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O futebol como metáfora: a afirmação da identidade nacional nos discursos jornalísticos sobre a Copa do Mundo FIFA de 1950

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O presente artigo analisa os significados da Copa do Mundo de 1950 para o Brasil, à luz do cotejamento de um conjunto de discursos - crônicas, reportagens e imagens – presentes em periódicos da época, tais como as revistas Manchete e O Cruzeiro, além dos jornais Diário de Minas e Jornal dos Sports. Além de traçar um breve panorama social e econômico do país na década de 1950, o texto procura demonstrar as estratégias discursivas mobilizadas pela grande imprensa no sentido de promover o evento esportivo, mobilizando os pressupostos da identidade nacional em sintonia com os anseios desenvolvimentistas que ganhavam coro entre o empresariado e o governo da época. Nessa perspectiva, por um lado, a Copa do Mundo de 1950 se tornou uma espécie de vitrine do país para o exterior, por outro, contraditoriamente, foram escancaradas as mazelas sociais presentes no país. Ao fim e ao cabo, o texto permite conjecturar sobre as tensões e conflitos presentes no imaginário coletivo do país por meio do debate jornalístico em torno do esporte.
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Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.17, n.5, p. 01-21, 2024
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O futebol como metáfora: a afirmação da identidade nacional nos discursos
jornalísticos sobre a Copa do Mundo FIFA de 1950
Soccer as metaphor: the affirmation of national identity in journalistic
discourse on the 1950 FIFA World Cup?
El fútbol como metáfora: la afirmación de la identidad nacional en los
discursos periodísticos sobre la Copa Mundial de la FIFA 1950
DOI: 10.55905/revconv.17n.5-242
Originals received: 04/26/2024
Acceptance for publication: 05/17/2024
Euclides de Freitas Couto
Doutor em História
Instituição: Universidade Federal de São João del-Rei
Endereço: São João del-Rei Minas Gerais, Brasil
E-mail: euclides@ufsj.edu.br
RESUMO
O presente artigo analisa os significados da Copa do Mundo de 1950 para o Brasil, à luz do
cotejamento de um conjunto de discursos - crônicas, reportagens e imagens presentes em
periódicos da época, tais como as revistas Manchete e O Cruzeiro, além dos jornais Diário de
Minas e Jornal dos Sports. Além de traçar um breve panorama social e econômico do país na
década de 1950, o texto procura demonstrar as estratégias discursivas mobilizadas pela grande
imprensa no sentido de promover o evento esportivo, mobilizando os pressupostos da identidade
nacional em sintonia com os anseios desenvolvimentistas que ganhavam coro entre o
empresariado e o governo da época. Nessa perspectiva, por um lado, a Copa do Mundo de 1950
se tornou uma espécie de vitrine do país para o exterior, por outro, contraditoriamente, foram
escancaradas as mazelas sociais presentes no país. Ao fim e ao cabo, o texto permite conjecturar
sobre as tensões e conflitos presentes no imaginário coletivo do país por meio do debate
jornalístico em torno do esporte.
Palavras-chave: Copa do Mundo FIFA de 1950, discursos jornalísticos, identidade nacional,
imaginário coletivo.
ABSTRACT
This article analyzes the meanings of the 1950 World Cup for Brazil, by comparing a set of
discourses - chronicles, reports and images - found in periodicals of the time, such as the
magazines Manchete and O Cruzeiro, as well as the newspapers Diário de Minas and Jornal dos
Sports. In addition to outlining a brief social and economic panorama of the country in the 1950s,
the text seeks to demonstrate the discursive strategies mobilized by the mainstream press to
promote the sporting event, mobilizing the assumptions of national identity in line with the
developmentalist aspirations that were gaining traction among the business community and the
government of the time. From this perspective, on the one hand, the 1950 World Cup became a
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kind of showcase for the country abroad, while on the other hand, contradictorily, the country's
social ills were exposed. In the end, the text allows us to conjecture about the tensions and
conflicts present in the country's collective imagination through the journalistic debate around
sport.
Keywords: 1950 FIFA World Cup, journalistic discourses, national identity, collective
imaginary.
RESUMEN
Este artículo analiza los significados de la Copa del Mundo de 1950 para Brasil a la luz de un
conjunto de discursos - crónicas, reportajes e imágenes - encontrados en publicaciones periódicas
de la época, como las revistas Manchete y O Cruzeiro, así como los periódicos Diário de Minas
y Jornal dos Sports. Además de esbozar un breve panorama social y económico del país en los
años cincuenta, el texto pretende demostrar las estrategias discursivas movilizadas por la prensa
dominante para promover el acontecimiento deportivo, movilizando los presupuestos de la
identidad nacional en consonancia con las aspiraciones desarrollistas que ganaban adeptos entre
el empresariado y el gobierno de la época. Desde esta perspectiva, por un lado, la Copa del
Mundo de 1950 se convirtió en una especie de escaparate del país en el extranjero, mientras que,
por otro, contradictoriamente, quedaron al descubierto los males sociales del país. Al final, el
texto nos permite conjeturar sobre las tensiones y conflictos presentes en el imaginario colectivo
del país a través del debate periodístico en torno al deporte.
Palabras clave: Copa Mundial de la FIFA 1950, discursos periodísticos, identidad nacional,
imaginario colectivo.
