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DOI
A LUZ E A HIPÓSTASE NA TRADIÇÃO
ORTODOXA GREGA
LIGHT AND HYPOSTASIS IN THE GREEK ORTHODOX
TRADITION
Tatiana Oliveira Ribeiro*
Henrique Fortuna Cairus**
Síntese: Este artigo tem como objetivo tornar público uma parte da
pesquisa acerca do conceito de ‘luz’ na Tradição teológica e, sobretudo,
litúrgica da Igreja Ortodoxa de tradição grega, a partir de sua represen-
tação do conceito de ‘hipóstase’. Tendo como ponto de partida a inter-
pretação da expressão ‘luz de luz’ [φῶς ἐκ φωτός (phôs ek phōtós)] do
texto do Símbolo Nicenoconstantinopolitano, o artigo apresenta uma
proposta de interpretação do conceito de ‘representação’, para esse caso
específico, baseada na ideia de apomímesis, e aplica tal conceito a uma
leitura do lugar da ‘luz’ nas Escrituras, na Patrologia e nas Liturgias
orientais gregas.
Palavras-chave: Luz; Hipóstase; Ortodoxia grega; Liturgia oriental.
Abstract: This article aims to make public part of the research on the
concept of ‘light’ in the theological and, above all, liturgical tradition of
the Greek Orthodox Church, based on its representation of the concept
of ‘hypostasis’. Taking as a point of departure the interpretation of the
expression ‘light of light’ [φῶς ἐκ φωτός (phôs ek phōtos)] of the text of
the Niceno-Constantinopolitan Symbol, the article presents a proposal
for the interpretation of the concept of ‘representation’ for this specific
case, based on the idea of apomímesis, and applies this concept to a rea-
ding of the place of ‘light’ in the Holy Scripture, in the Patrology and
in the Greek Eastern Liturgies.
Keywords: Light; Hypostasis; Greek Orthodoxy; Oriental Liturgy.
* Doutora em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010). Professora
Associada de Língua e Literatura Grega e docente do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em
Linguística Aplicada da mesma Universidade. ORCID iD:<https://orcid.org/0000-0002-7715-2569>.
E-mail: <tribeiro@ufrj.br>.
** Sacerdote ortodoxo (Patriarcado Ecumênico). Doutor em Letras Clássicas pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1999). Professor Titular de Língua e Literatura Grega e docente do Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da mesma Universidade. E-mail: <hcairus@ufrj.br>.
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T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
Introdução
Nosso objetivo aqui é discorrer, à luz das tradições greco-ortodoxas,
sobre a expressão ‘luz de luz’ [φῶς ἐκ φωτός (phôs ek phōtós)]1 do Sím-
bolo da Fé (Credo), o Símbolo do Primeiro Concílio de Niceia, de 325,
segundo, sobretudo, o testemunho da Carta de Eusébio de Cesareia
(325) aos seus diocesanos (PG 20, 1540BC).
A sequência apositiva ‘Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verda-
deiro’ [Φῶς ἐκ φωτός, Θεός ἀληθινός ἐκ Θεοῦ ἀληθινοῦ] exige, por si,
uma leitura de φῶς (phôs) a partir de sua relação com Deus. Para além
disso, a carga semântica do aposto recai sobre a ideia de proveniência. A
ênfase, portanto, da expressão não está em φῶς, mas em “ἐκ”.
1. Para além da metáfora: a losoa a serviço da
inteligibilidade teológica
Os fisiólogos gregos – e talvez outros antes deles –, para falar do
princípio fundamental, da ἀρχή (arkhé), já usavam um dispositivo dis-
cursivo que se situava entre a conotação e a denotação, frequentando
simultaneamente os dois processos referenciais.
