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ISSN 2238-5436
ARTIGO
Patrimônio e Museologia numa gestão petista da cidade
de São Paulo:
o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria
Amada Esquartejada
Heritage and Museology in a PT administration in the city
of São Paulo:
the listing of the Perus district and the exhibition Pátria
Amada Esquartejada
Sergio Ricardo Retroz1
Luiz Carlos Borges2
DOI 10.26512/museologia.v10i19.32335
Módulo introdutório
A Constituição de 1988 marca o reinício, no Brasil, do estado demo-
crático de direito, um dos pilares do regime democrático. O texto constitu-
cional, com todos os limites decorrentes do desequilíbrio das forças políticas
em disputa durante sua redação, trouxe avanços se pensarmos no conceito de
cultura, agora pautado pela diversidade, novidade presente também no concei-
to de patrimônio. Apesar da inovação, a política nacional que se seguiu para a
área da cultura – com o início do Governo Collor, em 1988 –, traçou caminhos
polêmicos, ao extinguir o Ministério da Cultura e outras instituições da área.
Como arma Lia Calabre, a “estrutura que naquele momento era insuciente,
cou em situação insustentável” (CALABRE, 2007: 94). Considerando que a
política cultural instituída pelo governo federal não se encontrava alinhada com
as conquistas e inovações acolhidas pela nova constituição, é no nível estadual
1 Graduado em História pela USP; mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais (FGV)
2 Pesquisador Titular do Museu de Astronomia e Ciências Ans/MCTI
Resumo
O Departamento de Patrimônio Histórico
(DPH), da cidade de São Paulo, durante a
administração da Prefeita Luiza Erundina,
pôde robustecer seu trabalho desenvolvido
nos campos da museologia e do patrimônio,
agora enriquecido pelo conceito de cidada-
nia cultural, pensado por Marilena Chauí. A
exposição Pátria Amada Esquartejada e o
estudo para o processo de tombamento do
patrimônio do bairro de Perus são exem-
plos desse encontro dos técnicos do DPH
com o ambiente proporcionado pela nova
gestão, calcada na ampliação de direitos.
Palavras-chave
Patrimônio. Museologia. Memória. Cidade
de São Paulo.
Resumo
The Department of Historical Heritage
(DPH), of the city of São Paulo, during the
administration of Mayor Luiza Erundina, was
able to strengthen its work in the elds of
museology and heritage, now enriched by
the concept of cultural citizenship, concei-
ved by Marilena Chauí. The exhibition Pátria
Amada Esquartejada and the study for the
heritage registration process in the Perus
neighborhood are examples of this meeting
of DPH technicians with the environment
provided by the new management, based on
the expansion of rights.
Keywords
Heritage. Museology. Memory. City of São
Paulo.
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o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria Amada Esquartejada
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021
e municipal que encontramos experiências culturais mais condizentes com o
texto constitucional. O caso especíco da cidade de São Paulo, na administração
de Luíza Erundina, do Partido dos Trabalhadores (PT), entre 1989 e 1992, é um
desses ambientes em que se estabeleceu uma prática na área cultural distinta
da esfera federal, aberta à diversidade e disposta a lidar com diferenças sociais,
enm, preocupada com a ampliação de direitos.
Ao ter como locus a cidade de São Paulo, é objetivo deste artigo reetir
sobre o trabalho do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) – órgão in-
tegrante da prefeitura paulistana, subordinado à Secretaria Municipal de Cultura
(SMC) –, durante essa administração petista. E nos centraremos nas orienta-
ções político-culturais e nas atividades patrimoniais e museológicas executadas
pelo órgão. Em particular, interessa-nos averiguar como as ideias de Marilena
Chauí, então secretaria de cultura do município, chegaram no DPH e inuen-
ciaram suas atividades. Com base na documentação compulsada, analisaremos
especicamente dois projetos desenvolvidos pelo DPH no período: o estudo
para o tombamento do patrimônio do bairro Perus e a exposição Pátria Amada
Esquartejada. Procuraremos mostrar como os conceitos de cultura de Chauí
fomentaram uma política que propiciou um ambiente para o desenvolvimento
desses dois projetos, os quais foram pautados por ideias e ideais que vinham
sendo gestados pelos técnicos do DPH.
Primeiro módulo: o DPH e a gestão do PT
A gênese do DPH é normalmente remetida ao Departamento de Cul-
tura, primeiro órgão municipal destinado à administração e fomento da cultura,
o qual teve como seu primeiro diretor o escritor, poeta e folclorista Mário de
Andrade. A proposta de criação de um departamento municipal voltado à cul-
tura partiu de intelectuais paulistas, em sua maioria modernistas, como Mário
de Andrade, Sérgio Milliet3 e Paulo Duarte4. O anteprojeto do Departamento
de Cultura e Recreação foi, então, apresentado ao Prefeito Fábio da Silva Prado,
que aprovou, em 1935, a criação desse novo órgão municipal (SÃO PAULO,
1985: 11). A administração de Mário de Andrade [1935-1938] cou conhecida
pelas suas empreitadas na pesquisa folclórica, buscando nas expressões popula-
res e na linguagem coloquial as raízes de uma cultura considerada tipicamente
paulistana, a qual era entendida como parte do grande caldeirão da cultura
nacional. O trabalho de Mário de Andrade foi interrompido com a instalação da
ditadura do Estado Novo [1937-1945], sendo o poeta deposto da diretoria e
Paulo Duarte, seu importante colaborador, exilado.
O Departamento de Cultura, em 1945, passou a ser subordinado à Se-
cretaria de Cultura e Higiene, por meio do Decreto nº 333, o que denota um
movimento pela vinculação da cultura à política higienista. A vinculação perma-
neceu até 1947, quando a Secretaria foi desmembrada em Secretaria de Higiene
e Secretaria de Educação e Cultura, sendo o Departamento de Cultura vincula-
do a esta última, por meio do decreto-lei nº 430, migrando o vínculo da cultura
agora à função educativa do município. Em meio a essas mudanças institucionais,
3 Sergio Milliet foi escritor, crítico de arte, sociólogo, professor e pintor. Participou da semana modernista
de 1922. No Departamento de Cultura de São Paulo, foi chefe da Divisão de Documentação Histórica e
Social (ENCICLOPÉDIA, 2020).
4 Paulo Duarte foi jornalista e político ligado a Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de São
Paulo. Atuou como chefe de gabinete do Prefeito Fábio Prado, na capital paulista, quando ajudou na articu-
lação com os modernistas para a criação do Departamen-to de Cultura (DICIONÁRIO, 2020).
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foi apenas em 1975 que foi instituída a Secretaria Municipal de Cultura (SMC),
por meio do decreto-lei nº 8.204. O mesmo decreto criou nalmente o DPH,
um dos órgãos da estrutura funcional da nova Secretaria, considerado uma re-
cuperação da Divisão de Documentação Histórica e Social, do antigo Departa-
mento de Cultura cheado por Mário de Andrade (SÃO PAULO, 1985: 12). Tal
divisão, de fato, conseguira manter com diculdades suas atividades, consideran-
do que, assim como toda a área da cultura, “permaneceu carente de olhos que
a reconhecessem e relegada a segundo plano em secretarias que, acumulando
pastas, descaracterizavam o verdadeiro e valoroso papel da cultura numa socie-
dade” (SÃO PAULO, 1985: 12).
Ao longo do tempo, o DPH sofreu algumas mudanças estruturais, mas
desde sua criação manteve atividades destinadas à área de arquivos, de museus
e de preservação do patrimônio cultural5. No momento em que Luíza Erundina
assumiu a prefeitura de São Paulo, essas atividades reetiam-se na estrutura do
órgão, composta por três divisões: Arquivo Histórico Municipal (AHM), Divisão
de Iconograa e Museus (DIM) e Divisão de Preservação (DP). Ao assumir a Se-
cretaria de Cultura, Marilena Chauí nomeou Déa Ribeiro Fenelon6 para direção
do DPH, que se manteve no cargo por toda a administração petista. O AHM
continuou sob a administração da arquivista Daise Apparecida Oliveira7, a DIM
foi conada à historiadora Silvia Hunold Lara8; e a DP, à arquiteta Leila Regina
Diêgoli9, que era servidora municipal e trabalhava no DPH.
É interessante destacar o perl de formação do prossional indicado
para cada uma das divisões do DPH. A área de preservação foi designada a uma
arquiteta, perl prossional preponderante nos diversos órgãos de preservação
do patrimônio do país; a área de arquivo, sempre vista como um trabalho téc-
nico, cou sob a direção de uma prossional da respectiva área; e a museologia
cou a cargo de uma historiadora, o que não é estranho porque nesse período,
como em certa medida ainda hoje ocorre, raros eram os museus dirigidos por
museólogos. Ademais, nomear uma historiadora – quando poderia ter sido, por
exemplo, uma socióloga, uma antropóloga, ou mesmo uma arquiteta, carreira
prossional mais valorizada, à época, quando se tratava de patrimônio –, pode
indicar que a atividade museológica do DPH era compreendida como priorita-
riamente voltada à história.
Ressaltemos, ainda, com relação à questão de gênero, o predomínio de
mulheres à frente da gestão da cultura e da preservação patrimonial na cidade:
mulher é a secretária, a diretora do DPH, as chefes de divisão, assim como mui-
tas das dirigentes de sessões. Essa rede de mulheres atuando na área da cultura
5 Atualmente o DPH concentra apenas as atividades de preservação, sendo que a área de arquivos se
tornou um departamento indepen-dente, por meio da lei nº 15.608, de 28 jun. 2012, assim como a área
museológica passou a integrar o Departamento dos Museus Mu-nicipais, criado no decreto nº 58.207, de
24 abr. 2018.
