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Uma Antropologia Engajada: Entrevista com Terence Turner

Authors:
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ENTREVISTA
Edilene Coffaci de Lima
Maria Inês Smiljanic
Ricardo Cid Fernandes
UFPR
Campos 9(2):139-157, 2008.
Uma Antropologia Engajada:
entrevista com Terence Turner
No começo dos anos 1960, Terence Turner chegava ao Brasil e começava sua
carreira como antropólogo. À procura de inteirar-se da antropologia local e em
busca do domínio da língua portuguesa, freqüentou o Curso de Especialização em
Antropologia Social, organizado por Roberto Cardoso de Oliveira, então oferecido
no Museu Nacional/UFRJ. De lá foi aos Kayapó, para onde, de tempos em tempos,
sempre volta.
A entrevista aconteceu em Curitiba, em 18 de outubro de 2007, após a
apresentação da palestra intitulada “Humanidade, forma e objetivação na consciência
social Kayapó”, no PPGAS/UFPR, e foi concedida em português. Na primeira metade
de 2009, a partir de uma intensa correspondência eletrônica, a entrevista foi editada
e preparada para publicação com sua participação direta. Nela Terence Turner se
declara um “privilegiado” por ter testemunhado e documentado a ascensão política
dos Kayapó, que resultou na demarcação de suas terras. Também reconstrói parte de
sua trajetória acadêmica e, principalmente, concentra-se nas bases conceituais que
motivam seu exercício intelectual. Aposentado como professor pela Universidade
de Chicago, hoje Terence Turner ensina e pesquisa na Universidade de Cornell.
Campos: Como o senhor ingressou na Antropologia?
Terence Turner: Foi um processo de eliminação. Eu saí do exército procurando algo
que valesse a pena fazer na vida. Eu tinha feito, na graduação, História Moderna
Européia. Então pensei que uma carreira acadêmica, como professor de uma
faculdade, talvez fosse uma boa escolha. Fiz o pedido de ingresso na Universidade
da Califórnia (Berkeley) em História Moderna Européia, e fiz uma especialidade em
História da França da Terceira República, as políticas sócio-econômicas etc. Passei
um ano em Berkeley estudando história. Isso foi em 1958-59. Naquela época, nos
Estados Unidos, a abordagem da história era muito positivista, muito concentrada
em estudos quantitativos, não tratava muito da dimensão cultural. Eu fiquei meio
insatisfeito com as limitações metodológicas e teóricas da história. Mas, dentro das
ciências sociais, a sociologia era ainda mais quantitativa e positivista, e desligada de
questões de interpretação cultural. Toda a perspectiva marxista foi excluída naquela
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época. Então, as alternativas não eram muito atraentes. Por um processo de eliminação acabei na antropologia. Eu
nunca havia feito antropologia em cursos; tinha lido um pouco, mas não sistematicamente.
Decidi me transferir de volta para minha universidade de graduação, que era Harvard (em Cambridge,
Massachusetts), e entrar no programa de antropologia – que na época fazia parte do departamento de “Relações
Sociais”, que combinava sociologia (Talcott Parsons foi o grande sociólogo de Harvard na época), psicologia social
e individual, e antropologia. Inicialmente pensava em fazer um trabalho de campo na França, trabalhando com
comunidades de trabalhadores nos banlieus de Paris. Nos arrabaldes de Paris há comunidades de trabalhadores
da mesma empresa, que vêm principalmente das mesmas comunidades rurais de várias partes da França. Eu
pensei que seria interessante fazer estudos nas comunidades de origem rural e nas comunidades de trabalhadores
na mesma fábrica. Não era um projeto muito interessante, mas era tudo o que conseguia imaginar. Eu também
tinha feito em Berkeley, e mesmo na graduação em Harvard, estudos de história intelectual e cultural da França, e
da Europa de um modo geral. Eu estudava Escola Francesa de Sociologia, Fustel de Coulanges, Durkheim, Mauss,
enfim, l’Année Sociologique.
Foi quando, no segundo ano da minha pós-graduação em Harvard, chegou lá um jovem professor de
Oxford, David Maybury-Lewis, que tinha trabalhado com os Xavante aqui no Brasil. Eu fiz uma espécie de tutoria,
fiz seminários individuais com ele sobre o pensamento social na França, estudamos l’Année Sociologique. Quando
fazia esse curso com Maybury-Lewis, ele sugeriu: “você pode ir à França quando estiver velho, com sessenta anos
(isso não me parece tão velho, na minha perspectiva atual), mas enquanto jovem você deve fazer ‘antropologia
verdadeira’ na mata amazônica, tem esse grupo jê que não foi estudado por um antropólogo bem treinado”. Ele
disse: “Este pode ser o foco do projeto de estudos comparativos dos grupos jê – os Jê do Norte e os Jê Central”
–, porque os outros grupos tinham sido estudados até certo ponto por Nimuendajú e ele. Eu levei três segundos
para dizer: “Por que não?” Nunca fui mais impulsivo em minha juventude.
Acho que foi a melhor decisão que eu jamais fiz em minha vida, realmente foi. Imaginem a sorte de ter começado
o estudo dos Kayapó em 1962. Aquele ano, 1962, foi o período liminar, a beira, por assim dizer, daquela carreira
de resistência da trajetória política dos Kayapó. Na época eles não tinham nenhum hectare reservado, não
tinham nenhum título da terra. Cheguei ao Brasil junto com minha primeira esposa, Joan Bamberger, também
antropóloga, e logo passamos a fazer parte de um grupo de alunos de um seminário em Teoria Antropológica no
Museu Nacional, liderado por Roberto Cardoso de Oliveira. Nossos colegas foram Júlio Melatti, Roberto da Matta
e Roque Laraia.
Campos: Era o curso de especialização organizado por Roberto Cardoso de Oliveira?
TT: Foi sim, e eu fiquei particularmente sensibilizado com a estrutura do ensino. Aprendi português (eu realmente
não falava quando cheguei) e aprendi também teoria antropológica com um grupo ótimo. Foi uma experiência
realmente muito estimulante. Todo mundo estava indo a campo na época para fazer estudos comparativos de
fricção internética – aquela formulação de Roberto Cardoso de Oliveira sobre o contato entre grupos indígenas e
as sociedades regional e nacional. Eu e a Joan fomos aos Kayapó, na aldeia de Gorotire, porque era a aldeia em
que havia mais pessoas que falavam português: metade dos homens falava mais ou menos bem, e uma ou duas
mulheres. Ficamos lá dez meses. Esforcei-me para aprender a falar Kayapó. Levei nove ou dez meses para chegar
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a um domínio qualificado. Depois fui para Kubenkrãkên, uma “comunidade-irmã”, por assim dizer, de Gorotire,
mas onde poucos falavam português. Fiz um segundo período de estudos lá, voltei aos EUA e escrevi a tese. Joan
também realizou uma pesquisa antropológica para seu doutoramento em Harvard, sobre a ecologia conceitual
dos Kayapó. Em 1965 voltei a campo, mas dessa vez ao Xingu, com um grupo que se chama Mentuktire – na época
chamava-se Porori. Daí para frente fiquei dez anos sem voltar aos Kayapó. Até então eu tinha realizado somente
análises clássicas, por assim dizer: parentesco, estrutura política, descrições dos cerimoniais coletivos, mas sem
muitas análises dos mitos. Comecei a fazer uma análise dos mitos Kayapó porque eu fiquei muito insatisfeito com
a abordagem lévi-straussiana dos mitos.
Em 1976 a BBC de Londres me propôs levar uma equipe de televisão para fazer uns filmes etnográficos
dos Kayapó e eu aceitei. Assim, voltei a campo no momento dos primeiros movimentos kayapó de reconquista
de seu território. Estava em discussão a BR-080, aquela estrada que o governo brasileiro tinha secretamente
construído e desviado do curso, avançando ao norte do Parque do Xingu. O Ministro do Interior, acho que se
chamava Cavalcanti1, tinha conspirado com empresas de grileiros, imobiliárias e fazendas para cortar toda essa
seção do Parque e vendê-la para particulares. Os Kayapó tinham mudado comunidades inteiras para lá porque os
diretores do Parque, os irmãos Villas-Boas, tinham insistido para que voltassem para sua antiga área, que ficou
dentro dos limites do Parque, para ficarem mais seguros. Eles estavam lá e, de repente, deram-se conta de que
foram traídos pelo governo.
Começou um movimento de resistência que foi uma semente, foi o ponto embrionário do desenvolvimento
dessa campanha brilhante que se desenrolou nos anos seguintes. Houve luta armada e por volta de cinquenta
invasores e grileiros brasileiros foram mortos em assaltos que os Kayapó fizeram contra os posseiros, caçadores
de peles, pescadores e fazendeiros. Também capturaram os garimpos que tinham sido abertos a leste. Levou
quase vinte anos, mas finalmente o governo recuou e concedeu todo o território que ele tinha tentado cortar
e declarou esse território como reserva kayapó. A partir de então, uma série de outras demarcações deixou os
Kayapó com mais ou menos 150 mil quilômetros quadrados. É bastante mais que a área da República Tcheca,
para uma população de mais ou menos sete mil pessoas atualmente. Foi uma combinação de luta armada,
diplomacia muito inteligente, manipulação de imagem e utilização de meios de comunicação contemporâneos,
como televisão, rádio e mídia impressa. Em consequência, acho que os Kayapó se tornaram o grupo indígena
talvez mais imponente e bem conhecido popularmente em todo o país. Eu me sinto muito privilegiado de ter sido
capaz de acompanhar essa carreira do início até o presente.
