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A Interculturalidade no ensino de Português como Língua de
Acolhimento: estudo de caso em um curso de extensão para imigrantes
e refugiados
Interculturality in teaching Portuguese as a Welcoming Language: case
study in an extension course for immigrants and refugees
Paloma Aparecida Wammes1
Carina Fior Postingher Balzan2
Resumo
Este trabalho se propõe a analisar de que forma a interculturalidade se manifesta no processo de ensino e aprendizagem de
Português como Língua de Acolhimento (PLAc) em um curso de extensão de Língua Portuguesa para imigrantes e refugiados
no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Bento Gonçalves. A interculturalidade,
na educação, pressupõe uma troca entre culturas pautada pelo respeito às diferenças e pelo reconhecimento da equivalência
de direitos entre os sujeitos. Em um contexto de ensino de PLAc, ancorar a prática docente na interculturalidade torna-se
imprescindível para a integração dos sujeitos à sociedade brasileira. A pesquisa qualitativa, de caráter etnográfico, realizou-se
a partir de um estudo de caso, em que foram observadas trinta aulas do referido curso ao longo do ano de 2023. A partir dos
resultados, foi possível verificar a ocorrência de associações, suscitadas pelos próprios participantes, entre os conteúdos
ministrados pelos professores e aspectos linguísticos, culturais e históricos do país de origem dos estudantes. Verificou-se que
a abertura para o diálogo e a interação entre os participantes é condição imprescindível para as trocas entre diferentes
culturas, evidenciando que a prática docente favoreceu a interculturalidade no contexto de ensino observado.
Palavras-chave: Português como Língua de Acolhimento (PLAc). Imigrantes e refugiados. Interculturalidade.
Abstract
This work aims to analyze how interculturality manifests itself in the process of teaching and learning Portuguese as a
Welcoming Language in a Portuguese Language extension course for immigrants and refugees at the Federal Institute of
Education, Science and Technology of Rio Grande do Sul - Bento Gonçalves Campus. Interculturality, in education,
presupposes an exchange between cultures based on respect for differences and recognition of the equivalence of rights
between subjects. In a PLAc teaching context, anchoring teaching practice in interculturality becomes essential for the
integration of subjects into Brazilian society. The qualitative research, of an ethnographic nature, was carried out based on a
case study, in which thirty classes of the course were observed throughout the year 2023. Based on the results, it was possible
to verify the occurrence of associations, raised by the participants themselves, between the content taught by teachers and
linguistic, cultural, and historical aspects of the students' country of origin. It was found that openness to dialogue and
interaction between participants is an essential condition for exchanges between different cultures, showing that teaching
practice favored interculturality in the observed teaching context.
Keywords: Portuguese as a Welcoming Language. Immigrants and refugees. Interculturality.
1 Introdução
O Brasil se destaca no quesito migrações transnacionais no século XXI (Baeninger; Peres, 2017),
sendo um dos países aos quais mais se direcionam imigrantes e refugiados em condição de
1 Licencianda em Letras - Língua Portuguesa. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
(IFRS), Campus Bento Gonçalves, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0001-5895-5155.
E-mail: palomawames2000@gmail.com.
2 Doutora em Letras. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Bento
Gonçalves, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5127-1471. E-mail:
carina.balzan@bento.ifrs.edu.br.
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vulnerabilidade ou crise humanitária (Camargo, 2019). Um dos motivos pelos quais o país se destaca é a
disposição de duas importantes leis para a legislação migratória que facilitam a inserção do imigrante em
território brasileiro e são consideradas bastante avançadas em âmbito internacional (Claro, 2020): a Lei
de Migração (n. 13.445/2017) e a Lei do Refúgio (n. 9.474/1997).
De acordo com o Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGRA), baseado nos registros
de solicitação de residência e de reconhecimento da condição de refugiado, entre 2011 e 2020, estima-se
que estavam residindo no Brasil cerca de 1,3 milhão de imigrantes, em sua maioria venezuelanos e
haitianos (SISMIGRA, 2020). Esse quantitativo de pessoas implica não somente uma reorganização
social para atender às suas demandas, mas também a necessidade de se pensar uma educação voltada
a esse público, principalmente no que diz respeito ao ensino da Língua Portuguesa.
Apesar da existência de leis que assegurem o refúgio e, supostamente, o “acolhimento” para os
imigrantes e refugiados que para cá se direcionam, ainda há grandes lacunas a serem preenchidas em
relação às ações governamentais. O que se pode verificar no cotidiano da maioria dos municípios é que o
acolhimento e a socialização dos imigrantes têm ocorrido por meio de entidades sociais, como
organizações não governamentais (ONGs), grupos religiosos e a sociedade em geral (Bizon; Camargo,
2018). Essas instituições auxiliam os recém-chegados, orientando-os para que consigam uma moradia
inicial, alimentação, vestuário, assistência médica e inserção no mercado de trabalho (Amado, 2014).
A grande maioria dos imigrantes que busca refúgio e acolhimento no Brasil o faz em condições de
vulnerabilidade e/ou crise humanitária (Camargo, 2019), sendo comum que o processo de migração
ocorra sem planejamento prévio e sem nenhum contato anterior com a Língua Portuguesa. Dessa forma,
essas pessoas chegam ao país desconhecendo a língua, a cultura e os costumes, em total situação de
desamparo.
