturais do
Brasil. Essa possibilidade se dá através da memória social e histórica,
e nessa conjuntura, a memória pode ser entendida como “conjunto
das informações registradas” (ELLIOTT, 2010, p. 34).
Para autores como Miranda (2006), a salvaguarda do patrimônio
cultural é satisfatória para a humanidade, dado que guarda seus
valores, garante a sua transferência para as gerações sucessoras e
constrói identidade. Nesse sentido, há “[...] a construção, tratamento
e divulgação da informação de diferentes tipos [...] a partir da
denição conjunta por parte de produtores e usuários, que aqui se
confundiriam, de suas necessidades, e de quais seriam os caminhos
(metodologias) mais adequados para atendê-los” (CHRISTOVÃO;
BRAGA, 1995, p. 1).
A vigilância é um dos instrumentos de proteção, está prevista
no Decreto-Lei n.º 25/1937 informando que os bens estão sobre
vigilância permanente do IPHAN, podendo o órgão inspecionar
quando julgar necessário, não podendo, os responsáveis ou
proprietários criar objeção a inspeção, caso o faça, podem ser
multados (CORDEIRO, 2012, online). Para Miranda (2006, p.
108), a vigilância constitui “[...] uma das manifestações do poder
de polícia outorgado aos entes federados para poderem tutelar
administrativamente o patrimônio cultural brasileiro”.
O tombamento foi instituído no Brasil pelo Decreto-Lei n.º
25, de 30 de novembro de 1937, abarcando todo bem material
passível de ser protegido, por meio do ato administrativo do
tombamento, seja inscrito no Livro do Tombo correspondente. Na
atualidade, o tombamento como instrumento de salvaguarda do
patrimônio cultural brasileiro, está previsto no §1º do artigo 216
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
671
da Constituição Federal (IPHAN, 2016b, online). O tombamento
tem duas características distintas, onde a primeira trata de um
procedimento material de registro do bem efetivado pelo agente
público no livro de tombo; a segunda trata-se de uma limitação
imposta pelo Estado ao direito de propriedade, buscando preservar
as suas particularidades.
Preservação de objetos ferroviários
No Brasil, a preocupação com o patrimônio industrial só ganhou
força em meados da década de 60, quando surgem as primeiras
pesquisas sobre o tema, mostrando o valor e o entendimento sobre
esses objetos. O primeiro objeto industrial tombado foi em 1964
em São Paulo, a Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema (Iperó),
datada de 1810. Foi também em São Paulo que surge as primeiras
pesquisas para o tombamento, dos objetos industriais em 1970
(RODRIGUES, 2012, p.31).
Inserido nesse contexto de patrimônio industrial estão às
ferrovias e seus remanescentes como: locomotivas, estações, trilhos
e outros. Após a desestatização da malha ferroviária e a perda de
funcionalidade de muitos objetos, verica-se a necessidade de
preservar esses bens. A instituição responsável pela preservação é
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
criado ocialmente em 13 de janeiro de 1937, lei n.º 378 (FINGER,
2013).
O órgão é uma autarquia federal brasileira ligada ao Ministério
da Cidadania. É dele a responsabilidade de salvaguardar os bens
culturais do país. Com esse m, atua em diferentes frentes, como
a identicação, o registro, a proteção, a conservação e a difusão de
bens culturais de caráter histórico, artístico, arqueológico e turístico.
O trabalho da instituição busca a construção da identidade nacional,
pois são os bens culturais que narram à história e as peculiaridades
do povo brasileiro. Ao preservar e valorizar esses bens culturais, o
órgão contribui para a formação da consciência histórica e cultural
do país (IPHAN, 2014a, online).
Esses bens, reconhecidos como patrimônio cultural,
categorizados como patrimônio industrial, é um conjunto de bens
móveis e imóveis que representam a identidade de um povo, passada
de geração a geração. Além disso, no que tange a obra arquitetônica,
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
672
sua preservação passa pelo seu valor histórico e funcionalidade,
como enfatiza Choay (2001, p. 230), “A arquitetura é a única, entre
as artes maiores, cujo uso faz parte de sua essência e mantém uma
relação complexa com suas nalidades estética e simbólica”, ou seja,
para que se efetive a preservação do bem, visto que o abandono leva
a deterioração dos monumentos, é preciso que haja uma utilidade.
O valor histórico e cultural dos bens ferroviários é incontestável,
visto sua participação na transformação econômica, cultural e
social do país. Pois, como enfatizou Martins (2004, p. 9), após a
implantação das ferrovias “[...] uma nova concepção do espaço se
deniu, uma nova mentalidade se difundiu, uma nova consciência
social ganhou sentido. O mundo da ferrovia trazia embutidos os
códigos da modernidade [...]”.
Considerações nais
A importância das ferrovias enquanto um sistema de transporte
que impactou a sociedade na sua economia e cultura é inegável,
por mais que ao longo da sua história acontecesse desdobramentos
socioeconômicos e culturais que pusesse a prova sua relevância.
O reconhecimento como patrimônio cultural de objetos
pertencentes a malha férrea, mostra o mérito do sistema ferroviário
e mais que isso, busca manter na memória um mecanismo que fez e
faz parte da sociedade brasileira.
Os bens culturais no contexto da legislação brasileira se devem
ao processo de evolução do interesse do poder público pelos bens
culturais do país, considerando o caráter social dos indivíduos.