6 Déa Ribeiro Fenelon [1933-2008] foi professora de história na PUC/SP. Sua pesquisa voltava-se para a
história social do trabalho, teoria da história, memória e patrimônio (CNPQ, 2020).
7 Daise Apparecida Oliveira dirigiu o Arquivo Municipal de São Paulo, de 1987 a 1996. É autora do livro
Planos de Classicação e Tabelas de Temporalidade, referência na área. Mestre em história, foi professora,
de 1986 a 2002, do curso de especialização em arqui-vos oferecido pela ECA e IEB, da USP (OLIVEIRA,
2007).
8 Silvia Hunold Lara, doutora em história pela USP, é professora da UNICAMP desde 1986, tendo sua
pesquisa voltada para a história colonial e para a história da escravidão no Brasil (CNPQ, 2020).
9 Leila Regina Diêgoli foi servidora da prefeitura, no DPH, de 1981 a 2013. Mestre e doutora em histó-
ria (1995; 2000), sempre pela PUC/SP, tem sua pesquisa voltada para o patrimônio arquitetônico urbano
(CNPQ, 2020).
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na capital paulista era, não por coincidência, comandada por uma prefeita. Ou-
tras mulheres foram, ainda, conduzidas do campo acadêmico para a assessoria
técnica, ou para a chea de sessões do DPH, como Maria Clementina Pereira
Cunha10, Maria Célia Paoli11; e Olga Brites da Silva12. Outras servidoras munici-
pais também obtiveram destaque na gestão, como a arquiteta e urbanista Cás-
sia Magaldi13, chefe da Seção Técnica de Projetos, Restauro e Conservação, da
Divisão de Preservação. Constituiu-se no DPH, enm, uma equipe de gestoras,
composta por técnicas de carreira do órgão e por especialistas provenientes da
academia. Importante frisar ainda que Déa Fenelon, por ser diretora do DPH,
ocupava também a presidência do Conselho Municipal de Preservação do Pa-
trimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp),
órgão responsável pelos tombamentos na cidade, tendo o DPH como suporte
técnico para dar subsídio às decisões. Conforme aponta Juliana Prata (2009), foi
nessa gestão que o Conpresp passou efetivamente a funcionar, com aumento
substancial dos processos de tombamento.
Importa salientar, ainda, que essa administração da SMC fazia parte de
um programa de governo de Luíza Erundina que tinha por lema “São Paulo para
todos”. De acordo com Lúcio Kowarick e André Singer (1993), em artigo publi-
cado logo após o término do mandato, a Prefeita Erundina buscou em sua gestão
justamente aumentar os impostos dos grandes proprietários da cidade e rever-
ter essa arrecadação em serviços destinados à grande maioria da população,
marcada pela situação de precarização no atendimento a necessidades básicas
nas áreas de educação, saúde, moradia, segurança e transporte. Essa postura do
governo municipal priorizar o atendimento às demandas da maioria da popula-
ção, menos favorecida socioeconomicamente, foi igualmente adotada pela SMC.
Marilena Chauí implementou na SMC o conceito de cidadania cultural, do
qual trataremos melhor no próximo tópico. Podemos, contudo, adiantar que, com
esse conceito, a secretaria buscou conciliar o fomento à cidadania com a política
cultural. Déa Fenelon empenhou-se no alinhamento dos trabalhos do órgão do
patrimônio municipal a esse conceito de Chauí. No entendimento de Fenelon,
é preciso ir além do discurso técnico do patrimônio, de forma a reconhecer as
diversas forças sociais em disputa nas práticas preservacionistas e, assim, buscar
o sentido coletivo dos bens culturais, tendo por objetivo a cidadania cultural:
Quando propomos o debate e a reexão sobre as políticas de pa-
trimônio histórico, queremos tratá-lo não apenas no âmbito restri-
to das técnicas de intervenção ou dos critérios de identicação e
preservação e seus conceitos operacionais. Para além desses aspec-
tos, é preciso politizar o tema, reconhecendo as condições históri-
cas em que se forjaram muitas das suas premissas – e articulando-
-as com as lutas pela qualidade de vida, pela preservação do meio
ambiente, pelos direitos à pluralidade e sobretudo pelo direito à
cidadania cultural. Com isso esperamos retomar um sentido de pa-
trimônio histórico que nos permita entendê-lo como prática social
e cultural de diversos e múltiplos agentes (FENELON, 1992: 31).
10 Maria Clementina Pereira Cunha desde 1974 é professora de história da UNICAMP e pesquisadora
de manifestações coletivas, como o carnaval e as rodas de samba no Rio de Janeiro no início do século
XX (CNPQ, 2020).
11 Maria Célia Paoli é professora no Departamento de Sociologia da USP, desde 1988. Sua pesquisa é
voltada para temas como trabalho, cidadania e cidade (CNPQ, 2020).
12 Olga Brites da Silva é professora de história na PUC/SP desde 1986 e sua pesquisa é voltada para a
cultura e a cidade, com foco nos temas da infância, saúde e trabalho (CNPQ, 2020).
13 Cássia Magaldi é arquiteta especializada em restauração, técnica do DPH desde 1983. Em 1996, con-
cluiu mestrado em história e em 2001 o doutorado, os dois títulos obtidos na PUC/SP (CNPQ, 2020).
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Fenelon criou no DPH um ambiente de discussão sobre o papel do
técnico do órgão no trabalho de preservação do patrimônio e a relação deste
com a memória social. O DPH vinha de uma trajetória de mais de dez anos no
desenvolvimento de trabalhos inovadores no que tange à preservação do patri-
mônio e à museologia. A Divisão de Iconograa e Museus (DIM), no nal dos
anos 1970, desenvolveu o Museu de Rua, um projeto que instalava exposições
nas vias públicas, numa tentativa de musealização do urbano e de estabelecimen-
to de diálogo com os cidadãos que percorriam as ruas do centro da cidade. Nos
anos 1980, a DIM também lançou o programa Museu Comunidade que visava
constituir acervos e espaços museais nos bairros da cidade, junto às comunida-
des locais. Apesar do caráter ainda incipiente dessas experiências, a museologia
do DPH era muito inuenciada pelas ideias avançadas de Waldisa Russio, muse-
óloga que, atenta às discussões internacionais no campo, defendia, já no nal dos
anos 1970, que os museus brasileiros contribuíssem na resposta “às indagações
de um país com profundas diferenças regionais num mundo em mudança”, ser-
vindo como “instrumentos atuantes da educação permanente e humanizadora,
libertadora do Homem” (RUSSIO, 2010:55). O museu, portanto, era entendido
como uma instituição cultural de inserção no presente, capaz de contribuir para
a superação dos problemas socioculturais da contemporaneidade.
No que se refere à preservação do patrimônio, a Divisão de Preservação
(DP) desenvolveu o Inventário Geral do Patrimônio Ambiental Urbano (Igepac),
numa tentativa de identicar o patrimônio da cidade, pautando-se pelo conceito
de patrimônio ambiental urbano. Neste conceito, o patrimônio é entendido na
sua relação com o meio ambiente e com a qualidade de vida, ultrapassando os
tradicionais conceitos de excepcionalidade e de valoração de bens isolados e
de valor notável, para uma compreensão do patrimônio enquanto conjunto e de
preservação por áreas de interesse. Eduardo Yázigi (2012: 28), um dos formula-
dores desse conceito, assim o dene:
O patrimônio ambiental urbano é constituído de conjuntos arqui-
tetônicos, espaços urbanísticos, equipamentos públicos e a nature-
za existente na cidade, regulados por relações sociais, econômicas,
culturais e ecológicas, onde o conito deve ser o menor possível e
a inclusão social uma exigência crescente. Portanto, ele acompanha
o processo social, assumindo todas as modernidades necessárias.
É reconhecido e preservável por seus clássicos valores potencial-
mente qualicáveis: pragmáticos, cognitivos, estéticos e afetivos [...].
Apesar dessas marcantes iniciativas, quando Luiza Erundina assumiu a
prefeitura, o DPH encontrava-se enfraquecido, em especial devido ao fato de
que, na gestão anterior, do Prefeito Jânio Quadros, muitas das decisões refe-
rentes à política cultural e patrimonial tinham sido tomadas à revelia dos seus
técnicos. Na gestão de Erundina, o DPH se fortaleceu graças, principalmente, à
existência de um ambiente político e administrativo favorável para o desenvolvi-
mento de novas práticas de gestão cultural do órgão. No nosso entendimento,
as ideias de Chauí acerca da cultura, entendida como parte da ação política, per-
mitiram ao DPH repensar antigas práticas e metodologias, o que desencadeou
o desdobramento de trabalhos condizentes com a trajetória do órgão, nesse
momento pautado por um objetivo ambicioso: o desenvolvimento da cidadania
cultural.