O conhecido axioma de Tales, segundo o qual “tudo é água”, é o
exemplo mais antigo de que dispomos, ao menos no Ocidente, des-
se processo ou dispositivo. Segundo Diógenes Laércio, Tales propõe
a água como ἀρχή (arkhé) de todas as coisas [ἀρχὴν δὲ τῶν πάντων
ὕδωρ ὑπεστήσατο] (DK11A1, D.L.1,27). Isso significa que a água está
presente em tudo, como matéria primordial, como princípio ativo (ou
seja, princípio agente) e, por conseguinte, como aspecto morfológico ou
comportamental. A partir da água, para Tales, tudo que existe são seus
εἴδη (éide).
Aristóteles, em sua Metafísica (I, 3, 983b), explica como entende
essa ideia de Tales:
A maioria dos primeiros a filosofarem acreditaram que os únicos princí-
pios de todas as coisas estão em espécie2 de matéria. Pois aquilo a partir do
1. Os termos transliterados seguem o princípio convencional e internacional preconizado pela
escola de Cambridge, mas, quando se trata de termos relacionados à Liturgia e à Teologia Ortodoxas,
utiliza-se aqui o critério fonológico com base na pronúncia bizantino-moderna, usada nas Igrejas Orien-
tais de todas as tradições, inclusive naquelas sob Roma.
2. Ressalta-se aqui que o termo εἶδος (êidos) se refere às categorizações aristotélicas.
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qual existem todas as coisas, e o primeiro a partir do qual se geram e para
cujo fim se corrompem, permanecendo a substância, mas mudando nos
acidentes (τοῖς πάθεσιν), afirmam que é [esse] o elemento (στοιχεῖον) e o
princípio (ἀρχή) de todas as coisas que existem; por isso creem que nada
se gera nem se corrompe, pois tal natureza se conserva sempre.3
Aristóteles vê, pois, na teoria desses a quem chama de “os primeiros
a filosofarem”, destacando o nome de Tales, uma certa antítese à sua
própria teoria, que constrói uma concepção linear de tempo a partir de
seu caráter cíclico, do qual fazem parte, também (e parte fundamental),
a geração e a corrupção.
Chamemos, pois, a essa ideia da água de Mileto, que ultrapassa a
metáfora, porquanto não é mera figura – sem deixar de sê-lo –, e atinge
o nível ontológico; chamemo-la de ‘representação essencial’.
Postulamos aqui que essa ‘representação essencial’, essa operação
cognitiva que compreende uma participação ontológica e figurativa si-
multaneamente, foi codificada pela Medicina grega no século V a.C., e
recebeu o nome de ἀπομίμησις (apomímesis).4 Essa ἀπομίμησις trata da
relação do todo com a parte, núcleo do pensamento hipocrático, como
lembra Platão (Fedro, 270c), e, por conseguinte, cerne do pensamento
categorizador aristotélico. A ἀπομίμησις consiste nesse ato mental de
compreender a parte como representante do todo, sem deixar de ser,
essencialmente, esse todo; pois, integrando-o, representa-o, reprodu-lo
e não deixa de sê-lo. Em outras palavras, essa ‘representação essencial’,
essa ἀπομίμησις, não é menos do que representar, reproduzir e ser, a
um só tempo.
Não seria essa mesma ‘representação essencial’ o fogo de Heráclito,
por exemplo? E o que dizer, senão isso, das quatro raízes de Empédocles,
que lhe serviram de base para toda uma cosmogonia?
Esses στοιχεῖα (stoikhêia) que compõem essas ἀρχαί (arkhái) cum-
prem um trajeto na história do pensamento ocidental. O ponto de par-
tida, como detectou Werner Jaeger em sua obra A teologia dos primeiros
3. τῶν δὴ πρώτων φιλοσοφησάντων οἱ πλεῖστοι τὰς ἐν ὕλης εἴδει μόνας ᾠήθησαν ἀρχὰς εἶναι
πάντων ἐξ οὗ γὰρ ἔστιν ἅπαντα τὰ ὄντα καὶ ἐξ οὗ γίγνεται πρώτου καὶ εἰς ὃ φθείρεται τελευταῖον,
τῆς μὲν οὐσίας ὑπομενούσης τοῖς δὲ πάθεσι μεταβαλλούσης, τοῦτο στοιχεῖον καὶ ταύτην ἀρχήν
φασιν εἶναι τῶν ὄντων, καὶ διὰ τοῦτο οὔτε γίγνεσθαι οὐθὲν οἴονται οὔτε ἀπόλλυσθαι, ὡς τῆς
τοιαύτης φύσεως ἀεὶ σωζομένης.