Campos: O senhor acompanhou essa carreira do início até o presente, como acabou de falar. Pelo menos dois
Terry Turner estiveram presentes: um intelectual, pensador, etnógrafo, e outro militante, parceiro ou colaborador.
Como o senhor vê essas duas faces do trabalho antropológico?
TT: Bem, vou ensaiar duas respostas, apropriadas aos dois Terry Turner. Primeiro, eu sempre estive alinhado com
uma política de esquerda, eu sempre estive convencido de que a teoria social deve informar uma política ativista.
Se a antropologia tinha algo a dizer à sociedade em geral, deveriam ser coisas que ajudassem a formular uma
política de melhoramento da sociedade, inclusive de minorias como as sociedades indígenas, em todos os países,
e não somente no Brasil. Essa não é uma idéia original, mas esses grupos marginais são, por assim dizer, espelhos
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que mostram assuntos fundamentais, problemas fundamentais da própria cultura, da política, da organização
social da sociedade hegemônica, envolvente. Eu sempre achei fundamentalmente errônea a divisão que se
estabeleceu na antropologia norte-americana entre a chamada applied anthropology, de um lado, e a antropologia
acadêmica, do outro lado. Na América Latina, inclusive no Brasil, essa é a divisão que se dá entre a antropologia
teórica e o indigenismo. Ao longo da minha carreira eu escrevi algumas vezes sobre esse assunto. Acho que meu
primeiro artigo em português foi aquele que eu escrevi para o encontro de antropólogos patrocinado pela ABA e
pela ANPOCS em Belém, em 1987, chamado “De Cosmologia a História”2 (tradução em inglês: “From cosmology
to ideology”), que tomou como tema a relação entre a teoria antropológica e o ativismo, clamando por uma
abordagem sintética entre a compreensão e os esforços ativistas no apoio à luta pelos direitos indígenas – direitos
territoriais, direitos humanos e independência relativa social e cultural.
Segunda resposta (do segundo T. Turner): eu acho que nas tradições intelectuais antropológicas principais que
nós temos no Ocidente (a tradição francesa, a tradição alemã, a tradição inglesa e a dos EUA) sempre houve
um engajamento no sentido de formular programas de ação, de melhorar a sociedade, de dar à cultura formas
mais capazes de promover o desenvolvimento de capacidades humanas. É verdade que uma vez convertidas
em especialidades acadêmicas, muitas dessas teorias se tornam abstratas, ou abstraídas do contexto da luta
social, cultural e ideológica no qual se originaram. Mas eu acho fundamental não esquecer como essas teorias se
originaram, elas ainda têm sentido como tentativas de orientar a luta contra a injustiça, em direção a formas mais
justas e humanas de sociedade e cultura. Isto é verdadeiro sobretudo em relação aos trabalhos com grupos de
culturas diferentes, como os grupos indígenas.
Vistas na perspectiva antropológica, a gente percebe rapidamente que essas nossas finalidades, como
“justiça” e “realização de valores culturais”, são muito diferentes do que esses termos significam para as minorias
indígenas. Nossas especialidades, na frase de Marx, “só têm um lado, não têm todos os lados” – são one sided,
not all-sided. Essa frase é hegeliana originalmente. Indigenismo (no Brasil) e applied anthropology (nos EUA) são
geralmente formulações one sided que consideram absurdas as nuanças de diferença cultural, os propósitos, os
valores significativos da luta social e da política de grupos indígenas que eles estavam tentando ajudar: “ajudar”
sem sensibilidade cultural, tipicamente para transformá-los em gente como nós. Mas não é possível ficar numa
aldeia kayapó muitos dias sem perceber que eles não têm o menor interesse em se transformar em gente como
nós. Eles têm suas próprias pistas de desenvolvimento, eles sabem o que querem fazer, eles querem transformar
sua situação em vários aspectos, mas não para se transformarem em brasileiros, americanos ou em homens do
Ocidente, de jeito nenhum. Então acho que um domínio etnográfico, uma verdadeira compreensão (compreensão
talvez seja forte demais) ou familiaridade etnográfica, honesta e aberta, conduz fatalmente a perceber a natureza
dos goals (objetivos), da luta, dos esforços e aspirações do povo com o qual a gente está morando e interagindo.
Assim, eu não compreendo como os etnólogos, os antropólogos, nessas situações, podem ficar fora do
engajamento. Nessas lutas acontece uma espécie de osmose entre etnografia, compreensão teórica e apoio aos
seus esforços. É engajamento e ativismo. Acho realmente a tentativa de dividir esses dois aspectos artificial e
insustentável.
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Campos: Quando o senhor veio ao Brasil para fazer trabalho de campo pela primeira vez já tinha essa compreensão
ou esse foi um processo mais longo?
TT: Não, no início eu não sabia o que estava fazendo, sinceramente. Se isso que eu disse parece uma posição
sistemática, não era essa a situação do meu pensamento quando cheguei aqui. Eu tinha minha política, era
destemidamente esquerdista, mas era completamente formulada em termos da política das sociedades
industrializadas do primeiro mundo, eu era um social-democrata de esquerda. Era uma posição confortável
para um jovem universitário. Mas essa política não se estendeu para a atividade etnográfica, antropológica. Essa
compreensão de que falo agora foi um trabalho de muitos anos.
Campos: Gostaríamos que o senhor falasse um pouco também sobre a sua inserção no Projeto Harvard-Brasil
Central e sobre a relevância desse projeto na sua carreira.
TT: Bem, houve também pontos de divergência. Primeiro, a orientação do projeto de Harvard foi o neo-
durkheimianismo de [Rodney] Needham, tal como formulado em Oxford, e tomado mais ou menos palavra por
palavra por David Maybury-Lewis. Essa foi uma abordagem, a meu ver, essencialmente idealista. Tratava-se
de uma análise formalista de sistemas de classificação, enfatizando a oposição dualista etc. O chamado anglo-
estruturalismo focalizou em terceiros elementos mediadores entre categorias dualisticamente opostas, como
em alguns trabalhos de Mary Douglas e de Edmund Leach, nos quais aparecem elementos mediadores com
propriedades quase mágicas ou místicas.
Apareceu também a mesma tendência nos estudos de estruturas rituais, como aparece mais
fundamentalmente na obra de Van Gennep. Uma coisa que faltou nesses trabalhos todos, em toda essa teoria,
foi uma capacidade de integrar a estrutura simbólica com a práxis social, não somente no sentido de reflexo da
organização normativa social, mas como esquemas de atividades que produzem relações e pessoas sociais. Em
poucas palavras, faltou a possibilidade de analisar processos mais ativos de transformação como totalidades ao
mesmo tempo materiais, sociais e conceituais.
Na formação de meus colegas do projeto Harvard-Museu Nacional, que posso chamar de ortodoxos nesse
contexto, essa tendência apareceu como uma espécie de dança das categorias. Vida social não é isso, o problema
sempre me pareceu compreender como alguns processos de ação social – os conflitos sociais – se relacionam à
consciência social. E sempre me pareceu que antropologia era isso: uma tentativa de chegar a uma compreensão
sintética entre ação social (quer dizer, ação política, econômica, histórica) e formulações e transformações de
consciência social, de cultura. Cultura, nessa imaginação neo-durkheimiana, era composta essencialmente de
classificações. Era um modelo profundamente estático, que conservava a forma do positivismo durkheimiano no
plano idealista.
Esse fascínio com elementos mediadores, como aparece em alguns trabalhos de Mary Douglas e de
Edmund Leach, conseguiu seu destaque, seu sucesso. Os elementos mediadores pareciam oferecer uma saída
dessa análise estática da classificação em direção a um processo mais dinâmico. Mas isso ainda aconteceu no
chão de baile, quer dizer, da dança das categorias. Mesmo que essa análise fosse uma espécie de representação
dos processos sociais, com passagens de estados, como acontece nos ritos de passagem, dentro dessa tradição
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ninguém jamais abordou qual era a natureza do vínculo entre essas passagens sociais e as representações (os mitos,
por exemplo) dessas passagens. Alguns dos meus primeiros artigos foram reestudos sobre ritos de passagem
da obra de Van Gennep e de Victor Turner, que até certo ponto tomou Van Gennep como modelo; e também
de mitologia, um problema paralelo na análise estruturalista de mitos de Lévi-Strauss. Havia pontos cegos na
negação da dimensão narrativa das narrativas mitológicas. Eu fiquei convencido de que o essencial era formular
modelos de estrutura que fossem, ao mesmo tempo, modelos de processos de mudança dentro das histórias
mitológicas. Isto porque os mitos são narrativas de transformação, coisas acontecem; mas no estruturalismo
nada acontece.
Então me pareceu óbvio que esse era um ponto cego que eles compartilharam com as formulações
durkheiminianas, e que Lévi-Strauss compartilhou, em todo caso, por exemplo na reanálise do mito de Édipo.
Eu achei essencial fazer a mesma coisa no campo de estudos das sociedades jê amazônicas. Era preciso
investigar como essas estruturas tão aparentemente cristalinas (com metades, classes de idade, formas circulares
e geométricas de aldeias) se relacionavam aos processos de desenvolvimento social, das propriedades estruturais
desses grupos. Nenhum trabalho do projeto de Harvard, de Maybury-Lewis, abrangia essa problemática. Eram
todos estudos categoriais, de classificação, da estrutura da aldeia, da relação classificatória com o outro mundo.
