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Rev. Interd. em Cult.e Soc. (RICS), São Luís, v.10, n. 1, jan./jun. 2024
ISSN eletrônico: 2447-6498
Mais que luto nas coisas (têxteis) por terminar
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TANIA PÉREZ-BUSTOS
Doutora em Educação pela Universidad Pedagogica Nacional. Mestra em MA in
Development Studies - International Institute of Social Studies. Professora Titular de la
Escuela de Estudios de Género, Facultad de Ciencias Humanas
Universidad Nacional de Colombia.
tcperezb@unal.edu.co
TRADUÇÃO - ALLYSON PEREZ
Psicanalista e professor (UNDB). Doutor e Mestre em Ciências Sociais pela UFMA.
Estágio na Escola de Gênero da Universidade Nacional da Colômbia (Bogotá).
allysonperez74@gmail.com
1 INTRODUÇÃO
A primeira coisa é agradecer o convite do “Grupo de Estudos em Memória, Gênero e
Identidade” da Universidade Federal do Maranhão para participar deste III Encontro. O tema
geral deste evento “Gênero em Movimento: Corpo, Política e Luto” me interpela de formas
muito particulares. Me alegra muito poder ter esta possibilidade de compartilhar com vocês
algumas das minhas pesquisas atuais sobre como o fazer têxtil, e o que esta prática material
gera, as formas como nos vincula, as viagens a que nos convida, pode contribuir para pensar
(material ou mais-que-humanamente) a perda, a dor e consequentemente o luto (ou aquilo
que o transcende).
2 MAIS QUE LUTO NAS COISAS (TÊXTEIS) POR TERMINAR
A primeira vez que em meu trabalho de pesquisa tive referência a como os têxteis e o
fazer têxtil artesanal se relacionavam com esses temas foi em 2014, quando eu tinha acabado
de iniciar minha pesquisa etnográfica com as mestras bordadeiras de bordado a céu aberto em
Cartago, Colômbia. Estávamos conversando com Olivia, a empregada doméstica de Dona
Elsa, ambas mestras bordadeiras, que na época tinham 65 e mais de 80 anos, respectivamente.
Olivia bordava a céu aberto um pedaço de tecido cru e me contava que tinha aprendido o
1
Texto traduzido da palestra Más que duelo en las cosas (textiles) sin terminar de abertura do I Encontro
Internacional/III Encontro Nacional e V Seminário de Gênero, Memória e Identidade (GENI).
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Recebido em 16 maio de 2024. Aceito em 16 junho de 2024.
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trabalho com Dona Elsa quando chegou a sua casa, há mais de 40 anos. Nesse tempo, Dona
Elsa perdeu o marido e depois os dois filhos devido ao tráfico de drogas que imperava na
região e aos poucos se viu na necessidade de cuidar sozinha do sustento de sua casa. “Dona
Elsa não teria sobrevivido ao luto dos filhos e do marido, se não fossem esses trabalhos”,
disse-me Olivia e anotei essa referência em meu diário de campo: o fazer têxtil acompanha o
luto. (Foto 1)
Foto 1. As mãos de Olivia assinalando um ponto de bordado a céu aberto feito por ela.
Fonte: Victoria Tovar Roa, novembro de 2014.
Terminada essa pesquisa e curiosa sobre a forma como esse fazer material afetava a
quem o realizava em nível emocional (Collier, 2011; Corkhill et al., 2014), aproximei-me,
pela primeira vez, em 2016, a trabalhar com costureiras da memória na Colômbia. Isto pela
mão de outras antropólogas que há muito pensavam a violência política juntamente com esses
coletivos, constituídos principalmente por mulheres afetadas pelos flagelos do conflito
armado no país. Meu interesse não era pelo tema da violência, mas o de compreender como a
materialmente o fazer têxtil tinha a capacidade de acompanhar os processos desses grupos.
Eram mulheres que, há anos, reuniam-se em torno do trabalho têxtil e que indicavam que este
fazer as tinha sustentado emocionalmente. Por que acontecia isso? Em que sentido bordar ou
tecer coletivamente (como um movimento corporal mais que humano) permitia, além de
fazer memória e documentar as atrocidades da guerra, deter-se ante o próprio sofrimento
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causado pela guerra e de algum modo propiciar processos de cura e por que não de luto
coletivo? (Arias-López, 2019; Arias-López et al., 2019).
O fazer artesanal nesses casos foi me mostrando como, no vínculo íntimo com a
materialidade têxtil, era possível observar algo que nem sempre estamos com disposição e
vontade de ver: o horror. Mulheres bordando nomes e paisagens arrasados pelos confrontos
armados, bordando massacres, desaparecimentos, deslocamentos, todas formas materiais de
denunciar as perdas, mas também de recordar, de fazer memória. Uma cortina após a outra
reunindo quem fica com quem se foi construindo um legado que permita irromper na
continuidade da violência: a agulha atravessando a superfície do tecido e com isso
possibilitando retornar à superfície da cotidianidade (Merat, 2020, p. 46).