O comportamento humano não pode ser assimilado de forma
fragmentada. As relações interpessoais permitem a interação
entre as pessoas, o que permite perceber a transformação do que é
natural para o que é construído pelo homem para atender às suas
necessidades, surgindo assim à categoria cultura.
A formação cultural brasileira abrange vários aspectos da vida
habitual, ressaltando especialmente os diferentes tipos de bens
culturais. As formas de manifestação, os modos de criar, fazer, os
conjuntos urbanos, os lugares de valor histórico, paisagístico e
artístico, o patrimônio documental, arqueológico, espeleológico
e quilombola são arquétipos da diversidade de bens culturais
revelados durante o desenvolvimento econômico, político e social
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
673
do país. Esses bens culturais atuam como estratégia de preservação
e concebem a noção de pertencimento.
Dessa forma, o patrimônio cultural cumpre seu papel social
quando associado à cultura e a memória, pois sua abrangência
permite que ele permeie os diversos aspectos das relações humanas.
Com base nesse pensamento, foi possível estabelecer uma ligação
entre os bens ferroviários patrimonializados, a memória e a
história, demonstrando a importância de mecanismos de proteção
e preservação para formação de uma consciência sociocultural de
um povo.
Nesse sentido, compreende-se a importância da memória e da
história para a patrimonialização de objetos que zeram e fazem
parte da história da nação, como é o caso das ferrovias brasileiras,
e os mecanismos de preservação, são elementos importantes na
proteção dos bens culturais.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO DE ENGENHEIROS FERROVIÁRIOS (AENFER). Breve História
da EFCB. 2018. Disponível em: < https://aenfer.com.br/historia-efcb/
>Acesso em: 14 de out. de 2023.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988.
CANDAU, Joë. Memória e identidade. Tradução: Maria Leticia Ferreira. São
Paulo: Contexto, 2011, 219p.
BRASIL. Decreto-lei nº 74, de 30 de junho de 1977. Aprova o Texto da
Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural.
Diário Ocial da União, 30 jun. 1977. Disponível em: https://www2.camara.
leg.br/legin/fed/decleg/1970-1979/decretolegislativo-74-30-junho-1977-
364249-publicacaooriginal-1-pl.html.Acesso em: 25 jun. 2023.
BRASIL. Ministério da Fazenda Nacional. Glossário. 2015. Disponível em:
http://www4.receita.fazenda.gov.br/simulador/glossario.html . Acesso
em: 07 jul. 2023.
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. 3.ed. tradução de lúcio Vieira
Machado. são Paulo: Editora da UNESP,2006.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
674
CHRISTOVÃO, H. T.; BRAGA, G. M. Socialização da informação:
Desenvolvimento de Metodologias para a sua Efetivação: estudo aplicado
às áreas de ciência da informação e de saúde. In: Encontro Nacional de
Pesquisa em ciência da Informação – ENANCIB, 2., 1995. Apresentações.
Valinhos: ANCIB, 1995. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/
res/v/174381. Acesso em: 09 jun. 2023.
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória. Sociogênese das práticas de
preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de
Janeiro: UFRJ, 2009.
DAVID, Eduardo Gonçalves. 127 Anos de ferrovia. Edição AEFCB. 1985.
ELLIOTT, A. G. Informação, imagem e memória: uma análise de discurso
em jornais da imprensa negra da Biblioteca da Universidade Federal do
Ceará – Campus Cariri. 2010. 111 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Informação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
FINGER, A.E. Um século de estradas de ferro: arquiteturas das ferrovias
no Brasil entre 1852 e 1957. 2013. 465 f. Tese (Doutorado em Arquitetura
e Urbanismo) —Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
GONÇALVES. J.R. Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In:
Reunião anual da associação nacional de pós-graduação em ciências
sociais, 26., 2002. Mesa-redonda: patrimônios emergentes e novos
desaos: do genérico ao intangível. Caxambu: ANPOCS, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Bens
tombados. 2016b. Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/pagina/
detalhes/126>. Acesso em: 08 jul. 2023.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Constituição
Federal http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/constituicao_
federal_art_216.pdf.
IPHAN. Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio
cultural. 2014a. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/
detalhes/218. Acesso em: 9 jul. 2023.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
1990. P. 477.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
675
MARTINS, J. de S. (2004). A ferrovia e a modernidade em São Paulo: a
gestação do ser dividido. Revista USP, (63), 6-15. https://doi.org/10.11606/
issn.2316-9036.v0i63p6-15.
MIRANDA, M. P. S. Tutela do patrimônio cultural brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
MOTA, Camilla Veras. 4 momentos que contam a história da destruição
das ferrovias no Brasil. BBC News Brasil, São Paulo, 12 novembro 2021.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59242402.
Acesso em: 18 out. 2023.
NUNES, Teresa Cristina de Oliveira. Gestão de Pessoas em Organizações
em Processo de Transformação: o Caso da Rede Ferroviária Federal em
Liquidação. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2003.
PELEGRINI, Sandra C. A. Cultura e natureza: os desaos das práticas
preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo 2006, v. 26, nº 51, p. 115-140.
PROCHNOW, Lucas Neves. O Iphan e o patrimônio ferroviário: a memória
ferroviária como instrumento de preservação. Dissertação de Mestrado.
Rio de Janeiro: Instituto do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional, 2014.