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Segundo módulo: Chauí e o pensamento sobre cultura e patrimônio
Marilena Chauí, em diálogo com outros intelectuais latino-americanos
preocupados com questões em torno do décit de cidadania no continente,
elaborou o conceito de cidadania cultural. Trata-se não apenas de uma contri-
buição teórica, mas igualmente de uma política na área da cultura, que tem sido
destacada por alguns estudos dedicados à gestão cultural implementada por
governos de esquerda. A contribuição de Chauí é considerada por Roberto
Lima (2016: 38) como a “primeira referência teórica mais sólida que resultou de
uma experiência de gestão”. De acordo com esse autor, cidadania cultural seria
uma “promessa-desao”(LIMA, 2016: 53), que ainda hoje “vem desaando mili-
tantes petistas a pensar e implementar mecanismos de gestão adequados àquela
concepção, o que levou à construção de uma agenda própria, mas que só veio
a se consolidar no início do século XXI” (LIMA, 2016: 39). Márcio Meira (2016:
19-20), por sua vez, considera a cidadania cultural de Chauí “um dos princípios
norteadores das gestões de política cultural realizadas nas cidades governadas
pelas esquerdas”, nos anos 1980, 1990 e 2000. Ainda segundo Meira (2016: 21),
entre as gestões municipais de esquerda, “não haveria política cultural que não
incorporasse a ideia de cidadania cultural, tanto como referência conceitual
quanto como promoção do protagonismo político dos cidadãos nas decisões
sobre o futuro das cidades, na perspectiva de transformação da sociedade”.
O conceito de cidadania cultural elaborado por Chauí tem por base
o fato de que a cultura é um direito fundamental de todo cidadão (CHAUÍ,
1992: 39). Direito de acesso à informação e à fruição, por meio de bibliotecas,
arquivos, cursos, ocinas e seminários e gratuidade em espetáculos, exibições
de lmes e exposições, por exemplo. Direito à criação cultural, entendendo
cada sujeito e grupo social como detentor de sua própria memória, capaz de
produzir cultura e arte. Direito do reconhecimento enquanto sujeito cultural,
tendo acesso aos ambientes de discussões e podendo exibir trabalhos ligados a
movimentos sociais e populares. Direito à participação nas decisões públicas da
cultura, possível nos conselhos e fóruns deliberativos (CHAUÍ, 1995). A autora
entende cultura num sentido amplo, por considerá-la tanto como o conjunto
de práticas sociais e visão de mundo, quanto no sentido do trabalho, enquanto
capacidade do homem em criar o novo. O direito à cultura implica, então, tanto
na garantia das condições para cada grupo social expressar a sua própria cultu-
ra, quanto aos meios de acesso e produção de obras culturais:
Ao denirmos a política cultural como Cidadania Cultural e a cul-
tura como direito, estamos operando com os dois sentidos da cul-
tura: como um fato ao qual temos direito como agentes ou sujeitos
históricos; como um valor ao qual todos têm direito numa socie-
dade de classes que exclui uma parte de seus cidadãos do direito
à criação e à fruição das obras de pensamento e das obras de arte.
(...) Procuramos, assim, com a proposta da Cidadania Cultural tor-
nar inseparáveis política cultural e cultura política que buscam a
democratização de direitos (CHAUÍ, 1992: 39-40).
Ao acercar-se do debate sobre o patrimônio, Marilena Chauí (2006)
inclui uma crítica à distinção entre cultura e natureza que, de certa forma, sub-
siste na constituição categorial que distingue patrimônio cultural de patrimônio
natural. A rigor, a separação entre natureza e cultura é destituída de sentido,
uma vez que a natureza não é mais entendida como um conjunto de elementos
físicos e de espécies cuja existência independe da presença e do trabalho huma-
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nos.
Como tal, a natureza não deve ser compreendida como um objeto somente
constatado, mas como objeto construído cienticamente, concebido e modica-
do a partir da ação do homem, resultado de uma construção intelectual, sendo,
portanto, um objeto cultural. Acresce que, no modo de produção e civilização
capitalista, a natureza também se constitui como mercadoria, um objeto de troca
e lucro e, por isso, não é de surpreender, como diz Chauí, que a água seja comer-
cializada e que bairros sejam valorizados por possuírem um ar menos poluído.
O conceito de patrimônio ambiental, na leitura de Chauí, segue também essa
lógica de transformação da natureza em objeto cultural, uma vez que regiões e
paisagens naturais são priorizadas, com vistas à sua preservação, em detrimento
de outras, por uma questão inscrita na ordem simbólica das coisas.
Chauí fala em suportes da memória, tais como os monumentos, docu-
mentos, coleções e objetos, como formas de “expressão objetivada da lembran-
ça coletiva” (CHAUÍ, 2006: 114). Esses suportes da memória seriam admitidos
como patrimônio histórico e cultural na categoria de semióforos, cujos valores
são mensurados pela materialidade histórica de sua força simbólica, isto é, por
sua capacidade em “estabelecer uma mediação entre o visível e o invisível, o
sagrado e o profano, o presente e o passado, os vivos e os mortos”, e, por
esse motivo, destinados à exibição e contemplação (CHAUÍ, 2006: 117). Nesse
sentido, a natureza também é incorporada como um semióforo o que, por sua
vez, justica o surgimento do conceito de patrimônio ambiental. O museu e a
biblioteca, enquanto aparatos ideológicos da sociedade e, por vezes, do Estado,
também surgiram como lugares de celebração do consagrado e do ocial, do
já feito ou, em termos discursivos, do já-dito, ou seja, daquilo que sendo es-
truturado é também estruturante e instituinte de uma dada história que, em
suma, é “uma história de eventos que ignora ou oculta a história dos adventos”
(CHAUÍ, 2006: 122). A seleção do patrimônio urbano, de acordo com Chauí,
seria também pautada por essa construção narrativa ocial. Razão pela qual
entende que a política patrimonial institui, em geral, o que ela chama de “forma
mísera e pomposa da memória”, a qual contribui na armação de “uma história
determinada, a dos poderosos e vencedores, concebida como una e única, linear,
contínua e progressiva” (CHAUÍ, 2006: 122).
Todavia, a pergunta que Chauí se faz é se o patrimônio cultural e am-
biental estaria fadado a celebrar a história dos vencedores, ou se seria possível
a implementação de uma política patrimonial fundamentada em outra concep-
ção teórico-política. A autora responde armando a viabilidade de uma gestão
diversa do patrimônio e coloca o trabalho desenvolvido no DPH, durante sua
gestão, como exemplo dessa possibilidade, ao gerir o patrimônio de forma a não
se pautar por uma memória ocial, única e linear. Ela adverte, entretanto, que é
preciso atenção para não cair em alguns erros:
Memória contestadora do triunfalismo dos poderes estabelecidos,
que desorganizaram o espaço, o tempo e a participação, a história dos
vencidos (em contraposição ao que Benjamim chamou de história do
vencedor) não é sacralização e construção de uma história contínua e
única, pois isso seria simplesmente transferir para movimentos popu-
lares e sociais os mesmos procedimentos de apropriação do passado
usados pela história do vencedor [...].
Do que se tratava [a política implantada no DPH]? De tornar visível
a disputa pela memória social, deixando aparecer ações até então in-
visíveis, capazes de questionar as signicações institucionalizadas com
que a sociedade constrói para si mesma seu próprio signicado. Por
isso mesmo, tratava-se de uma prática reexiva sobre a concepção de
patrimônio histórico, cultural e ambiental [...] (
CHAUÍ, 2006: 124).
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De acordo com Chauí, esse trabalho do DPH foi pautado por uma série
de parâmetros que tinham por base o direito do cidadão à memória. Buscou-se
evidenciar os múltiplos agentes em disputa na constituição do patrimônio e ar-
mar a diversidade de memórias na cidade, de diferentes classes, etnias, gêneros e
oriundas de múltiplas lutas sociais e políticas, de forma a desestabilizar a memó-
ria instituída e, assim, recusar a história como celebração. A gestão do DPH, na
visão de Chauí, priorizou esclarecer e comunicar as práticas do órgão público,
de forma a permitir a efetiva participação da sociedade em sua complexa di-
versidade. Os processos de tombamento priorizaram os estudos por manchas
urbanas, lendo a cidade por meio de sua história econômica, social, política e
artística. Monumentos foram preservados nos lugares onde se encontravam ins-
talados, mesmo que tais instalações tenham sido um equívoco no passado, uma
vez que tais presenças se tornaram referências importantes para os habitantes.
No que tange à museologia, o DPH recusou o museu enquanto “folclore, espó-
lio, pilhagem e invenção de um passado comum”, preferindo-o como articulador
do passado e do presente, “um espaço de diálogo cultural e de formação da
cidadania” (CHAUÍ, 2006: 126). As exposições, realizadas nos espaços internos
e nos logradouros públicos da cidade, visavam permitir o acesso a públicos nor-
malmente excluídos do circuito cultural. Foram concebidas a partir de coletas
de depoimentos ou por sugestão de “memorialistas” e frequentadores das casas
históricas do DPH, sempre que possível, conjugando pesquisa histórica e memó-
ria de sujeitos e grupos sociais, tendo em vista desconstruir “a memória ocial
da classe dominante e do Estado” (CHAUÍ, 2006: 127)..
Chauí, portanto, transpõe seu conceito de cidadania cultural para a ges-
tão da memória social do DPH na preservação do patrimônio e na construção
de narrativas sobre o passado. Encara a memória como um direito e como um
campo que exige condições para a disseminação de narrativas controversas
e conitantes. Essa postura política de Chauí foi apoiada e ampliada por Déa
Fenelon e despertou o interesse de técnicos do DPH que viram nessa política
um momento propício para o desenvolvimento de alguns de seus projetos. E foi
justamente essa conjugação de elementos teórico-metodológicos e aspirações
que permitiu que o conceito de cidadania cultural fosse traduzido em práticas
de trabalho no órgão, como veremos a seguir em dois projetos especícos e de
grande relevância na gestão.