Em razão da necessidade do ensino de língua direcionado a esse público, tem se firmado, em
universidades públicas e em outras instituições de ensino superior, a modalidade de ensino denominada
Português como Língua de Acolhimento (PLAc) (Pedrassani et al., 2021). O PLAc tem por público-alvo
imigrantes e refugiados provenientes de outros territórios, em geral em situação de instabilidade e
precariedade econômica, política ou social. É uma população para a qual as condições de sobrevivência
no país de origem são pessimistas e a possibilidade de uma vida segura e estável é praticamente nula
(Amado, 2014).
Pensar no processo de ensino para imigrantes e refugiados implica, assim, atentar a esse novo
contexto e buscar conhecer aspectos sociais e linguísticos de diferentes culturas. Também é relevante
considerar o percurso de vida de cada sujeito, realizado antes e no decorrer do processo migratório. Além
disso, o ensino de PLAc necessita de profissionais que se interroguem constantemente a respeito das
práticas identitárias dos sujeitos imigrantes, das línguas que falam e das relações estabelecidas por eles
nos diferentes territórios, a fim de conceber a metodologia de ensino mais adequada (Lopez; Diniz, 2018).
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A relação entre duas ou mais culturas pode ser definida como interculturalidade, de acordo com o
Dicionário Aulete Digital (2023). Canclini (2004) aprofunda a relação desse conceito com dois outros
termos de igual importância: confrontação e entrelaçamentos. A ideia do confronto está implícita no
contato inicial entre duas culturas, contato em que costumam também haver conflitos. O entrelaçamento
ocorre com o estabelecimento de uma relação e do intercâmbio, a partir dos quais decorrem as
negociações e os empréstimos culturais. Nesse sentido, Canclini (2004) enfatiza a necessidade da
interculturalidade nas práticas docentes para que se mantenham os valores referentes aos
pertencimentos étnicos, grupais e nacionais. A manutenção desses valores somados ao conhecimento e
à aprendizagem das diferenças possibilita a aplicação prática dos direitos humanos.
Diante do exposto, emerge o seguinte problema de pesquisa: “Como a interculturalidade se
manifesta no processo de ensino e aprendizagem de PLAc?”. Para responder a tal questão, a pesquisa,
de caráter qualitativo e de cunho etnográfico, realizou-se a partir de um estudo de caso em que foram
observadas trinta (30) aulas em um contexto de ensino e aprendizagem de PLAc. As observações foram
realizadas ao longo do ano de 2023 em duas turmas do Curso de Extensão Língua Portuguesa para
imigrantes e refugiados no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
(IFRS), Campus Bento Gonçalves.
As pesquisas relacionadas às migrações forçadas no Brasil ainda estão em fase inicial, o que
demanda um aprofundamento teórico e investigativo sobre as práticas sociais desses sujeitos no país de
acolhimento. É sabido que as condições de vida de imigrantes e refugiados no Brasil, de forma geral, é
precária, e, em decorrência disso, sua cultura e sua trajetória de vida acabam sendo desvalorizadas em
virtude de preconceitos étnicos e raciais. Pesquisar como se manifesta a interculturalidade no processo
de ensino e aprendizagem de PLAc significa valorizar as raízes culturais desses povos, seus
conhecimentos prévios, suas línguas, e, mais que isso, dar visibilidade às suas vozes e oportunidade
para que exerçam sua cidadania no novo território.
Apresenta-se, na sequência, uma discussão sobre as leis de migração e refúgio no Brasil, a
conceituação de PLAc e interculturalidade, o percurso metodológico da pesquisa e a análise de dados,
além das considerações finais.
2 A imigração no Brasil e as leis de imigração e refúgio
O Observatório das Migrações Internacionais (OBMIGRA, 2021) contabilizou, entre os anos de
2011 a 2020, a quantia de 172.306 venezuelanos e de 149.085 haitianos dentre os solicitantes de
residência temporária e permanente. Apenas no ano de 2021, a quantidade de imigrantes em território
brasileiro chegou a 151.155 pessoas.
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O Haiti, país mais pobre da América, possui um passado marcado pela violência, pela
desigualdade social e pela instabilidade política desde o início de sua formação. O país, cuja
independência ocorreu em 1804, tornando-se a primeira república negra do mundo, enfrentou ditaduras,
golpes de estado, violência e boicote (Moraes; Andrade; Mattos, 2013). Além de toda a instabilidade
sociopolítica, o Haiti é alvo de constantes catástrofes naturais. Em 2010, enquanto ainda se recuperava
dos três furacões que o havia atingido no ano anterior, um terremoto de grande magnitude devastou o
país (Giraldi, 2011). A desesperança que assola o Haiti desde então faz com que milhares de pessoas
optem pela emigração, direcionando-se a países como o Brasil (Moraes; Andrade; Mattos, 2013).
A Venezuela também vivencia um cenário político de extrema instabilidade. O país, que possui
como presidente Nicolás Maduro, teve, no passado, eleições democráticas. Entretanto, o que
anteriormente ocorreu como democracia transformou-se em um regime político avaliado por muitos como
autoritário, caracterizado por crescentes tensionamentos econômicos, políticos e sociais (López Maya,
2016). Motivados por questões econômicas e pelo atual cenário de instabilidade política e social, uma
parcela significativa de venezuelanos optou por emigrar para outros países. A Agência da ONU para
Refugiados (ACNUR, 2023) estima que haja mais de 5,4 milhões de refugiados e imigrantes da
Venezuela ao redor do mundo.