RODRIGUES, A. R. (2012). Patrimônio industrial e os órgãos de preservação
na cidade de São Paulo. Revista CPC, (14), 30-56. https://doi.org/10.11606/
issn.1980-4466.v0i14p30-56.
RODRIGUEZ, Hélio Suêvo. A formação das estradas de ferro no Rio de
Janeiro resgate das suas memórias. Editora memória do trem. 2004.
SOUSA, Raimunda Alves de; PRATES, Haroldo Fialho. O processo de
desestatização da RFFSA: principais aspectos e primeiros resultados.
Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p. [119] -141, dez. 1997.
VENOSA, S. S. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
CAMINHO FABRIL: ENTRE A
HISTÓRIA E A MEMÓRIA DO
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL DA
CIDADE DE RIO GRANDE
Olivia Silva Nery1
Laiana Pereira Silveira2
Sabrina Machado Araujo3
Introdução
O conceito de patrimônio industrial tem sido largamente
discutido no âmbito acadêmico e cientíco. As reexões atuais
sobre a necessidade e a importância de tratar este conceito de forma
1 Professora Substituta no Curso de História na Universidade Federal de Pelotas.
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas.
Historiadora pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: olivianery@gmail.com
2 Professora Substituta no Instituto Federal de Santa Catarina Campus Gaspar.
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural
pela Universidade Federal de Pelotas. Bolsista DS – CAPES. Mestre em Memória
Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas. Designer de Moda
pelo Instituto Federal Sul-rio-grandense Campus Pelotas Visconde da Graça. E-mail:
laianasilveira@gmail.com
3 Doutoranda em Antropologia na Universidade Federal de Pelotas. Mestre
em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas.
Historiadora pela Universidade Federal de Rio Grande. E-mail: araujosabrina96@
gmail.com
676
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
677
mais ampla e horizontal, atentando para as diferentes e complexas
camadas do patrimônio industrial têm sido inúmeras.
Se inicialmente a preocupação para com os vestígios da
industrialização recaíam, sobretudo, nos bens imóveis, cada vez mais
compreendemos que é preciso considerar os bens móveis, mas toda
a sua dimensão intangível, memorial, identitária, de experiência e
de relação entre as pessoas, seus territórios e memórias. Apesar do
movimento de reconhecimento desta tipologia de patrimônio já ter
mais de cinquenta anos, ainda são muitos os desaos para que haja
uma sensibilidade mais efetiva tanto do poder público quanto da
própria sociedade para estes bens.
Mesmo em cidades que foram importantes polos industriais
e que têm suas transformações urbanas, econômicas, sociais,
culturais e demográcas associadas ao período de industrialização,
este caminho não é simples e tampouco sem contradições. Este
trabalho tem por exercício compartilhar as experiências de uma
dessas cidades, industriais e operárias, que após o processo de
desindustrialização enfrentam as ruínas, os vestígios, o abandono
e o esquecimento de grande parte deste patrimônio (tanto a nível
material quanto imaterial).
Trata-se da cidade do Rio Grande, localizada ao sul do Rio Grande
do Sul, e que desde o nal do século XIX foi um dos principais polos
industriais da região. Abrigou centenas de fábricas até o nal do
século XX e alterou profundamente sua paisagem em decorrência
desta industrialização. Entretanto, com o declínio destas indústrias
e o assolamento de uma crise econômica e industrial nos anos 1960-
70, aos poucos estes locais foram fechando e caindo em desuso.
Apesar de ter vivido outras fases industriais que perduraram até
1990-2000, como a industrialização do pescado ou dos fertilizantes,
a cidade já encarava um grande encerramento de ciclo.
Com o tempo esses espaços foram sendo ocupados, destruídos ou
abandonados e as referências geográcas, identitárias e memoriais
foram se esvaindo. As gerações mais novas que não vivenciaram
estes ciclos de industrialização pouco conhecem sobre essa história
ou sobre os locais que funcionam não só os locais de produção
(fábricas), mas também os de sociabilidade, de luta e educação dos
trabalhadores e trabalhadoras.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
678
Nesse sentido, em 2020 deu-se início ao projeto “Caminho fabril:
patrimônio industrial da cidade de Rio Grande”4, como fruto da
pesquisa de Pós-Doutorado na Universidade Federal de Pelotas,
da autora Olivia Nery sob supervisão da Profa. Dra. Maria Leticia
Mazzucchi Ferreira e nanciamento do CNPq. Ao longo dos 16
meses em que foi realizada esta investigação, um dos principais
objetivos foi a identicação das fábricas e demais espaços associados
ao passado industrial e operário da cidade e a inclusão destes em
um mapa virtual, que será apresentado a seguir.
Em 2023, este projeto transformou-se em um projeto de
extensão5, e tem como uma das suas principais atividades a
promoção de caminhadas a partir de percursos que contemplam
a história e memória industrial e operária do município de Rio
Grande. Dessa forma, este trabalho apresenta parte das experiências
e relatos oriundos das caminhadas promovidas nessa nova fase do
projeto.