Eu achei que uma contribuição fundamental era mostrar que essas formas aparentemente cristalinas eram,
na realidade, formulações dos pontos-chave de transformação nos processos de reproduzir os elementos
fundamentais da estrutura. Em poucas palavras, essas estruturas eram sistemas hierárquicos (no sentido
formal) onde unidades estruturais eram reproduzidas em outro nível, num nível mais alto, por assim dizer, que
compartilhava os pontos essenciais do processo de reproduzir as unidades do primeiro nível. Um sistema de
feedback, que se retroalimenta.
Havia outra diferença fundamental, outro elemento que faltou nos estudos do projeto de Harvard: observar
que esses sistemas são sociedades humanas, não são máquinas ou computadores, acumuladores de informação,
onde o feedback responde a cognatos inseridos por seres humanos localizados fora do sistema. Quer dizer, esses
sistemas são impulsionados pelos esforços de seus membros, de indivíduos humanos, e adquiriram valores que
eles acharam que valiam a pena para reproduzir esse sistema. A gente tinha que compreender como esses valores
foram produzidos pelo mesmo processo que produziu as relações na estrutura. Isso remeteu à necessidade de
uma teoria de valor que pudesse estar ligada a uma teoria de estrutura, o que, por sua vez, remeteu a Marx.
Somente Marx ofereceu uma abordagem de valor gerado pela organização do próprio processo de produção,
ou assim a questão me pareceu. Então desenvolvi uma versão bastante preliminar, um modelo comparativo
das sociedades brasileiras de língua jê e bororo formulado segundo essas linhas. Esse modelo foi caracterizado
pejorativamente por Maybury-Lewis na introdução do livro produzido pelo grupo, Dialectical Societies, como
“marxista”, que não era para ele uma palavra positiva, porém estava bem para mim. O “marxista” indicava para
ele um tipo de rebelde, alguém que se desviou do grupo.
Esta é a breve história do desenvolvimento da abordagem da sociedade jê que eu fiz. Quero mencionar
que o único membro daquele grupo de Harvard que chegou a concordar comigo a esse respeito foi Jean Lave, que
escreveu uma reanálise brilhante do sistema social dos Ramkokramekrã-Canela a partir do modelo que eu tinha
sugerido. O David Maybury–Lewis se recusou a incluir o artigo dela no livro Dialectical Societies e então Jean Lave
o publicou nos Actes de la Société Internacional des Américanistes de 19763. Depois ela saiu da antropologia,
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foi estudar educação. Com a única exceção dela, este modelo não foi seguido nem por Maybury-Lewis, que
sempre se declarou incapaz de entender o que eu estava querendo dizer, nem por outros membros do projeto de
Harvard, nem por algum outro antropólogo francês ou inglês trabalhando com sociedades amazônicas. Outros
amazonistas estadunidenses, com raras exceções, ficaram completamente indiferentes a esse tipo de esforço.
De minha parte, tenho tentado desenvolver o modelo em vários sentidos. Fiquei convencido de que
eu realmente tinha que fazer um esforço gigantesco para compreender Marx, para merecer verdadeiramente o
epíteto de Maybury-Lewis. Eu nunca tinha estudado Marx – nem na graduação, nem na pós-graduação. Naquela
altura, em 1964-67, os movimentos contra a guerra do Vietnã e em defesa dos direitos civis foram encaminhados.
Nesses movimentos havia muitos grupos de leitura, tinha gente lendo todas as coisas: teoria social, Marx e outros
que eram relevantes para a compreensão da luta, da mudança social, dos processos sociais. Eu participei de
alguns destes grupos e foi neles que ganhei meu primeiro conhecimento sério de Marx. Ao mesmo tempo eu
tinha conseguido um emprego, primeiro na Universidade de Cornell. Dois anos depois mudei para a Universidade
de Chicago. Como professor eu tinha o direito de ensinar coisas de teoria social, inclusive Marx. Então incorporei
Marx em um dos grupos de leitura, como seminário oficial da universidade. Fiquei ensinando, mas também
lendo, aprendendo e falando. Esse foi o primeiro passo do desenvolvimento de uma série de cursos baseados
nas obras do próprio Marx, e não nos seus comentadores. Eu sempre fiquei fortemente alienado em relação aos
antropólogos marxistas franceses, por exemplo, da tradição althusseriana. Althusser, Foucault, todos os franceses
estruturalistas e pós-estruturalistas, realmente eu não ligo. Não considero Althusser um marxista, parece-me um
filósofo funcionalista. Concordo com quase cada palavra de Edward Thompson sobre Althusser no seu livro A
Miséria da Teoria (The Poverty of Theory). Nesse livro, numa crítica devastadora da abordagem althusseriana, ele
disse: “Se Althusser é marxista, eu jamais poderia ser marxista”.
Campos: O senhor destacou o percurso que fez até chegar à compreensão do dualismo como uma teoria social.
Continuando no mesmo tema: como resumiria as possibilidades de diálogo – mesmo que crítico – com o anglo-
estruturalismo e o estruturalismo francês?
TT: Tocamos em alguns pontos sobre este assunto. Cabe acrescentar que a formulação neo-durkheimiana de
Needham e outros, de oposição dual, não era a formulação propriamente estruturalista de oposição binária
proporcionada, por exemplo, por [Roman] Jakobson e pela Escola de Praga. Para eles a oposição entre dois
pontos, para ser verdadeiramente estrutural, deveria ter um outro ponto que partilhasse uma relação idêntica entre
os dois pontos da oposição. Oposição binária é realmente uma coisa complexa, uma superposição de oposição
e identidade. A obra de Needham nunca identificou um fundo de identidade entre os dois opostos. O chamado
anglo-estruturalismo, assim, não era mesmo uma formulação estruturalista, era um neo-durkheimianismo. Eu
fiquei pensando que ninguém tinha compreendido a natureza de metades como organizações estruturais neste
sentido: apenas Lévi-Strauss, que tinha tido uma concepção fundamentalmente estruturalista de metades. Estou
me referindo aqui ao seu artigo “Les Organisations Dualistes Existent-Elles?” – não a seu tratamento de metades
exogâmicas em Les Structures Elementaires de la Parenté –, pois ele remete a uma combinação de hierarquia com
simetria, de igualdade e desigualdade ou, em outras palavras, a uma justaposição complexa de duas dimensões,
uma de oposição, outra de relativa identidade. Sua formulação neste artigo era mais próxima de Jakobson e da
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Escola de Praga, mas essa formulação tinha de ser posta em uma moldura analítica socialmente baseada.
A conclusão à qual eu cheguei é muito simples: essas metades, com as suas semelhanças, comportam
uma dimensão de oposição e desigualdade que é, no fundo, de caráter social e político, em vez de puramente
simbólico ou ideológico. Nesta ótica, sistemas de metades aparecem como mecanismos pela neutralização de
tensões provenientes de desigualdades sociais. Por exemplo, pode-se pensar numa hierarquia de classes de
idade: o sistema fica instável porque os jovens, embaixo, estão sempre pressionando contra a hegemonia dos
anciãos (seniores). No caso dos Kayapó, esse sistema se tornou ainda mais instável quando eles estavam fazendo
a resistência militar em defesa do território: o que exagerou a tensão hierárquica foi o papel aumentado dos
líderes de grupos de guerreiros. O próprio sistema, a estrutura da sociedade de metades rachou. Por que? Porque
o aspecto do sistema que tende a neutralizar desigualdades interferiu demais com a tendência oposta de destacar
a dominância da liderança dos guerreiros. Para compreender isso podemos fazer um exercício de pensamento.
Se há um eixo de desigualdade – pense este eixo como vertical e esse eixo se replica horizontalmente com
estrutura idêntica, igualmente instável, tal como as pressões verticalmente direcionadas, e se esses eixos se viram
um contra o outro, isto faz com que essas pressões de aniquilem. Um eixo neutraliza o outro, porque as pressões
de um estão dirigidas contra as pressões correspondentes do outro eixo.
Esta é uma maneira muito simples de converter um sistema de desigualdade assimétrico em um sistema
simétrico de neutralização de pressões instáveis, um sistema horizontalmente estável. É uma teoria de dualismo que
liga a forma categórica à forma de conflito político para explicar a instabilidade histórica, que remetia aos processos
de produção do sistema social e também aos valores do sistema no sentido que eu vinha falando antes.
Eu tenho publicado várias críticas neste sentido tanto ao anglo-estruturalismo como ao estruturalismo.
Não sei se elas tiveram muito efeito. Ao mesmo tempo tentei desenvolver uma armação teórica mais adequada,
num sentido positivo e construtivo, dessas formulações anglo-estruturalistas e lévi-straussianas. Eu sinto que
essas críticas, essas formulações construtivas, chegam a ser os pensamentos mais sérios da carreira que eu
tentei percorrer. Tentei explicá-los num artigo sobre as estruturas e formas de ritual em um texto recente, que
acaba de ser publicado em um livro alemão, mas com título e artigos em inglês, que se chama Theorizing
Ritual. Os organizadores me convidaram a escrever o capítulo “Structure, Process, Form”. Muitas das críticas ao
estruturalismo e ao anglo-estruturalismo que eu resumi agora estão mais claramente articuladas neste artigo4.