4. A ἀπομίμησις é o conceito axial do Livro IV do tratado Da dieta, do Corpus hippocraticum,
como demonstra sobejamente a Tese Doutoral de Julieta Alsina (2015, p. 68ss).
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T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
filósofos gregos, é a substância mesma da qual todas as coisas foram fei-
tas, irradiando dos próprios deuses, passando pelos homens, e, por isso,
presente em tudo, regente de tudo e anterior a tudo. Para Heráclito
(fragmento 30 DK), num paroxismo quiçá poético ou retórico, ante-
rior à própria essência divina: “esse cosmo – isso é, essa ordem, essa
disposição do mundo – não foi feita por um dos deuses nem pelos ho-
mens, mas sempre foi, é e será o fogo para-sempre-vivo, impondo me-
tros e revogando metros” [κόσμον τόνδε, τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις
θεῶν οὐτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ’ ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ
ἀείζωον, ἁπτόμενον μέτρα καὶ ἀποσβεννύμενον μέτρα].
O mesmo fogo heraclítico, uma ἀρχή supra-eterna, terá seu en-
contro marcado com o Evangelho segundo São João, uma vez que o
próprio Efésio já o identifica com o λόγος (lógos). O fragmento 72 na
edição Diels-Kranz, legado por Marco Aurélio, deixa clara a similitude
entre λόγος e πῦρ: “discordam do lógos com que convivem continua-
mente [o que governa todas as coisas], e aquilo com que se embatem
cotidianamente lhes parece estranho” [ᾯ μάλιστα διηνεκῶς ὁμιλοῦσι
[λόγῳ τῷ τὰ ὅλα διοικοῦντι], τούτῳ διαφέρονται, καὶ οἷς καθ’ἡμέρην
ἐγκυροῦσι, ταῦτα αὐτοῖς ξένα φαίνεται]. Quase todos os estabelecedo-
res e estudiosos de Heráclito concordam que o sintagma “o que governa
todas as coisas” é uma interpolação de Marco Aurélio. Alguns conside-
ram que se trata de uma forma de ‘estoicizar’ o pensamento Heraclítico
(p. ex.: Dilcher, 1995, p. 46), mas essa não é opinião de Charles Kahn
(1979, p. 104), para quem o imperador-filósofo faz ali uma mera sín-
tese desse aspecto do universo conceitual e englobante de Heráclito. O
que, aliás, está de acordo com a forma como o entende Santo Hipólito
de Roma (“Pois o lógos é sempre tudo e estando por tudo, como disse
Heráclito”,5 Refutatio omnium haeresium, XI, 9, 1) e também São Cle-
mente de Alexandria (Heráclito afirma precisamente que “sendo o lógos
esse sempre, os homens são incapazes de compreendê-lo antes de ouvir
ou tendo ouvido pela primeira vez”6 (Stromata, V, 14, 111, 7). Tanto o
Heráclito de Santo Hipólito quanto o de São Clemente veem no lógos
o princípio de todas as coisas, que se conserva, que sempre é. E, na
perspectiva da arkhé, o lógos do Efésio se associa ao fogo, ao passo que
5. ὅτι δὲ λόγος ἐστὶν ἀεὶ τὸ πᾶν καὶ διὰ παντὸς ὤν, οὕτως λέγει [ὁ Ἡράλειτος].
6. ἄντικρυς δὲ ὁ μὲν Ἡράκλειτος “Τοῦ λόγου τοῦδ´ ἐόντος αἰεὶ” φησὶν “ἀξύνετοι γίγνονται
ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον”. Sobre as distintas e plausíveis leituras
desse fr.1 de Heráclito, cf. VASSALO, 2020.