Em julho de 2019, com duas amigas colegas, Isabel González Arango e Natalia
Quiceno Toro, escrevemos um texto sobre isso, que foi publicado faz alguns anos. Desta
reflexão me permito agora compartilhar com vocês um fragmento (Pérez-Bustos et al., 2022):
[...] cada uma destas peças bordadas é uma forma de sustentar a perda,
relembrá-la e de permitir que a materialidade têxtil comova um país que se
acostumou a contar os mortos, a conhecer a sua geografia a partir das
marcas da guerra e a nomear as trajetórias de vida das pessoas a partir de
sua ausência... Bordar na tela implica atravessar a dor e processá-la (Hunter,
2019; Pajaczkowska, 2016). Este gesto têxtil, de guiar a agulha e a linha
sobre a tela, nomeia lentamente os assassinados e transforma a indiferença
com cada ponto, permitindo expressar as emoções dessas perdas, além de
ressaltar os afetos e a vulnerabilidade que nos unem. Nesse nomear a
injustiça e reivindicar o direito à vida, há um gesto de cuidado voluntário...
que transcende a familiaridade e ressignifica o parentesco como um vínculo
e uma rede de relações (Haraway, 2016) que mobilizam a capacidade de
acompanhar, cuidar e elaborar coletivamente o luto... os têxteis bordados e
ainda não bordados conectam uma problemática nacional e pública, que
envolve muitos territórios, com nossos espaços domésticos e íntimos,
através do cuidado que requer o fazer têxtil artesanal (Bello Tocancipá &
Aranguren Romero, 2020): ponto a ponto reconhecemos um nome, um
lugar, um momento, uma organização comunitária, uma ausência, outra
ausência, outra mais; uma soma de perdas que se dimensiona com tantos
nomes ainda não bordados”. (Foto 2)
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Foto 2: Memorial do Olho da Agulha, proposta de ativismo têxtil que faz parte do fragmento antes lido. Mostra lenços do memorial
instalados na Universidade de Antioquia no evento Minha alma está de luto. O que perdemos quando um líder social é assassinado?
30 de julho de 2019.
Fonte: Nelson Ramírez, 2019
Mas, não estou aqui para lhe falar sobre como a violência e suas mortes são
denunciadas, sustentadas e atravessadas com agulhas e linhas, acredito que existem outras
pessoas mais indicadas que eu para essa tarefa. Estou aqui para pensar com vocês as formas
em que o têxtil se torna um ponto de encontro entre quem morre e aquelas/es que aqui
ficamos. Um encontro que, antes de ser coletivo e público, é sempre privado e íntimo.
Nesse mesmo ano em que eu e minhas colegas escrevemos esse fragmento, e em meio
a um encontro em Quibdó com várias costureiras da memória com quem vínhamos
trabalhando, soubemos da morte repentina do irmão de Isabel. Essa mulher que há décadas
trabalhava com esses grupos para acompanhá-los em suas perdas e que tinha escrito comigo
sobre como o têxtil era companhia material no reconhecimento dessas ausências, agora sofria
uma própria. Lembro com clareza, Isabel estava paralisada junto à escada de madeira do
recinto que nos acolhia, não conseguia acreditar na notícia. Ao seu lado, umas 15 ou 20
bordadeiras dos coletivos a acompanhavam e, para acalmar os soluços, uma delas lhe disse:
“Lembre-se, Isa, de que a agulha te sustenta”. E assim foi, Isabel viajou na primeira hora do
dia seguinte para Medellín e poucos dias depois bordou um lenço; essa peça se tornou um
lugar para homenagear e relembrar a vida de seu irmão.
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Pensar que o luto descreve o têxtil como lugar de encontro entre quem se foi e
aquelas/es que ficamos é uma oportunidade de nos aproximarmos deste conceito para além de
sua psicologização (Despret, 2022). Ou seja, entender que esse fazer material não só habilita
um processo de cura de quem sofre a perda, um processo subjetivo pessoal e/ou coletivo, mas
também que tal percurso e transformação só são possíveis enquanto esse lugar material, que
nos vincula com quem já não está, dá intensidade a essas relações, mostrando-nos que elas
nos constituem mesmo a partir da ausência física.
Os objetos têxteis são artefatos que trazem a memória afetiva de quem já se foi
(Clark, 2013), mas não são só isso. Para a filósofa Vinciane Despret (2021, 2022) nossa
relação com quem morreu não está associada apenas com o lugar que ocupam em nossa
memória. Em sua partida, essas mortes nos convidam a fazer coisas concretas e esse fazer
tem a capacidade de nos vincular com os tempos que nos antecedem e de construir futuros
coletivos com os que vêm. Para Despret, esse fazer-fazer de quem morreu pode ser pensado
espacialmente, ou seja, a partir da gestação de um lugar no qual esses seres em sua ausência
estão, diferente do aqui em que estavam; um além a partir do qual possam desdobrar seus
convites para dar continuidade aos vínculos que nos entrelaçam. Quem morreu abre espaço,
desenha territórios que nos permitem nos encontrar (Despret, 2022, p. 24). Isto supõe que
essas são espacialidades materiais concretas, que temos a capacidade de percorrer com nossos
corpos, um movimento que é acima de tudo vinculante.
Pois bem, entender a fabricação desses lugares de encontro com os mortos apenas
como enquadrada em processos de luto (pessoal ou coletivo), pode nos conduzir a pensar essa
espacialidade como principal produto de nossa subjetividade; de um trabalho interior que
temos com nós mesmes
3
. Isso instala uma dissociação em que não tem lugar a agência que
quem nos antecede tem nessa manufatura, em sua atual condição de morte, nem tampouco da
materialidade dos espaços em que o encontro com elas/es é possível. Essas agências (de
quem morreu e da materialidade) excedem o trabalho do luto, chegando mesmo, por vezes, a
resistir à sua norma, no sentido de que, como habilidades de fazer, não só, ou nem sempre,
explicam uma partida e permitem transmutar uma dor para seguir em frente. Elas também
instalam novas e múltiplas relações, dão-nos ferramentas para nos compreendermos
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Em linguagem inclusiva (em vez de "mesmos"). (N.T.)