Mapa “Caminho Fabril: patrimônio industrial
da cidade de Rio Grande”
O mapa virtual (Figura 1), é um dos principais produtos do
projeto. Conforme apresentado anteriormente, sua construção é
fruto do nanciamento do CNPq e da pesquisa de Pós-Doutorado
Júnior na UFPel. Apesar do encerramento do respectivo estágio
pós-doutoral, o mapa passa por constante atualização, na medida
que a investigação continuou de forma espontânea. Atualmente o
recurso conta com as seguintes informações: 107 fábricas, 8 espaços
de energia e transporte, 30 espaços de luta, recreação e lazer,
21 moradias, 3 portuários, 7 pontos de interesse, 8 memórias de
operários e operárias 41 conexões com o mundo.
4 https://caminhofabrilrg.wixsite.com/caminhofabrilrg
5 Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural. O projeto conta, atualmente, com 2 doutorandas, 2 graduandas em História
Bacharelado e 2 graduados em História, todos vinculados com a Universidade Federal
de Pelotas. Além das autoras deste trabalho, fazem parte: Daniel, Becker, Francine
Bunde, Isabelle Chaves e Laura Pereira, a quem agradecemos e destacamos sua
importante participação e colaboração no projeto.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
679
Grande parte destes locais possui informações como: histórico,
data de fundação, fundadores, número de operários, produtos,
endereço, ocupação/uso do local atualmente, além de fotograas.
Entretanto, visto a grande quantidade de espaços e da pesquisa
ainda estar em andamento, nem todos os locais mapeados possuem
tais dados.
Figura 1: Mapa virtual “Caminho fabril: patrimônio industrial da cidade do Rio Grande”.
Fonte: Acervo do projeto.
A inclusão destes dados perpassa pela pesquisa histórica em
diferentes fontes históricas e pela leitura de outros trabalhos sobre a
industrialização rio-grandina, ou sobre sua classe trabalhadora, que
muito contribuem para sua compreensão e para a incrementação
do mapa. A atualização do mapa também é realizada a partir da
troca de experiências e diálogos oriundos através do projeto e de
suas atividades. Entende-se que o mapa é uma ferramenta com
grande potencial didático, de divulgação dos resultados da pesquisa
e de sensibilização para o patrimônio industrial local. Destacamos
que a comunidade é constantemente convidada a colaborar com a
construção do mapa, seja através do envio de informações de locais,
de fotos, ou memórias. Esta participação ativa da comunidade
acontece através da interação nas redes sociais do projeto ou pelo
site. Tais informações são cuidadosamente analisadas e, feito a
vericação, incluídas no mapa virtual.
Essa é uma das iniciativas que aproxima este projeto da História
Pública, que segundo Juniele Rabêlo de Almeida (2018), pode ser
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
680
entendida como um convite que envolva a dimensão pública nos
projetos de História, mas não só. A História Pública tem destacado a
importância de realizarmos nossas investigações em contato direto
com o público, colocando-o no lugar de protagonismo e negociando
signicados (ALMEIDA, 2018). Nesta mesma direção, José Newton
Meneses (2018) e Ricardo Oriá (2018) reforçam o quanto o
patrimônio cultural é um espaço propício para tais negociações e
contatos, visto que estamos tratando de representações do passado
e de escolhas preservacionistas que precisam da participação ativa
do público.
Por tais razões, que nos últimos meses foi incluída a camada
“Memórias” no mapa virtual, pois dá destaque para as lembranças
que foram compartilhadas através do projeto sobre os locais ali
identicados. Conforme exposto anteriormente, as memórias
e narrativas sobre o passado industrial são também parte do
patrimônio e merecem ser igualmente preservadas, valorizadas e
registradas.
Através desses relatos podemos conhecer mais sobre o período,
os cuidados, as práticas de sociabilidade, e os modos de vestir. E
assim a cultura visual se faz presente nas memórias referentes a
história fabril da cidade. Vejamos a lembrança trazida por Shirlei,
funcionária de uma das fábricas que relata com precisão, ano e
estação, o uso da sombrinha pelas mulheres, no verão de 1978.
Como forma de proteção contra o calor, a imagem colorida ao nal
da jornada de trabalho das operárias, que usavam sombrinhas de
diversas cores, cou guardada na memória de Shirlei.
A visualidade é um elemento importante para xação das
memórias, assim como, quando presente nos relatos, nos possibilita
compreender sobre a cultura visual de diferentes períodos históricos.
Observemos a descrição feita pela historiadora de moda Georgina
O’hara (1992) sobre as sombrinhas:
No nal do século XIX, sombrinhas leves, especialmente criadas para
as mulheres, começaram a aparecer. Em geral, são peças funcionais;
mas em certas épocas, quando feitas com cabos entalhados ou
adornados, tornaram-se objetos de moda. Nos anos 60 e 70, tornaram-
se um acessório mais importante e foram produzidas em cores alegres
(O’HARA, 1992, p. 134).
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
681
Portanto, as peças funcionais que foram surgindo ainda no
século XIX faziam parte da rotina de trabalho dessas mulheres e o
que parecia importar era sim sua funcionalidade, mas sem deixar
de lado o aspecto alegre trazido no colorido do objeto. No verão
costumamos observar as composições de cores mais ousadas do que
no inverno que os tons são mais sóbrios, e através da lembrança
compartilhada por Shirlei, era possível notar uma característica do
colorido no verão riograndino através da percepção do espaço fabril
ao nal do expediente. Essa e outras informações sobre os aspectos
visuais lembrados pelas pessoas podem ser lidos ao acessar o mapa
na camada incluída.