Campos: O senhor ainda se considera um antropólogo marxista? Em que consiste ser um antropólogo marxista
hoje nos EUA?
TT: Eu me considero um antropólogo marxiano. Quem segue Durkheim não se chama durkheimista, e sim
durkheimiano. Marxista tem que ser alguém que adere à Terceira Internacional, alinhando-se assim com os
marxistas-leninistas: eu nunca fui leninista. Também não tenho muito a ver com o marxismo da Escola de Frankfurt.
Todas essas posições vêm junto com o adjetivo marxista. Então eu me chamo marxiano para enfatizar que para
mim o trabalho de Marx é fundamental e contém muitos elementos que faltam em posições marxistas posteriores.
Por exemplo, para nós a teoria de valor é uma teoria de como valor comporta um papel crucial pela mediação
semiótica, isto é, pelo dinheiro, e por todas as formas de dinheiro, como o crédito, sem o qual o valor não pode
existir.
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Todo essa parte do pensamento de Marx foi deixada de lado, foi ignorada ou descartada por marxistas
ortodoxos do tipo Terceira Internacional como um elemento idealista, e assim retrógrado, no pensamento de
Marx, e por pensadores marxianos que seguiram Marx. Uma tarefa fundamental da teoria antropológica, e não
somente da teoria marxiana, a meu ver, é reformular o lado essencial das idéias de Marx sobre o valor, inclusive
da mediação (media) semiótica de valor. Um exemplo é o dinheiro, mas há outros. Se pudermos chegar a uma
formulação mais geral dessas ideias, poderemos aplicá-lo a sistemas de produção social que não estão baseados
na produção, circulação e intercâmbio de mercadorias: como os Kayapó, por exemplo, ou todas as sociedades
amazônicas, que não têm sistemas de produção baseados sistematicamente na produção de mercadorias – em
outras palavras, não têm economias no sentido exato, não têm mercados. Têm trocas simbólicas? Sim, mas de
coisas especializadas que não representam produção social como totalidade, um critério essencial de valor no
sentido econômico. Por exemplo, produzem enfeites que têm um significado todo especial, que são importantes,
mas que não são mercadorias no sentido econômico.
Esses são sistemas de produção não-econômicos, no sentido específico de não serem baseados em
mercadorias: existem para reproduzir pessoas sociais e sistemas sociais, instituições comunitárias, todo esse
tipo de coisa. Esses sistemas podem ser considerados como sistemas que produzem valor, e até talvez algo
análogo à mais-valia, uma vez que uma parte desse valor é distribuída desigualmente, de tal maneira que um
grupo dominante que controla o processo de produção ganha uma parte desproporcional. É o caso dos sogros
dominando os genros e ao mesmo tempo ganhando mais valor social ligado ao seu status, de modo que, quanto
mais velho, mais bonito, mais livre e mais dominante. Elaborei este argumento pela primeira vez no artigo que
escrevi no livro de Maybury-Lewis, Dialectical Societies.eu falei em “hierarquia rotativa”5, porque os dominantes
de hoje sempre estão em vias de desaparecer, enquanto os dominados vão envelhecendo e assim se tomando os
novos dominantes. Por esta expressão quis assinalar que entre os Kayapó essa hierarquia de grupos de idade está
continuamente em movimento, e isso é diferente de um sistema de classes fixas. Essas ideias aparecem também
num outro artigo publicado no número atual da revista Anthropological Theory, uma revista da Suécia. É uma
edição dedicada à análise das teorias de valor na antropologia, chama-se Values of Value.6 Meu artigo se chama
“Marxian value theory: an anthropological perspective” e é minha reformulação mais recente sobre a aplicação da
teoria de valor marxiana às sociedades não-econômicas como as da Amazônia indígena.
Modifiquei uma ideia sobre valores Kayapó depois daquele artigo no Dialectical Societies, no qual eu disse
que havia realmente duas categorias de valor entre os Kayapó: uma, que chamei de beleza, das coisas bonitas,
belas, num sentido muito geral, como um princípio estético; mas também haveria uma outra categoria que chamei
de dominância, pois eles também valorizam o poder, a influência de lideranças que podem preservar a paz social
e garantir a própria produção de beleza. Haveria então uma relação complementar entre esses dois valores. Hoje
acho que foi um erro meu qualificar dominância como valor, no mesmo sentido de beleza. Pois talvez realmente
eles definam beleza como acumulação, como o aperfeiçoamento de todas as partes de uma totalidade. Dominância,
poder, é a capacidade de efetuar o processo de produção de beleza. Em nossas sociedades, a capacidade do Estado
de garantir o mercado e a circulação de mercadorias é fundamental para garantir o sistema de produção de valor. Mas
isso não quer dizer que o Estado, o poder político, em si mesmo, é uma forma de valor. Eu acho que, analiticamente,
eu falhei ao fazer esse tipo de distinção. É necessário uma teoria de poder, especialmente agora que temos 34 anos7
com essa besteira foucaultiana de falar de poder sem ter alguma teoria de poder.
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Campos: No artigo “De Cosmologia a História”8 o senhor afirma que houve, desde aproximadamente a década
de 1980, uma transformação da consciência social dos Kayapó, que teriam passado a se conceber como agentes
de sua própria história. Na leitura de seu trabalho se tem a impressão de que essa transformação da consciência
social kayapó implicou certo rompimento com a consciência mítica, que teria prevalecido no período anterior.
Teria mesmo havido uma ruptura entre essas duas formas de apreensão da realidade pelos Kayapó? Quais são
suas reflexões sobre esse assunto hoje?
TT: Em primeiro lugar, essa formulação é da metade de 1980, mas, seja em qual ano for, foi uma formulação
obviamente tosca e crua. A sociedade kayapó em vários aspectos continua a ser baseada em uma consciência
mítica. Antes de 1980 eles já eram conscientes de vários aspectos de sua agência com atores externos, mas não
eram assim tão conscientes da natureza da sociedade envolvente e da sua capacidade de enfrentá-la frontalmente.
Antes a relação deles com a sociedade brasileira era essencialmente sua relação com a sociedade regional,
representada principalmente por caçadores e seringueiros – não havia madeireiros ou garimpeiros ainda por lá –
e também pelas frentes pastoris de Pau d’Arco, na região do Araguaia. Essas eram formas bastante vulneráveis
da sociedade envolvente. As relações com os Kayapó eram mais ou menos iguais ou até desiguais em favor dos
Kayapó, visto que estes formavam grupos grandes, podiam mobilizar grupos de homens armados, ao passo
que esses representantes da sociedade regional eram fazendeiros isolados, grupos pequenos de caçadores e
de seringueiros e podiam ser, mais ou menos facilmente, vencidos em conversas. Disseram-me que quando os
grupos kayapós do Sul do território atual, os Gorotire e os outros grupos que compõem o atual Território Indígena
Kayapó foram contatados – alguns entre 1938-40, outros só nos anos 50 – , todos os homens de idade militar nas
aldeias estavam com armas de fogo. Os caçadores e seringueiros pouco resistiram. Então, os Gorotire percebiam
sua agência frente a uma parte da sociedade nacional, mas a pacificação foi para eles, mais ou menos rapidamente,
uma experiência de desmoralização. Eles ficaram rapidamente dependentes, como mendigos, como se tivessem
perdido a agência por isso.
Paulatinamente eles chegaram a uma compreensão mais ampla da natureza da sociedade brasileira
como totalidade. A existência de postos do SPI e depois da FUNAI, essa era a dependência que eles tinham.
Nos primeiros anos do contato a consciência mitológica da natureza da sua sociedade explicou todas as formas
tradicionais de sociedade. No início, eles não tinham qualquer ideia sobre como reverter os termos desiguais das
relações com a sociedade nacional, especialmente no contexto dessa dependência. A possibilidade de reversão
começou somente nos anos 1970, quando os Kayapó passaram a ter uma visão de resistência nas várias situações,
e também começaram a fazer manifestações em Brasília, nos últimos anos da ditadura, quando o presidente
era o [João Baptista] Figueiredo. Durante a ditadura houve uma manifestação no Palácio do Planalto à qual os
Kayapó foram armados, pintados, cantando em voz alta, chamando uma cobertura midiática sensacionalista. Isso
causou uma sensação em nível nacional. Assim também se revelou um arranjo secreto com a Argentina para
fazer na Serra do Cachimbo um depósito de lixo radioativo. Os Kayapó atingiram o alvo de suas manifestações e
nenhum deles foi preso – e essa foi a primeira de uma série de manifestações. Mais ainda, conseguiram ganhar
muitos aliados: organizações não-governamentais, antropólogos, eles tinham a capacidade de organizar e
mobilizar apoios. Tudo isso entrou numa atitude que chamei mais propriamente de histórica. Não se trata mais
de conversar com fazendeiros para fazer suas redes, era todo um outro nível de compreensão, era isso que eu
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ENTREVISTA
Uma Antropologia Engajada
tinha em mente naquele ensaio. Acho que eu realmente não exprimi bem essas idéias, era uma formulação muito
tosca. De todo modo, ainda acho essencialmente correto afirmar que o sucesso dos Kayapó em recuperar todo o
território perdido, ou quase todo, é o sucesso, acima de tudo, da sua própria revolução de consciência. Não foram
simplesmente manifestações espontâneas, não há nada de espontâneo.