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moldando a ausência e habitades
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por ela, ausência e presença, juntas, inclusive a partir da
incerteza e do enigma.
Os objetos têxteis convocam a ausência, dando-lhe um lugar de presença. São
territórios que incentivam nossa memória, habitam-na com afetos, mas que também nos
convidam a cuidar dos vínculos através do cuidado com sua materialidade. Em minha casa
guardo como um tesouro guardanapos bordados por minha avó argentina e um poncho do
meu avô Diego (Foto 3). Como sou migrante de segunda geração tive pouco contato com
elies
5
, no entanto, os objetos que acariciaram suas mãos hoje também acariciam as minhas e
se deixam acariciar por elas. São objetos que habitam minha casa e que me lembram, nesse
contato, de onde venho. Trata-se de uma lembrança material que não evoca a memória, mas
antes me faz construir um lugar que habito com minha linhagem materna. Nessa especulação
me vejo naqueles tecidos com cheiro de campo dos pampas montanhosos argentinos, imagino
a vida da minha família em meio à ditadura e à hiperinflação dos anos 80, me pergunto como
seria compartilhar a mesa com esses guardanapos em meio ao horror ou sair para resolver
coisas no inverno coberto com esse poncho que minha mãe herdou pouco depois da queda do
regime autoritário. Esses objetos são lugar e por isso são também companhias materiais, mais
ainda objetos de parentesco (Ahmed, 2010) ou, como diria Laurie Clark (2013, p. 155),
objetos que nos são familiares e que são nossos familiares, pois fazem parte de nosso lar.
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Em linguagem inclusiva (em vez de "habitados"). (N.T.)
5
Em linguagem inclusiva (em vez de "eles"). (N.T.)
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Foto 3. Esquerda, detalhe de um buraco no poncho de meu avô. À direita, minha mão tocando um dos guardanapos bordados de
minha avó.
Fonte:Autora, novembro de 2022
Esses objetos que sobrevivem a nós (Dziuban; Stańczyk, 2020) e que convidam a dar
continuidade à existência de nossos laços nos interpelam de formas incertas. Em particular
quando seu chamado não é apenas para guardá-los como tesouros ou como forma de
preservar a memória de quem os possuía e já não está.
Mamãe faleceu no ano de 2022 no meio de uma cirurgia no quadril. Desocupar seu
closet foi uma das coisas mais difíceis que tive que enfrentar, seu cheiro inundava a casa e
não era um cheiro agradável para mim, evocava sua doença e sua decadência, eu precisava
me livrar dele. Diante do mal-estar, optei por doar boa parte de suas roupas para uma
fundação e algumas peças especiais presenteei a minhas amigas. Escolhi algumas blusas e
vestidos para mim, mas notei que eram apenas aqueles que eu nunca tinha visto ela usar, de
modo que não conseguia imaginá-la neles, nem me ver vestida como minha mãe.
Nesse closet havia também um saco de lixo grande, cheio até a borda com lãs não
utilizadas e outras enroladas à mão, além de várias peças de tricô sem terminar, outras em
crochê e alguns bordados em ponto cruz também inacabados. Separei as lãs, escolhendo
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aquelas que tinham a textura dos tricôs e as demais as doei para um coletivo de ativismo
têxtil em uma zona periférica de Bogotá. Esses pedaços de tricô enrolado me fizeram parar.
Eu não sabia quando nem como mamãe os tinha feito. Eu sabia para quem ela estava tecendo
algumas dessas peças, mas outras, não tinha a menor ideia de qual era o seu destino. Eram
várias peças, todas ali, latentes, pela metade. E lá estava eu também, em condições
semelhantes às da matéria inacabada, uma antropóloga feminista que há 10 anos estudava o
fazer têxtil artesanal em diferentes contextos e que não sabia quando a sua própria mãe tinha
parado nesse movimento envolvente. Eu tinha conhecimento de que mamãe sabia tricotar e
bordar, mas não guardava nenhuma lembrança de tê-la visto fazendo isso. Só tenho em
mente, alguns anos antes de ela morrer, uma cesta com agulhas e lãs localizada perto de um
sofá e que de um momento para o outro deixei de ver, esse material estava ali dentro do saco
preto.
Por que mamãe não terminou esses tricôs? Para quem eram? Quando os fez? Por que
eu não sabia como terminar esse trabalho? Todas essas são perguntas que deveriam ser feitas
a ela, que agora estava morta. Sentei-me no sofá da minha casa, no chão os fragmentos de
tricô com que tinha decidido ficar e comecei a destecê-los e a enrolá-los. Depois disso me dei
a tarefa de procurar alguém que soubesse tricotar. Entre os meus contatos apareceu um rapaz
jovem, chegando aos 20 anos, que estudava seus primeiros semestres de Cinema na
Universidade e que antes disso tinha feito um curso técnico em tricô. Perguntei se ele se
animava a tricotar um suéter para mim com aquelas lãs acrílicas, antes meio tricotadas por
minha mãe e agora enroladas por mim, e ele, honrado pelo convite, disse que sim. O material
foi suficiente para Johan tricotar para mim duas peças, uma fechada e outra aberta, com
combinações de cores e padrões detalhados e trabalhosos. Ao final do seu trabalho ainda
restava material disponível e então Johan me perguntou se eu não me animava a tecer algo
com esses restos. Eu não sabia tricotar e embora, no início, tenha achado a sugestão
incômoda, no final me animei e tricotei para mim um colete com sua ajuda
6
. Mamãe não
tinha me ensinado a tricotar, mas aí estava eu aprendendo a tricotar pelas mãos de Johan. O
tricô se tornou um lugar que me pôs em movimento e me conectou com um ofício que ela
conhecia e que fazia parte da minha linhagem. Ele também me vinculou com Johan e sua avó
6
Recolho aqui a ideia em torno do incômodo proposta por Zuzanna Dziumban e Ewa Stańczyk sobre como
objetos sobreviventes que possuem caráter pessoal, neste caso o tricô pela metade, convertem-se em lugares de
desejo e incômodo, ao mesmo tempo em que valorizam sua história e materialidade potencial, também os
percebemos como “enfeitiçados” por quem os possuía, essa tensão é sem dúvida difícil de processar (2020, p.