1 INTRODUÇÃO
Aos 34 minutos do segundo tempo, o atacante uruguaio Ghiggia marcou o segundo gol
que deu a Copa do Mundo de 1950 à “celeste olímpica”. Naquele instante, nem ele nem,
provavelmente, qualquer outro estrangeiro tinham a noção exata da representatividade que o
futebol alcançava no imaginário coletivo dos brasileiros. Além dos mais de 200 mil espectadores
presentes no Maracanã naquela tarde de 16 de julho, uma nação inteira calava-se diante da
eminente derrota. O silêncio percebido no estádio
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parecia ter se espalhado pela nação. Como é
de costume na imprensa esportiva, as crônicas redigidas logo após a partida lançavam suas
flechas contra um único culpado: o goleiro Barbosa. Nelson Rodrigues, após alguns anos,
descreveu o lance do gol uruguaio como “o frango eterno” (Manchete, 13 mar 1959). A tônica
1
O atacante uruguaio Schiaffino, em entrevista ao jornal El Grafico y el Mundial, descreveu da seguinte maneira o
silêncio após o gol de Ghiggia: “Embora isso pareça incomum, foi a primeira vez em minha vida que senti algo que
não era ruído. Senti o silêncio. Parecia que havia tudo terminado.” (Perdigão, 1986, p. 142)
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das inúmeras discussões promovidas pela imprensa, nos dias que sucederam ao jogo, também se
relacionava à procura dos culpados pelo fracasso da seleção. Com o passar do tempo, surgiam
entre os cronistas novas versões para a derrota, nas quais os demais jogadores da defesa também
eram acusados. As críticas direcionavam-se ao fato de eles não terem utilizado o recurso da falta
para interromper o ataque uruguaio (Perdigão, 1986, p. 147-148). Contudo, a parte mais lúcida
da imprensa se auto culpou pela falsa expectativa criada em torno do futebol da seleção, como é
possível perceber na crônica intitulada “Derrota da Máscara”, redigida pelo jornalista David
Nasser, poucos dias após o fracasso brasileiro:
Somos tão responsáveis por êsse desfecho esportivo quanto os jogadores e o técnico.
Nós, os jornalistas que criamos a lenda da invencibilidade do onze brasileiro. E todos
que ajudaram a afivelar a máscara de imbatíveis, criando a exagerada certeza da vitória
que não veio. Todos somos culpados. Que história é essa, agora, de descarregar sôbre
os ombros de Bigode, de Barbosa, de Jair, de Flávio Costa, a responsabilidade por uma
derrota que é tão nossa quanto dêles e para qual contribuímos e pela qual nos
penitenciamos? A máscara estava atarrachada em nossos rostos, desde as goleadas, e o
Brasil perdeu o campeonato do mundo naquela tarde em que esmagou o quadro da
Espanha. Ratificamos, então, a nossa classe. Era um time imbatível, o nosso. (O
Cruzeiro, 29 jul. 1950, p. 15)
A crônica, além de informar sobre as inquietações em torno da derrota brasileira, revela,
por outro lado, a penetração do futebol no imaginário coletivo brasileiro. A revista O Cruzeiro,
assim como os principais jornais que circulavam no país, promoveram um amplo debate sobre o
fracasso do nosso futebol. O vexame dos canarinhos abriu espaço para que inúmeras críticas
fossem proferidas à organização do mundial, às mazelas sociais e à falta de responsabilidade das
autoridades com a população. Por outro lado, cronistas de grande expressividade da época, a
exemplo de José Lins do Rego, assumiram um tom assertivo e ufanista em seus discursos,
salientando o conjunto das virtudes do torcedor e do jogador brasileiro, como
representantes do próprio país (Hollanda; Santos, 2017, p.35).
Revisitada exaustivamente pela historiografia do esporte (Brinati, 2016; Couto; Lage,
2016; Hollanda; Santos, 2017) a IV Copa do Mundo FIFA, realizada no Brasil, em 1950, tem
fornecido inúmeras representações sobre a sociedade e a política nacional daquele período. Além
do mito da brasilidade, amplamente difundido pela imprensa esportiva, conforme demonstramos
alhures (Couto; Valente, 2016), questões ligadas ao desenvolvimento econômico e social do país
são frequentemente desveladas nas ocasiões em que a seleção brasileira de futebol disputa as
principais competições da agenda internacional. Assim, a disputa da Copa de 1950 em território
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nacional, se tornou um momento privilegiado para se compreender os sentidos que a imprensa
construía não apenas em torno do futebol brasileiro, mas, em um sentido mais amplo, aos
significados atribuídos à própria nação.
Considerando esse breve panorama, pressupomos que examinar as representações
produzidas pela grande imprensa brasileira sobre a IV Copa do Mundo FIFA nos lança um duplo
desafio historiográfico: o primeiro se relaciona à articulação do objeto de pesquisa às grandes
transformações sociais em curso naquele período que remetem à projeção do Brasil como nação
emergente após a II Guerra Mundial. Já o segundo, remete à inteligibilidade das revistas e jornais
como objetos culturais, que desempenham uma prática social, cujas estratégias discursivas
geralmente estão associadas a algum viés ideológico. Em grande medida, tratar os jornais como
fontes históricas, significa considerar a sua “relação circular com o real” (Espig, 1998, p.277).
Ou seja, considerar que os discursos jornalísticos possuem claramente a intenção de convencer
seus leitores que suas palavras traçam retratos fiéis da realidade (Barros, 2023, p.44). No caso da
Copa do Mundo de 1950, nossa hipótese é de que a grande imprensa se prestou como veículo de
propaganda dos anseios desenvolvimentistas, colocados em curso pelos discursos oficiais, o que
evidencia a sinergia entre o grande empresariado do país, o governo e os próprios veículos de
comunicação. Sobre este aspecto é interessante notar que até mesmo revistas de variedades como
O Cruzeiro e Manchete, os quais raramente veiculavam matérias sobre eventos esportivos,
produziram uma ampla cobertura sobre a Copa do Mundo de 1950. Muito embora, esses veículos,
inevitavelmente, contrastassem as grandes realizações relacionadas ao evento esportivo com as
mazelas sociais, a corrupção e à falta de organização, sintomáticos do subdesenvolvimento
brasileiro.