Campos: Em alguns de seus estudos o senhor dialoga com a antropologia brasileira e se serve do conceito de
fricção inter-étnica. Qual o diálogo que o senhor mantém com os antropólogos brasileiros e com a antropologia
produzida no Brasil?
TT: Eu tenho diálogos diferentes, com antropólogos diferentes. Por exemplo, com Eduardo Viveiros de Castro, que
fez uma visita ao Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago quando eu era professor lá, e com
quem depois eu fiz parte de um seminário em Paris, na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales).
Fizemos parte do seminário de Philippe Descola, que proporcionou oportunidades de diálogo entre nós muito
estimulantes. Outro tipo de diálogo tenho tido com o pessoal do Núcleo de História Indígena da Universidade de
São Paulo, especialmente com Dominique Gallois, que há anos lida com projetos que a mim parecem exemplos
de trabalhos bem pensados e, ao mesmo tempo, eficazes, como ativismo. Em acréscimo, ela também trabalha
com vídeo, com o qual eu estive lidando com os Kayapó – este também foi mais um ponto comum. Assim, nós
temos tido sempre um diálogo intenso. Com a parceria de Vincent Carelli, do projeto Vídeo nas Aldeias, eu tenho
trabalhado todo o meu projeto de vídeo dos Kayapó e a formação do arquivo de vídeo kayapó. Foi com o apoio
dele, na ilha de edição do Centro de Trabalho Indigenista, quando estava ainda em São Paulo, que eu aprendi
como trabalhar o vídeo e as suas possibilidades, aprendi a explorar antropologicamente essas possibilidades.
Aprendi algumas coisas para repassar aos Kayapó, para eles próprios fazerem seus vídeos. Haveria outros nomes
a mencionar: Alcida Ramos, meus velhos colegas da PPGAS do Museu Nacional, Roberto da Matta, Roque Laraia
e Julio Melatti. Eu acho que a antropologia brasileira é um cenário muito variado e muito rico. Há muitos anos eu
tenho sido continuamente desafiado, estimulado e enriquecido por esses bons contatos.
Campos: O senhor destacou as convergências, mas em sua resposta podemos entender que há também alguma
divergência. Quais seriam, por exemplo, as divergências com o trabalho de Eduardo Viveiros de Castro e,
particularmente, com o perspectivismo?
TT: Meus debates acadêmicos com Eduardo Viveiros de Castro ao longo dos anos remetem em parte a nossas
orientações teóricas diferentes – no caso dele, estruturalismo, e no meu caso uma mistura de antropologia social,
anglo-estruturalismo, o Année Sociologique e Marx. Em parte também as nossas diferenças remetem, sem
dúvida, a nossas experiências etnográficas divergentes: no caso dele com os Araweté, um pequeno grupo Tupi
com estrutura social e cosmologia mais ou menos típicas das sociedades do tipo “Floresta Tropical” (aldeias
relativamente pequenas e exogâmicas, com sistemas sociais relativamente simples, focalizados em relações com
grupos externos); no meu caso, com os Kayapó, grupo de aldeias grandes e efetivamente endogâmicas,
com sistema social internamente focalizado em rituais comunais e uma hierarquia relativamente complexa de
grupos coletivos. Estas diferenças sociais, pois, podem resultar em diferenças ideológicas que podem afetar
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ENTREVISTA
Edilene Coffaci de Lima, Maria Inês Smiljanic, Ricardo Cid Fernandes
perspectivas cognitivas tanto dos dois tipos de sociedades, como dos seus antropólogos. Assim, não posso excluir
a possibilidade de que tais divergências possam ter entrado nas minhas ressalvas a algumas das generalizações
de Eduardo Viveiros de Castro sobre as ideias supostamente comuns de sociedades amazônicas, ou mesmo
“ameríndias”. Seja como for, tenho uma série de críticas etnográficas, teóricas, metodológicas e até lógicas ao
edifício teórico erigido por Eduardo Viveiros de Castro e alguns dos seus alunos e colaboradores, que em seu
conjunto vem sendo conhecido como “perspectivismo”.
O perspectivismo, enquanto perspectiva teórica, é essencialmente uma forma revisionista de estruturalismo
lévi-straussiano, que pretende reter os traços essenciais do esboço teórico estruturalista e ao mesmo tempo inverter
seu cerne conceptual: a noção da oposição de natureza e cultura como o princípio axiomático das cosmologias
dos grupos indígenas das Américas. O projeto analítico do estruturalismo ortodoxo, porém, é demonstrar que esta
oposição – e a fortiori todo o edifício de cultura baseado nela – é, em si mesma, um produto do agenciamento
do processo psicológico (e, por isso, natural) de percepção, e a construção, através de associações psicológicas,
de representações conceptuais das formas naturais do mundo transmitido pela percepção, assim terminando na
redução da cultura a uma emanação de natureza. O perspectivismo pretende preservar a forma reducionista do
projeto estruturalista mas de forma inversa, visando a redução da natureza à cultura. Isto me aparece uma forma
teórica de saltar da frigideira para o fogo. Em ambos os casos, acaba-se longe da perspectiva cultural dos povos
indígenas, ao menos como eu a comprendo, que se assemelha mais a uma mediação das duas extremidades da
oposição, em vez de uma opção por uma e exclusão da outra.
Estas ressalvas conceituais se baseiam em desacordos sobre a interpretação de dados etnográficos,
por exemplo o mito (ou melhor, o conjunto de mitos) citado por Eduardo Viveiros de Castro como a base de
sua afirmação de que os índios da Amazônia acreditam que os animais se identificam com a gente, isto é, veem
a si mesmos como seres humanos e, portanto, possuidores de cultura humana. Esta é sem dúvida a tese do
perspectivismo mais bem conhecida: os animais, tomados pelo pensamento ocidental (inclusive pelo próprio
estruturalismo) como os representantes prototípicos de “natureza” no sentido oposto a “cultura” humana,
segundo o pensamento indígena não se concebem, eles mesmos, como entidades naturais: a própria natureza,
pois, segundo a concepção dos índios, rechaça subjetivamente o caráter de natureza e adota a perspectiva
cultural de humanidade. Os mitos que o Eduardo Viveiros de Castro cita como evidência para esta afirmação
surpreendente recontam que, era uma vez, seres humanos e animais coexistiam numa base de quase-identidade,
compartilhando linguagem e até, em alguns casos, se casando. Este momento idílico descrito pelos mitos é o que
Eduardo Viveiros de Castro aproveita como o ponto de partida da perspectiva teórica do perspectivismo.
Olhando mais de perto, porém, para ver que os mitos deste conjunto não apóiam a interpretação
de Eduardo Viveiros de Castro, por várias razões. Logicamente, começaremos por reconhecer que o convívio
entre seres humanos e animais que os mitos descrevem como o ponto de partida dos seus enredos é uma
situação simétrica de não-diferenciação, que implicava tanto o compartilhamento da natureza dos animais pelos
homens como a participação dos animais nas capacidades dos homens. Os homens ao início da história não
eram ainda completamente humanos, ainda não tinham cultura no sentido pleno da cultura atual, enquanto os
animais não eram também completamente animais, como o são os animais contemporâneos. Esta condição de
relativa não-diferenciação e de indefinição em ambos os lados era a precondição da interação e da participação
mútua dos antepassados míticos dos bichos e dos seres humanos nas vidas uns dos outros. Interpretar esta
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ENTREVISTA
Uma Antropologia Engajada
situação de convívio como evidência de uma relação de identificação assimétrica e não recíproca de animais
com gente, em sua forma plenamente diferenciada e culturada é, portanto, duplamente errado, porque ignora
a participação recíproca dos antepassados humanos na condição dos animais e falha em reconhecer que os
seres humanos ancestrais não eram como os humanos de hoje, com cultura plenamente desenvolvida. Podemos
notar de passagem que esta interpretação assimétrica parece surgir de uma proclividade antropocêntrica, porém
prematura, uma vez que homens, no sentido próprio, ainda não existiam.
De toda maneira, tomar a situação de convívio não-diferenciado das formas ancestrais de bichos e de
gente, que constitui a fase inicial dos mitos de origem da cultura, como a base de uma afirmação de que os
bichos de hoje em dia continuam a se relacionar subjetivamente com os seres humanos da mesma forma que
os seus antepassados é ignorar a meta destas histórias. Elas sempre contam que no fim da época mítica os
animais perderam a capacidade de falar com homens e todo o resto dos traços e comportamentos culturais
objetivos. Em termos gerais, pois, a meta dos mitos deste conjunto é explicar como os homens e os animais se
diferenciaram definitivamente uns dos outros, os homens perdendo os seus traços de animalidade e os bichos,
reciprocamente, perdendo os seus traços culturais. Em suma, é explicar como desapareceram para sempre as
condições de identificação mútua dos antepassados de bichos e gente na época mítica. A causa deste salto
evolucionário é sempre, implícita ou explicitamente, o desenvolvimento de cultura, no seu senso moderno,
pelos seres humanos. Eduardo Viveiros de Castro desconsidera a finalidade desta diferenciação dos animais, e o
papel da cultura nela, insistindo que os mitos implicam que a identificação deles com a humanidade e a cultura
meramente se internalizou, e continua subjetivamente como a perspectiva espiritual dos animais. Assim, os
animais contemporâneos supostamente se identificam como seres humanos e concebem suas próprias atividades
animalísticas como se fossem atividades culturais (assim a onça, engolindo o sangue da sua presa, imagina que
está bebericando cerveja de mandioca).