3).
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Pilar, uma mulher que, embora não se lembre mais como tecer, sim legou ao neto o gosto por
esse ofício. (Foto 4)
Foto 4: Detalhes das peças que Johan tricotou e que eu tricotei com as lãs que deixou minha mãe. À esquerda, suéter fechado em tons
magenta com aplicações em negro. Usei-o quando enterramos as cinzas de mamãe em frente ao departamento de biologia onde ela
trabalhava como docente. Cardigan com listras amarelas, vermelhas e azuis com combinação de tecido modular nas costas. Usei-o na minha
conferência de titularização na Universidade que aconteceu no auditório do prédio de genética; minha mãe era geneticista. Direita, colete
que teci na companhia do Johan.
Fonte: Autora, novembro de 2022.
Essas questões que emergiram do tricô semiacabado de minha mãe e que me
convidaram a me aproximar do tricô de forma direta, em tempo e em corpo, não são
respondidas no tecido, permanecem ali, latentes. No inacabado dessas respostas está a morte,
mas também está a continuidade da vida e sua junção.
Os têxteis são objetos próximos a nossos corpos. Em nossa ausência, eles, como
nossos sobreviventes, dão continuidade a essa proximidade (Pérez-Bustos, 2024). Quando
esses objetos estão em pausa, por exemplo, com sua manufatura em suspenso, pela metade,
inacabada, por terminar, dar continuidade a esse movimento, ativá-lo, é uma forma de
instaurar, de restabelecer ou refundar a nossa relação com quem se foi. Nesse gesto de dar
continuidade material a uma coisa (têxtil) por terminar, a existência do que somos (quem não
está e as/os que ficamos) se desdobra, mas também se fabula. O incerto abre um espaço em
nossos possíveis. Não sei por que mamãe deixou tantas coisas têxteis por terminar, mas esse
gesto me convidou a aprender a tecer.
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Nessa ponte entre a incerteza e a possibilidade, instala-se também a política de um
presente que recolhe o passado e observa o futuro com a pausa e a força de uma agulha
atravessando um tecido. Porque hoje a pausa é resistência, uma performance que não nos
convida a entender as razões do porquê da morte (intempestiva ou violenta, morte final), mas
antes a nos comovermos com o que sobrevive e a especularmos, nesse interstício, sobre os
futuros possíveis que somos chamados a fabricar.
Do inacabado e sua potência vinculante, é na verdade disso que vim falar aqui. A
seguir, quero compartilhar com vocês duas histórias de mulheres que, como eu, encontraram
em objetos têxteis por terminar e que guardam como tesouros, convites materiais para fazer,
que lhes chegam da parte de seus mortos. Através delas, estas mulheres, também como eu, e
talvez em sintonia com muitas outras que fazem coisas têxteis sozinhas ou coletivamente,
conseguem que o vínculo com essas pessoas que morreram as transcenda.
Um vestido chuleado
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e outro desfeito
A mãe de Vi, Coca, como ela a chama, morre aos 88 anos em julho de 2018 em
Tandil, uma cidade no centro da Argentina. Ela morava lá com a família de sua filha desde
2014. Vi e o marido se mudaram para essa cidade universitária em 2011, quando seus 4 filhos
homens completaram a idade de iniciar o ensino superior. Isso foi depois de construir sua
vida em Ushuaia, a cidade mais austral do continente americano. Vi tinha ido morar lá depois
dos 20 anos, poucos anos depois de sua mãe se recuperar da morte de seu pai, ocorrida no
mesmo dia em que teve lugar o golpe militar na Argentina, no ano de 79.
Naquela época, sua casa ficava perto da Capital Federal. Antes de seu marido adoecer
em 76, Coca dedicava parte de seu tempo como dona de casa à costura esporádica. Na
juventude viveu como costureira, trabalho que desempenhou de forma requintada e dedicada.
Depois de casada parou de trabalhar e costurava apenas algumas uma ou outra peça especial,
mas deixava a maior parte dos tecidos cortados, alinhavados e chuleados, mas adiava as
costuras finais para depois. Quando criança, Vi a observava trabalhar em algumas dessas
coisas e lhe ajudava com tarefas pontuais, mas sua mãe nunca a deixou tocar na máquina; via
como ela empilhava na mesa de costura alguns dos moldes já cortados e com o ponto solto
passado, prontos para serem costurados na máquina, e depois via como ela os guardava no
armário, por terminar. É em 2018, no processo de se despedir de sua mãe depois de sua
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O chuleado é uma técnica de costura utilizada para evitar que as bordas de um tecido se desfiem. (N.T.)
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morte, ao esvaziar o espaço em que ela morava, que Vi encontra muitas caixas de papelão nas
quais estão todas essas coisas que ela, em sua infância e adolescência, tinha visto sua mãe
preparar para a costura, mas que não tinha chegado a costurar.