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o lógos Joanino à luz que, por sua vez, é um desdobramento da arkhé e
mesmo ela própria. Uma apomímesis, conforme o prólogo de São João
o faz entender: “era a Luz Verdadeira que ilumina todo homem que
vem ao mundo” [ἦν τὸ φῶς τὸ ἀληθινὸν ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον
ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον].
A arkhé, pois, é parte axial de uma operação cognitiva que opera
num entrelugar relativo à denotação e a conotação. O entrelugar do
dispositivo de representação, contudo, não tem mobilidade, sendo de-
terminado ontologicamente pelos seguintes pressupostos:
1. “não sendo precisamente, precisamente é” e
2. “porquanto é, é tal como [ὡς] é”.
Trata-se, portanto, de uma ontologia relacionada à οὐσία (ousía) e à
ὑπόστασις (hypóstasis), sobretudo se a pensarmos como Plotino (En V,
1,7 & II,9,1), que propõe uma tríade de ὑποστάσεις (τὸ Ἕν [Hén, o
Uno], ὁ Νοῦς [Nôus], ἡ Ψυχὴ τοῦ παντός [Psykhè tôu pantós]), ao for-
mular uma história da ontologia híbrida que, de certa forma, lhe serve
de base. Eusébio de Cesareia, em sua Εὐαγγελικὴ προπαρασκευή [sua
preparação evangélica] (11,17), testemunha que, de forma precursora,
já havia Numênio proposto uma tripla ὑπόστασις (talvez mesmo uma
ὑπόστασις triádica), mas efetivamente foi Plotino que, tomando o Ἕν
de Parmênides, o Νοῦς de Aristóteles e o Δημιουργός [o Demiurgo] (e
a Ψυχὴ τοῦ παντός) de Platão, gerou um recurso de inteligibilidade que
seria explorado pela teologia cristã no discurso sobre a inefável Santíssi-
ma Trindade. As ideias dos pensadores do platonismo tardio invertem,
pois, no que tange às ὑποστάσεις, o pensamento de Platão, para quem a
ὑπόστασις não é senão um εἶδος (êidos). O platonismo tardio, no entan-
to, coloca o conceito de ὑπόστασις a serviço de uma hierarquização dos
εἴδη, o que devolve à ὑπόστασις sua proximidade com a ἀρχή (arkhé).
Também pelo viés da οὐσία, o dispositivo cognitivo da ‘repre-
sentação essencial’ encontra seu caminho filosófico, mas, desta vez,
mais por reverberação da concepção aristotélica. Em sua Metafísica
(Λ,1-2,1069a-b), Aristóteles subdivide as οὐσίαι em:
1) sensíveis e perpétuas [αἰσθηταὶ καὶ ἀΐδιοι (aisthetái kái aídioi)]
(cujo elemento é o αἰθήρ [éter]);
2) sensíveis e perecíveis [αἰσθηταὶ καὶ φθαρταί (aisthetái kái phthar-
tái)] (por exemplo, as plantas, os animais etc.);
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3) imóveis [ἀκίνετοι (akínetoi)] o Primeiro motor [(τὸ Πρῶτον
κινοῦν (tò Prôton kinoûn)].
As duas primeiras estão ao alcance do discurso sobre a natureza das
coisas, com ou sem caráter pragmático. E a terceira está enredomada
pela aura de infalibilidade por parte da “física”, pois trata-se do “Primei-
ro Motor”, que leva a ὕλη [hýle, a matéria] a outros εἴδη [éide].
Retomando, pois, uma οὐσία primordial que foge à αἴσθησις [áis-
thesis, percepção sensorial], como já ocorrera em Anaximandro e Par-
mênides, Aristóteles defende também um processo de proveniência e de
transformações.