O mapa foi elaborado utilizando o recurso do Google Maps - My
Maps, está disponível no site do projeto e no momento conta com
6.135 visualizações.
Caminhadas pelo patrimônio industrial
A promoção de caminhadas pelo espaço urbano é uma iniciativa
que tem sido cada vez mais comum em diferentes projetos e áreas do
conhecimento. Apenas para citar algumas iniciativas que serviram
de inspiração para este projeto, destacamos o projeto Caminhos
Operários6, de Porto Alegre, coordenado pelo historiador
Frederico Bartz, que desde 2015 tem estudado e mapeado os
espaços da classe operária na capital do Rio Grande do Sul, além de
promover caminhadas por diferentes percursos.
Outro projeto que merece destaque é o Caminhos da Ditadura7,
também em Porto Alegre, desenvolvido pela historiadora Anita
Carneiro, que possui um mapa virtual com os espaços ligados à
repressão e à resistência, além da promoção constante de caminhadas
por alguns destes pontos. O trabalho de Carneiro se funda na
compreensão de cidades educadores, que exploram o potencial
educativo e reexivo das cidades e de seus espaços. Estes dois
projetos demonstram a relevância dessas iniciativas, que envolvem
tanto o rigor cientíco e de estudo sobre os locais e as cidades, como
a democratização deste conhecimento com o público.
6 https://www.facebook.com/CaminhosOperarios/
7 https://www.ufrgs.br/caminhosdaditaduraemportoalegre/
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
682
No caso do nosso projeto, as ações de caminhadas estavam
previstas desde a sua concepção (2019/2020), mas em decorrência
da pandemia de Covid-19 estas iniciativas foram colocadas em
segundo plano e iniciadas apenas em 2022. O reconhecimento e o
forte apoio que o projeto Caminho Fabril recebeu na comunidade
rio-grandina foi um dos principais motivadores para transformar o
projeto de pesquisa em extensão e focar primordialmente em tais
atividades.
Entre junho de 2023, data da aprovação do projeto, e dezembro do
mesmo ano, foram ao todo realizadas 6 caminhadas. Até o momento
todas as caminhadas foram pela chamada rota das Fábricas Têxteis
e de Fumo, passando por 6 espaços: Fábrica Rheingantz, Vila
Operária da Fábrica Rheingantz, Chaminé da antiga Companhia
de Fiação e Tecelagem Ítalo-brasileira, Vila Operária da Ítalo-
brasileira e Fábrica de Charutos Poock (Figura 2). O trajeto com
cerca de 2km dura em torno de 2h30 minutos, a depender do uxo
de participantes.
Figura 2: Parte do trajeto da caminhada com parada na Fábrica de Charutos Poock (prédio
branco ao fundo).
Fonte: Acervo do projeto.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
683
A escolha deste trajeto foi realizada considerando a distância
entre os pontos e a relevância destes espaços para a primeira fase
industrial rio-grandina (1873-1960) (MARTINS, 2016). Ademais,
este percurso envolve os poucos vestígios materiais remanescentes
que sobreviveram ao tempo e ao desuso na cidade, ainda que a visita
pelo interior só seja possível na Fábrica Rheingantz.
A Fábrica Rheingantz (Figura 3) foi fundada em 1873 e foi a
primeira fábrica têxtil da cidade do Rio Grande e do Rio Grande
do Sul. Ela deu início ao processo de industrialização local e foi a
mais importante para a cidade. Sua inegável contribuição histórica,
memorial, identitária e econômica motivou o seu tombamento pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE-
RS) em 2012.
Figura 3: Fachada da Fábrica Rheingantz em 2023.
Fonte: Acervo do projeto.
O tombamento do Complexo Rheingantz, como foi chamado,
envolveu também sua vila operária e a Estação Ferroviária,
elemento fundamental para proporcionar a industrialização local.
Desta forma, a proteção legal de parte da sua estrutura faz com que
hoje seja a única fábrica a ter seu interior e exterior (parcialmente)
preservados. Este espaço está, desde 2021, sob responsabilidade da
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
684
Nova Rheingantz8, que realiza o processo de restauração da parte
tombada da fábrica e proporciona que as visitas, e outros eventos,
no seu interior aconteçam. O projeto “Objetos e memórias da
Fábrica Rheingantz”9 coordenado pela arqueóloga Vanessa Ávila
Costa é um dos parceiros do nosso projeto e contribui na mediação
pela fábrica e pela vila operária. A pesquisa de Vanessa Costa sobre
as memórias das operárias da fábrica é de grande relevância para
a compreensão da complexidade das memórias sobre o trabalho,
principalmente das questões de gênero e das diculdades e
experiências vivenciadas pelas mulheres neste espaço fabril. A
parceria entre os dois projetos é fundamental para a construção de
uma rede de apoio colaborativa que vise a preservação e valorização
destas memórias, visto que este é um esforço coletivo e necessário.
O trajeto ainda inclui a visitação externa aos vestígios da Fábrica
Ítalo-brasileira e Poock. A Ítalo-brasileira foi fundada em 1893 pelo
imigrante italiano Giovanni Hensemberger. A fábrica recebeu um
signicativo número de imigrantes italianos que vinham, desde
1893, para trabalhar na empresa nas mais variadas funções. Em
1942, provavelmente em decorrência da Segunda Guerra Mundial, o
nome da fábrica foi alterado para Companhia de Fiação e Tecelagem
Rio Grande. Com a instalação da crise industrial na década de 1960
a fábrica entra em declínio, sendo severamente afetada, encerrando
temporariamente suas atividades, sendo depois vendida para outra
empresa de tecidos, a Hering.