Entre tantas coisas por terminar há duas peças que chamam a atenção de Vi, um
vestido que Coca nunca chegou a costurar para ela e outro que, sim, terminou, mas cujas
costuras desfez depois. Ambos são vestidos que foram feitos, ou que estavam para ser feitos,
por volta da época em que Vi completasse 15 anos, no ano de 76. O primeiro, sem costuras
finais, era de um tecido celeste, trabalhado e estampado com florzinhas que uma tia paterna, a
quem Vi amava muito, tinha lhe presenteado. Era um tecido leve e Vi queria usá-lo no verão
daquele ano, mas é justamente nessa época que seu pai adoece. Os três anos seguintes foram
difíceis para Coca, que ficou encarregada de cuidar do marido. Quando ele morre, Coca entra
em uma profunda depressão.
Foi uma época difícil; em meio às atrocidades da ditadura e sua própria adolescência,
Vi segue em frente sozinha, enquanto tenta acompanhar a depressão de sua mãe e terminar
seus estudos de graduação em Biologia. Depois disso, e honrando a primeira sílaba de seu
nome, é que vai para Ushuaia, o mais longe que pôde, para reconstruir sua vida. Todas essas
lembranças aparecem quando Vi me mostra as caixas de sua mãe que encontrou em 2018.
Passaram-se 5 anos e essas coisas ainda estão aí, Vi não sabe o que fazer com elas, a não ser
guardá-las com carinho. Ela se pergunta muito, com raiva e frustração, sobre todas essas
coisas que sua mãe não terminou, sabendo muito bem como fazê-las, mas o vestido que ela
desfez depois que ela foi embora é o que mais a intriga. “Tanto trabalho desfeito e para quê?
Que necessidade ela tinha de desfazê-lo e depois guardá-lo?”, ela me diz, enquanto se
pergunta a si mesma e olha uma foto sua usando esse vestido amarelo, também estampado
com flores e com um plissado em todo o peito (Foto 5).
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Foto 5: À esquerda, vestido celeste com estampa de flores que Coca nunca chegou a terminar para Vi. À direita, vestido amarelo
claro plissado e também com flores que Coca fez para Vi e que depois desarmou quando ela foi morar em Ushuaia.
Fonte: Julieta De Pian, novembro de 2023.
Esses objetos semiacabados convidam Vi a compartilhar sua história comigo de uma
forma encarnada. Esses vestidos que a mãe não terminou para ela ou que desfez, além de lhe
gerar perguntas, trazem lembranças que se misturam com emoções vívidas. Mas essas
materialidades não apenas fornecem a Vi mecanismos para lidar com a morte, mas são
também formas táteis que a ancoram no presente (Dziuban; Stańczyk, 2020).
É difícil para Vi mergulhar naquele tempo de doença de seu pai e da depressão de sua
mãe. Ela fala com rapidez para chegar ao tempo presente enquanto remexe nos tecidos sem
costura que sua mãe deixou e que ela guarda como um tesouro, sem deixar de se perguntar o
que está destinada a fazer com elas. Na tentativa de responder a esse enigma, Vi costurou
algumas dessas peças já cortadas e alinhavadas e as deu de presente a pessoas queridas, mas
muitas outras ficaram aí, ela não se anima a presenteá-las porque sente que só deve fazê-lo
para alguém que tenha a capacidade de valorizar todo o trabalho e tempo que sua mãe pôs ali.
Esses objetos têxteis por terminar estão à espera de que essa pessoa apareça. Ela diz que se
tivesse tido filhas, poderia ter conseguido terminá-las para elas, mas teve quatro filhos
homens. Agora, poderiam ser para suas netas, se algum dia nascem. Ao pensar na
possibilidade de terminá-las para ela mesma, e assim cumprir o destino que algumas delas
originalmente tinham, Vi sente que não sabe se tal tarefa vale a pena. Para isso, ela teria que
modificá-las de modo que se ajustassem ao seu corpo atual e isso não lhe soa muito bem.
Esse contraste chama a atenção: essas peças merecem ser terminadas para outras
pessoas por vir, mas não merecem ser terminadas para quem está aí, presente. De certa forma,
é como se Vi desse continuidade ao jeito de ser da mãe. Esse deixar as costuras para depois é
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uma forma de reconhecer que insistir em não continuar é um gesto de presença (Despret,
2021). Assim como Coca, Vi guarda com carinho o inacabado, até que chegue alguém que o
valorize. Mas mesmo nessa decisão temporária, Vi também parece respeitar o desejo de sua
mãe, que não a deixava usar sua máquina. Em todo caso, essas respostas parciais apenas
reforçam o enigma que Coca deixou ao mesmo tempo que têm a potência de unir mãe e filha.
Assim, nesse gesto de dar continuidade, Vi se põe no meio e dá continuidade a essa herança
conectando Coca com outras pessoas que ela ainda não conhece, todas mulheres, todas com a
possibilidade de valorizar isso que Coca sabia fazer. Uma linhagem por vir fica por se reunir
nessas costuras por vir. Uma linhagem capaz de apreciar o tempo e o trabalho.
A frustração e a raiva são faces opostas da tristeza. Mas esses não são
necessariamente sentimentos que se alojam no luto. O dilema de Vi em relação a todas essas
peças de roupa sem costura não é apenas subjetivo, no sentido de que não é algo que ela deva
resolver consigo mesma, não parte de um mal-estar interior que precise ser trabalhado. Suas
incertezas demandam outro tipo de trabalho, um trabalho material sobre essa materialidade
latente. Claro, nesse fazer sua subjetividade pode se ver transformada, mas não é esse seu
impulso inicial. Seu ponto de partida, sim, são, em troca, as perguntas sobre o que fazer com
essas peças não costuradas que sua mãe lhe deixou e o movimento mais-que-humano ao qual
elas a convidam.