2 AS CONSTRADIÇÕES DO DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRO
Em uma matéria publicada em várias páginas da edição da revista O Cruzeiro, do dia 29
de julho de 1950, é reportado um relato sobre uma série de problemas ocorridos nas áreas interna
e externa do Estádio do Maracanã nas horas que antecederam a partida entre Brasil e Espanha,
válida pelo quadrangular final da Copa do Mundo de 1950. O tumulto criado pelas longas filas,
formadas tanto por pessoas que compravam ingressos como por outras que queriam entrar no
estádio, contabilizou um saldo de 262 feridos e um morto. Outras notícias evidenciam os
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problemas ocorridos na organização da Copa: na primeira página da edição do dia 15 de julho de
1950, o jornal Diário de Minas estampava, em uma de suas manchetes, que 17 mil ingressos da
partida final haviam desaparecido misteriosamente. A notícia ainda informava que as autoridades
policiais convocaram Irineu Chaves, superintendente da Confederação Brasileira de Desportos
(CBD), para dar explicações sobre tal sumiço. Esses fatos evidenciaram, simultaneamente, duas
faces do contexto histórico-político brasileiro vivido no início dos anos 1950: por um lado,
demonstraram a falta de preparo das autoridades para organizar um evento internacional de
tamanha proporção; por outro, permitiram que, naquelas circunstâncias, a imprensa utilizasse o
futebol para criticar as autoridades e denunciar as mazelas sociais do país. Sobre esse aspecto, a
historiadora Gisella Moura (1998) oferece uma opinião esclarecedora acerca do debate travado
pela imprensa em torno da questão sobre a construção do Estádio do Maracanã:
Enquanto o Jornal dos Sports não poupava elogios à obra, a Tribuna da Imprensa, jornal
de propriedade de Carlos Lacerda, não parava de criticar o estádio. Lacerda e seus
colaboradores atacaram o Estádio Municipal até o fim, estampando nas primeiras
páginas de seu jornal problemas da cidade, como a crescente favelização, a falta de
esgotos, de água e limpeza. Consideravam o estádio uma realização de menor
importância para a cidade e levantavam dúvidas quanto ao seu custo e à eficácia da
venda das cadeiras cativas. Os cronistas esportivos do jornal de Lacerda, apesar de
considerarem o estádio uma importante realização, criticavam a maneira de conduzir a
obra, dizendo que o objetivo era sobretudo enaltecer as figuras do prefeito e do
presidente da República (Moura, 1998, p. 47).
A Copa do Mundo de 1950 traduz nas linhas de sua história uma infinidade de
representações construídas sobre a sociedade brasileira. Em texto clássico, a socióloga Fátima
Antunes analisa a construção da identidade nacional por meio das crônicas de José Lins do Rego,
Mário Filho e Nelson Rodrigues. Em uma das peças selecionadas de “Zé Lins”, a autora chama
a atenção para o fato de que a representação criada na crônica traduz com riqueza de detalhes o
nacionalismo do povo brasileiro, dramatizado no sofrimento com a derrota na partida final:
Vi um povo de cabeça baixa, de lágrima nos olhos, sem fala, abandonar o Estádio
Municipal, como se voltasse do enterro de um pai muito amado. Vi um povo derrotado,
e mais que derrotado, sem esperança. Aquilo me doeu o coração. Toda a vibração dos
minutos iniciais da partida reduzidos a uma pobre cinza de fogo apagado. E, de repente,
chegou-me a decepção maior, a idéia fixa que se guardou na minha cabeça, a idéia de
que éramos mesmo um povo sem sorte, um povo sem as grandes alegrias das vitórias,
sempre perseguido pelo azar, pela mesquinharia do destino. (Jornal dos Sports, 18 jul.
1950 apud Antunes, 2004, p. 84-85)
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Fátima Antunes observa que a crônica de Zé Lins revela a ideia de que o futebol, naquele
momento, concretizava o sonho da unidade nacional: conseguia reunir pessoas de diferentes
classes sociais, religiões e sexos em um projeto comum, ou seja, torcer para a seleção do seu
país. Além dessa representação, muito explorada nos estudos realizados por Roberto Da Matta
na década de 1980, é possível refletir sobre outros aspectos presentes na crônica citada. Ao
mesmo tempo que apresenta sua satisfação com a demonstração de união do “povo” em torno da
seleção, o autor revela sua preocupação com o repertório de decepções da seleção, cujo ciclo se
iniciara na Copa de 1938. Naquela oportunidade, a seleção, apesar de ter mostrado um estilo de
jogo plástico e envolvente, havia sido superada pelos italianos, fato que resultou na sua
eliminação das finais expondo as suas fragilidades táticas e de preparação física.
2
A preocupação
do autor com o fracasso brasileiro nos campos de futebol refletia, em outros parâmetros, a
necessidade de afirmação da “nação brasileira” no contexto internacional que se constituía após
a II Guerra Mundial.