Nos anos 1920, a fábrica construiu casas para operários nos
seus arredores, e algumas destas casas encontram-se preservadas, e
estas fazem parte do percurso do projeto. Nesse local aproveitamos
para reetir sobre a proximidade entre as casas e a fábrica, como
acontece na Rheingantz, como reexo das políticas paternalistas da
empresa e do controle da vida dos trabalhadores, mesmo que fora do
ambiente de trabalho. Debate-se também sobre a circulação dessas
pessoas no entorno, e como esta região era fortemente habitada por
trabalhadores dessas fábricas, que também encontravam formas de
resistência e de sociabilidade.
A Fábrica de Charutos Poock foi fundada em 1891, pelo
imigrante alemão Gustav Poock. Produziu charutos do estilo
8 A Nova Rheingantz é uma das apoiadoras do projeto e agradecemos a possibilidade
de visitarmos o espaço e promovermos outras atividades.
9 Vinculado ao Liber Studium - Laboratório da Arqueologia do Capitalismo da FURG.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
685
cubano e havanense e a matéria-prima era oriunda ou de Cuba ou do
Estado da Bahia, onde também possuía uma lial. Foi responsável
pela imigração de alemães e de mulheres cubanas para Rio Grande.
Em 1911 transferiu suas instalações para o prédio na Rua Senador
Corrêa, onde funcionou até meados dos anos 1960. O antigo prédio
possui a sua fachada parcialmente preservada, mas sem qualquer
informação a respeito do seu uso original. Até meados de 2023 o
prédio era ocupado por uma loja comercial que vendia materiais de
construção.
A caminhada pelos outros quatro espaços deste trajeto é
mediada pela coordenadora do projeto Caminho Fabril, Olivia
Nery. Ao realizarmos o deslocamento para cada um dos pontos,
paramos naqueles que merecem maior atenção dos participantes, e
é feita uma explanação sobre a história deste lugar. A fala apresenta
os dados obtidos através da pesquisa histórica, dá ênfase na vida
operária, nos produtos que eram fabricados, nas relações de poder
e na luta de classes.
São também utilizados recursos visuais (Figura 4) como
fotograas do prédio ou de operários de cada um dos pontos
visitados, para que o grupo consiga melhorar a experiência da
caminhada e sensibilizar-se com tais histórias e memórias.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
686
Figura 4: Recurso fotográco utilizado durante o percurso.
Fonte: Acervo do projeto.
Cabe aqui destacar que em todas as caminhadas realizadas
estiveram presentes pessoas que trabalharam em alguma fábrica ou
seus familiares. Essa experiência é uma das mais marcantes destas
atividades, pois sempre é dado o espaço de fala e compartilhamento
do seu relato. Assim, os demais participantes podem ter o privilégio
do contato direto com alguém que participou ativamente dessa
história e possui suas próprias lembranças e percepções sobre
o passado. A comunidade, além de acompanhar a caminhada,
também participa através do compartilhamento de relatos durante
o trajeto, memórias que emergem durante o percurso e enriquecem
a atividade, o que Ecléa Bosi (2022) chama de memória oral.
Ao nal do percurso os/as participantes são convidados e
convidadas a reetir sobre o que foi conversado e debatido ao longo
da caminhada, instigando o pensamento crítico acerca do processo
de industrialização, da vida da classe trabalhadora e da memória.
Essa reexão é feita destacando o afastamento temporal entre o
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
687
encerramento das atividades fabris e o tempo presente, e o contraste
entre o hoje e ontem que permeiam todo o trabalho de memória.
Outro ponto a ser citado é a interação da comunidade com
os pers do projeto nas redes sociais, que são bastante ativos e
proporcionam essa comunicação direta. As postagens recebem
diversos comentários, sobretudo após as caminhadas, como estes
retirados de posts do Instagram: “Uma espetacular viagem no tempo
conhecendo um pouco da história dos operários que passaram por
estes estabelecimentos!”; “Foi uma caminhada maravilhosa!! Adorei
os novos conhecimentos adquiridos e a vivência compartilhada.
Muito obrigada!!”; “Participe! Foi muito bacana. Uma vivência
histórica..” e “Trabalho maravilhoso e necessário! Parabéns!”.
A partir dos comentários e relatos é possível perceber que as
pessoas que acompanham as caminhadas cam satisfeitas com a
experiência, reconhecendo sua contribuição para o entendimento
e apropriação da história da cidade de Rio Grande, inclusive,
incentivando que outras pessoas participem. Esse feedback é muito
positivo para o projeto e para sua difusão.
Mapa colaborativo do Patrimônio Industrial
na América Latina e Caribe
Como expresso no início deste trabalho, há um esforço coletivo
para estudar, identicar e valorizar o patrimônio industrial, e
isso envolve iniciativas em vários países. O Comitê Internacional
para Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH) é um dos
principais responsáveis por estas ações, e foi fundado em 1973
na Inglaterra, período que marca a ampliação dos debates sobre
patrimônio industrial frente à desindustrialização ocorrida em
diversos locais do mundo.
