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Anita M. R. de Moraes e Vima L. R. Martin (org. e posfácio), O Brasil na poesia africana de língua portuguesa – antologia, Kapulana, 2019.Anita M. R. de Moraes e Vima L. R. Martin (org. e posfácio), O Brasil na poesia africana de língua portuguesa – antologia, Kapulana, 2019.

Authors:
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LUIS MAFFEI
Anita M. R. de Moraes e Vima Lia R. Martin,
orgs. 2019. OBrasil na Poesia Africana de Língua
Portuguesa. São Paulo: Kapulana.
O jogo eletrônico FIFA emula partidas de futebol. Nainicialização do game, o
jogador escolhe em que língua quer que as narrações, descrições e legendas
do jogo se apresentem. Oportuguês aparece duas vezes: numa delas, o nome
do idioma vem acompanhado da bandeira de Portugal; na outra, da do Brasil.
Oque isso nos revela? Àqueima roupa, que a língua portuguesa se divide entre
Portugal e Brasil, pois existe um português de Portugal (não gosto nada do jar-
gão “português europeu”), existe um do Brasil. Ok, mas e os países africanos de
língua ocial portuguesa?
O português, para a maioria de nós do Brasil, não é tão estrangeiro assim.
Emvirtude de inúmeras razões (e catástrofes) históricas, inclusive os sucessivos, e
ainda vigentes, genocídios dos povos indígenas, o português não compete, para a
maior parte da gente que nasceu no Brasil, com nenhum outro idioma pelo posto
de língua primeira. Éestrangeiro, claro, porque, além de ser português, é língua, e
línguas são estrangeiridades per se – mas pronto. Já nos países africanos onde se
fala português, aqueles que não aparecem no menu do FIFA, o português ainda
disputa espaço com línguas vivas no cotidiano de muitas populações, e essa expe-
riência, em tudo cheia da violência colonial, mantém ainda algumas marcas.
Assim, Brasil e Portugal, grosso modo, são os países em que o português se
encontra em solo mais (lá) ou menos (cá) naturalizado. Mas o Brasil, também colô-
nia, torceu a língua, alterou-a, abriu-a, inclusive, a sabores vindos da África no mal-
dito processo da escravidão. OBrasil, então, se torna, para certa poesia africana de
língua portuguesa, um dialogante profícuo: por um lado, sermos todos ex-colônias
nos faculta a amizade de quem conhece a mesma dor; por outro, o Brasil, por ser
independente há mais tempo e por já ter certa propriedade sobre o português, sabe
a uma espécie de irmão mais velho – ou referência rme e não opressora.
É por essas e outras razões que a antologia OBrasil na Poesia Africana de Língua
Portuguesa, organizada por Anita M. R. de Moraes e Vima Lia R. Martin, é tão
oportuna e bem-vinda. Pertencente ao catálogo da editora Kapulana, que vem,
PORTUGUESE LITERARY & CULTURAL STUDIES
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há vários anos, se dedicando à divulgação da literatura africana (não apenas em
português) no Brasil, o livro é um investimento nas trocas culturais que se dão,
em poesia, entre África e diversos aspectos da vida e da cultura brasileiras – diz
o posfácio das organizadoras:
O conjunto de poemas ... aponta para representações diversas: há poemas
que apenas mencionam o Brasil, entre outros países do continente ameri-
cano, como destino de africanos escravizados; há poemas que estabelecem
alguma relação intertextual com obras da literatura brasileira; outros enal-
tecem o Brasil, desde uma perspectiva idealizada, por vezes até mesmo exo-
tizante ou turística; há aqueles que se referem com admiração a persona-
lidades brasileiras (escritores, compositores, intelectuais etc.); há, ainda,
poemas que mencionam a opressão – e a resistência a formas de opressão
– dos negros no Brasil. (101)
O elenco da antologia conta com poetas de São Tomé e Príncipe, Angola,
Moçambique e Cabo Verde. Omais antigo é o angolano José da Silva Maia Fer-
reira, que viveu no Brasil e aqui morreu, em 1881. Maia Ferreira é autor de uma
interessante canção de exílio, intitulada “AMinha Terra,” em que é decantada a
singularidade de sua Angola em perspectiva às belezas exuberantes e já bastante
cantadas de Portugal e do Brasil (o poema foi escrito no Rio de Janeiro). Também
ao séculoXIX pertence o santomense Caetano da Costa Alegre, que convoca o
Castro Alves d’ “ONavio Negreiro” para cantar uma “pálida e gentil morena” (11)
que sonha um sonho inadequado a um poema de amor.
Entre os nomes contemporâneos presentes em OBrasil na Poesia Africana de
Língua Portuguesa, ressaltem-se os da cabo-verdiana Vera Duarte e o do moçam-
bicano Nelson Saúte, visitantes frequentes, já em plena pós-independência de
seus países, do solo brasileiro. Suas poéticas já não procuram o Brasil como um
lugar entre a utopia e a identicação, tampouco como contraponto de Portugal;
o que fazem é lançar sobre o país amigo um olhar ainda solidário, mas cheio de
clareza. Opoema de Vera Duarte, “Os Meninos,” que começa com um retrato
desalentado – “Sobre estas praias cheirando a maresia e a peixe podre brincam
os meninos da pobreza, do abandono e do desespero” (75) –, bem poderia se
referir a qualquer lugar (pobre) do mundo. Demodo semelhante, um Brasil que
participa de memórias em português de uma cultura com ambição universali-
zante é o que gura na poética de Luís Carlos Patraquim, moçambicano dono de
uma lírica sosticada e de claro rigor.
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RECENSÕESLuis Maei
Um caso singular na antologia é o de Ondjaki, o mais jovem dos poetas do livro,
pois ele não apenas frequenta o Brasil, mas tem laços bastante sólidos com o país,
especialmente com o Rio de Janeiro, onde esteve incontáveis vezes, por longos
períodos. Autor fartamente publicado por editoras brasileiras, o angolano já é um
representante de certa ponte aérea luso-afro-brasileira que se sente à vontade em
qualquer dos chãos desse tripé com feições globalizadas – é a procura desse mul-
tipertencimento que orienta, por exemplo, a emulação de Manoel de Barros num
poema como “Chão,” cujo primeiro verso é “apetece-me des-ser-me” (45).
O Brasil na Poesia Africana de Língua Portuguesa surge como uma oportuna pos-
sibilidade de reexão acerca da relação literária entre África e Brasil, revelando
que há muito Brasil na África, para além de toda a África que há no Brasil. Essa
via de mão dupla, ainda que a segunda seja mais conhecida, ainda tem muito
para ser estudada.
  é Professor de Literatura Portuguesa da UFF, pesquisador do CNPq, ensaísta
e poeta. Tem diversos livros publicados, assim como vários ensaios em revistas da área e
coletâneas.
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