Diante desse cenário, o Estado brasileiro atua em prol da população imigrante e refugiada com
uma regulamentação considerada uma das mais avançadas em âmbito internacional (Claro, 2020). As
leis que mais se destacam são a Lei da Migração (13.445/2017) e a Lei do Refúgio (9.474/1997).
A Lei da Migração é regida por amplos princípios, dentre os quais cabe ressaltar os incisos VI, X e
XIII do Art. 3º. O artigo em discussão prevê questões essenciais para o imigrante que adentra o território
brasileiro, tais como a acolhida humanitária, sua inclusão social, laboral e produtiva por meio de políticas
públicas e o diálogo social que promova a participação cidadã do imigrante (Brasil, 2017).
Vislumbra-se, nesses três incisos, uma boa sustentação para o acolhimento imigrante.
Entretanto, apesar dos avanços governamentais em relação à legislação, verifica-se que ainda há
lacunas relacionadas às ações, uma vez que a acolhida e a socialização têm sido realizadas por
organizações não governamentais (ONGs), por grupos religiosos e pela sociedade em geral. A acolhida
humanitária, assim como a inclusão social, laboral e produtiva previstas em lei têm sido mérito, portanto,
da sociedade civil (Bizon; Camargo, 2018).
O inciso XIII dessa mesma lei (Brasil, 2017) tem, entre seus princípios, a necessidade de um
diálogo social que busque promover a participação cidadã do imigrante. Entende-se por participação
cidadã o exercício dos direitos civis, políticos e sociais, tais como participar da tomada de decisões
democráticas, ter direito à educação, ao trabalho e à saúde, riquezas coletivas. Um dos obstáculos,
entretanto, que impede ao imigrante o acesso a esses direitos é o domínio da Língua Portuguesa, visto
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que, como é comum nos deslocamentos forçados, esses sujeitos chegam ao país sem nenhum contato
prévio ou conhecimento do Português.
A Lei do Refúgio (9.474/1997) determina os requisitos para o reconhecimento da condição de
refugiado no Brasil. O refúgio é uma condição legal de proteção internacional, que é necessária em caso
de risco para a vida ou para a integridade física do sujeito. O refugiado residente em Estado brasileiro, de
acordo com o Art. 5º, gozará de direitos e estará sujeito aos deveres dos estrangeiros no Brasil. Tais
direitos e deveres constam na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no Protocolo sobre
o Estatuto dos Refugiados de 1967. Cabe ao refugiado acatar o regulamento, as leis e as providências
tomadas em prol da manutenção da ordem pública.
Além das leis de Migração e do Refúgio, é importante citar a Portaria Interministerial n. 9, do
Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério das Relações Exteriores, instaurada no Brasil
no ano de 2022. A Portaria tem por objetivo complementar o que já prevê a Lei da Migração de 2017,
resultando em uma maior abertura humanitária aos haitianos que vivenciam uma situação de
precariedade no país de origem e buscam, em outros países, alcançar melhores condições de vida. Seus
incisos “dispõe[m] sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de
acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou
situação de desastre ambiental na República do Haiti” (Brasil, 2022).
3 O Português como Língua de Acolhimento e a interculturalidade
O Português como Língua de Acolhimento (doravante PLAc) é o ensino da Língua Portuguesa
destinado a imigrantes e refugiados adultos que provêm de regiões em situação de vulnerabilidade
política, econômica ou social. Para esses sujeitos, não há possibilidade de sobrevivência ou mesmo de
uma vida segura no país de origem, o que resulta na necessidade da migração forçada (Amado, 2014).
Lopez e Diniz (2018), na mesma linha, conceituam o PLAc como uma ramificação da subárea de
Português como Língua Adicional (PLA) que se dedica à pesquisa e ao ensino de Português para
pessoas em situação de deslocamento forçado. Frente à falta de conhecimentos prévios dos imigrantes
acerca do Português, o objetivo do PLAc é produzir e difundir a língua de forma a auxiliar na inserção
desses sujeitos no país de acolhimento.
O PLAc, nessa perspectiva, não pode ser visto como uma mera “adaptação” de saberes já
produzidos para um novo contexto de ensino-aprendizagem (Lopez; Diniz, 2018). Muito pelo contrário, o
ensino de PLAc demanda dos professores e pesquisadores constantes questionamentos sobre quem são
os sujeitos imigrantes que necessitam aprender a língua, que relações eles estabelecem “com os
diferentes territórios e línguas que (os) constituem e como se pode dar o ensino de Português a esse
público” (Lopez; Diniz, 2018, p. 4).
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Diante disso, o ensino de PLAc engloba o aprendizado de aspectos culturais e de convenções
sociais da comunidade em que o imigrante está inserido. Para o imigrante, esse aprendizado é
fundamental para que se integre e reconstrua sua cidadania no novo país: “Desenvolver competência na
língua, neste contexto, está relacionado muito mais a interações e inserções sociais, do que puramente
saber utilizar corretamente o sistema linguístico” (Pedrassani et al., 2021, p. 26).
Allegro (2013, p.14) afirma que “o processo de ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira
ou língua segunda está profundamente relacionado ao desenvolvimento da competência intercultural,
pela estreita relação que existe entre língua materna e identidade”. O PLAc, como aprendizagem de uma
nova língua, se insere nesse conceito. A autora considera ainda que utilizar uma abordagem intercultural
junto aos alunos significa apresentar a eles conteúdos que vão além de estudos gramaticais, funcionais
ou culturais. A interculturalidade, mais do que apresentar tais conhecimentos e destrezas, “fomenta um
conjunto de valores e atitudes destinados a formar falantes e intermediários culturais” (Allegro, 2013, p.