A partir da percepção de que cada país possui um processo de
industrialização único, que perpassa a sua localização geopolítica,
o período em que ocorreu e as questões políticas e econômicas
enfrentadas, o TICCIH possui liais em diversos países. Em 2023
foi realizado o X Congresso da TICCIH América Latina, momento
em que aconteceu um taller “Mapa de patrimônio industrial
latinoamericano. Cartograa, registrador e ativador”10. A
10 https://ticcih.org/taller-mapa/
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
688
iniciativa faz parte de um conjunto de ações que buscam “dar mais
visibilidade ao patrimônio industrial da América Latina e Caribe a
nível mundial” e é coordenado pelos pesquisadores Julián Sobrino,
Marion Steiner y Esteban Vásquez, todos parte do Comitê TICCIH
em portunhol.
Para dar conta deste desao, foram convidados diversos
pesquisadores e pesquisadoras da área a m de construir um mapa
virtual que identique o patrimônio industrial da América Latina
e Caribe. Dentre estes, a coordenadora do projeto Olivia Nery foi
uma das convidadas a incluir os resultados do Caminho Fabril no
novo mapa. Destacamos que trata-se de uma oportunidade única
que possibilita a visibilização e valorização do patrimônio industrial
rio-grandino a nível global. Espera-se que tal reconhecimento
também sirva como incentivo para que outras pesquisas e ações
sejam realizadas em Rio Grande e na região.
Premiações
Até o momento todas as ações do projeto têm sido bem recebidas
na comunidade local, que demonstra seu apoio e participa de forma
ativa nas atividades propostas. De forma positiva o projeto recebeu
duas premiações que reforçam a importância de abordarmos o
patrimônio industrial e de envolvermos o público nas ações. O
primeiro foi 13º Memória da Arquitetura “Oscar Décio Carneiro”
de iniciativa do Instituto de Arquitetos do Brasil - Núcleo Rio
Grande, para a coordenadora do Projeto pela sua atuação em prol do
patrimônio cultural rio-grandino, nomeadamente do patrimônio
industrial, durante a celebração do Dia do Patrimônio, ocorrido em
17/08/2023.
A segunda premiação foi fornecida pelo Conselho de Arquitetura
e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), na categoria Iniciativa
Privada - Pessoa Física, para a coordenadora e para o projeto
Caminho Fabril: patrimônio industrial da cidade do Rio Grande.
Ambas premiações servem como incentivo para dar continuidade
às atividades do projeto, bem como demonstram a urgência em
tratarmos sobre o patrimônio industrial em cidades em que esse
passado se faz tão presente.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
689
Aspectos conclusivos
A elaboração de um projeto dedicado a estudar, mapear e
valorizar o patrimônio industrial rio-grandino em sua diversidade
foi motivado por diversas inquietações oriundas da vivência na
cidade do Rio Grande. Desvalorização destas histórias e memórias,
apagamento dos usos originais de prédios, esvaziamento de espaços
que foram de suma importância para a comunidade rio-grandina,
nomeadamente aos pertencentes à classe trabalhadora local.
Ao longo destes quatro anos, e deste um ano enquanto projeto
de extensão, percebemos que há uma demanda signicativa da
população para falar sobre esse passado. As pessoas demonstram-
se interessadas em conhecer a história local, a compartilhar sobre
as suas memórias de trabalho ou de seus familiares. Essa realidade
nos provoca algumas reexões: como o patrimônio industrial pode
auxiliar no enfrentamento das diculdades econômicas, políticas e
sociais da cidade no tempo presente? A valorização das memórias
de trabalhadores e trabalhadoras tão negligenciada e marginalizada
nas últimas décadas pode auxiliar na melhoria da qualidade de
vida dessas pessoas e da cidade? Nossa hipótese é que sim, que o
patrimônio enquanto campo de conito e disputa (CANDAU, 2012;
FERREIRA, 2013), coloca na arena política e social questões que
merecem nossa atenção.
Ouvir tais histórias, valorizar a classe trabalhadora e contar sobre
um passado tão marcante e decisivo para Rio Grande pode ser um
dos caminhos que nos levem para uma sociedade que reconheça
não só o seu patrimônio cultural, mas a sua condição de sujeito
histórico relevante para a história da cidade. Esse reconhecimento
é propulsor de uma participação ativa e de exercício da cidadania,
importante na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Juniele R. de; MENESES, Sônia. (orgs). História pública em
debate: patrimônio, educação e mediações do passado. São Paulo: Letra
e Voz, 2018.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. 4.
ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2022.
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
690
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
FERREIRA, Maria Leticia Mazzucchi. Os os da memória: fábrica Rheingantz
entre passado, presente e patrimônio. Horizontes antropológivos, Porto
Alegre , v. 19, n. 39, p. 69-98, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832013000100004. Acesso
em: 20 dez. 2023.
MARTINS, Solismar F. Cidade do Rio Grande: industrialização e
urbanização (1873-1990). Rio Grande: Editora da FURG, 2016.
MENESES, José N. C. O patrimônio e a compreensão do passado: experiência
intelectual e diálogo público. In: ALMEIDA, Juniele R. de; MENESES, Sônia.
(orgs). História pública em debate: patrimônio, educação e mediações do
passado. São Paulo: Letra e Voz, 2018.
O’HARA, Georgina. Enciclopédia da moda: de 1840 à década de 80. 6.
reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ORIÁ, Ricardo. História Pública e monumentos: a narrativa visual do
passado nacional. In: ALMEIDA, Juniele R. de; MENESES, Sônia. (orgs).