2. Extrair sem subtrair
Tanto o ἀκίνητον aristotélico quanto as ἀρχαί (arkhái) dos fisiólo-
gos (e até mesmo os εἴδη platônicos) têm caráter ἀΐδιον, que é um as-
pecto do tempo cíclico, no qual se insere o tempo linear da geração e da
corrupção dos seres. O traço ἀΐδιον, no entanto, traduz uma das mais
relevantes feições da divindade. Sua inviável corrupção paradoxalmente
não anula a geração. O paradoxo da geração do ἄναρχον (ánarkhon)
resolve-se pela geração em si, de si e por si.
São Simeão, o Novo Teólogo, no final do décimo século, traz ambos
os termos, consagrados na qualificação de Deus Pai, para Cristo:
Deus, celebrado e glorificado por nós, é sempre o Pai ‘sem começo’
(ánarkhos), o ‘também-sem-começo’ (synánarkhos) Filho do Pai, e o
‘também-perpétuo’ (synaídion) e consubstancial (homoóusion) ao Pai e
ao Filho, o Santíssimo Espírito, são uma só natureza, uma só glória,
uma só unidade de natureza (symphyía), a Trindade consubstancial, a
divindade una, a essência igual em honra e tri-hipostática (trisypóstatos),
o princípio (arkhé) do universo e potência hipostática e demiúrgica, a de
mesmo trono, de mesma glória, o poder uno que domina e reina com
todo o poder, que é e é considerado Deus uno, unidade que, contempla-
da e crida, de modo único por nós é adorada, ao ser celebrada como a
Trindade que professamos em suas divisadas hipóstases (hypostáseis), para
que celebremos os sacros ritos a partir da tri-hipostática una Divindade
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos exorta a batizar em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, e assim dizer repetidamente.7
7. Ἀεί μέν ὁ Θεός ὑμνούμενός τε καί παρ᾿ ἡμῶν δοξαζόμενος ὁ ἄναρχος Πατήρ, ὁ συνάναρχος
Υἱός τοῦ Πατρός, τό συναΐδιον καί ὁμοούσιον τοῦ Πατρός καί τοῦ Υἱοῦ πανάγιον Πνεῦμα,
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A geração do – e a partir do – elemento da ‘representação essen-
cial’ só poderia subtrair desse próprio elemento ao custo de seu aspecto
ἀΐδιον, comprometendo irrecuperavelmente a ciclicidade do tempo,
e dando-lhe apenas o caráter linear, tal como o entendem os moder-
nos materialistas. Portanto, há geração, há procedência, mas não há
subtração.
A eternidade está garantida por esse paradoxo da presença não só
da οὐσία (ousía), mas também da ὑπόστασις (hypóstasis) no processo
de geração sem subtração. A luz é o elemento sensível que traduz essas
ideias com perfeição.
A ideia de uma ‘luz de luz’ tem esse dado de perfeição, pois:
– a Luz é uma οὐσία (ousía), assim como a luz que dela deriva é
ὁμοουσία (homoousía);
– a Luz é uma ὑπόστασις (hypóstasis) e a luz que dela deriva é outra
ὑπόστασις;
– a Luz se situa na fronteira entre o sensível e o inteligível, e no li-
miar entre o material e o imaterial;
– a Luz tem uma inteligibilidade católica e ecumênica, porquanto
em inúmeras culturas está relacionada à divindade;
– a Luz é epifânica e apofântica;
– a Luz não perde εἶδος (êidos) nem ὕλη (hýle) no processo de
geração.
As palavras inaugurais de São João, o Teólogo e Evangelista, não
deixam dúvida sobre o caráter ousiástico e hipostático da Luz: Cristo é
“a luz verdadeira, que ilumina todos os homens” [τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν,
ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον]. E também é São João quem vai testemu-
nhar a reiterada afirmação de Nosso Senhor e Salvador: “Eu sou a Luz
do mundo” [Ἐγὼ εἰμι τό φῶς τοῦ κόσμου].