15).
Ainda sobre a interculturalidade, Canclini (2004) aponta estar diretamente associada às ideias de
confrontação e entrelaçamentos. A essas ideias podemos atribuir o sentido do confronto/diálogo inicial
entre duas culturas e, a partir disso, o vínculo criado entre elas. Atribuímos, ademais, ao entrelaçamento
a ocorrência dos empréstimos culturais, cada vez mais frequentes devido à globalização.
Uma abordagem educacional intercultural emerge de uma pedagogia decolonial. Entendemos,
aqui, a proposta decolonial como uma visão pautada no pensamento crítico, originada a partir de sujeitos
marginalizados pela modernidade. Trata-se, de modo simultâneo, de um empreendimento
epistemológico e político que, ao ser adotado, pode auxiliar a mitigar desigualdades e desafiar a estrutura
de poder colonial (Mignolo, 2017). Nessa perspectiva, a decolonialidade é entendida como uma busca
por reconhecer tanto a nós mesmos quanto ao mundo, por meio das narrativas, experiências e maneiras
de pensar, agir, sentir e existir que foram reprimidas e desautorizadas pelo colonialismo. A pedagogia
decolonial integrada ao ensino de PLAc não tem como objetivo fazer o aprendiz esquecer quem ele é e de
onde vem, mas, sim, lembrar a sua trajetória, valorizar a sua cultura e, por meio do ensino de língua,
desenvolver habilidades linguísticas para prevenir e/ou superar situações de vulnerabilidade (Reinoldes;
Amado, 2021).
Um ensino que se diz intercultural, assim, tenciona contribuir para a superação do medo em
relação ao diferente, cultivando a tolerância ante o “outro”. Tal ensino tem por objetivo construir nos
sujeitos uma consciência positiva diante da pluralidade social e cultural que se vive atualmente. Trata-se,
na realidade, de desenvolver uma perspectiva baseada no respeito às diferenças e no reconhecimento da
equivalência de direitos (Fleuri, 2003).
Em uma perspectiva intercultural, objetiva-se conhecer o “outro” e as suas percepções acerca do
mundo. Isso significa conhecer a sua história, as suas formas de expressão e a sua cultura, promovendo
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os sujeitos a atores do processo de aprendizagem de uma nova língua. Possibilitar a aprendizagem de
uma nova língua significa ofertar acesso ao conhecimento de seus direitos, à participação política e ao
exercício pleno da cidadania (Miranda; Fernandes, 2022).
Para efetivar a interculturalidade, no entanto, não é suficiente apenas a coexistência entre os
membros da sociedade. A garantia dos direitos fundamentais de cada um depende, mais do que da
tolerância, do convívio em comunidade em igualdade de condições. Canclini (2004) argumenta que a
aceitação da diversidade implica em articular a diferença com a conexão, de forma a abranger o
conhecimento do “outro” no processo de ensino, aprendendo a lidar com as diferenças. Para isso,
ressalta-se a necessidade das práticas interculturais em sala de aula que levem em consideração as
identidades étnicas, grupais e nacionais na aprendizagem, pois isso possibilita, em última instância, a
garantia dos direitos humanos.
4 Percurso metodológico
Esta pesquisa de caráter qualitativo e etnográfico configura-se como um estudo de caso. O
procedimento metodológico consistiu inicialmente no aprofundamento teórico sobre os conceitos de
PLAc e interculturalidade com base em estudiosos e pesquisadores do tema. Em seguida, a coleta de
dados se deu por meio da observação de trinta aulas em um contexto de ensino e aprendizagem de PLAc
e registro em diário de campo. As aulas foram observadas ao longo de todo o ano de 2023, em duas
turmas do Curso de Extensão de Língua Portuguesa para imigrantes e refugiados no IFRS - Campus
Bento Gonçalves, sendo uma turma no primeiro semestre e outra no segundo semestre. No primeiro
semestre, as aulas foram ministradas por estudantes-estagiários do Curso de Licenciatura em Letras, sob
a supervisão dos professores do componente curricular Estágio Supervisionado - Projetos de Extensão;
no segundo semestre, quem ministrou as aulas foi uma docente efetiva da área de Letras da instituição.
As turmas, com uma média de 35 alunos cada, eram compostas majoritariamente por estudantes
haitianos e venezuelanos.
O IFRS - Campus Bento Gonçalves, consciente das demandas da sociedade, oferece
gratuitamente, desde o ano de 2013, cursos de extensão voltados a imigrantes e refugiados. Em 2018, a
proposta do curso passou por uma “reformulação teórica e metodológica com base na perspectiva de
língua de acolhimento” (Balzan; Kanitz, 2020, p. 277). O curso ocorre no período noturno e possui carga
horária de 30 horas. Semanalmente, os alunos participam presencialmente, das 18h30min às 20h, de
uma aula que tenciona desenvolver habilidades e competências linguísticas, sociais e culturais que os
auxiliem no processo de integração à comunidade em que estão inseridos. As aulas utilizam como
recurso didático apresentações de power point em que podem ser apresentadas imagens associadas ao
vocabulário, a fim de facilitar a compreensão por parte dos alunos, além de materiais autênticos, como
textos de diversos gêneros, e materiais didáticos elaborados pelos próprios professores.