Durante a Era Vargas (1930-45), iniciou-se no Brasil um processo “tardio” de
industrialização alavancado pelo Estado. No curso deste período, o governo adotou uma política
de proteção tarifária que visava transferir dos estados para a União os valores arrecadados com
tributos. Não obstante, observou-se a atuação direta do Estado na produção de bens de capital e
o significativo investimento de recursos para o desenvolvimento da infraestrutura produtiva do
país. Essas medidas surtiram efeitos ambíguos no início dos anos 1950. Ao mesmo tempo que
impulsionava o país nos trilhos da modernização capitalista, colocando no mercado bens e
serviços a baixo custo, o Estado contribuía para o aumento do quadro inflacionário, devido ao
volume de emissões de moeda somado ao enorme fluxo de remessas para o exterior de capitais
referentes aos royalties pagos às filiais de empresas estrangeiras instaladas no país (Anastasia,
2002, p. 20-21). Em 1938, a renda do setor industrial superava as registradas pelo setor
agrícola, dado que demonstrava uma nova vocação da economia brasileira. Como resultado da
modernização capitalista, a região sudeste do país, em especial, experimentou, destacadamente
após a década de 1940, um intenso processo de urbanização impulsionado pelo crescimento
vegetativo e pelos fluxos de imigrantes nordestinos que buscavam seu espaço principalmente nas
2
De acordo com Nogueira (2006, p. 232), a ausência de Leônidas na partida semifinal contra a Itália, motivada por
uma distensão muscular, abalou psicologicamente o grupo de jogadores brasileiros, que não estaria preparado para
jogar sem seu maior craque. Aquino (2002, p.61) atribui a eliminação do Brasil ao descontrole emocional de
Domingos da Guia que, nesta mesma partida, agrediu um jogador italiano após ser exaustivamente provocado. Tal
agressão resultou na marcação de um pênalti que foi convertido a favor dos italianos.
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indústrias e na construção civil, ocupando as periferias do Rio de Janeiro e São Paulo (Ianni,
1977, p. 64-65). Como consequência desse processo, essas cidades experimentaram a rápida
formação das camadas médias e populares, que incorporavam os funcionários públicos,
trabalhadores autônomos, operários, trabalhadores da construção civil e uma pluralidade de
outros postos criados para aqueles com pouca qualificação profissional. O Censo de 1950
indicava que 46% da população brasileira vivia nas cidades, onde 60% dos domicílios possuíam
energia elétrica, 39,5% água encanada e 71,3% instalações sanitárias (Alberti, 2002, p. 305). Foi
nesse período que se verificou, entre as camadas médias urbanas, o aumento significativo do
consumo de automóveis, eletrodomésticos e alimentos industrializados. A incorporação dos
hábitos de consumo se inspirava principalmente nos modelos ditados pelo american way of life.
O supermercado tornou-se, nesse contexto, um exemplo característico dos novos padrões de vida
requisitados pelas emergentes classes médias urbanas.
O sistema de radiofonia nacional continuava experimentando os altos índices de
crescimento da década de 1930: entre os anos de 1944 e 1950, o número de emissoras
praticamente triplicou; a participação publicitária na programação foi estimulada a partir de 1952,
quando uma nova legislação ampliou para 20% a publicidade no rádio brasileiro (Ortiz, 1991, p.
40). É neste período que o cinema se torna, de fato, um bem de consumo para as populações
urbanas brasileiras. Seja através da disseminação das produções norte-americanas, que viam na
América Latina um mercado promissor para suas películas, seja pela tentativa de criação da
indústria cinematográfica brasileira
3
, a “sétima arte” se consolidou como uma das formas de
entretenimento mais importantes nas cidades.
Era neste cenário que em 1950 os brasileiros apostavam todas as suas fichas na seleção
de futebol. A 2ª Guerra Mundial havia impedido a realização dos mundiais de 1942 e 1946. Com
a Europa em processo de reconstrução, a candidatura do Brasil a sede da próxima Copa,
apresentada oficialmente em 1946, foi vista com bons olhos pelo comitê organizador da FIFA.
Se, para a FIFA, a realização da Copa do Mundo em um país da América Latina inseria o Brasil
definitivamente no projeto expansionista traçado pela entidade maior do futebol mundial; para o
governo federal, a realização da Copa no país era uma oportunidade única de mostrar ao mundo
3
Referimo-nos especialmente às companhias Atlântida e Vera Cruz. A primeira era conhecida por uma produção
caracterizada pelas temáticas popularescas, como o samba e o futebol, difundidas nas chanchadas. A segunda,
inspirada em padrões internacionais, produzia películas que ilustravam, por meio dos melodramas, o imaginário
pequeno burguês preconizado pela elite paulistana (Galvão, 1981).
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as potencialidades de uma nação que trilhava os caminhos de um suposto desenvolvimento. O
futebol, neste aspecto, caía no gosto dos governantes por se inserir no rol das práticas modernas,
dignas de serem expostas como símbolo nacional. Se, desde os primeiros anos do século 20, os
europeus já reconheciam o esporte bretão como uma arena legítima para a dramatização de suas
rivalidades étnicas, foi no Brasil dos anos 1950 que o futebol adquiriu os contornos de um
símbolo nacional à medida que foi sendo amplamente apropriado pela população.
3 COPA DO MUNDO E IDENTIDADE NACIONAL: FORJANDO A GRANDE NAÇÃO
NOS DISCURSOS JORNALÍSTICOS
A esta altura dos acontecimentos, os meios de comunicação, sobretudo o rádio e os
jornais, já haviam dado sua grande parcela de contribuição para a construção de uma linguagem
compartilhada em torno do futebol, fornecendo os elementos necessários para a disseminação do
sentimento de nacionalidade. O sociólogo Richard Giulianotti (2002, p.43) argumenta que o
nacionalismo condensado em uma forma de jogo cria uma espécie de celebração da identidade
nacional na qual as outras formas de exteriorização da identidade são “categoricamente
excluídas”. Tal sentimento parece conspirar para que todos os esforços racionais, sentimentais e
simbólicos sejam direcionados para o esporte e o conjunto de símbolos que o cercam. A Copa do
Mundo de 1950 evidencia um momento em que é possível perceber todo este “esforço” simbólico
em torno do futebol. Nesse sentido, é interessante observar que os periódicos que circulavam
durante a disputa do mundial, além de retratarem um quadro de grande esperança nacional em
torno do scratch brasileiro, estampavam em suas páginas o duplo orgulho dos brasileiros, que se
expressava na alegria em sediar a Copa e oferecer às grandes nações o maior estádio de futebol
do mundo:
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Figura 1 Maracanã: o grandioso.