Esta afirmação, que se tornou a tese fundamental do perspectivismo, obriga Eduardo Viveiros de Castro
a insistir que os animais dissociam as formas objetivas ou aparentes das identidades e perspectivas subjetivas,
como se as formas fossem meros “envelopes” das perspectivas subjetivas e das identificações ou significações
internalizadas dos corpos e comportamentos evidentes. Acho isto um erro fundamental, que contradiz o princípio
universal (ao que eu saiba) da cultura indígena da Amazônia, que é a crença na correspondência e interdependência
pragmática entre forma aparente (e.g., o aspecto da superfície do corpo produzido pelos adornos corporais, como
pinturas, capacetes, penteados, pulseiras, botoques do lábio e orelhas etc.) e conteúdo interno (inclusive de
poderes sensoriais e capacidades físicas que constituem a fundação de identidades e perspectivas subjetivas). Por
isso os povos indígenas da Amazônia gastam tanto tempo pintando e enfeitando seus corpos: para eles, modificar a
forma aparente do corpo é uma instrumentalidade eficaz pela modificação concomitante do seu conteúdo interno,
tanto objetivo como subjetivo, assim como de suas relações externas como pessoas sociais. No pensamento
indígena, eu acho, a forma das coisas não é nem uma sobrecarga sem conexão intrínseca ao seu conteúdo nem
uma categoria classificatória sincrônica numa visão estruturalista de cultura, mas sim uma esquema ou forma
dinâmica da atividade transformativa de formação da entidade tanto nos seus aspectos sociais como físicos.
Este esquema de atividade formativa, com sua meta de produção e manutenção da forma (ou, subjetivamente,
da identidade) da entidade, é a manifestação material do espírito da entidade – a fonte da intenção ou propósito
da atividade de se formar segundo o padrão devido da sua espécie. Forma ativa e auto-produzidora é espírito, e
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ENTREVISTA
Edilene Coffaci de Lima, Maria Inês Smiljanic, Ricardo Cid Fernandes
também é “perspectiva” no sentido epistemológico do perspectivismo.
Acho que chegamos aqui a uma formulação de relevância geral ao pensamento e à consciência social
dos povos indígenas da Amazônia. Na perspectiva de seus mitos e de suas práticas rituais e corporais, este nexo
de relações entre forma, esquema de atividade, conteúdo, espírito e subjetividade é uma propriedade comum
de todas as entidades do mundo – seres humanos, animais, plantas e até algumas entidades não-animadas (e.g.,
sol, lua e outros objetos celestiais). É, pois, uma propriedade pré- ou não cultural, mesmo se os seres humanos
conseguem produzir formas culturais neste processo universal de formação. Este processo, pois, em todas as
suas formas naturais e culturais, serve como um tipo de denominador comum de todos os seres qua seres,
entre os quais seres humanos não têm prioridade nem papel especial de donos de espírito. Está aqui o ponto
de convergência destas ideias sobre o caráter esquemático de formas e a relação de forma, neste sentido, com
espírito, com animismo, um conceito fundamental que tem sido retomado por antropólogos como Descola,
Casevitz e outros. Assim, a afirmação perspectivista de que os animais conseguem ter espíritos somente através
da sua identificação com a gente, que se baseia na suposição de que ter espírito é um traço especificamente
humano, parece-me ser mais um erro antropocêntrico do perspectivismo. É um erro, aliás, que impede a devida
síntese de perspectivismo com animismo.
Em resumo, estou propondo uma interpretação alternativa dos mitos que foram tomados por Eduardo
Viveiros de Castro como a fundação da teoria de perspectivismo. Segundo minha análise, o ponto dos mitos é
contar como os animais e os seres humanos, começando de um estado de relativa indiferenciação, acabaram
se diferenciando. E, além do mais, como a criação de cultura no sentido contemporâneo desempenhou o papel
catalítico neste processo transformativo. Mas isto, por sua vez, remete a uma reconceitualizacão da natureza da
própria cultura, tal como é vista na perspectiva destes mitos. Como sugeri um pouco antes, é essencial reconhecer
que os seres humanos da era mítica ainda não tinham cultura no sentido completamente desenvolvido que têm
na nossa época. Eram os animais, e não os antepassados humanos, que em muitos casos possuíam os traços e
utensílios (fogo, arco e flecha, corda de algodão) que se tornaram, depois, as bases da cultura humana. As formas
destas coisas quando somente os animais as possuíam, porém, não eram formas completamente culturais: eram
ainda objetos achados ou únicos, que os animais não sabiam, ou ao menos não costumavam produzir de maneira
generalizada. As possessões proto-culturais dos animais ancestrais, em outras palavras, eram possuídas como
objetos, ou formas objetivas, mas seus proprietários não possuíam o segredo do processo de objetivação, ou
seja, a capacidade de produção dessas coisas. Esta é a natureza da transformação produzida pelos antepassados
míticos dos seres humanos quando eles tomaram o fogo proto-cultural das onças e o utilizaram para acender
outros fogos, produzindo assim fogo cultural. Faltou aos analistas estruturalistas, inclusive perspectivistas, do
mito de origem do fogo de cozinha – que serve como ponto de partida do grande esforço de Lévi-Strauss de
averiguar as bases do pensamento indígena sobre o caráter da cultura humana e sua relação com a natureza
através de uma análise de mitos –, notar que não é a cozinha com fogo em si mesmo que representa cultura, mas
sim o uso do fogo para acender fogo, ou seja, a meta-cozinha do fogo pelo próprio fogo.
A cozinha das onças, utilizando um fogo que elas mesmas não criaram, só chegou ao meio do caminho
entre natureza e cultura. A cultura, na perspectiva dos mitos, não aparece assim nem como uma categoria oposta
à natureza e engolindo-a, como no perspectivismo, nem reduzida a um efeito passageiro da natureza em diálogo
consigo própria, como no estruturalismo ortodoxo, mas sim como uma espécie de meta-natureza, um produto da
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ENTREVISTA
Uma Antropologia Engajada
aplicação do processo esquemático de produção de formas e entidades à produção da produção de si mesmo,
como na cozinha do fogo da cozinha.
Campos: Essas suas críticas ao perspectivismo foram ou estão em vias de ser publicadas?
TT: Sim, vão aparecer em um artigo intitulado “The Crisis of Late Structuralism: Animism and Perspectivism”, na
revista Tipiti9.
Campos: Em 2000, após a publicação do livro de Patrick Tierney, Darkness in El Dorado, a American Anthropological
Association criou uma comissão para investigar as denúncias, veiculadas nessa obra, contra o antropólogo
Napoleon Chagnon. Por muitos anos, antropólogos brasileiros e estrangeiros que trabalham com os Yanomami
alertavam a AAA das graves conseqüências éticas do trabalho de Chagnon para esse grupo, mas esses avisos
sempre foram ignorados. Qual a sua participação nesse processo? O senhor considera que esse debate mudou a
postura dos antropólogos e a antropologia que se faz nos Estados Unidos hoje? O que o episódio nos diz sobre as
relações entre a antropologia norte-americana e a antropologia brasileira de um modo geral?
TT: Quero lembrar que muito antes do livro de Patrick Tierney ser publicado eu denunciei publicamente certos
aspectos do trabalho de Chagnon e as posições que ele tinha tomado, como acusar os missionários salesianos
de genocídio contra os yanomami. E também as mentiras de Chagnon a respeito da investigação entre aspas
que ele tinha feito com um companheiro dele, Charles Brewer-Carías um político direitista venezuelano que
também é um empresário da área de mineração –, que ele leva a cabo em territórios indígenas violando as leis
venezuelanas. Em 1980, os salesianos circularam críticas aos esforços de Chagnon e Brewer-Carías de cortar a
reserva Yanomami para abrir um trecho do território que era protegido para a exploração mineral por Charles
Brewer Carías, o que daria a Chagnon o controle absoluto da entrada de outros no restante da reserva e outras
coisas. Então Chagnon mobilizou alguns sociobiólogos admiradores do trabalho dele, como Robin Fox e o
professor dele, muito prestigiado, Eric Wolf.
O propósito destas cartas dos amigos de Chagnon era que as denúncias que os salesianos tinham
circulado sem assinar – e que chegaram a várias pessoas, inclusive a mim, sem identificação da autoria – deveriam
ser descartadas como completamente falsas. Eu concordo que quem denuncia uma pessoa publicamente dessa
maneira deve se identificar e eles, os salesianos, erraram neste sentido. Mas Chagnon e seus apoiadores se serviram
desse erro dos salesianos para tentar descartar completamente toda crítica e todo o conjunto de documentos. Foi
então que eu me manifestei em sentido contrário. Num artigo publicado no boletim da American Anthropological
Association eu disse que, apesar de não considerar ética a forma de circulação desses documentos, as acusações
contra Chagnon e Brewer Carías eram verdadeiras. Embora não estivesse de acordo com o anonimato, eu disse
que Chagnon tinha que responder às críticas. Isso foi, eu considero, o salto inicial. Aconteceu mais ou menos
cinco anos antes do livro de Tierney.
Campos: Na década de 1980, quando Manuela Carneiro da Cunha foi presidente da ABA, houve uma denúncia
que foi ignorada.