Terceiro módulo: Pátria Amada Esquartejada
A exposição Pátria Amada Esquartejada foi a contribuição do DPH para
a programação do projeto especial da SMC intitulado 500 Anos: Caminhos da
Memória, Trilhas do Futuro, realizado entre abril a setembro de 1992, em cele-
bração ao aniversário da “descoberta” das Américas. Além dos 500 anos da dita
descoberta, outras datas foram celebradas na ocasião, como os 170 anos da in-
dependência do Brasil, os 70 anos da Semana de Arte Moderna e os 60 anos do
movimento constitucionalista de 1932. Mas, dentre todas essas datas festejadas,
destaca-se a dos 200 anos da morte de Tiradentes, evento escolhido para funda-
mentar a narrativa expositiva, que tomava discursivamente o esquartejamento
de Tiradentes, mito fundador nacional instituído pela república brasileira, como
símbolo do esquartejamento da própria nação. O tratamento expositivo dado a
esse mito fundador permitia perceber nele ressonâncias da ditadura civil-militar
(1964-1985).
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O projeto Pátria Amada Esquartejada, além da exposição propriamente
dita, era composto também por visitas monitoradas, material didático e aulas
públicas. A exposição, composta por 40 painéis, possuía uma versão que, segun-
do o jargão da época, era denominada de permanente, exibida a céu aberto em
torno do Monumento à Independência14, e uma versão itinerante, exibida nos
locais onde ocorriam as aulas públicas, também a céu aberto, além de ser insta-
lada temporariamente em alguns equipamentos da prefeitura, como o Centro
Cultural de São Paulo.
As chamadas aulas públicas ocorriam sempre em praças e ruas da cida-
de. Eram antecipadas, durante 15 dias, por iniciativas de divulgação da aula e pela
instalação da versão itinerante da exposição. Durante esses dias, visitantes da
exposição eram interpelados por agentes da prefeitura munidos de gravadores.
Assim se iniciava um clima de interação, necessário ao sucesso da exposição e
da aula. Foram realizadas oito aulas públicas, cada uma sobre uma temática espe-
cíca. Trataram das crianças em situação de rua, dos idosos, dos migrantes, dos
sem-teto e sem-terra, das nações indígenas, dos negros e da discriminação racial,
do meio ambiente e, por m, dos trabalhadores. A m de iniciar a conversa,
para cada aula eram convidadas pessoas envolvidas com o tema a ser discutido.
Dessas discussões participaram, dentre outros, Antônio Galdino, presidente da
Federação de Aposentados de São Paulo; Gilberto Cukierman, da Secretaria
Municipal de Saúde; Edson Cardoso, do Movimento Negro Unicado; Aílton
Krenak, da União das Nações Indígenas (NCI) e Luíz Inácio Lula da Silva, então
presidente do PT. O microfone era, então, franqueado ao público e as pessoas
podiam falar livremente sobre o tema em debate. Em um relato sobre as aulas
públicas, Maria Cunha, assistente técnica do DPH, assim comenta o que era pre-
tendido com esta atividade:
O Brasil é um país de pouca conversa. O diálogo entre as diferentes
partes da nação praticamente não se estabelece – exceto, e com
uma frequência crescente, como confronto. Por isso fomos às ruas,
em um duplo processo de conversar e investigar as caras da nação,
ouvir suas vozes e ver o que resultaria da tentativa de fazer com
que elas se ouvissem mutuamente (CUNHA, 1992: 37).
14 Monumento à Independência é um conjunto de esculturas localizado no jardim em frente ao Museu
Paulista, local onde o príncipe herdeiro da coroa portuguesa teria proclamado a emancipação do Brasil
de Portugal. O monumento é também mausoléu no qual re-pousam os restos mortais de D. Pedro I e das
imperatrizes D. Leopoldina e D. Amélia (SÃO PAULO, 2020).
Imagem 1 - Exposição Pátria Amada Esquartejada. Praça da Sé.
Foto Adalberto Esteves Bujardão (São Paulo, 1992:14)
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Patrimônio e Museologia numa gestão petista da cidade de São Paulo:
o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria Amada Esquartejada
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021
As visitas monitoradas, por sua vez, foram realizadas pelo Serviço Edu-
cativo da Divisão de Iconograa e Museus (DIM) e ocorreram durante todo o
ano de 1992 na exposição instalada no Parque da Independência, como também
no Centro Cultural de São Paulo, no bairro de Vergueiro, no período em que lá
esteve instalada. A mediação, feita por monitores, tinha por alvo prioritário os
professores e estudantes, além de participantes do Movimento de Alfabetização
de Adultos (MOVA) e do sistema municipal de Educação de Adultos (EDA), es-
tes últimos projetos desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Educação, sob
a administração do educador Paulo Freire. Como atividade educativa, foi ainda
elaborada uma versão resumida da exposição, acompanhada por um “manual”
para servir de orientação para sua aplicação didática. Esse material impresso,
numa tiragem de 1.500 exemplares, foi entregue para uso em todas as escolas
municipais, bibliotecas públicas e equipamentos culturais da municipalidade.
O projeto buscava, portanto, superar o alcance de uma exposição cir-
cunscrita a um espaço determinado. A versão itinerante levava a exposição para
diversas regiões da cidade e o material didático impresso permitia alcançar o
conjunto dos espaços educativos e culturais da administração municipal. As aulas
públicas e as abordagens com gravadores constituíam um meio de estabelecer
uma relação dialógica com o cidadão. Tratava-se, do ponto de vista documental,
de uma maneira de ouvir as mais diversas camadas da população e de registrar
suas interpretações relativas à exposição em seu conjunto, num suporte que
seria mantido no acervo do DPH. Pátria Amada Esquartejada fazia lembrar em
muito as exposições do Museu de Rua, projeto do DPH desenvolvido nos anos
1970, por utilizar a mesma estrutura de totens então elaborada pela DIM, além
de ser exibida em logradouros públicos15. O projeto museal, portanto, bene-
ciava-se de uma trajetória museológica percorrida pela DIM, potencializando os
conhecimentos na área, ao vinculá-la à cidadania cultural, que tinha por pilar a
ativa participação dos vários segmentos da sociedade no debate de temas rela-
tivos à realidade sociocultural dos cidadãos paulistanos.
Percorrer os painéis da exposição é
fundamental para vericarmos que o víncu-
lo com a política da cidadania cultural não
se dava apenas na metodologia empregada e
na forma da exposição, mas também no seu
conteúdo. A narrativa construída na exposi-
ção tinha por m discutir as diversas con-
cepções do Brasil como nação, bem como
os imaginários aí envolvidos. Cada um dos
40 painéis expositivos é marcado pelo logo
da exposição, sempre colocado no topo,
como cabeçalho. O símbolo, uma imagem
estilizada a partir de um dos estudos de Pe-
dro Américo para a realização do quadro Ti-
radentes Esquartejado, concluído em 1893,
mostra uma parte do corpo espedaçado de
Tiradentes, constituída pelo tronco e um
braço caído. O visitante tem, portanto, sem-
pre diante de si, insistentemente, uma refe-
15 Os totens e painéis da exposição foram confeccionados pelo escritório de Júlio Abe Wakahara, ar-
quiteto que havia trabalhado no DPH, quando fora um dos mentores do projeto Museu de Rua, na DIM
(DPH, 1992).
Imagem 2 - Logo da exposição na capa do
folheto (DPH, 1992a)
Acervo Museu da Cidade de São Paulo
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rência ao esquartejamento de Tiradentes.
Trata-se de um contra-discurso por utilizar a imagem heroicada de
Tiradentes – cujo discurso ocial republicano utiliza para reforçar a ideia de
formação da unidade nacional – como dividido, dilacerado, a exemplo da nação
brasileira, esta também esquartejada, dividida e dilacerada pelas desigualdades
socioeconômicas e pelas injustiças que são denunciadas ao longo da exposição.
Neste sentido, a exposição apropria-se tanto do mito quanto da imagem de
Tiradentes sacricado para signicá-los em oposição aos sentidos legitimados
pelo Estado. Silvia Hunold Lara, diretora da DIM e uma das redatoras dos textos
da exposição, sobre esse aspecto da morte de Tiradentes, diz que:
[...] insistir e evidenciar as outras “mil mortes” que lhe foram im-
putadas no nal do século XVIII e foram ocultadas no processo de
criação da imagem cívico-religiosa do herói pode ter um signicado
político enorme. Seu esquartejamento pode simbolizar, pelo avesso
da imagem tradicional, uma nação dilacerada. A nação esquartejada
por conitos irreconciliáveis, pela devastação e pela destruição, evi-
dencia a impossibilidade de armar sequer uma única noção de li-
berdade. O herói da liberdade (no singular) esconde e oculta histó-
rias de lutas por liberdades radicalmente diversas (LARA, 1992: 27).