História pública em debate: patrimônio, educação e mediações do
passado. São Paulo: Letra e Voz, 2018.
CONTRIBUIÇÃO DAS FESTAS
PARA A VALORIZAÇÃO DO
PATRIMÔNIO IMATERIAL
E DA TRADIÇÃO DOCEIRA
DO MUNICÍPIO DE MORRO
REDONDO/RS: ONDE O
IMATERIAL E O MATERIAL SE
ENCONTRAM
Wagner Halmenschlager1
Giane Trovo Belmonte2
Francisca Ferreira Michelon3
1 Doutorando do programa de Memória Social e Patrimônio Cultural pela
Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Mestre em Nutrição e Alimentos pela UFPel
(2017), graduado em Gastronomia pela Unisinos (2008). Professor do Curso Superior
de Tecnologia em Gastronomia da UFPel. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Alimentação e Cultura (GEPAC) e do Grupo de Estudos Intercâmbios Culturais.
Possui experiência na área de Nutrição e Alimentos com ênfase em Gastronomia.
Atualmente desenvolve pesquisa na área da Memória e Patrimônio, com temas
ligados à gastronomia, patrimônios alimentares, alimentação e cultura na formação
da identidade local. E-mail: schilager@hotmail.com.
2 Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel), Bacharel em Pedagogia
(UFPel) e Ciências Domésticas (UFPel). Bolsista do Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e
conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior
(CAPES) para sua realização. E-mail: gicabelmonte@gmail.com.
3 Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2001), Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1993).
691
CARMEM G. BURGERT SCHIAVON, OLIVIA SILVA NERY, VIVIAN DA SILVA PAULITSCH,
WAGNER FELONIUK E LAIANA PEREIRASILVEIRA (ORG.)
692
Introdução
Morro Redondo, uma cidade encantadora e acolhedora, destaca-
se pela sua simplicidade cativante. Este município, localizado na
região sul do Rio Grande do Sul, a aproximadamente 40 km de
Pelotas, 130 km da fronteira com o Uruguai e nas proximidades
do Porto de Rio Grande, é notável por suas belezas naturais e por
oferecer uma qualidade de vida elevada. A marca da tradição,
evidente tanto na sua indústria quanto na cultura, representa um
dos principais atrativos do local. A inuência da imigração alemã,
iniciada no século XIX, é um aspecto crucial na formação histórica
e cultural de Morro Redondo. A fundação ocial do município,
datada de 1988, quando ocorreu sua emancipação de Pelotas,
marca um ponto signicativo em sua trajetória, embora a história
da comunidade remonte a um período bem anterior a essa data.
Este rico contexto histórico e cultural confere a Morro Redondo um
caráter único, reetido em sua identidade local.
A tradição doceira de Morro Redondo é uma fusão das técnicas
culinárias alemãs com os ingredientes e sabores locais. Os imigrantes
alemães, adaptando-se aos recursos disponíveis na nova terra,
integraram frutas tropicais e ingredientes nativos às suas receitas
tradicionais. Com o tempo, esta fusão culinária deu origem a uma
variedade única de doces, que hoje são um símbolo de orgulho e
tradição para Morro Redondo (Figura 01).
No que diz respeito à cultura, em 2018, o IPHAN reconheceu
o doce colonial da região de Morro Redondo como patrimônio
imaterial e com isso Morro Redondo trabalha para a salvaguarda
deste bem. O estreito relacionamento com o poder público e
intensa participação da comunidade em projetos culturais no
resgate das memórias culturais é uma das fortes peculiaridades da
população de Morro Redondo. A continuidade e o engajamento
com as tradições populares estão presentes no Grupo Stiepen, na
serenata de Páscoa de origem pomerana, nas escolas do município,
Estágio no Arquivo Fotográco da Câmara de Lisboa (2008-09) em conservação de
fotograa. É professora titular do Instituto de Ciências Humanas da Universidade
Federal de Pelotas. Participou das comissões que criaram os cursos de Conservação
e Restauro (2008), Bacharelado em Museologia (2007), Mestrado e Doutorado em
Memória Social e Patrimônio Cultural (2006), todos da Universidade Federal de
Pelotas. Coordenou o Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural (2006-2008).
Universidade Federal de Pelotas - fmichelon.ufpel@gmail.com.
PATRIMÔNIO CULTURAL EM DEBATE: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
693
no Museu de Histórico e no Centro de Tradições Gaúchas Cancela
Grande (CTGCG), que realiza atividades há mais de 40 anos. Morro
Redondo foi o único município da região sul do estado escolhido
para receber o Polo Cátedra Unesco Humanidades e Gestão
Cultura Integrada ao Território. Em comemoração aos 33 anos do
município, foi lançada a galeria Gestão Integrada ao Patrimônio
Cultural (GIPC), um projeto de extensão com museu virtual da
Universidade Federal de Pelotas (Morro Redondo, 2024).
Este trabalho tem como objetivo auxiliar na preservação e
perpetuação do conhecimento e das técnicas envolvidas na produção
do doce colonial em Morro Redondo/RS. É de nosso interesse
monitorar como o processo de reconhecimento e valorização das
tradições doceiras vêm sendo interpretado e aplicadas no município,
especialmente em termos de desenvolvimen