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O conteúdo programático do curso aborda uma ampla variedade de conteúdos de modo a
privilegiar as necessidades comunicativas dos estudantes. Dentre os conteúdos ministrados, citam-se:
apresentação pessoal e saudações; localização no tempo e no espaço; constituição familiar; corpo
humano e atendimento médico; números e horas; trabalho e lazer; moradia e vestimentas; meios de
transporte; moeda brasileira e uso do dinheiro. A cada aula são apresentados novos vocábulos e
estruturas frasais referentes aos conteúdos abordados.
Durante o estudo de caso, buscou-se, conforme os objetivos da pesquisa: i. identificar as trocas
culturais entre alunos e professores no contexto de ensino e aprendizagem do PLAc; ii. verificar se
ocorrem associações entre o conteúdo ministrado e aspectos socioculturais e linguísticos do país de
origem dos imigrantes; e iii. averiguar se a metodologia de ensino do professor favorece a
interculturalidade em sala de aula. Dessa forma, o corpus da investigação foi construído por meio de um
diário de campo, no qual foram realizadas notas para posterior análise e interpretação. Por fim, os dados
foram examinados sob o viés da análise de conteúdo de Bardin (2016), organizados em três categorias:
aspectos linguísticos; aspectos culturais; e aspectos históricos.
5 Resultados e discussão
5.1 Como a interculturalidade se manifesta nas aulas
O processo de ensino e aprendizagem de PLAc pressupõe a abordagem de conteúdos que vão
além do ensino da Língua Portuguesa. Assim, o conteúdo ministrado aborda não somente aspectos
linguísticos, mas leva em consideração as necessidades comunicativas dos alunos e, para além disso,
“fomenta um conjunto de valores e atitudes destinados a formar falantes e intermediários culturais”
(Allegro, 2013, p. 15).
Diante dessa perspectiva e a fim de discutir a questão da interculturalidade no ensino de PLAc,
salienta-se a necessidade de compreender o conceito de cultura. Maher (2007, p. 261) define que “a
cultura é um sistema compartilhado de valores, de representações e de ação: é a cultura que orienta a
forma como vemos e damos inteligibilidade às coisas que nos cercam: e é ela que orienta a forma como
agimos diante do mundo e dos acontecimentos”. Dessa forma, quando duas ou mais culturas entram em
contato, o que é comum ocorrer no contexto de ensino de PLAc, é necessário um olhar intercultural, tendo
em vista o objetivo de conhecer o “outro” e as suas percepções acerca do mundo e sobre o que o constitui
(Miranda; Fernandes, 2022).
Visando fomentar um contexto de ensino e aprendizagem intercultural, a metodologia
desenvolvida nas aulas de PLAc deve potencializar o diálogo em sala de aula. Nesse sentido,
averiguamos que os professores que ministraram aulas nas turmas do Curso de Língua Portuguesa para
imigrantes e refugiados no IFRS Campus Bento Gonçalves, além de desenvolverem os conteúdos
previstos, abordando aspectos essenciais à inserção do imigrante na comunidade, favoreceram também
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a prática intercultural. A efetivação da interculturalidade se realizou a partir das interações entre alunos e
professor e entre os próprios alunos, por meio de diálogos e proposição de temáticas que geraram
questionamentos e reflexões a respeito do Brasil e do país de origem dos estudantes. Ao longo das aulas,
destacaram-se as interações que permitiram visualizar a interculturalidade relacionada a aspectos
linguísticos, aspectos culturais e aspectos históricos, sobre os quais trataremos a seguir.
5.2 Aspectos linguísticos
Incorporar as línguas dos imigrantes ao contexto de ensino e aprendizagem de PLAc é uma
forma de viabilizar o acolhimento e promover um ensino que valoriza a diversidade linguística dos
estudantes. Para que isso aconteça, desenvolvem-se situações de associação de sentidos a partir da
apresentação de um repertório linguístico multissemiótico, o que pressupõe a presença de linguagem
verbal e não verbal (Anunciação; Camargo; Lopez, 2021).
No contexto de ensino observado, a abordagem dos conteúdos se pautou pela apresentação do
vocabulário associado a imagens, geralmente com uso de apresentações de power point. A cada
conteúdo abordado, os estudantes eram incentivados a falarem sobre aspectos relacionados ao seu país
de origem. O incentivo ocorria por meio de perguntas e questionamentos direcionados aos alunos. Essa
metodologia desencadeou momentos significativos de interação entre professor e estudantes,
propiciando trocas linguísticas e culturais entre os participantes.
Foi possível perceber, nessas ocorrências, uma associação entre as línguas, tanto pela
similaridade quanto pela diferença, ou seja, uma das estratégias que os estudantes utilizaram para
assimilar a Língua Portuguesa foi associar a palavra em Português com a correspondente na sua língua
materna.
No Quadro 1 podemos visualizar algumas palavras com proximidade fonética ou origem
etimológica comum que foram mencionadas ao longo das aulas.
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BRASIL HAITI VENEZUELA
fígado foie hígado
peixe pwason pescado
restaurante restaurant restaurante
hospital lopital ou hôpital hospital
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Quadro 1- Palavras com origem comum e proximidade fonética
Fonte: elaborado pelas autoras.