ἡ μία ταῦτα φύσις καί δόξα καί συμφυΐα, ἡ ὁμοούσιος Τριάς, ἡ μία θεότης, ἡ ὁμότιμος οὐσία
καί τρισυπόστατος, ἡ τῶν ὅλων ἀρχή καί ὑποστατική καί δημιουργός δύναμις, ἡ ὁμόθρονος, ἡ
ὁμόδοξος, ἡ μία ἐξουσία καί παντοκρατορική κυριότης καί βασιλεία, εἷς Θεός καί ἔστι καί λέγεται,
ὅς ποτέ μέν μονάς θεωρούμενός τε καί πιστευόμενος μοναδικῶς παρ᾿ ἡμῶν καί λατρεύεται, ποτέ
δέ τριάς ὁμολογούμενος τριαδικῶς ἀνυμνεῖται ἐν διῃρημέναις ταῖς ὑποστάσεσιν, ὡς παρ᾿ αὐτοῦ
τοῦ ἑνός τῆς τρισυποστάτου θεότητος Κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ μεμυσταγωγήμεθα, βαπτίζειν
προτρεπομένου εἰς ὄνομα Πατρός καί Υἱοῦ καί Ἁγίου Πνεύματος καί πάλιν οὕτω λέγοντος.
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T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
São as palavras da Divina Liturgia que nos fornecem uma chave
para a compreensão do sentido da proveniência na expressão ‘Luz de
Luz’: “O Cordeiro de Deus é partido e repartido; é partido, mas não
dividido, sempre comido e jamais consumido, santificando aqueles que
O recebem em comunhão” [Μελίζεται καὶ διαμερίζεται ὁ Ἀμνὸς τοῦ
Θεοῦ, ὁ μελιζόμενος, καὶ μὴ διαιρούμενος, ὁ πάντοτε ἐσθιόμενος,
καὶ μηδέποτε δαπανώμενος, ἀλλὰ τοὺς μετέχοντας ἁγιάζων]. A Luz,
então, por sua natureza ousiástica e hipostática é também a representa-
ção essencial do Mistério Eucarístico.
Ainda que, na expressão ‘Luz de Luz’, a primeira palavra seja mais
hipostática e a segunda, mais ousiástica, a natureza da própria relação
entre a ὑπόστασις e a οὐσία não legitima qualquer diagrama que aqui
as separe. O mesmo poder-se-ia dizer da expressão “Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro” [Θεὸς ἀληθινὸς ἐκ Θεοῦ ἀληθινοῦ].
A ‘Luz de Luz’ encontra sua representação mais evidente na dis-
tribuição do fogo na Cerimônia da Ressurreição, como é conhecido o
Ofício de Vésperas do Sábado Santo.
À noite (perto da meia-noite), com a Igreja apagada, a cortina do
Santuário se abre e o sacerdote surge à Porta Real do Templo com um ou
dois círios acesos e entoa solene, firme e convictamente: “Vinde receber
a luz da Luz que não conhece ocaso, e glorificai Cristo, o Ressuscitado
dentre os mortos” [Δεῦτε λάβετε φῶς ἐκ τοῦ ἀνεσπέρου φωτός, καὶ
δοξάσατε Χριστὸν τὸν ἀναστάντα ἐκ νεκρῶν]. Aos poucos, o povo
se aproxima, como se fosse receber a Divina Eucaristia, e acende sua
velinha no fogo emanado do círio que o sacerdote lhe apresenta, como
Luz-Vida que subjaz no sepulcro.