A narrativa da exposição é organizada em cinco eixos temáticos e não
cronológicos, explicitados por meio de títulos e textos explicativos. Os pai-
néis exibem trechos de poesias e imagens, como pinturas, desenhos, charges,
documentos e fotograas (estas em abundância), que se estendem do século
XVI à contemporaneidade, sendo a composição marcada pela contraposição,
antagonismo e ironia. A primeira parte da exposição, intitulada “O calendário da
história”, faz menção às inúmeras celebrações cívicas motivadoras da exposição,
de forma a evidenciar o uso das mesmas na construção da “identidade nacio-
nal”. Relembra a disputa entre monarquistas e republicanos, no século XIX, pela
escolha de D. Pedro I ou de Tiradentes como personagem histórico capaz de
amalgamar a pátria na constituição imaginária de um passado comum. O texto
explicita que a exposição não deseja reforçar a história enquanto “biograa das
nações”, nem celebrar a nação, mas interrogar e pensar sobre o conceito nação,
construído ao longo do tempo.
A segunda parte da exposição, “O (des)concerto das nações”, mostra
que a ideia de nação pode ter sentidos diversos, e por isso é passível de dife-
rentes usos. Em função disso, esta parte da exposição é aberta com uma pintura
panorâmica da capital do Império Asteca, no início do século XVI. O texto apon-
ta para o fato de já existirem diversas e diferentes nações na América, mesmo
antes da chegada das nações europeias. Revela, ainda, que a ideia de nacionalis-
mo pode levar tanto ao fascismo, como o vivido na II Guerra Mundial, quanto
aos movimentos de libertação, como o ocorrido em Cuba e Vietnã. Aborda, por
m, as fragilidades dos estados nacionais diante da diversidade dos povos, ao
lembrar da luta entre bascos e catalães, na Espanha; dos sérvios e croatas, na Iu-
goslávia; e das inúmeras nacionalidades que coexistiam na então União Soviética.
No texto de abertura da terceira parte, intitulada “Brasil, orão da América”, no
qual a exposição passa a tratar diretamente do caso brasileiro de constituição
da nação, encontramos a seguinte armação, que busca colocar em discussão o
processo de formulação de uma identidade nacional:
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Patrimônio e Museologia numa gestão petista da cidade de São Paulo:
o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria Amada Esquartejada
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021
Mais do que uma idéia que se possa entender e discutir, a Nação é
construída na escala dos sentimentos. (...) Um sentimento estimu-
lado desde os bancos escolares e sustentado no estilo pomposo
e triunfante dos hinos, das bandeiras e na memória das datas ou
heróis da nacionalidade. Símbolos quase sagrados, com os quais se
busca obter uma identicação afetiva para construir um sentimen-
to de unidade, capaz de sobrepor-se às diferenças de que é feito
um país (SÃO PAULO, 1992: 74).
Esta parte da exposição é organizada em três momentos. O primeiro
abre-se com uma imagem demasiada conhecida no seu papel de consagração da
ideia de nação. Trata-se da obra de Pedro Bruno, pintada em 1918 e intitulada A
Pátria. A harmonia das imagens ociais é rompida com duas charges de Angelo
Agostini, artista do século XIX, propagador de ideias abolicionistas e anticleri-
cais. Em uma dessas charges, mostra-se um escravo, às lágrimas e acorrentado,
sendo disputado, de um lado, por políticos escravocratas e, do outro, por polí-
ticos abolicionistas, ou seja, a charge denunciava que a disputa legislativa ocor-
ria numa arena política pouco preocupada com a condição de vida dos negros
(SILVA, 2015). No segundo momento, versos do Hino Nacional e do Hino à
Bandeira são intercalados com imagens fortes e marcantes denunciadoras das
injustiças sociais presentes no Brasil, deixando claro a ideia da exposição em
questionar o discurso ocial da nação. No terceiro momento, a estrofe da can-
ção Tropicália, de Caetano Veloso – “O monumento não tem porta/ a entrada
é uma rua antiga, estreita e torta/ e no joelho uma criança sorridente, feia e
morta/ estende a mão” –, abre uma série de imagens do Monumento à Inde-
pendência, composto por esculturas gurativas de José Bonifácio, Hipólito José
da Costa, dos líderes revolucionários de 1817, Gonçalves Ledo, Padre Antônio
Feijó e os incondentes. Essas personagens, “os santos do altar”, em aparente
harmonia no monumento, possuíam outrora inúmeras desavenças entre si, e
lutavam em arenas sociopolíticas, muitas vezes, opostas. Essa parte da exposi-
ção é concluída com a escultura de Tiradentes no Monumento à Independência
e, num breve texto, busca evidenciar que a ideia de liberdade, assim como a de
nação, é múltipla:
No altar da Pátria, Tiradentes está sentado à direita de Deus: é
o herói da liberdade. Um único sentido de liberdade projetado
sobre a Nação – e não sobre os homens que habitam suas fron-
teiras. Mesmo na época de Tiradentes, a liberdade de não pagar
impostos era bem diferente da liberdade almejada pelos escravos.
Ainda hoje, o sentido desta palavra não é igual para todas as pes-
soas (SÃO PAULO, 1992: 86).
E, nalmente, chegamos à parte da exposição, a quarta, dedicada à
execução, por esquartejamento, de Tiradentes, a qual é intitulada “Um corpo
esquartejado”. A maioria de seus painéis é ilustrada por imagens clássicas de
Tiradentes, em grande parte pinturas a óleo, encontradas em edifícios públi-
cos e museus de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal
– lembremos que temos sempre diante de nós, no topo do painel, a imagem
de Tiradentes esquartejado, em contraponto às imagens ociais. Também é
exibido o documento no qual consta a sentença proferida contra os réus do
levante de 1792 (a Incondência Mineira), colocado ao lado de dois desenhos
que mostram os cadafalsos onde se realizavam enforcamentos e mutilações.
Juntos, esses documentos dão a tônica narrativa do ocorrido.
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Os textos dos painéis tratam da construção mítica de Tiradentes e da
narrativa criada em vínculo com o sacrifício e martírio do Cristo, como estra-
tégia para unir as mentes e sentimentos da população brasileira em torno de
uma ideia de república e de liberdade. Buscam esclarecer como essa estratégia
tornou opaco o motivo econômico-político da condenação de Tiradentes: de-
monstrar o poder do soberano e das classes dominantes, ao rearmar a subor-
dinação do Brasil à metrópole portuguesa. No início da República, a retomada
da gura de Tiradentes tinha outra função, era um herói da república, mártir
para promoção simbólica da “união mística do país” (SÃO PAULO, 1992: 92).
A parte é concluída com a imagem do painel Tiradentes, de Cândido Portinari,
instalado no Memorial da América Latina, em São Paulo. O painel ilustra o
sacrifício do corpo e seus pedaços enados em estacas, tudo visto e acompa-
nhado pelo povo. O texto do último painel dessa parte, conclui:
Cordeiro de Deus a ser imolado pela pátria, o corpo do herói não
exibe qualquer marca do sangue derramado. Destinado a ser um
símbolo da nação, o corpo de Tiradentes foi quase sempre apre-
sentado ainda íntegro, antes do enforcamento.
Mas talvez outra imagem possa ser mais próxima do país; o corpo
dilacerado do condenado, esquartejado, conservado em sal e pen-
durado aos pedaços nos postes pelos caminhos que percorreu [o
que faz o painel de Portinari]. Tão dividido quanto o próprio país
que se quer representar (SÃO PAULO, 1992: 94).
Chegamos à última parte da exposição, a quinta, intitulada “Cada cabe-
ça, uma sentença”. É iniciada com imagens de propaganda política da ditadura
militar, marcadas pelo verde e amarelo, seguida por um outdoor da campanha
de Fernando Collor de Mello para Presidente, na qual os dois “l” do seu nome
são também coloridos de verde e amarelo, ao passo que o restante da peça
publicitária, dominado pelo azul e branco. O texto inicial arma que em “um
país de tantas desigualdades, o apelo à Nação ainda pode ter sucesso. Repeti-
damente o verde e o amarelo tentam resgatar a unidade deste corpo desfeito
e esconder barreiras e diferenças sob as ilusões cívicas” (SÃO PAULO, 1992:
96). Marilena Chauí, numa apresentação da exposição, escreveu que “políticos,
para se elegerem, fazem campanha com as cores nacionais. Mas neste país, que
se representa tão rico na bandeira, existe muita miséria” (CHAUÍ, 1992: 7). A
exposição, também aqui, denuncia o uso dos símbolos da nação, inclusive das
cores nacionais, como instrumentos de ofuscação da realidade brasileira que,
sob o escrutínio da crítica, se expõe fundamentalmente heterogênea e desar-
moniosa.
Contrapondo-se ao colorido triunfante dos símbolos nacionais, nessa
parte da exposição predomina o preto e o branco das fotograas. Continua
a problematizar o discurso sobre a nação, e opta por mostrar algumas das di-
versas faces da complexa realidade brasileira, dando ênfase à sua desigualdade
estrutural, representada por imagens de diversas minorias. Trata do menino de
rua, do idoso, dos migrantes, dos sem casa e sem-terra, das nações indígenas,
do negro e dos trabalhadores. Não é coincidência que, para esta parte da ex-
posição, foram selecionados os mesmos temas abordados nas aulas públicas. As
imagens são de forte impacto. São pessoas dormindo na rua, crianças sofrendo
agressão policial, idosos em las, migrantes em ônibus de viagens e à espera de
tratamento médico, são manifestações de sem-terra, las de desempregados.