A palavra “fígado” deriva do latim tardio ficatum, propriamente recheado de figo, decalque do
grego sykoton, termo culinário. Ambos os termos suplantaram os clássicos jecur em latim e hepar em
grego, passando “ficatum” às línguas românicas. Por deriva linguística, em espanhol, a forma tornou-se
hígado, e em francês foie
A palavra “peixe” provém do latim piscem (Bueno, 1968), termo do qual decorrem as palavras em
Português “pisciano” e “piscina”. Ao analisarmos as palavras “pwason” em crioulo haitiano, e “pescado”
em espanhol, temos a seguinte transcrição fonética [‘pexe], [pes'kaðo] e [pwa’sõ]. Um ponto a ser
ressaltado é que a proximidade fonética das palavras deriva ou é causada pela sua origem etimológica.
“Restaurante” deriva do francês restaurant. A origem vem da forma latina restaurantem, que se
origina do verbo restaurare
Da mesma forma percebemos a palavra “hospital”, em que notamos pouca diferença na escrita
de ambas as línguas. Hospital, do latim hospitalis, é um mero adjetivo que foi substantivado (Bueno,
1968). A escrita da palavra “hospital” em Português, espanhol e francês é similar, porém a pronúncia
difere em cada uma das línguas. Enquanto na Língua Portuguesa temos [ospi’taw], em espanhol temos
[ospi’tał], e em francês [upi’tał]. É possível notar, na palavra “hospital” em espanhol e em francês, a
ocorrência do fenômeno de velarização em que, ao invés de pronunciarmos o “l” ao fim de sílaba como “u”
- como ocorre na maioria dos dialetos do Português - o pronunciamos levantando a parte posterior da
língua em direção ao véu do palato, enfatizando o “l”.
Notou-se, nas aulas observadas, que a proximidade dos sons ou da escrita de palavras da
Língua Portuguesa com a língua materna dos estudantes facilitava a aprendizagem. Quanto maior a
proximidade, mais facilmente os vocábulos eram associados, afirmação que é sustentada pelo fato de os
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(Bueno, 1968), de forma que temos pela transcrição fonética, [‘figadu], ['iaðo] e [‘fwa].
(Bueno, 1968). Diz-se de tudo o que pode servir de fortificante, especialmente dos alimentos. A palavra, cuja pronúncia em Português é [hestaw’ãt] “restauranti”, é pronunciada em espanhol sem a palatalização da sílaba final e com a utilização do “r” mais forte, também denominado vibrante múltipla, de forma que possuímos [restaw’ante]. Ressalta-se, ademais, a palavra em francês, cuja escrita é bastante similar a do Português: “restaurant”. Algo a se notar, entretanto, é que apesar da escrita ser próxima a do Português, a pronúncia é bastante distinta, sendo, aproximadamente, [xesto’xã] “restoran”.
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próprios estudantes ressaltarem a semelhança entre as palavras, mencionando as palavras da sua língua
materna para compará-las com o Português.
Além das associações lexicais entre a Língua Portuguesa e a língua materna dos estudantes,
houve também reflexões a respeito dos fonemas de algumas palavras. Um casal de alunos
venezuelanos, durante uma aula, realizou questionamentos bastante relevantes a respeito da palavra
“chá”. A palavra “chá” foi associada por eles à palavra “chimarrão”, ocorrência que se desenrolou pela
semelhança entre os fonemas iniciais das palavras. A equivalência sonora torna-se bastante visível
através da transcrição fonética, em que temos [‘ a] e [ ima’rãw]. Ao longo da aula, os alunos aindaʃ ʃ
refletiram a respeito das diferentes formas de se pronunciar a palavra “vinte”, observando que algumas
pessoas a pronunciam palatalizando o final da palavra, enquanto outras não, de forma que temos [‘vĩt ],ʃɪ
associado por eles à expressão gaúcha [‘t e] (tchê), e [‘vĩte]. Essas associações linguísticasʃ
possibilitaram aos imigrantes o aprendizado da Língua Portuguesa destituída da crença de unicidade
linguística, compreendendo a sua variação, como no exemplo, a variação regional.
Quadro 2- Palavras com pouca ou sem proximidade fonética
Fonte: elaborado pelas autoras.
No Quadro 2, visualizamos algumas palavras que se destacaram pela diferença entre as línguas.
Durante as aulas destinadas ao ensino de profissões, emoções e localização no espaço e no tempo,
destacaram-se os vocábulos “cabeleireiro”, “ciúmes”, “endereço” e “entediado”. Nota-se que dentre as
palavras destacadas estão duas essenciais às práticas sociais cotidianas: cabeleireiro e endereço. É
possível perceber que tais palavras chamaram a atenção dos alunos por apresentarem pouca ou
nenhuma proximidade fonética entre as línguas, além da escrita também ser bastante distinta. Conclui-se
que a associação dos vocábulos em Português, ao serem comparados com a língua materna dos
estudantes, ocorreu pelas diferenças sonoras e/ou escritas.
Ao serem questionados pelos professores sobre como se pronunciava determinada palavra em
sua língua, era visível a empolgação da turma em responder, pronunciando a palavra de forma lenta e
articulada para que os colegas de outras nacionalidades ou os professores brasileiros pudessem repeti-
la. Em determinados momentos, os estudantes eram convidados a escreverem no quadro branco as
palavras nas suas línguas para facilitar a pronúncia por parte dos colegas. Esses momentos constituíram
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BRASIL HAITI VENEZUELA
cabelereiro coiffeur peluquero
ciúmes jalousie celos
endereço adress dirección
entediado aburrido ennuyé
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verdadeiras trocas linguísticas, nas quais estudantes e professores aprenderam colaborativamente as
diferentes línguas presentes na sala de aula.