Fonte: O Cruzeiro 22 jul. 1950, p. 22.
Ao evocar a grandiosidade do estádio e comparar o futebol brasileiro à música, um dos
traços culturais brasileiros mais prestigiados na cena internacional, a reportagem da revista O
Cruzeiro procura construir a sinergia entre os dois elementos (música/futebol), colocando-os no
mesmo patamar. Em outra reportagem publicada na mesma edição, também assinada pelo
jornalista David Nasser, a revista reforça a simbiose entre a música e o futebol ao comparar as
goleadas aplicadas pelos brasileiros nos suecos e espanhóis:
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Figura 2 Em ritmo de samba.
Fonte: O Cruzeiro 22 jul.1950, p.13.
O ponto central da crônica de Nasser sugere a seguinte interpretação: à medida que os
jogadores brasileiros vão, simbolicamente, vencendo seus adversários “em ritmo de samba”, o
futebol vai adquirindo feições de um jogo genuinamente “brasileiro”, na medida que que passa a
ocupar um espaço de domínio coletivo, onde as pessoas comuns se sentem pertencentes e
identificadas. O samba, neste contexto, era definido como um ritmo musical autenticamente
nacional, pois incorporava os elementos definidores de nossa suposta identidade mestiça,
difundida pela intelectualidade e pelos cronistas esportivos da época. Ginga, malícia,
sensualidade, improvisação e alegria ao incorporarem ao futebol essas características presentes
no samba, os jogadores brasileiros redimensionavam o esporte de forma simbólica, elevando-o
ao status de símbolo nacional, e consolidavam
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nos campos brasileiros uma nova maneira de
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No mundial de 1938, a imprensa esportiva já destacava os talentos individuais de Leônidas da Silva e o estilo de
jogo descontraído e repleto de improvisações apresentado pela seleção brasileira. Sobre esta questão, Silva (2004)
oferece uma ampla discussão sobre a formação do estilo brasileiro de jogar futebol. Suas análises, realizadas
especialmente no capítulo 2, intitulado “A conquista do campeonato mundial de 1938 como uma das formas de
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jogar que se contrapunha ao estilo de jogo europeu, caracterizado pela racionalidade e pela
obediência aos padrões técnicos.
Na atmosfera criada em torno da Copa de 1950, percebemos o clima conduzido pelo
futebol de afirmação do nacionalismo e do patriotismo. Os cronistas conclamavam o povo
brasileiro a se orgulhar do seu país. A realização da Copa do Mundo e, novamente, a construção
do Maracanã eram comparados a outros “importantes” fatos históricos que ilustravam a trajetória
“gloriosa” da nação:
Muita admiração tem tido o povo diante do Estádio Municipal. As proporções do
monumento, sagrado pela orgulhosa afirmativa de ser o maior do mundo, as
extraordinárias comodidades previstas para os seus freqüentadores, a perfeição técnica
da estrutura, lisonjeiam a nossa vaidade. Enfim, fizemos alguma coisa verdadeiramente
única! Pois não é certo que, donos de um dos maiores países do mundo e onde tantas
obras da natureza são agigantadas, sofremos um complexo de mesquinhez que se revela
pelo acanhado das realizações humanas? Aflige-nos o temor de realizar as coisas, tendo
menos vista as necessidades de hoje do que as de amanhã. É sabido que quando o
Prefeito Pereira Passos abriu a Avenida Central, considerava-se que estivesse atacado
de megalomania. Para que uma rua tão larga, rasgada de mar a mar, se não há tráfego
nem de veículos nem de pedestres para justificá-la? Assim éramos no começo do século.
Assim continuamos a ser no meio do século. Mas os aplausos com que está sendo
recebido o Estádio, a gloriosa e consoladora sensação de possuir algo que é ‘o maior do
mundo’, batendo os ‘records’ americanos nessa espécie de grandeza, talvez nos libertem
desse complexo de mesquinhez que estabelece tão rude contraste entre o que faz o
homem do Brasil e as imponentes majestades com que nos dotou a natureza. [...] Que
Inglaterra, a França ou a Alemanha se metessem conosco! Os feitos do Paraguai
deixavam os de Napoleão na sombra e a batalha do Riachuelo fazia de Trafalgar e de
Nelson coisas sem a mínima importância histórica. (“Ufano-me do meu país!”, O
Cruzeiro, 29 jul. 1950, p. 05)
O longo fragmento da crônica, assinada por Austregésilo de Athayde, insere-se no
conjunto de representações inscritas no imaginário coletivo dos anos 1950. O Brasil precisava se
afirmar no contexto político internacional como uma das grandes nações democráticas; para isso,
a melhor solução seria jogar no esquecimento a recente experiência autoritária vivida nos tempos
de Getúlio Vargas. Assim, os cronistas construíam representações que visavam legitimar o
caráter agregador e democrático do futebol. O esporte, representado pelo “estádio-monumento”,
assumia feições de uma arena democrática onde ricos e pobres partilhavam das mesmas emoções,
igualavam-se nas vitórias e nas derrotas e aplaudiam os mesmos heróis. Nas crônicas e
fotografias que circularam no período da Copa, é possível perceber o forte apelo à participação
propaganda de regimes políticos”, enfocam principalmente as representações do futebol brasileiro construídas nos
periódicos que circulavam na época do Mundial da França.