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ENTREVISTA
Edilene Coffaci de Lima, Maria Inês Smiljanic, Ricardo Cid Fernandes
TT: Não foi completamente ignorada. O que aconteceu foi o seguinte: na época eu fazia parte da Comissão de
Direitos Humanos da AAA. O presidente da Associação era [Roy] Rappaport, que chegou a nós, membros da
comissão, com a denúncia e nos perguntou o que poderíamos fazer. Eu e outros membros da comissão de direitos
humanos falamos: “isso não diz respeito tanto a violação de direitos humanos, trata-se de ética profissional,
você deve levar o documento para a comissão de ética para que ela faça a investigação dessas acusações”.
Rappaport foi até a comissão de ética. Acho que em parte para evitar a responsabilidade de responder a estas
acusações, a comissão de ética da AAA anunciou que estava se retirando da investigação de casos específicos e
que se dedicaria dali para frente somente à articulação de princípios gerais de ética profissional. Dessa maneira
as acusações caíram entre duas cadeiras, foram muito mal gerenciadas. Não foi a primeira vez que chegaram
acusações contra Chagnon, mas a American Anthropological Association era e continua sempre como uma
associação muito tímida, muito politicamente neutra.
Então foi lançado o livro de Tierney. Sabendo que a AAA provavelmente tentaria ignorar as acusações, eu
e Leslie Sponsel, que tinha sido o chefe da comissão de direitos humanos, escrevemos uma carta bem inflamada
sobre o conteúdo desse livro. Afirmamos na carta que a Associação não poderia evitar tomar uma posição. As
acusações que Tierney tinha feito eram graves, gravíssimas, e sugeriam inclusive que Chagnon, na expedição de
1968, tinha sido responsável pela morte de muitas pessoas naquela epidemia e que talvez tivesse sido mesmo
responsável por aquela epidemia. Havia muito mais acusações contra Chagnon: a distorção, as mentiras sobre
fatos etnográficos, tudo no sentido de representar os Yanomami não somente como os mais violentos, mas
como uma sociedade horrorosa. Sugerimos na tal carta que as lideranças deveriam preparar uma investigação
e ser capazes de enfrentar o furacão de críticas e a publicidade que seguramente iria se seguir à publicação do
livro. Alguém que não sei quem foi, que continua formalmente desconhecido, pegou nossa comunicação, que
foi especificamente endereçada a certas pessoas (lideranças da Associação) para levar a cabo uma investigação.
Essa pessoa mandou a carta por e-mail a centenas de pessoas e logo começou um escândalo de proporções
globais.
Esta carta é o texto de minha autoria (juntamente com o meu parceiro, Leslie) que mais pessoas no
mundo todo leram. Nós ficamos no centro desse furacão. Furacão sim, mas furacão de reações contra isso,
contra o Chagnon, contra nós por repetirmos as acusações de Tierney sem investigarmos etc. Vocês conhecem
essa história. Então a Associação respondeu sugerindo montar uma comissão de investigação, que se chamou
informalmente El Dorado Commission, formada por “pessoas brandas”. Ou seja, evitou-se incluir alguém que
tivesse realmente estudado os Yanomami, porque quase todo mundo que tinha estudado os Yanomami estava
contra Chagnon. Nessa comissão se tentou preservar uma aparência de objetividade, mas os esforços da comissão
dificilmente poderiam chegar a críticas ao trabalho de Chagnon. A maravilha foi que no final a comissão conseguiu
formular umas cinco críticas bem graves contra o trabalho e os pronunciamentos públicos dele. Num esforço
transparente de evitar que a comissão pudesse chegar a fazer críticas sérias, sociobiólogos da “coalizão Chagnon”
pressionaram a presidente da associação, Louise Lamphere, para indicar um antropólogo próximo de Chagnon,
um protegido de Chagnon, que se chama Ray Hames.
Campos: Ele foi aluno do Chagnon.
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ENTREVISTA
Uma Antropologia Engajada
TT: Aluno, aliado e implicado em algumas das ações que fizeram parte da lista de acusações contra Chagnon.
Foi espantosa essa indicação pela presidente, numa tentativa de apaziguar todo esse choro dos partisans de
Chagnon. A despeito de tudo isso, a comissão produziu um relatório que, embora muito mal realizado e mal
escrito, continha críticas duras ao comportamento ético de Chagnon e à expedição de James Neel – que, falecido
alguns meses antes, tinha sido o grande herói dos sociobiólogos. Seguiram-se os esforços dos apoiadores de
Chagnon para desacreditar o relatório. Inicialmente eles introduziram uma moção de censura contra mim e Leslie
Sponsel, recomendavam à Associação nos censurar por termos escrito a carta de que acabo de falar. A carga
específica contra nós era que nós tínhamos apresentado “testemunhos falsos” das maldades de Chagnon (coisa
que não tínhamos feito, uma vez que testemunhamos, em nossa carta, somente o que Tierney tinha dito no livro).
Organizaram toda a sociedade de antropologia evolucionista, que chegou, ficou sentada em um ponto, e votou em
bloco para censurar a mim e a Leslie. Mas muitos amigos chegaram e a moção de censura foi derrotada. Eles (os
amigos de Chagnon e Neel) introduziram então outra moção, agora uma denúncia contra a comissão investigativa
por falhas acerca de procedimentos legais. A comissão não era uma entidade jurídica, essas acusações não eram
adequadas aos trabalhos da comissão. Eles fizeram um esforço, mas pouca gente da Associação respondeu
durante o prazo entre a introdução dessa moção e a votação final, que ocorreu depois de vários meses. A chefe
da comissão e a presidente da Associação, que tinha aceitado o relatório, ficaram caladas, não defenderam
o relatório da sua própria comissão. Eu, Leslie Sponsel e alguns outros nos colocamos em oposição a essa
moção, mas realmente houve falta de liderança e responsabilidade por parte dos membros e das lideranças da
Associação. O resultado foi que 10 ou 12% dos membros da Associação votaram sim ou não. Destes, dois
terços votaram a favor da moção, que defendia que a aprovação do relatório da liderança da Associação deveria
ser retirada por causa destas falhas de procedimentos na investigação, pois a moção não tratou de nenhum ponto
das conclusões do relatório. Então o relatório ficou, mas as críticas que fez não foram tidas como necessárias. Só
restou a aceitação do relatório. A diretoria da Associação praticamente se retirou. Então se tem uma espécie de
limbo, algo confuso: a investigação das acusações foi feita, as conclusões críticas não foram refutadas.
Um elemento decisivo foi a indiferença maciça dos membros, as pessoas simplesmente não queriam
saber. A Associação era e continua assim. Que efeito tinha esse debate, esse escândalo, sobre a Associação, a
ética, a consciência social, a consciência ética? A resposta é zero. Acho que fica tudo como antes. Mais uma vez
a AAA falhou por não levar a sério as conclusões críticas sobre a ética de Chagnon. Faltou coragem de realmente
enfrentar, de realmente levar a cabo as próprias conclusões da comissão que ela própria tinha apontado. Como a
Associação poderia levar a sério as críticas da carta de Manuela Carneiro da Cunha quando não levou a sério as
acusações idênticas no relatório de sua própria comissão? Então, isso é hipocrisia em primeiro plano. Eu sempre
balanço com esses caras. Vem-me um impulso de simplesmente sair da Associação, depois penso em tentar
ficar e criar desconfortos. Mas não tenho saída. Eu realmente tenho desprezo pela conduta das lideranças da
Associação e acho a indiferença da grande maioria dos membros decepcionante.
Esta indiferença ou, pior, falta de coragem e vontade política parece ser uma condição bastante generalizada
na comunidade antropológica nos Estados Unidos. Para outro exemplo, considerem as ações da associação que se
chama SALSA (Society for the Anthropology of Lowland South America). É uma associação de antropólogos que
trabalham na Amazônia, que comporta umas setenta pessoas. Eu sugeri que a SALSA deveria tomar uma posição
no debate sobre a moção introduzida na AAA contra o relatório da comissão Eldorado e apoiar a proposição
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ENTREVISTA
Edilene Coffaci de Lima, Maria Inês Smiljanic, Ricardo Cid Fernandes
de que os “procedimentos legais” da comissão não estavam errados, que a moção de reprovação do relatório
é que fora errada. Metade dos membros da SALSA presentes se posicionaram contra, argumentando que
falamos o bastante sobre isso, não deveríamos falar mais, que essas discussões políticas só iriam perturbar e até
poderiam provocar a dissolução da nossa associação. Finalmente foi votada uma moção adiando definitivamente
qualquer discussão sobre o assunto. Essa foi a resposta corajosa desta Associação. Dessa experiência tiro duas
conclusões: primeiro, que a luta por padrões éticos eficazes em associações profissionais de antropólogos vai
custar um bom tempinho para ser ganha; e, segundo, que as violações dos códigos de ética profissional vão
continuar, e provavelmente se propagar com mais freqüência, daqui para frente.
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ENTREVISTA
Uma Antropologia Engajada
NOTAS
1 N.E.: A referência é ao general José Costa Cavalcanti (1918-1991), ministro do Interior de 1969 a 1974.
2 N.E.: Turner, Terence. 1993. “De Cosmologia a História: resistência, adaptação e consciência social entre os Kayapó”.
In E. Viveiros de Castro e M. Carneiro da Cunha (orgs.). Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII/USP/
FAPESP. pp. 43- 66.