Assim, a igreja vai se iluminando cada vez mais, a cada vela acendi-
da, e, quando bem iluminada pelas luzes que parecem oriundas de cada
um dos fiéis, mas que, ao mesmo tempo, é a mesma luz que está sobre
o Altar, o sacerdote se retira da igreja e todos o acompanham, a igreja
fica nas trevas e tem suas portas fechadas. O sacerdote, diante da porta
fechada do templo, proclama o Evangelho que anuncia a Ressurreição,8
8. Ἰωάννης Φουντούλης (1991) ensina que a tradição de ler-se o Evangelho fora da igreja nesse
momento, conquanto já bem arraigada na prática litúrgica ortodoxa, é relativamente tardia, datando de
meados do século XIX, ainda que haja um único manuscrito, no Monte Sinai, datado do século X (tal-
vez XI), que faz uma referência a esse hábito. Hoje é lido o Segundo Evangelho Eothinón (Mc. 16,1-8)
ou Mt. 28,1-8.
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e, em seguida, depois de incensá-la,9 adentra a igreja, entoando, junto
com todo o povo o tropário da Páscoa (Χριστὸς ἀνέστη… [Khristós
anésti…]), e a igreja se enche de luzes, e não são as das velas, mas tam-
bém dos “poliélei” (πολυέλαιοι), dos grandes (por vezes gigantescos)
candelabros que se balançam ao ritmo do tropário, cantado com alegria.
Esse é precisamente o momento de comemoração da Ressurreição de
Nosso Senhor.
No Lucernário católico romano, em movimento diverso, o novo
fogo recebe sua bênção do lado de fora e é trazido por um acólito; em
entrada à igreja, o diácono acende cada uma das três velas em trina pro-
cissão do povo, e canta o “Lumen Christi” ao que a procissão responde
com “Deo Gratias”. A luz do novo fogo é trazida assim ao Círio Pascal,
em torno do altar, como luz signo de uma presentificação da Luz Ver-
dadeira (Jo 8,12), da Luz sem Ocaso. O movimento, no Rito Latino,
parece ter o sentido inverso do Rito Bizantino: do povo para o Altar.
No Rito Bizantino, contudo, o ato de acender as velas individuais a
partir dos círios que o sacerdote apresenta a partir do altar é diretamente
remissivo ao fogo milagrosamente emanado do Santo Sepulcro median-
te as orações do Patriarca de Jerusalém. De uma fenda aberta na coluna
do Túmulo, surge espontaneamente a chama, no dia da Páscoa, e essa
chama é distribuída pelo Patriarca a todos os presentes, e ela ilumina,
mas não queima.
Esse milagre que se repete quase todos os anos reitera e ratifica o
maior ensinamento sobre a luz, seus atributos apomiméticos: qual o
amor, ilumina sem queimar, multiplica-se sem diminuir-se, plenifica o
vazio, constrói o caminho e mostra a verdade que também é ela própria.
3. Luz, pessoa, hipóstase e união
Os Santos Padres da Capadócia, como é bem sabido, associaram as
Pessoas da Santíssima Trindade à ὐπόστασις, em detrimento do termo
(e do conceito de) πρόσωπον. Para além de uma certa resistência ao
9. Ao incensar as portas do Templo, do lado de fora, o sacerdote, exclama “Glória à santa, con-
substancial, vivificante e indivisível Trindade, agora, sempre e pelos séculos dos séculos” [Δόξα τῇ ἁγίᾳ,
καὶ ὁμοουσίῳ, καὶ ζωοποιῷ, καὶ ἀδιαιρέτῳ Τριάδι πάντοτε, νῦν καὶ ἀεὶ καὶ. εἰς τοὺς αἰῶνας τῶν
αἰώνων]. Após esse gesto, uma tradição recente, porém bem difundida e aceita, implementou uma
encenação do Salmo 23,7-10.
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T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
termo que já significou também “a máscara do ator”, há uma evidente
apropriação da ὑπόστασις neoplatônica.