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familiar desencadeado pela imprensa. Moura (1998, p. 73) sinaliza que a função incumbida ao
Maracanã de promover a comunhão popular parecia ter surtido efeito. Notava-se nos jogos da
seleção brasileira a presença de muitas famílias e mulheres que ocupavam as arquibancadas e
cadeiras. Segundo a autora, a ausência feminina nos jogos que precederam a construção do
Maracanã poderia ser atribuída à falta de conforto dos outros estádios do Rio de Janeiro
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No cenário econômico, o país deveria apresentar os potenciais humanos e tecnológicos
que o credenciariam a marchar rumo ao desenvolvimento capitalista orquestrado pelos norte-
americanos. Na década de 1950, o Brasil era conhecido mundialmente por suas belezas
naturais e pela espontaneidade de seu povo. Contudo, o cenário internacional que se construía no
pós-guerra exigia que o país modernizasse sua economia e sua infraestrutura produtiva, de forma
a promover as condições necessárias para a expansão do mercado consumidor interno. Neste
aspecto, a Copa do Mundo contribuiu substancialmente para que muitos produtos brasileiros
fossem conhecidos internacionalmente. O jornal Diário de Minas, nas edições que circularam
durante a Copa de 1950, estampou diferentes informes publicitários alusivos ao Guaraná
Antarctica (Figura 3) o fabricante havia assinado um contrato de publicidade com a seleção
uruguaia no qual uma das cláusulas previa que os jogadores não poderiam aparecer em público
tomando outra bebida que não fosse o refrigerante da empresa.
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Um relato bastante esclarecedor sobre esta questão pode ser visto na crônica intitulada “A mulher na Copa do
Mundo”, publicada no Jornal dos Sports em 26 de julho de 1950.
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Figura 3 Peça publicitária da Antarctica nos anos 1950.
Fonte: Diário de Minas, 02 jul. 1950, p. 8.
Nas edições da revista O Cruzeiro circulantes no período da Copa do Mundo, é possível
perceber, em diversas peças publicitárias, a vinculação dos produtos e das próprias empresas ao
futebol. Os publicitários, pelo visto, perceberam o interesse da população pelo esporte e o
transformaram em um espaço perfeito para o anúncio de seus produtos:
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Figura 4 Peça publicitária da Kosmos Capitalização S. A. nos anos 1950.
Fonte: O Cruzeiro, 29 jul. 1950, p. 21.
Na peça publicitária acima, uma empresa do setor financeiro compara sua carteira de
clientes ao número de pessoas que caberiam no Maracanã. Do ponto de vista comunicacional,
numa primeira impressão, o anúncio tenta apenas associar a imagem da empresa à grandiosidade
do estádio, estabelecendo uma relação direta entre o número de seus clientes e a capacidade de
público da arena esportiva. No entanto, ao analisarmos o cenário por uma perspectiva mais
abrangente, visualizando o painel histórico-social que se conformava naquele período,
percebemos que as referências simbólicas extraídas do futebol passaram a permear a vida
cotidiana dos brasileiros em seus aspectos mais sutis. Em outras palavras, podemos notar que os
anúncios publicitários veiculados nos jornais, nas rádios e, posteriormente, na televisão, ao
tomarem o futebol como referência simbólica, contribuíram decisivamente para ampliar o
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interesse da população pelo esporte bretão.
A frequente associação de produtos, empresas e pessoas aos símbolos do futebol,
principalmente a partir de 1950, instiga-nos a fazer duas considerações acerca dos significados
assumidos pelo futebol brasileiro neste período. A primeira, de cunho sociológico, diz respeito à
identificação, no país, de um campo esportivo
6
que se conformava a partir dos múltiplos esforços
empreendidos pelas instituições sociais interessadas na difusão do futebol. A população via no
futebol uma forma legitimada pela sociedade de extravasar suas emoções, construir laços de
sociabilidade e compartilhar sentimentos de nacionalismo (Elias; Dunning, 1996). A segunda,
inspirada na teoria do utilitarismo de David Hunt, leva a acreditar que os interesses econômicos
do Estado, das entidades organizadoras e das empresas se apropriaram do capital simbólico
construído pela emoção e pela fidelidade dos torcedores. Tal apropriação possibilitou que estas
instituições apelassem aos sentimentos dos torcedores para comercializar e construir sua imagem,
associando-a ao futebol. Nesse sentido, as Copas do Mundo, organizadas quadrienalmente pela
FIFA, são ocasiões especiais para o aquecimento da economia em vários segmentos do mercado.
Os mundiais concentram, desde a década de 1950, grande volume de investimentos em
publicidade por parte das grandes empresas e em obras de infraestrutura por parte dos
governos , promovendo o aquecimento do setor turístico, com a reforma e a construção de hotéis
e diversos equipamentos afins.
Isso permite compreender que, no novo contexto iniciado na década de 1930 com o
advento da profissionalização dos jogadores e a efetiva participação do Estado, que controlava
as entidades organizadoras, o futebol brasileiro experimentou um processo de racionalização (na
acepção weberiana do termo) no qual, paulatinamente, foi perdendo suas características de um
simples jogo e assumindo as formas de um esporte moderno. Além da profissionalização dos
jogadores, diversas áreas de conhecimento procuraram se aprimorar para oferecer ao futebol
serviços mais qualificados. Observamos a especialização dos treinadores, preparadores físicos,
médicos e fisiologistas, além da criação de inúmeras novas funções no interior do jornalismo
esportivo para atender à crescente demanda dos aficionados pelos espetáculos de futebol. Esse
período de “transição” também pode ser caracterizado pela incorporação de regras fixas,
6
Bourdieu (1983, p. 138), ao se apropriar da teoria elisiana dos campos sociais, argumenta que, quando as atividades
físicas e os esportes de forma geral passaram a ser organizados, administrados e conceituados pelas entidades
pertencentes ao Estado ou à própria sociedade civil, passaram a constituir um campo esportivo.