Antes de conversar com Vi sobre Coca em sua casa, a conheci em um laboratório
têxtil para o qual a convidei a participar e pensar com outras pessoas sobre o inacabado. Vi
tinha levado ao encontro um casaco pela metade que Coca tinha cortado e alinhavado para ela
mesma, mas que, como todas as outras coisas, não tinha terminado de costurar. Antes do
encontro, pedimos a cada participante que trouxesse uma fotografia que relacionasse esse
objeto por terminar com algum espaço ou pessoa. Vi trouxe uma foto na qual ela aparecia de
mãos dadas com sua mãe. Ela devia ter 12 anos e estava usando o vestido da primeira
comunhão que Coca tinha costurado para ela. No laboratório, convidamos as participantes a
explorar seus objetos por terminar como territórios, a percorrê-los e depois buscar formas de
transferir essas espacialidades sensíveis para a foto. Vi, depois de percorrer esse tecido escuro
do casaco que sua mãe que, assim como com as outras roupas, tinha cortado, alinhavado e
chuelado, mas nunca tinha chegado a costurar, decide buscar entre os retalhos disponíveis um
pequeno pedaço de tecido com cor semelhante à desse casaco pendente e constrói em relevo
uma capa que depois fixa com linha sobre o corpo de sua mãe na foto, como se ela a estivesse
usando (Foto 6).
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Foto 6: Fotografia de Coca e Vi caminhando. Vi usa o vestido de primeira comunhão que lhe fez sua mãe. Sobre a foto, Vi fixa com
pequenos pontos um casaco, tipo capa, que fez para sua mãe.
Fonte: Julieta De Pian, novembro de 2023.
Nesse fazer que emerge do casaco como território, Vi se encontra com Coca. Com
suas mãos faz um pequeno casaco para a mãe de sua infância, como uma maneira de protegê-
la de todo o sofrimento que estaria por vir e que não lhe permitiria terminar todas aquelas
costuras pendentes. Nesse outro território, agora da imagem revelada, Vi parece dizer para
Coca, com linha e agulha: “Olha mãe, tu não tiveste tempo, aqui estou eu fazendo por ti esse
trabalho que não conseguiste terminar”.
Ao final de nosso encontro na casa dela e lembrando juntas daquela especulação
material, Vi fica olhando para o vestido azul celeste que sua mãe nunca costurou para ela e
diz para si mesma: "Como está alinhavado é fácil de desfazer, talvez eu pudesse adicionar-lhe
material e acomodá-lo para mim". Digo a ela que me parece uma boa ideia, que talvez por
isso sua mãe tenha deixado aquele assim e talvez seja por isso também que ela desmontou o
outro, para que ela pudesse ajustá-los ao seu corpo e às suas formas, já que ela não estava
bem para fazer isso com suas mãos. “Talvez, poderia ser, por que não”, diz, continuando a
intriga da tarefa que tem pendente nesse território de tecidos sem costura o qual agora habita
com Coca.
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Uma trama tubular pensada no corpo
O objeto por terminar de An é uma trama tubular de cerca de 50 centímetros trançada
nas cores branca e azul de tecido reciclado que se enrosca sobre si mesmo. Fazia parte de
uma série de joalheria têxtil que ela estava criando. An queria que essa peça em particular
fosse maior que as outras, que tivesse a altura do seu corpo. Ela começou a fazê-la em 2021 e
a levou consigo em umas férias com seu esposo. Estava grávida de algumas semanas.
Enquanto descansava, continuava com o trançado, envolvida na paisagem, e imaginava que
estava construindo um ninho. No dia em que voltaram da viagem, teve um aborto espontâneo.
Essa foi sua primeira perda, à qual depois se somaram outras duas. Um ano depois desse
evento, seu esposo adoeceu e faleceu pouco tempo depois. Em meio a esse segundo luto, An
descobriu que estava grávida novamente, mas essa gestação também não prospera. “Os lutos
iam se cruzando em mim”, ela me diz. Assim começa esta história, três mortes e uma trama
tubular trançada, no qual se cruzam retalhos de cores, como se cruzam os lutos, e que está
inacabada há dois anos.
Ao contrário de Vi, para An essa trama tubular não lhe faz perguntas. Ela vê a criação
que está pela metade como uma possibilidade infinita; as coisas por terminar não têm porque
dar respostas sobre as razões pelas quais certos processos não continuaram, “nem sempre se
trata de construir uma reflexão útil sobre por que algo aconteceu”, ela me diz. Conversamos
sobre isso em sua casa, alguns dias depois de nos encontrarmos em um espaço de exploração
têxtil no qual trabalhamos sobre as marcas do inacabado (Foto 7). Para An, esse encontro a
fez pensar nas bordas, no liminar, em seu objeto têxtil metade por fazer como algo que
contém e é contido.
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Foto 7: À esquerda, An manipulando a trama tubular com uma massa clay como parte de um laboratório têxtil, ela o enrola com a massa
para imprimir sobre ela e textura do trançado. À direita, instalação efêmera da trama tubular junto com as explorações feitas em diferentes
materiais. O cartão acima tem escrita, em todo o seu limite inferior, a palavra BORDAS como intitulando performativamente o exercício.