É o corpo de um homem vitimado durante uma invasão de terrenos no bairro
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Patrimônio e Museologia numa gestão petista da cidade de São Paulo:
o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria Amada Esquartejada
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de Guaianases, na periferia de São Paulo. São os índios Kaiowá que comete-
ram suicídio, prática que nessa época foi utilizada como uma resposta-solução
desesperada dos Guarani Kaiowá (que habitam o Mato Grosso do Sul), face à
opressão que sofriam por fazendeiros e forças políticas e policiais.
O preto e branco das imagens é rompido, ironicamente, com poucas
fotograas. Em uma delas gura o rosto de um índio usando um cocar em que
predominam penas verdes e amarelas. A outra é menos pacíca: agra policiais
em meio a meninos e meninas de rua, cujos olhos expressam pavor, e um dos
policias coloca o cano de seu revólver na boca de um dos garotos. A foto, de-
nunciadora da violência policial contra menores, tem o verde, amarelo, azul e
branco como suas cores de maior destaque. Talvez essa imagem sintetize o que
toda a narrativa expositiva buscou reforçar: os símbolos nacionais sobrepostos
ao esquartejamento da nação pela injustiça, pelo preconceito, pelo abuso de
autoridade e pela inegável diferença social e política no que concerne ao acesso
aos recursos nacionais. Como armou Cunha, em relato sobre as aulas públicas
da exposição:
[...] A imagem grandiosa da nação, que supúnhamos ser capaz de
obscurecer as diferenças e de justicar todo sacrifício, não se sus-
tenta diante da experiência (essa sim compartilhada pela imensa
maioria dos brasileiros) da privação e da ausência da cidadania.
O samba-exaltação que abria todas as aulas públicas, como uma
espécie de instigação, soou sempre estranho e ridículo (CUNHA,
1992: 39).
O projeto Pátria Amada Esquartejada foi talvez o maior projeto mu-
seológico dessa gestão, por abrigar formação de acervo, com os depoimentos
coletados, abertura de espaços para debates e conversa com o público, por
meio das aulas públicas, e de uma exposição ocupante dos espaços públicos,
este último recurso amplamente utilizado em outras exposições no período.
Ao discutir a nação, problematiza as condições da vida socioeconômica e po-
lítica da maioria da população e coloca o visitante diante de questionamentos
necessários à instituição de uma efetiva cidadania cultural. Como podemos ver,
o conceito de cidadania cultural de Chauí pautou tanto a narrativa da exposi-
ção, quanto a metodologia empregada para o engajamento da sociedade e para
o estabelecimento de múltiplo diálogos.
Quarto módulo: Bairro de Perus
Na área de preservação do DPH, uma importante ação desse período
foi o estudo e elaboração do parecer técnico para a fundamentação da decisão
acerca do tombamento de um complexo urbano no bairro de Perus. O bairro
ca no extremo oeste da capital paulista, marcado pela presença da ferrovia
Perus-Pirapora, inaugurada, em 1914, para ligar São Paulo à Fábrica de Cal Be-
neducci e às caieiras Gato Preto, no atual município de Cajamar (ABPF, 1980:
3-4). Em 1925, empreendedores canadenses adquiriram as caieiras de Gato
Preto e a estrada de ferro, bem como montaram e inauguraram, em 1926, no
bairro de Perus, uma fábrica de cimento de grande porte e construíram vilas
operárias, para abrigar seus empregados, estrangeiros e brasileiros. A fábrica,
admirada na época de sua inauguração pela capacidade produtiva e avanço tec-
nológico, foi adquirida por capital nacional em 1951, quando passou a se chamar
Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus (ABPF, 1980: 4). A Estrada
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de ferro Perus-Pirapora foi mantida em uso sem grandes alterações no seu
sistema de operação, num momento em que outras ferrovias semelhantes a ela
interrompiam suas operações ou passavam a operar com mais de uma bitola
(ABPF, 1980: 5).
O estudo do DPH no bairro de Perus culminou na emissão da resolu-
ção nº 27 do Conpresp, de 1992, que tombou um conjunto de equipamentos
e edifícios relacionados à Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus. O
conjunto tombado incluía o complexo fabril, as residências operárias das deno-
minadas Vila Triângulo, Vila Portland (ou Vila Nova) e Vila Fábrica, residências
da antiga administração e o edifício da assistência médica, além dos traçados
do Córrego Ajuá e de parte das ruas Joaquim de Araújo Leite, Joaquim de
Carmelo e Ilha Três Irmãos. Foram ainda tombados, pela mesma resolução, em
carácter ex-offício, as instalações e acervo ferroviário da Perus-Pirapora sob
jurisdição da cidade de São Paulo. O tombamento ex-ofcio se dava porque a
Estrada de Ferro Perus-Pirapora já havia sido tombada, em 1987, pelo órgão es-
tadual, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico
e Turístico (Condephaat). Antes de adentrarmos propriamente no processo
de tombamento iniciado pelo Conpresp, bem como no estudo realizado pelo
DPH, principal alvo de nossa análise, vale a pena tecermos alguns comentários,
a título de comparação, a respeito deste tombamento realizado pelo Conde-
phaat.
O processo de tombamento, no órgão estadual, havia sido iniciado por
solicitação da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), alar-
mada diante da possibilidade de interrupção de funcionamento do sistema fer-
roviário da Perus-Pirapora. Logo na introdução do documento argumentativo
elaborado pela ABPF para fundamentar o processo de tombamento, está evi-
denciado como tendo valor patrimonial não apenas o conjunto de bens móveis
e imóveis da ferrovia, mas também o trabalho empregado em suas operações.
Esse trabalho e conhecimento ferroviários constituiriam, segundo o documen-
to, “uma tradição de uso e manutenção artesanal”, o que faria com que o valor
da estrada de ferro não se limitasse ao seu “extraordinário patrimônio”, mas
também “na forma como se usa ainda hoje” (ABPF, 1980: 1). Mesmo sem no-
mear, o documento aponta para o valor tanto material quanto imaterial de seu
Imagem 3 - Fábrica de Cimento Portland Perus. 1930
Acervo: CONPRESP
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Patrimônio e Museologia numa gestão petista da cidade de São Paulo:
o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria Amada Esquartejada
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patrimônio. Todavia, o mesmo documento lamenta não poder aprofundar-se
quanto ao aspecto imaterial do patrimônio, por falta de tempo hábil, dada a
urgência de intervenções necessárias para a preservação da estrada de ferro,
face a ameaça de sua extinção. A Estrada de Ferro Perus-Pirapora é considera-
da “a última ferrovia de bitola de 60 cm a operar na América e uma das únicas
do mundo” (ABPF, 1980: 2) e residiria nisso, enquanto artefato da história da
tecnologia ferroviária no Brasil, o argumento principal para o seu tombamento.
O documento da ABPF elenca uma séria de alternativas para a preser-
vação do patrimônio, tendo por preferência a preservação integral da Perús-
-Pirapora, ou seja, a manutenção do sistema em funcionamento. Como alterna-
tiva, admitia também a preservação parcial, com exibição do acervo em âmbito
local, ou ainda com sua transferência para uma instituição museológica adequa-
da e devidamente equipada (ABPF, 1980: 11-14).
Diante do apelo da ABPF e após apreciação do seu relatório, o Conde-
phaat, na resolução nº. 05, de 19 de janeiro de 1987, dene o alcance do tom-
bamento:
Fica tombado como bem cultural de interesse histórico o acervo
da Estrada de Ferro Perus-Pirapora, incluindo material rodante e
instalações (linhas férreas, ocinas e equipamentos de apoio, bem
como outras instalações), último remanescente em funcionamen-
to em nosso País de um conjunto completo de ferrovias em bitola
estreita, testemunho dinâmico nos dias de hoje da história do
desenvolvimento industrial e suas consequências em nosso estado
(CONDEPHAAT, 1987: n.p, grifo meu).
De acordo com a documentação do Condephaat, em resposta a uma
solicitação feita pelo DPH, a Vila Triângulo não fora incluída na resolução por-
que os “levantamentos que subsidiariam o tombamento não identicaram
construções ligadas à ferrovia, a não ser as do pátio da fábrica, não havendo
referências à Vila Triângulo” (CONDEPHAAT, 1989: n.p).
Enm, interessa-nos perceber, no estudo realizado pelo Condephaat e
nos argumentos empregados para a justicativa do tombamento, que o centro
das preocupações é a história da tecnologia ferroviária. Embora o documento
mencione o conhecimento dos trabalhadores acerca da ferrovia, a atenção não
está na relação dos trabalhadores e dos moradores do bairro com o patrimô-
nio considerado relevante para a preservação, uma vez que admite até a possi-
bilidade de transferência desse patrimônio para outro local. Ao contrário disso,
no estudo realizado pelo DPH e nos argumentos na esfera municipal, veremos
que a relação dos moradores e trabalhadores com as edicações e equipamen-
tos constitui fator central para a justicativa de sua patrimonialização.