É imprescindível refletirmos, ainda, sobre a palavra “saudade”. Durante uma aula, a palavra
“saudade” foi utilizada para introduzir o conteúdo sobre a família e os seus integrantes, o que resultou na
reflexão dos estudantes sobre os seus sentimentos. Definimos aqui como saudade o sentimento causado
pela distância ou ausência de algo ou alguém, o sentir falta. A palavra “saudade” não tem tradução literal
em nenhuma língua, de forma que para expressar esse sentimento é preciso utilizar mais de um
vocábulo. Apesar de os imigrantes não terem uma palavra em sua língua para representar esse
sentimento, eles o sentem, e com grande intensidade. Ao longo da aula, eles associaram o sentimento à
forma linguística presente em suas línguas maternas, em que temos no Haiti “mwen manque”, cujo
significado é “eu sinto falta de”, e na Venezuela “te extraño” ou “me haces falta” que podemos traduzir por
“saudade de você” e “me faz falta”. É importante para os estudantes de PLAc manifestarem as perdas que
sofreram ao deixarem seu país. Muitos, em busca de uma nova vida, deixam para trás a família, os
amigos, a língua e tudo aquilo que fazia parte de seu mundo conhecido. Ao chegarem ao país de
acolhimento, precisam adaptar-se ao clima, à culinária e às novas práticas socioculturais das quais farão
parte.
Salienta-se, portanto, a necessidade de conhecer a trajetória de vida dos estudantes, suas
dificuldades e conquistas, seus medos e seus sonhos no novo país. Permitir-lhes um espaço confortável
e seguro para que possam manifestar os seus sentimentos, falar de sua cultura, de suas crenças, é dar-
lhes voz e a oportunidade de serem ouvidos. Proporcionar a esses sujeitos um ambiente em que se
sintam respeitados e valorizados em sua língua é essencial para a manifestação da interculturalidade,
sendo também um dos pilares para a construção da cidadania.
5.3 Aspectos culturais
A interculturalidade pressupõe a relação entre duas ou mais culturas, ou seja, privilegia as trocas
linguísticas e culturais entre os sujeitos (Canclini, 2004). Cabe ressaltar que as trocas, no ambiente de
ensino e aprendizagem do PLAc, ocorrem por meio de aberturas temáticas, questionamentos, reflexões e
conversas. Os alunos são instigados a falar sobre a sua cultura, a sua língua e o seu país de origem. No
decorrer das aulas observadas, os alunos compartilharam aspectos relacionados a sua cultura, da
mesma forma que refletiram sobre os costumes do povo brasileiro, comparando-os aos de seu país de
origem. Durante as conversas, motivados por perguntas dos professores, eles compartilharam
preferências musicais, crenças populares, preferências culinárias, comemorações, datas festivas, entre
outros assuntos que surgiram nas interações entre professor e alunos e entre os próprios estudantes.
Durante uma aula direcionada a tempo livre e atividades de lazer, muitos alunos, instigados pelos
professores a falar sobre suas preferências musicais, se manifestaram. Enquanto se abordavam ritmos
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brasileiros como samba, pagode, sertanejo e funk, alguns alunos haitianos destacaram o seu gosto por
kompa, cujo estilo musical é conhecido por ser semelhante ao merengue. Alguns alunos venezuelanos
destacaram o seu gosto por salsa e merengue, além de manifestar o gosto pela música “El Parrandón”.
Quando questionados se continuavam ouvindo os ritmos e as músicas do seu país de origem, a maioria
dos alunos posicionou-se afirmativamente. Pode-se inferir que o fato de eles continuarem apreciando as
músicas do país de origem é um fator de manutenção da própria identidade cultural. Uma breve pesquisa
sobre os ritmos e a música mencionada torna possível conhecer um pequeno fragmento da cultura
desses países, que constitui uma parte importante na vida desses alunos.
Em relação à culinária, uma aluna venezuelana destacou três pratos típicos do país,
denominados pabellón criollo, arepas venezoelanas e hallaca. Já os alunos haitianos destacaram o
costume de consumir peixes, feijão, inhame e comidas apimentadas. Ao falar sobre o Rio Grande do Sul,
a grande maioria dos alunos afirmou gostar muito de churrasco, mas não tomar chimarrão ou café,
preferindo consumir chá ou chocolate quente no lugar.
Em outra aula destinada à alimentação, um aluno haitiano explicou uma curiosidade acerca da
salsinha. Enquanto no Brasil a salsinha é consumida majoritariamente como tempero culinário, ele
afirmou que no Haiti se acredita que beber chá de salsa após o sexo evita a gravidez. A afirmação causou
estranhamento por parte dos alunos de outras nacionalidades, que não possuem essa crença em seu
país.
Durante as aulas, também foram percebidas diferenças na comemoração de algumas datas. Um
exemplo referente a isso é o Dia dos Pais, comemorado no Haiti e na Venezuela no mês de junho,
enquanto que no Brasil ele ocorre em agosto. Outro ponto a enfatizar, relacionado a datas
comemorativas, é a Páscoa. A maioria dos brasileiros comemora a Páscoa, uma festividade religiosa que
representa a ressurreição de Cristo, enfatizando seu caráter comercial, com ovos de páscoa, chocolate e
o famoso “coelhinho da páscoa”. O que se percebeu, por meio do relato dos alunos, é que no Haiti e na
Venezuela a data é comemorada apenas em seu viés religioso, não existindo a comercialização de
chocolates e ovos de páscoa.