Fonte: Isabel Aguilera Vera, dezembro de 2023
Depois que seu marido faleceu, não faz muito tempo, An se mudou para esse
apartamento. Era o espaço em que morava quando estava estudando na universidade. Ela
retorna para ali, 20 anos depois, pinta e organiza o lugar com a ajuda de suas amigas e de sua
família, e busca habitá-lo. Embora more sozinha, não poderíamos dizer que está só. No
caminho de se reconhecer viúva e sem filhes
8
, essas mortes, suas mortes, a convidam a viver,
a se vincular encontrando-se em outres
9
, incluído aí o fazer têxtil. Esse voltar para casa é um
movimento de trânsito que tem um caráter retroativo, mais do que retrospectivo. An não
reflete nem revisita o vivido, An "[...] reconstrói o passado, ativamente, para abrir outros
possíveis no futuro" (Despret, 2022, p. 152).
Nesse reviver do passado, An agora reconhece os limites do seu próprio corpo. Trata-
se de trabalho que lhe toma tempo. Essa mulher doce com quem falo passou por um território
de muitas sombras. O fazer têxtil esteve aí, sustentando-a. Um bordado emoldurado na sala
de seu apartamento é testemunha disso: Listras curvilíneas, descontínuas e de cores azuis e
laranjas que se cruzam entre si. Todas envolventes (Foto 8). Ela estava no meio da dor das
últimas duas mortes quando começou com esse bordado. Sentia que não podia fazer nada,
estava imóvel, e a agulha enfiada a pôs em movimento. An dizia para si mesma, ecoando a
voz de uma amiga próxima: "Um ponto, An, só um ponto, nada mais". E assim, um ponto
8
Em linguagem inclusiva (em vez de "filhos").
9
Idem (em vez de "outros").
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após outro, foi crescendo esse movimento envolvente, incrustado com uma agulha sobre um
tecido de cor crua. Esse primeiro trabalho têxtil terminado, como o da trama tubular ainda
latente, testemunha os cruzamentos, as dores que se sobrepõem, mas também outras emoções
e possibilidades que se entrelaçam e atravessam, e que vão permitindo a An reconhecer a
dimensão de seu corpo (Marschall, 2019). An vai se recolhendo em si mesma, como com os
retalhos do tecido azul celeste trançado que ainda não terminou.
Foto 8: Bordado de An, linhas que se cruzam entre si. As formas são obtidas através de pequenos pontos verticais que se sucedem,
deixando um pequeno espaço entre um e outro.
Fonte: Autora, dezembro de 2023
"O fazer têxtil é um testemunho que permite observar o difícil", digo a ela, pensando
com Christine Andrä e sua equipe (2019). Neste caso, essas explorações envolventes com
linha e tecido lhe dão a possibilidade de pausar sobre os lutos que se cruzam nela,
testemunham o que aconteceu e a convidam a não ficar ali, mas a continuar. E esse convite se
gesta em uma agência múltipla, onde não estão apenas An e seu bordado, fazendo-se, mas
também nesse fazer estão quem morreu, fazendo-se com ela e com seu bordado. Através do
bordado, em conjunto com o bordado, suas mortes lhe mostram seu limite, suas bordas, e
dizem: Aqui estamos, aqui estás.
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Nessa multiplicidade de lugares de encontro, o bordado é a antessala da trama tubular
que deseja ser corpo. Esse trançado também é testemunha do difícil em escalas além da
doméstica, embora sempre íntimas. Os tecidos com os quais An iniciou esse trabalho foram
recuperados de uma oficina de estopas que ela tinha feito alguns anos antes. Participar de um
espaço dessa natureza vincula An ao trabalho de denúncia têxtil contra as violações aos
direitos humanos feitas por mulheres neste país austral desde os anos 70, durante a ditadura
(Doolan, 2016). Fazer estopas hoje é dar continuidade a essa genealogia e é uma forma de
dizer, nesse gesto, estas são nossas mortes, aqui estão, neste pano" (Pérez-Bustos, 2021,
2024). An se vincula com essa denúncia ao retomar os retalhos desse trabalho e trançá-los
pensando em que a peça final tenha o tamanho de um corpo. Mas antes de terminar essa
trama, o processo é interrompido, o corpo fica pela metade e a trama inacabada torna-se
testemunha de uma morte própria. Essa condição ininterrupta será, depois, testemunha de um
espaço no tempo habitado por outras mortes. A pausa têxtil como testemunha dessas
ausências.
As explorações têxteis nas quais nos conhecemos possibilitam a An se enfrentar com
esse espaço no tempo, com a presença da ausência na trama por terminar. Ao observar com
seu corpo e de maneira curiosa as bordas de sua trama, ela se permite tomar distância do que
o objeto significa e com isso imagina dar continuidade ao iniciado, escalá-lo, fazê-lo maior.
É seu corpo que impõe limite ao fazer têxtil e a leva a pausar a trama tubular quando
tem seu primeiro aborto, mas é seu corpo também que lhe permite ver essa latência que
esteve aí por vários anos e ver as ausências que irromperam em sua vida. São essas ausências
que habitam a textura dos cruzamentos dessa trama de estopa entrelaçada, essas que An
observa enquanto percorre a superfície, a borda dessa trama na exploração material. É nesse
movimento, no percurso desse território têxtil, que ela se encontra com suas mortes. É ali
onde An se permite imaginar: "[...] que acontece se eu continuar a trama até que tenha o
tamanho do meu corpo?".
Um objeto inacabado que se enrosca sobre si mesmo, e um fazer têxtil que lhe dá
continuidade e permite a An recolher-se, voltar a sua casa, habitá-la, como principal forma de
seguir em frente. Esse movimento também tem estado e é marcado pela dor, mas não apenas
pela dor, não só pelo luto. O inacabado em potência dessa trama tubular que deseja ser corpo
põe An em disposição para apreciar tudo o que lhe ocorre. Esta é a principal homenagem que
ela presta a quem já não está mais aqui.