No nal da década de 1980, as condições do patrimônio ferroviário
de Perus ganharam espaço na imprensa paulista, que denunciava a situação de
deterioração daquele patrimônio, apesar do seu reconhecimento pelo Con-
dephaat. O Diário Popular, em fevereiro daquele ano, publicou na primeira
página de sua Revista dominical a matéria intitulada “Destruição do Patrimônio
Histórico: Estão depenando a Estrada de Ferro Perus-Pirapora tombada pelo
Condephaat” (DESTRUIÇÃO..., 1989: 1). Um dos trechos da matéria, em que
se nota um forte efeito discursivo de perda patrimonial, com apelo ao salva-
mento, dava destaque à situação de abandono e depredação em que se encon-
trava a ferrovia: “a ferrugem, lentamente, vai corroendo e apodrecendo o que
resta das românticas locomotivas. Mas, pior que a ferrugem e o abandono é a
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ação de ladrões que estão depenando a Estrada de Ferro Perus-Pirapora, um
verdadeiro museu ferroviário, do qual já resta pouco. Sorte deles. Azar da His-
tória” (DESTRUIÇÃO..., 1989: 1). Apesar de a imprensa se referir ao patrimô-
nio ferroviária sem perceber a sua conexão com outros edifícios da região, ela
se atenta para a sua relação com antigos trabalhadores da ferrovia, chegando a
levantar alguns depoimentos. A Vila Triângulo, embora não seja encarada pela
imprensa como patrimônio, chegou a ganhar nota quando corria risco de de-
molição, a ser executada pela Companhia Nacional de Cimento Portland Perus,
sob o argumento de que as antigas casas, aquelas não ocupadas por funcioná-
rios e, portanto, segundo a companhia, abandonadas, propiciavam a formação
de focos de ninhos de ratos, baratas e escorpiões (EM PERUS..., 1989: 3).
O estado precário para a preservação do patrimônio e o risco de de-
molições alarmaram os habitantes que recorreram à Administração Regional
de Perus (AR-PR) em busca de novas medidas protetivas. Esta, por sua vez,
acionou o DPH, órgão responsável pelo patrimônio histórico municipal. O do-
cumento que Carlos Bauer de Souza, assistente técnico da AR-PR, enviou para
a diretora do DPH, Déa Fenelon, não objetivava a abertura de um novo pro-
cesso de tombamento para o bairro, mas viabilizar um projeto de revitalização
da Estrada de Ferro Perus-Pirapora e da Vila Triângulo, bem como recuperar
fotos, documentos e artigos de jornais que constituíam um acervo sobre o
bairro; além de coletar depoimentos orais de antigos moradores e militantes
dos movimentos populares e sindicais. Souza pedia auxílio técnico do DPH para
elaborar e executar um projeto que garantisse “tanto a preservação da memó-
ria, quanto da história de Perus” (SOUZA, 1989: 1). De acordo com Souza, o
bairro do Perus possuía um desenvolvimento próprio, dissociado culturalmente
das áreas centrais da capital paulista, assemelhando-se, nesse quesito, mais às
cidades do interior do Estado do que a um bairro da capital. Justamente por
isso o assistente técnico da AR-PR considerava importante preservar a história
e memória locais.
A primeira vistoria de
técnicos do DPH na região, ainda
sem vislumbrar um novo proces-
so de tombamento, se deu em
30 de março de 1989, acompa-
nhada por funcionários da AR-
-PR, quando visitaram a área do
patrimônio ferroviário e “uma
interessante vila operária cons-
truída por técnicos canadenses
no início do século” (DIAMAN-
TE; PINHEIRO, 1989: n.p).
Os técnicos do DPH, reconhecendo o valor patrimonial da Vila Triângu-
lo, solicitaram ao Conpresp a abertura do processo de tombamento (DIAMAN-
TE; DUTRA: 1989), enfatizando sua originalidade arquitetônica na disposição
das residências, em forma de triângulo, e no uso de cobertura de quatro águas
de concreto, pouco utilizada na época. No documento, o DPH reconhecia a
relação da vila com o acervo da Estrada de Ferro Perus-Pirapora, já tombado
pelo Condephaat e, por isso, solicitava o tombamento da vila junto ao trecho
da linha férrea e material rodante – os trens e vagões. Em resposta à solicitação
do DPH, datada em 15 de junho de 1989, o Conpresp decidiu pela abertura do
Imagem 4 - Vila Triângulo
Acervo: CONPRESP
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o tombamento do bairro de Perus e a exposição Pátria Amada Esquartejada
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processo de tombamento, em 29 de junho do mesmo ano. O Consórcio Cho-
-Abdalla, proprietário da vila e da fábrica de cimento, questionou a decisão do
Conpresp, sob a alegação de que as casas, embora tivessem sido construídas na
década de 1930, tinham sido descaracterizadas ao longo do tempo “sem outro
critério que não o de alojar seus empregados, não havendo qualquer registro
de maior importância sobre sua existência” e, por esse motivo, a vila não teria
“nenhum valor histórico, arquitetônico, cultural ou qualquer outro valor que
justique um processo de tombamento” (COMPANHIA, 1989: 1-2).
O Conpresp, apesar da manifestação dos proprietários em contrário,
manteve a decisão de dar início ao processo de tombamento, cando sob res-
ponsabilidade do DPH o estudo técnico para subsídio da decisão. O trabalho
de pesquisa, todavia, não se deu sem o enfrentamento de diculdades. Ainda
em meados de 1991, a equipe do DPH alegava que não tivera acesso à Vila
Triângulo ou às instalações da fábrica de cimento, para realizar as vistorias
necessárias, nem pudera desenvolver a pesquisa, uma vez que os proprietários
empeciam o acesso aos arquivos da Companhia Nacional de Cimento Portland,
além de dicultar as captações de depoimentos de moradores e de inviabilizar
a produção de registros fotográcos e grácos (PIRES, 1991).
O estudo realizado pela Prefeitura, de acordo com Vanice Jeronymo
(2016), acabou acentuando os conitos existentes na região, o que, de certa
forma, na leitura da autora, dicultou a própria preservação do patrimônio.
Diante desse contexto conituoso e de risco na preservação do patrimônio na
região, a Prefeita Luiza Erundina, admitindo sua importância para a memória
dos trabalhadores, por meio do decreto nº 31.805, de 27 de junho de 1992,
declarou a desapropriação, no bairro de Perus, de uma área de mais de 586 mil
metros quadrados para a implantação do Centro de Cultura Operária. O de-
creto da prefeita foi também uma resposta à mobilização feita por ex-operários
da fábrica de cimento e por setores sociais do bairro de Perus, como escolas,
sindicatos e sociedade amigos do bairro (DPH, 1992b). Contudo, como tam-
bém apontou Jeronymo (2016), esse decreto foi desconsiderado pelas gestões
municipais seguintes, o que agravou ainda mais os conitos na região.
De qualquer maneira, a partir de junho de 1991, os proprietários acaba-
ram por permitir o acesso dos técnicos do DPH aos documentos e aos imóveis.
Realizados os estudos, o DPH recomendou a ampliação da área de tombamen-
to, até então restrita à Vila Triângulo. Considerou que a ferrovia, a fábrica de
cimento, as vilas operárias e as demais edicações na região compunham um
conjunto articulado desde a sua criação e funcionamento. O estudo municipal
também foi além daquele realizado pelo órgão estatual e sua novidade consistia
na visão sistêmica da produção industrial e pela incorporação de novos sujeitos
na valoração dos bens, como aponta Jeronymo (2016: 136):
As iniciativas do DPH e do Conpresp mostram que o tombamento
formulado pela esfera municipal se revestiu de outras valorações
além daqueles já atribuídas ao bem pelo tombamento estadual. O
estadual prosseguiu com base na valoração do bem pelo viés da
historicidade, excepcionalidade, integridade e autenticidade e no
reconhecimento dos elementos da paisagem. Já o tombamento
municipal, seguiu pelo viés da compreensão da CBCPP [Compa-
nhia Brasileira de Cimento Portland Perus] como um complexo
fabril articulado pela EFPP [Estrada de Ferro Perus-Pirapora], deu
maior voz à população, especialmente, aos envolvidos diretamen-
te com as instalações da fábrica de cimento, os antigos moradores
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ISSN 2238-5436
e trabalhadores, legitimando, primordialmente, seu valor afetivo e
seu caráter simbólico. Procurou-se enfatizar a representação da
fábrica na vida dessas pessoas e reforçar sua caracterização como
lugar de identidade […].
O estudo técnico do DPH é dividido em duas partes, intituladas “Pe-
rus – uma fábrica de memórias” e “Perus – Espaço e produção”. Nesta última
parte, o documento descreve a trajetória do bairro do Perus e a instalação do
sistema industrial na região, detalha o processo produtivo da fábrica de cimen-
to Portland, o surgimento das unidades de apoio e das vilas. Mas é na primeira
parte do estudo que o texto chama atenção, por oferecer uma descrição da
vida cotidiana na fábrica e nas vilas operárias, tendo por principal fonte os
relatos de moradores e antigos operários. Remonta também aos principais
momentos do movimento sindical na região, amplamente documentados na
imprensa da época e, posteriormente, objeto de trabalhos acadêmicos. O valor
patrimonial das edicações, de acordo com o estudo, é legitimado, dentre ou-
tros motivos, pela adesão histórico-cultural que o movimento social existente
na região manifestava em relação a esses bens. A relevância da participação da
sociedade, com sua memória local, na validação do patrimônio é salientada em
inúmeros momentos do texto, como o trecho abaixo exemplica:
É preciso ressaltar a relevância dessa participação constante dos
interessados na preservação da área, imprimindo no parecer téc-
nico o registro de sua memória e possibilitando reconstituir his-
toricamente, através das suas lembranças, a utilidade especíca
de cada equipamento ou edicação (inclusive de muitas que já não
existem mais) no espaço da fábrica e a vida no interior das vilas
operárias (DPH, 1992b, n.p).