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universalizadas e estabelecidas por uma entidade organizadora neste caso, a FIFA que,
sobretudo após a 2ª Guerra, adquiriu legitimidade mundial.
A acumulação dos esforços empreendidos desde o início do século 20 pelo Estado, pela
imprensa e pelas próprias entidades escolares, no sentido de difundir as teorias higienistas no
interior da sociedade, acabaram contribuindo para a construção, no imaginário coletivo
brasileiro, do que Bourdieu (1983, p. 142) denominou de uso legítimo do corpo. Para o sociólogo
francês, as práticas esportivas tornaram-se espaços socialmente legitimados para a encenação das
rivalidades individuais e coletivas, enquanto o corpo adquiriu um novo status social,
hierarquizado por sua performance atlética:
Com efeito, sabe-se que a possibilidade de praticar um esporte depois da adolescência
(e a fortiori na idade madura ou na velhice) decresce muito nitidamente à medida em
que se desce na hierarquia social (assim como a probabilidade de fazer parte de um
clube esportivo), enquanto a probabilidade de assistir pela televisão (a freqüência nos
estádios na qualidade de espectador obedecendo a leis mais complexas) aos espetáculos
esportivos considerados mais populares, como o futebol ou o rugby, decresce muito
nitidamente à medida em que se sobe na hierarquia social (Bourdieu, 1983, p. 143).
A relação de proporcionalidade entre as adesões às práticas e aos espetáculos esportivos,
pensadas a partir das classes sociais, auxilia na compreensão dos significados que o futebol
passava a assumir no cenário esportivo brasileiro que se conformava nos anos 1950. Neste
período, a consolidação de uma sociedade urbano-industrial (Costa, 1986) possibilitou a
formação de um mercado consumidor de espetáculos e produtos esportivos direcionados aos
diferentes segmentos sociais que se estruturavam nas cidades brasileiras. O futebol,
especialmente no Brasil, “contrariou” algumas regras do mercado, pois foi apropriado nos
diversos extratos sociais, tornando-se o esporte mais “consumido” por todas as classes (Helal,
1997). Essa democratização experimentada pelo futebol brasileiro pode ser, em certa medida,
explicada pela formação na sociedade do sentimento denominado por Arlei Damo de
pertencimento clubístico:
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A adesão a um clube, uma vez empenhada, é tida como definitiva “eterna”, no
vernáculo êmico. Ela tem o mesmo estatuto dos vínculos de sangue, tipos na nossa
cultura como indissolúveis. A hipótese mais provável que tal peculiaridade esteja
relacionada com a tendência, apontada anteriormente, do clube do coração ser uma
escolha tutoriada pela parentela masculina consangüínea pai, avô, tio, primo etc. (...)
O clube é uma entidade sagrada: por representar a coletividade, por ser o elo temporal
entre passado, presente e futuro; por se espelhar pertencimentos extra-futebolísticos e,
sobretudo, por ser uma projeção no indivíduo, dos afetos familiais. O clube sela a
unidade da parentela masculina, solidária no êxito e no fracasso (Damo, 2006, p. 50).
A abordagem de cunho antropológico realizada pelo autor permite compreender, no
universo futebolístico dos anos de 1950, uma rica gama de dramatizações presentes nos vínculos
sentimentais observados na relação entre os torcedores e os seus respectivos clubes. Em primeiro
lugar, é possível reconhecer um forte sentimento de pertencimento clubístico nas inúmeras
demonstrações de rivalidade local que se consolidavam naquela época a saber: Grêmio x
Internacional, em Porto Alegre; Flamengo x Fluminense, no Rio de Janeiro; Atlético x Cruzeiro,
em Belo Horizonte; Bahia x Vitória, em Salvador assim como tantas outras de menor
repercussão espalhadas em todo o território nacional. Em segundo, é preciso observar que os
laços de pertencimento clubístico possuíam também uma forte relação com a hierarquia social.
Os grandes clubes brasileiros, em sua maioria fundados pelas elites no início do século 20, havia,
na metade do século, assumido uma representação social bem definida, de acordo com a
trajetória de assimilação, em seus quadros, de atletas, sócios e torcedores das classes subalternas.
Clubes como o Flamengo, o Corinthians, o Atlético e o Internacional ficaram conhecidos como
“times de massa”, enquanto o Fluminense, o São Paulo, o Cruzeiro e o Grêmio representavam a
elite.
Nessa perspectiva, podemos avaliar que a criação das mascotes dos clubes de futebol,
sobretudo pelos jornalistas, acendeu ainda mais o interesse da população pelo futebol, ao
incrementar o universo das rivalidades clubísticas com os elementos simbólicos de identificação
social presentes no sistema de classes brasileiro. Na década de 1950, a ligação com o “clube do
coração” vinculava-se diretamente ao status social. Assim, a condição de torcedor de
determinado time conferia também um traço identitário correspondente à posição do indivíduo
no sistema de estratificação social, o que facilitava a introdução do futebol como um assunto
recorrente na vida cotidiana.
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Percebemos que tais correspondências presentes na relação entre os clubes de futebol e a
classe social de seus torcedores serviram e ainda servem para fomentar as rivalidades
clubísticas que, por sua vez, se constituem como um dos elementos basilares para a
inteligibilidade das relações socioculturais e políticas que configuram o universo do futebol
brasileiro, especialmente a partir dos anos 1950.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a década de 1950, a consolidação do futebol como um dos símbolos da identidade
nacional pôde ser constatada por meio dos sentimentos extremos de paixão exteriorizados tanto
nos momentos das “desilusões” quanto nas vitórias ocorridas na trajetória da seleção brasileira.