Esses aspectos culturais manifestados pelos estudantes constituem momentos muito oportunos
para o encontro com o “outro” e a valorização do diferente. Elementos como música, culinária,
festividades podem ser abordados pelo professor na organização de uma Mostra Cultural, por exemplo,
em que os estudantes poderiam apresentar não apenas para a turma, mas para toda a comunidade
escolar, as peculiaridades de seu país.
5.4 Aspectos históricos
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Em evento promovido pelo projeto “Niepech – Humanidades em debate”3, houve uma conversa
sobre a independência do Haiti. A data da realização do debate coincidiu com o início da revolução
haitiana, ocorrida em 22 de agosto de 1791, que resultou na Independência do Haiti e na libertação dos
escravizados. A data significou um marco histórico, incentivando novas revoluções pela independência
em diversos países no continente americano, como explicado pelos bolsistas do projeto, dois estudantes
do Ensino Médio da instituição, sendo uma aluna haitiana.
O debate inicialmente contou com uma abordagem sobre a história do Haiti, sobre as lutas e
revoluções que resultaram na libertação do seu povo. Após, foram apresentados dois poemas, lidos em
Português e em crioulo haitiano de forma a valorizar a língua do país. Com a abertura para o debate, foi
perceptível o orgulho demonstrado pelos alunos, os quais manifestaram-se veementemente sobre as
saudades da terra natal e demonstraram orgulho das suas raízes. Durante o evento, os palestrantes
instigaram os alunos a falar sobre o Haiti, e um deles proferiu as seguintes palavras:
A história do nosso país é a história revolucionária mais bonita do mundo. [...] Algumas pessoas
entendem que o Haiti é o país mais pobre do mundo. Não é. Digo que não é. O Haiti é um país
muito bonito, muito rico mesmo. Tudo o que a gente precisa a gente tem lá. Infelizmente, por
causa dos maus poderes do mundo, o Haiti tá naquela situação que tá hoje, infelizmente. O Haiti
é um país que dá o exemplo da liberdade. Do que é a verdadeira liberdade. Então, pra nós eu
posso dizer que é um orgulho, é um orgulho pra nós ser haitiano, por que cada haitiano é
um guerreiro, cada haitiano é um guerreiro. Na parte mental, na parte física e também na
parte espiritual (Joanel, 41 anos, grifo nosso).
O relato de Joanel nos leva a refletir sobre o quanto desconhecemos aspectos históricos e
culturais de países como o Haiti. As poucas informações a que temos acesso provêm de livros didáticos
ou de notícias veiculadas na mídia que, na maioria das vezes e de forma equivocada, caracterizam o país
de forma negativa, estigmatizado pela instabilidade política e violência. Esse ponto de vista de fora
silencia as vozes daqueles que realmente conhecem o país e podem nos apresentar uma visão mais
fidedigna, ou seja, os próprios haitianos. Evidencia-se, a partir dessa experiência, a necessidade de
oportunizar aos imigrantes que apresentem, eles próprios, a história sobre o seu país, valorizando seus
conhecimentos, formação acadêmica e trajetória de vida.
6 Considerações finais
Diante da análise apresentada, conclui-se que os objetivos definidos para a pesquisa foram
atingidos, pois, ao longo do estudo de caso, foi possível identificar as trocas interculturais realizadas entre
alunos e professores no contexto de ensino do PLAc. A partir das observações, também foi possível
verificar a ocorrência de associações entre os conteúdos ministrados e os aspectos socioculturais e
linguísticos do país de origem dos imigrantes, o que evidencia a interculturalidade. Destarte, averiguamos
3 hps://ifrs.edu.br/bento/niepech-realizou-debate-sobre-a-independencia-do-hai"/
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que a metodologia de ensino dos professores favoreceu essas trocas ao promover o diálogo e a interação
entre os participantes.
A perspectiva de ensino de PLAc considera, para além do ensino da língua, aspectos subjetivos
dos imigrantes e refugiados, contribuindo para sua inserção na sociedade (Pedrassani et al., 2021).
Propiciar aos estudantes trocas interculturais, além de facilitar a compreensão e o aprendizado dos
conteúdos, é uma forma de valorizar a sua trajetória de vida e os seus conhecimentos de mundo
(Canclini, 2004). Desenvolver o ensino de PLAc apoiado na interculturalidade promove, assim, a
constituição dos estudantes enquanto cidadãos, ampliando as habilidades comunicativas em Língua
Portuguesa para que possam assegurar os seus direitos perante a lei e receber um tratamento mais
igualitário em território brasileiro (Miranda; Fernandes, 2022).
A interculturalidade depende de espaço para o diálogo, para as interações entre alunos e
professor, e de aberturas temáticas com interesse genuíno em conhecer o “outro”, sua cultura, sua
língua, sua história. Diante disso, destaca-se o papel do professor como mediador do ensino, sendo ele o
responsável por promover um ambiente em que os estudantes se sintam seguros e confortáveis em
realizar essas trocas. O professor, nesse contexto, além de se preocupar com os conteúdos a serem
trabalhados, deve pensar em práticas pedagógicas que possibilitem aos alunos se expressarem e
refletirem sobre os seus conhecimentos e vivências de mundo, resultando, assim, em trocas
interculturais. Pode-se dizer, portanto, que sem a interculturalidade o ensino de PLAc não cumpre a sua
finalidade.
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