Durante a pesquisa, a equipe do DPH deu suporte às chamadas Oci-
nas de Memória, como foi denominada a série de encontros realizados com os
moradores do bairro e ex-trabalhadores da fábrica de cimento de Perus. As
ocinas, demandadas pela Associação dos Aposentados da Fábrica de Cimento
Perus, seguiu a metodologia dos projetos de memória do DPH, coordenados
por Maria Célia Paoli, e alinhados aos objetivos da cidadania cultural. Segundo
o DPH:
O projeto de memória é destinado a grupos, instituições, movi-
mentos sociais, entidades e pessoas interessadas em suas histó-
rias, preocupadas em atender e documentar a trajetória de vida,
inaugurando uma prática de compreensão de seu presente e de
uma relação modicada com o seu passado.
O objetivo de se desenvolver os projetos de memória é de procu-
rar estabelecer uma prática que privilegie a constituição de novos
acervos sobre a memória paulistana, a partir de uma perspectiva
que evita tanto um estilo acadêmicos, como um estilo de inter-
venção diretiva da memória popular. (DPH, 1992b: n.p).
A realização dessas Ocinas de Memória, além de constituir em opor-
tunidades para a obtenção de informações sobre os usos dos imóveis e equi-
pamentos, era entendida pela equipe do DPH como uma prática que deveria
ser incorporada na metodologia de trabalho para identicação do patrimônio
cultural da cidade:
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Colher depoimentos de cidadãos anônimos signicou reconhecê-
-los como testemunhos da sua existência social na cidade de São
Paulo, tanto quanto aqueles oferecidos pela documentação ocial
(como a legislação ou documentos registrados em cartórios, por
exemplo), considerados até há pouco tempo, as únicas fontes -
dedignas para a história.
Incorporava-se na nossa prática de trabalho uma das linhas mes-
tras da atuação do DPH no que se refere ao incentivo à partici-
pação de grupos ou movimentos organizados na denição do que
deve ou não ser preservado na cidade de São Paulo (DPH, 1992b:
n.p).
Recorrer à oralidade, como metodologia de pesquisa para subsidiar
processos de tombamento, não signicava uma mera sosticação das fontes e
dos métodos de pesquisa. Tratava-se, sobretudo, de considerar que nos rela-
tos de moradores e antigos trabalhadores se encontravam razões históricas e
vínculos afetivos para a valorização de bens móveis e imóveis como patrimônio.
Partindo do pressuposto de que o patrimônio não é identicado pela coisa
em si, mas pelo valor ou pelo signicado histórico-cultural e afetivo que lhe
é atribuído por uma dada coletividade, os depoimentos de moradores e tra-
balhadores eram assumidos como essenciais no processo de identicação do
patrimônio cultural:
A vila Triângulo é uma imagem forte para os ex-trabalhadores
da fábrica de cimento Portland Perus, até mesmo para quem não
morou lá. Havia uma estreita vinculação entre a fábrica e a vila que
a caracterizava como um espaço de convivência dos trabalhadores
que expressam vínculos afetivos intensos com o local. A vida ali
emerge como um oásis de tranquilidade e bem estar (DPH, 1992b:
n.p).
De acordo com o relatório, o alvo do tombamento era as edicações
que foram construídas ou ressignicadas em decorrência da fábrica de cimento
que, na história da região, desenvolvia a atividade motor que mobilizava a po-
pulação e reorganizava o espaço. O relatório apoiava-se em dois argumentos
centrais para justicar o tombamento. O primeiro, enfatizava a importância das
edicações enquanto referências às memórias dos ex-operários e moradores
do bairro. O segundo, apontava a relevância das edicações para a história da
industrialização brasileira, bem como a singularidade de alguns conjuntos de
imóveis, do ponto de vista arquitetônico. Esses dois argumentos cam eviden-
tes na conclusão do relatório:
Por tudo que vimos armando até aqui consideramos que o tom-
bamento da fábrica e unidades de apoio, vilas operárias, edifícios
destinados à assistência médica e outros serviços, os casarões da
administração […], impõe-se como forma de garantir os suportes
físicos que permitam a preservação da memória de seus ex-tra-
balhadores e recompor os traços de sua vida passada e também
face a importância deste complexo industrial para a história da
industrialização brasileira (DPH, 1992b: n.p).
Na carta de envio dos pareceres técnicos do DPH, Walter Pires, então
chefe da Seção Técnica de Crítica e Tombamento, elenca seis justicativas para
o tombamento, sendo os dois primeiros referentes a importância dos bens
estudados para a comunidade local:
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a. A apropriação profunda e afetiva do conjunto de espaços de
produção e habitação que denem aquela fábrica pela comunidade
local;
b. Preservação da memória de importante movimento social –
dos operários da antiga fábrica de cimentos Perus – que poderá
ser reforçada através da implantação de um Centro de Cultura no
local e concretizada com a preservação física da área através do
tombamento; (…) (PIRES, 1992: n.p).
As justicativas seguintes de valoração, segundo o documento, refe-
riam-se à diversidade arquitetônica e tecnológica dos edifícios, à importância
histórica e tecnológica da ferrovia; ao pioneirismo da fábrica de cimento; e, por
último, ao fato de as casas das vilas residenciais serem as primeiras erguidas no
Brasil com uso de blocos de concreto (PIRES, 1992).
A chefe da Divisão de Preservação, Leila Regina Diêgoli (1992: n.p), por
sua vez, resume em apenas três pontos a justicativa de tombamento, seguindo
a mesma linha argumentativa do relatório nal do DPH e de Walter Pires. Para
ela, o tombamento da área seria importante para a “preservação de memória
do movimento operário”, para a “preservação dos testemunhos físicos do pro-
cesso de produção de cimento da primeira fábrica implantada com sucesso no
Brasil” e, por m, com vistas à “preservação das primeiras edicações construí-
das com bloco de concreto”. A importância patrimonial se relacionaria, portan-
to, à memória local, à história industrial e à técnica de construção. A disposição
desses três argumentos põe em evidência uma fundamentação teórica e de
condução de política patrimonial que difere signicativamente do modelo que
tradicionalmente orientava os processos de patrimonialização na cidade de São
Paulo, por considerar em primeiro lugar as pessoas diretamente impactadas
pelo bem tombado. O parecer carrega consigo, ainda, uma tradição de trabalho
do DPH, por ter especial atenção à herança industrial – preocupação presente
nos preceitos do patrimônio ambiental urbano – e por registrar os modos de
construção – prática que remete aos primeiros tombamentos realizados na
cidade com os ex-ofício.
O interesse pelo conjunto, de acordo com a resolução que decretou
o tombamento16, se deu pelo “valor histórico, social e urbanístico” da antiga
companhia de cimento, pela “importância da memória enquanto alicerce na
construção da história e a relevância da memória dos trabalhadores da CBCPP
enquanto símbolo de determinada forma de organização, luta e resistência dos
trabalhadores”, bem como pela “importância dos equipamentos remanescen-
tes dessa indústria para a história da tecnologia na cidade de São Paulo” (CON-
PRESP, 1992). A memória dos trabalhadores da fábrica, portanto, gura entre
os motivos centrais para a justicativa do tombamento, o que nos modelos
tradicionais não era enfatizado.
Módulo de encerramento
Como vimos, tanto a exposição Pátria Amada Esquartejada, quanto o
estudo para tombamento do bairro Perus, conguram trabalhos que, de uma
forma ou outra, se beneciaram de uma orientação técnica encontrada ao lon-
go da trajetória do DPH, ao mesmo tempo que apontaram para uma novidade
explicitada no conceito de cidadania cultural.
16 Os termos do tombamento continuam vigorando, apesar de alterações nas seleções dos bens, o que
ocorreu com a revisão do tomba-mento, denida pela resolução do CONPRESP nº 19, de 2004.
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No caso da exposição, fazendo uso de instrumentos museais que mar-
caram a história do órgão, como os outrora utilizados nos projetos Museu
de Rua e Museu Comunidade, o DPH propôs uma abordagem das efemérides
capaz de gerar um espaço de debate sobre a história nacional por meio do
qual os visitantes, em sua condição de cidadão, atuassem como pessoas aptas
a pensar sobre a cidade e a problematizar criticamente a ordem sociopolítica
estabelecida.
No caso do estudo de tombamento, a tradição do DPH com os Igepacs e
a incorporação do conceito de patrimônio ambiental urbano permitiram de-
senvolver uma abordagem que, ao estabelecer conexões orgânicas entre bens
culturais de distintas tipologias, congurou-os enquanto conjunto a ser tomba-
do. Todavia, a inovação metodológica do DPH nesse período consistia em dar
ênfase ao que a sociedade tem a dizer sobre os bens, assim como no registro
documental da relação entre os bens a serem tombados e a história coletiva e
individual. Enm, isso só se tornou possível a partir do momento em que a po-
lítica cultural entendia o morador e o trabalhador enquanto cidadãos, ou seja,
como sujeitos centrais na identicação do patrimônio.
A implantação do conceito de cidadania cultural de Chauí como eixo
fundamental da nova política cultural do município favoreceu para que os técni-
cos do DPH colocassem em prática, de maneira original, conceitos já presentes
em sua tradição de trabalho. Permitiu a eles, ainda, uma avaliação crítica de
seus papéis na sociedade, de forma a se perceberem enquanto sujeitos no for-
talecimento da cidadania cultural, por meio do exercício de um trabalho que
não era apenas tecno-burocrático, mas principalmente um modo de intervir
politicamente no contexto social urbano.
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