O futebol, gradativamente, ampliou seu espaço no imaginário coletivo do país, como podemos
constatar na análise dos periódicos que circulavam da época. O volume significativo de
informações e de peças publicitárias relacionadas ao futebol veiculadas sobre a Copa do Mundo
de 1950 nos principais veículos do país, atesta nossa hipótese de que o evento contribuiu de modo
expressivo para a consolidação do esporte bretão como um dos principais canalizadores da
identidade nacional.
No âmbito do discurso jornalístico, além das crônicas e reportagens, o futebol passou a
ser incorporado pelas peças publicitárias, fato que evidenciava o seu alto grau de penetrabilidade
na sociedade. Nessa direção, o conjunto de fontes cotejadas por esta pesquisa reportagens,
crônicas e imagens- revela as estratégias discursivas mobilizadas pelos veículos de imprensa no
sentido de associar o futebol ao panteão de símbolos nacionais. Um exemplo emblemático dessa
narrativa foi observado nos discursos sobre a construção do Maracanã: metaforicamente, a
grandiosidade do estádio assumiu contornos da grandiosidade do próprio país. O maior estádio
do mundo na época, além de se tornar um lugar de memória, posteriormente, converteu-se em
um símbolo da própria brasilidade, evidenciando, conforme sugeriu Eric Hobsbawm (1991), que
o futebol possui uma grande eficácia em inculcar sentimentos nacionalistas, de modo a criar
sinergia entre as pessoas e a nação.
Em 1950, a ampla mobilização política e social em torno da realização da Copa do Mundo
no Brasil contrastou com o sentimento de decepção provocado pela derrota para os uruguaios na
partida final da competição. Interpretada no campo da antropologia social como um ritual
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dramático da nação (Voguel, 1982), a Copa do Mundo de 1950 revelou a frustração com a perda
do mundial de 1950, como também ressignificou os pressupostos em que se estabeleciam
discursivamente as representações da nação, revelando, assim, as tensões e conflitos presentes
no imaginário coletivo do país por meio do debate jornalístico em torno do esporte.
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O presente artigo estabelece uma discussão acerca da utilização de fontes jornalísticas na pesquisa histórica. Através de exemplos referentes ao movimento do Contestado, tenta contribuir metodologicamente para uma conveniente utilização do material jornalístico, tecendo comentários a partir de considerações teóricas oriundas da história cultural recente.
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No livro Estado e Planejamento Econômico no Brasil, Ianni faz uma análise das políticas do Estado para o desenvolvimento da economia brasileira. O autor delimita esta análise considerando o período compreendido entre o golpe de Vargas em 1930 e o golpe militar de 1964. As políticas de planejamento econômico relevantes dos governos que compuseram este período, juntamente com uma contextualização histórica, são apresentadas na obra. Ianni inicia seu estudo caracterizando o contexto político e econômico brasileiro que antecede o governo Vargas. A depressão econômica de 1929 simbolizou uma ruptura do antigo modelo político que permitia que as oligarquias agrárias tivessem total controle sobre a economia brasileira. O autor situa Vargas como um inovador, que deu um novo rumo à economia. A burguesia urbana brasileira, grupo que deu sustentação ao golpe e ascende ao poder, teve oportunidade, naquele momento, de propor um novo modelo econômico para o Brasil, baseado em planejamento e urbanização. A prioridade do novo governo foi desenvolver o processo industrial brasileiro, o que significou uma ruptura com o antigo modelo econômico agroexportador e com a oligarquia cafeeira que controlava a economia do país até então. O autor tem uma postura conservadora em relação ao tema proposto. Apesar de falar do modelo econômico, não dá ênfase em seus estudos ao contexto social, citando-o apenas de maneira superficial. Uma possível justificativa para esta postura é o contexto político no qual o livro foi publicado, que foi o da ditadura militar. Neste período, nenhuma forma de oposição era admitida, o que levou Ianni a expor suas críticas às políticas econômicas de forma extremamente sutil. Este artifício é revelado principalmente quando 1 Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Falecido em 4 de abril de 2004. Nascido em 1926, Ianni se formou em Ciências Sociais na USP, onde fez mestrado, doutorado e livre-docência. Foi professor em universidades brasileiras e em outros países, como México, Estados Unidos, Espanha e Itália. É considerado um dos principais sociólogos do País, ao lado de Florestan Fernandes e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Durante o regime militar, Ianni foi proibido de dar aulas na USP e encontrou refúgio na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ianni participou da chamada escola de sociologia paulista, que traçou um panorama novo sobre o preconceito racial no País. Nos últimos anos, dedicou seus estudos à globalização, deixando claro sua visão crítica em artigos e livros. Mesmo doente, nos últimos meses de vida, o professor continuava atendendo alunos e pesquisadores em sua sala no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Suas principais obras são: Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960, em colaboração); Homem e sociedade (1961); Metamorfoses do escravo (1962); Industrialização e desenvolvimento social no Brasil (1963); Política e revolução social no Brasil (1965); Estado e capitalismo no Brasil (1965); O colapso do populismo no Brasil (l968); A formação do Estado populista na América Latina (1975); Imperialismo e cultura (1976); Escravidão e racismo (1978); A ditadura do grande capital (1981; Revolução e cultura (1983); Classe e nação (1986); Dialética e capitalismo (1987); Ensaios de sociologia da cultura (1991); A sociedade global (1992). * Licenciada em historia pela UNESC e Especialista em políticas publicas pela UDESC.
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Do viralatismo à crítica engajada: a ambivalência nas crônicas de Juca Kfouri em tempos de megaeventos esportivos
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  • Castelano
VALENTE, Alan Castelano. Do viralatismo à crítica engajada: a ambivalência nas crônicas de Juca Kfouri em tempos de megaeventos esportivos. Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.3, p. 141-156, 2016.