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Jazmina Barrera, em seu romance Ponto Cruz (2021, p. 12), compartilha um poema
sobre as mulheres e o bordado do século X, observando que neste texto a palavra "bordado"
também significa "borda", o que isto levou o poema a ser traduzido de duas formas distintas.
"Há quem traduza: 'O lugar de uma mulher está junto a seu bordado'. Uma tradução mais
livre poderia ser: 'O lugar de uma mulher está ao lado do abismo'". Talvez no caso de An, o
fazer têxtil seja ambas as coisas, é um abismo, uma borda e também é um lugar, seu lugar. É
nesse território no qual ela se encontra com quem já se foi, onde pode prestar-lhes
homenagem e apreciar seu caminho percorrido e o caminho por vir.
Esse objeto têxtil inacabado que An deseja terminar é uma especulação material de
seus mortos que produz um movimento em An: eles a convidam a viver de maneira diferente.
Ao aceitar realizar esse movimento, ela lhe faz uma homenagem, na qual reconhece a
potência por viver e também o vivido. Nessa homenagem, An mantém o vínculo com quem
já não está mais aqui, dando-lhes um lugar, intensificando sua presença e sua vitalidade
(mesmo a partir do reconhecimento de sua morte). Mas, nesse lugar, nem ela é a mesma, nem
o são os laços com seus mortos. An se tornou outra pessoa com seus mortos. Nesse recolher
envolvente que o fazer têxtil materializa, ela conjuga um futuro onde se reencontra com seus
filhes
10
não nascides
11
, com seu esposo, e com eles compõe um outro porvir (Despret, 2022).
Coda
Em uma reflexão pessoal sobre o papel que o fazer têxtil tem nos ritos fúnebres, tanto
em contextos de violência política, como de perdas pessoais, Agnes Merat (2020) nos propõe
observar como estes labores acompanham o reconhecimento das ausências radicais que se
produzem com a morte. Para esta autora, essa companhia que são os têxteis quando são feitos
tem a capacidade de nos dar presença no meio da morte e de dar um novo lugar de realidade
aos nossos mortos. Isto ocorre no movimento de nossos corpos quando percorremos as
superfícies têxteis, ao bordá-las ou construí-las através da tecelagem. Como testemunhas de
conhecimento difícil (Andrä et al., 2019), esses territórios têxteis nos permitem travar
conversas materiais com quem se foi, fazem-nos imaginar o passado habitando-o de outras
formas, chamam-nos a afirmar os vínculos que temos e dos quais vimos em um vai-e-vem
contínuo entre a presença e a ausência.
10
Em linguagem inclusiva (em vez de "filhos").
11
Idem (em vez de "nascidos").
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Nas histórias que aqui compartilhei, e inspirada particularmente no trabalho de
Vinciane Despret sobre os mortos e as suas maneiras de ser e de nos fazer fazer, quis indagar
de forma particular, pelos têxteis inacabados como portais nos quais esse vai-e-vem entre a
ausência e a presença se torna palpável; como cenários sem fechamento em que se expressa a
continuidade da vida e da morte. Interessou-me salientar que nesse movimento ao qual nos
convidam os mortos através e a partir dos têxteis por terminar há muito mais do que luto. Os
têxteis, como lugares de encontro com os nossos mortos, encarnam enigmas sobre o nosso
passado. Somos chamadas a fazer algo com eles quando os herdamos e nesse chamado nos
reconhecemos capazes de aprender coisas novas sobre nós mesmas e de olhar para o vivido
de formas diferentes, às vezes até inclusive de formas mais doces e compreensivas. Vi nos
mostra isso quando agasalha sua mãe do passado, realizando por ela uma tarefa que sua
tristeza não lhe permitia realizar. An, por sua vez, se anima a recomeçar, a retomar a trama
antes de suas perdas e nesse exercício recolher-se, abraçar-se.
Não poderia afirmar que nesses movimentos não há luto; o que quis dizer é que neles
não há apenas luto. E com isso, eu me junto à problematização do luto como uma condição
meramente subjetiva que devemos resolver atravessando-a, como se pudéssemos sair de
nossa relação com quem se foi virando a página, deixando-a para trás. Como se fosse
possível existir sem o passado, ser sem esses mortos. "O luto não é algo para superar, mas
para cultivar", diz-nos Alexa Hagerty (citada por Despret, 2022, p. 139), uma forma de dar
vida às relações com quem morreu, da qual não apenas participamos nós que ficamos, mas
também nossos mortos, assim como os territórios materiais (têxteis, neste caso) nos quais nos
encontramos com elies
12
.
Encontro-me com minha mãe quando desteço, enrolo e aprendo a tecer com as lãs que
encontrei guardadas em seu armário quando ela morreu. Nesse encontro, ela me ensina a
tecer através de Johan e de sua avó. Nesse aprender, especulo e, ao especular, habito os
pampas serranos argentinos onde ela cresceu e me pergunto sobre a história desse país que
também é meu e que não me foi contada. Não há respostas certas para essas perguntas, nem
para essas especulações, mas nelas, sim, há convites ao movimento. O têxtil inacabado de
minha mãe me conecta com meu próprio desenraizamento e ali há dor e tristeza, claro, mas
não apenas dor e tristeza; esse têxtil também me conecta com minha linhagem, com minhas
ancestrais e diante delas há, sobretudo, contemplação e curiosidade.
12
Linguagem inclusiva (em vez de "eles").
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