3 N.E.: Lave, Jean. 1976. “Eastern Timbira Moiety Systems in Time and Space: a complex structure”. In. B. Albert, A.
Castel & M. Guyot (eds.) Actes du Congrès Internationale des Américanistes 42. Paris: Société des Américanistes.
4 N.E.: Turner, Terence. 2006. “Structure, Process, Form”. In. Kreinath, Jens; Jan Snoek; Michael Stausberg (eds.).
Theorizing Ritual. Brill: NUMEN- Bookseries, pp. 207-246.
5 N.E.: Ver Turne r, Te renc e. 1 979 . “ The G e an d Bor oro Soc ieti es as Dial ecti cal S yste ms: a ge ne ral mod el ”. In D. May bury-
Lewis (ed.) Dialectical Societies. Harvard. 147-178 e “Kinship, household and community structure among the Northern
Kayapo”. In. D. Maybury-Lewis (ed). Dialectical Societies. Harvard. 179-217. Sobre “hierarquia rotativa”, ver também
“Lo bello y lo común: desigualdades de valor y jerarquia rotativa entre los kayapo”. Revista de Antropologia Social,
11(1): 201-18. Madrid. (2002). Deste artigo há uma versão inglesa: “The beautiful and the common: gender and social
hierarchy among the Kayapo”. Tipiti: The Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America 1(1):
11-26. (September 20 03).
6 N.E.: Turner, Terence. 2008. “Marxian Value Theory: an anthropological perspective”. In. David Pedersen (ed.). Values
of Value - special issue. Anthropological Theory 8(1): 43 -56.
7 Aqui Terence Turner faz referência ao início das publicações de Michel Foucault sobre os mecanismos de poder.
Considere-se, por exemplo, que Vigiar e Punir é de 1975.
8 N.E.: Ver nota 2 acima.
9 N.E.: Turner, Terence. 2009. “ The Crisis of Late Structuralism: Animism and Perspectivism”. Tipiti 7:1.
... Ou seus termos assemelhados como antropologia ativista, antropologia colaborativa, antropologia militante e antropologia pública? Um termo que talvez nos remeta a Terrence Turner e seu trabalho com os Kayapó -com destaque para a polêmica disputa contra Napoleon Chagnon (GRAHAM, 2003, LIMA et al., 2008) -e Bruce Albert (1997). A ideia de antropologia engajada é reconectada a uma matriz teórica por Stuart Kirsch, que afirma entender a ligação do tipo de pesquisa etnográfica que pratica às críticas do movimento writing cultures , mas observa que: "the writing cultures debates addressed the question of reflexivity within the text, including the influence of the author's political commitments and positionality on ethnography. ...
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O presente texto trata-se de uma resenha bibliográfica sobre o livro "Engaged Anthropology: politics beyond the text", de autoria de Stuart Kirsch. Esse livro foi publicado em 2018 e traz ensaios acerca de uma método de pesquisa antropológica que condiciona a produção etnográfica ao engajamento político do etnógrafo. Assim, a resenha busca apresentar o livro e trazer rápidas reflexões sobre os ensaios metodológicos.
... Ou seus termos assemelhados como antropologia ativista, antropologia colaborativa, antropologia militante e antropologia pública? Um termo que talvez nos remeta a Terrence Turner e seu trabalho com os Kayapó -com destaque para a polêmica disputa contra Napoleon Chagnon (GRAHAM, 2003, LIMA et al., 2008) -e Bruce Albert (1997). A ideia de antropologia engajada é reconectada a uma matriz teórica por Stuart Kirsch, que afirma entender a ligação do tipo de pesquisa etnográfica que pratica às críticas do movimento writing cultures , mas observa que: "the writing cultures debates addressed the question of reflexivity within the text, including the influence of the author's political commitments and positionality on ethnography. ...
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RESENHA KIRSCH, Stuart. Engaged Anthropology. Oakland (California): University of California Press. 2018, 306p. Stuart Kirsch é um professor no departamento de antropologia da Universidade de Michigan. Desenvolveu pesquisas em Papua-Nova Guiné, uma das mais tradicionais regiões etnográficas do mundo. Tem mais de duas décadas de trabalho de campo com imersões prolongadas, típicas dos trabalhos antropológicos, e uma grande quantidade de dados etnográficos. O que se espera, aos moldes de autores que lá estiveram como Marilyn Strathern e Roy Wagner, são análises acadêmicas das mais apuradas, com importantes insights adquiridos a partir da autoridade que um etnógrafo, na prática etnológica, detém. Entretanto, esse não é o caso de Stuart Kirsch. Não é devido ao fato de seus estudos e análises não gozarem de alto requinte e estarem ao nível de seus predecessores. O motivo é outro: o modo como seu trabalho de campo é desenvolvido. Kirsch, que conduziu pesquisas iniciais entre os Yonggom na década de 1980, tornou-se um antropólogo engajado por acidente. Não tinha a pretensão de desenvolver uma forma de pesquisa antropológica engajada, ou que apresentasse qualquer consideração política. Porém, após dois anos de pesquisas, os Yonggom pediram sua ajuda para abordar os problemas ambientas causados pela Ok Tedi mine. A partir daí se percebeu envolvido como ator político nas lutas contra a poluição e o desastre ambiental deixados pela Ok Tedi mine. Endereçando argumentos em jornais locais, participando de campanhas, ofertando depoimentos judiciais e praticando advocacy nas terras de Papua-Nova Guiné (e fora delas), entendeu como sua participação no caso influenciou sua pesquisa
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O artigo retoma algumas das experiências, movimentos e processos de aprendizagem e produção com o videotape junto a comunidades indígenas no Brasil, quando o equipamento de gravação em fita magnética começava a se popularizar com os formatos portáteis. O cineasta Andrea Tonacci se inquieta com as possibilidades do registro e reprodução simultâneas do videotape como parte da figuração da comunidade, como olhar processual, reflexivo. As camcorders dos Kayapó registraram discursos, viagens, eventos e rituais comunitários, antes mesmo das primeiras experiências do Vídeo nas Aldeias (VNA). O filme A festa da moça (1987), de Vincent Carelli, opera uma alteração naquilo que era imaginado como “olhar do outro” por Tonacci – e por muitas das produções do Vídeo Popular –, pois nos devolve um olhar deslocado, que presencia a retomada dos corpos dos jovens em comunidade, enfeitados e marcados como os antepassados, ao mesmo tempo que nos posiciona como espectadores não indígenas.
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Translating from: TURNER,Terrence. 1987. "From cosmology to history: resistance, adaptation and social consciousness among the Kayapo". Trabalho apresentado na reuniao da ABA Associacao Brasileira de Antropologia, Belem do Para. translator: DAVID SOARES technical review: SYLVIA CAIUBY NOVAES, HELOISA BUARQUE DE ALMEIDA
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Marx's critique of political economy and analysis of the capitalist mode of production are grounded in more general ideas about human activity and social organization that, taken together, constitute an anthropology which is applicable in principle to all social systems and forms of social production, including those that do not involve the production and exchange of commodities. Marx's anthropology is built upon general notions of production, need, value, semiotic mediation, exploitation, alienation, the role of subjective activity and consciousness, and the structural properties of systems of social production as totalities. This article attempts to abstract the general forms and principles of these notions in terms applicable to non-commodity producing social systems. It identifies Marx's formulation of value theory as the most encompassing organizational framework of his anthropological ideas.
Carneiro da Cunha (orgs.) Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII
  • E In
  • M Viveiros De Castro E
In E. Viveiros de Castro e M. Carneiro da Cunha (orgs.). Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII/USP/ FAPESP. pp. 43-66.
Eastern Timbira Moiety Systems in Time and Space: a complex structure
  • N E Lave
N.E.: Lave, Jean. 1976. "Eastern Timbira Moiety Systems in Time and Space: a complex structure". In. B. Albert, A. Castel & M. Guyot (eds.) Actes du Congrès Internationale des Américanistes 42. Paris: Société des Américanistes.
Structure, Process, Form Theorizing Ritual
  • E Turner
E.: Turner, Terence. 2006. " Structure, Process, Form ". In. Kreinath, Jens; Jan Snoek; Michael Stausberg (eds.). Theorizing Ritual. Brill: NUMEN-Bookseries, pp. 207-246.
The Crisis of Late Structuralism: Animism and Perspectivism
  • N E Turner
N.E.: Turner, Terence. 2009. "The Crisis of Late Structuralism: Animism and Perspectivism". Tipiti 7:1.
Deste artigo há uma versão inglesa: "The beautiful and the common: gender and social hierarchy among the Kayapo
  • N E Ver Turner
N.E.: Ver Turner, Terence. 1979. "The Ge and Bororo Societies as Dialectical Systems: a general model". In D. Maybury-Lewis (ed.) Dialectical Societies. Harvard. 147-178 e "Kinship, household and community structure among the Northern Kayapo". In. D. Maybury-Lewis (ed). Dialectical Societies. Harvard. 179-217. Sobre "hierarquia rotativa", ver também "Lo bello y lo común: desigualdades de valor y jerarquia rotativa entre los kayapo". Revista de Antropologia Social, 11(1): 201-18. Madrid. (2002). Deste artigo há uma versão inglesa: "The beautiful and the common: gender and social hierarchy among the Kayapo". Tipiti: The Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America 1(1): 11-26. (September 2003).