A própria ideia de πρόσωπον está naturalmente ligada à de εἶδος
(êidos), que, por extensão, relaciona o πρόσωπον com os αἰσθητά (ais-
thetá) – ou, no dizer de Platão, ὁρατά (horatá), e tendo, provavelmente,
por base o sensorial, o πρόσωπον (prósopon) está, por excelência, mais
comprometido com uma δόξα do que com uma ἐπιστήμη (epistéme),
que passa pelos νοητά, ou até mesmo do que com uma πίστις (pístis).10
A ideia de πρόσωπον, portanto, não tem compromisso implícito com a
verdade noética ou doutrinal. Mas não é desprezível sua potência como
via da Graça ou meio catequético, uma vez que a εἰκών de Deus está no
cerne da criação do homem, seu primeiro ícone: “e disse o Senhor: faça-
mos um homem conforme nosso ícone (i.e., imagem) e conforme (nos-
sa) semelhança” [καὶ εἶπεν ὁ Θεός·ποιήσωμεν ἄνθρωπον κατ εἰκόνα
ἡμετέραν καὶ καθ ὁμοίωσιν] (Gn 1,26). Deus Trinitário permitiu,
pois, naquele momento, que, pela chave do πρόσωπον, possamos reco-
nhecer nossa união com Ele.
Conquanto conserve a ὑπόστασις (hipóstase) teológica algumas ca-
racterísticas do πρόσωπον, o mesmo não se dá com a ideia de indiví-
duo, de ἄτομος (átomos), que, nascido não da União, mas da separação,
teve seu mais radical significado, na contemporaneidade, reforçado por
várias ideologias infelizmente vitoriosas até agora.
Tsitsingos (2011), em seu estudo intitulado “Aos que identificam
indiscriminadamente pessoa com hipóstase na Teologia Cristã Ortodo-
xa” [Προς τους ακρίτως ταυτίζοντας Πρόσωπο και Υπόσταση στην
Ορθόδοξη Χριστιανική Θεολογία], evoca também a ideia de “perso-
nalismo” de Schelling, que, relacionada à ideia de πρόσωπον foi capaz
de imiscuir equivocadamente com o conceito de ὑπόστασις as seguintes
questões: a) uma reação à dicotomia kantiana entre sujeito e objeto;
b) uma absolutização (“transcendentalização”) do “ego” em relação à
sua posição anterior de portador do Espírito por meio de uma identi-
ficação com Ele (em virtude do cientificismo e da secularização), e c) a
materialização do dogma teológico abstrato na prática social. Ainda que
10. Pois o intelectível, que é invísivel desde a criação do mundo, a saber a potência perpétua e
a divindade, se faz ver pelas realizações [τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κόσμου τοῖς ποιήμασι
νοούμενα καθορᾶται, ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις καὶ θειότης] (Rm 1,20).
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discordemos desse seu último ponto, há uma convergência acerca da
conclusão de que, conquanto o conceito de hipóstase tenha efetivamen-
te uma profundidade que o de πρόσωπον, de ‘pessoa’, não conhece, a
estrutura fundamental do pensamento teológico ortodoxo não depende
da hipóstase (que já está bem assentada na raiz do conceito de ‘enipostá-
tico’ (ἐνυπόστατος), mas da relação entre os Πρόσωπα (as Pessoas) da
Santíssima Trindade.
Na Liturgia de tradição grega,11 o Bispo sustenta um castiçal com
dois círios (δικήριον [dikérion]) à mão esquerda, que, acesos, visibili-
zam a enipóstase (ἐνυπόστασις [enypóstasis]) de Cristo, sua difisia, e,
à mão direita, ostenta outro, com três círios (τρικήριον [trikárion]),12
mostra de trisipostasía (τρισυποστασία [trisypostasía]) de Deus hiposta-
ticamente Trino e ousiasticamente Uno. Apenas o Bispo sustenta esses
sinais, pois é a ele que cabe guardar os dogmas, e sobretudo esses, os
mais valiosos e fundamentais, a Difisia e a Trindade.
Acerca da Santíssima Trindade, é, de fato, necessário suprir ou com-
pletar o πρόσωπον com o conceito de ὑπόστασις, que, como vimos,
graças a certa tradição neoplatônica, relaciona-se bem mais com o uni-
verso da verdade do que ao da realidade. Por esse expediente de inteligi-
bilidade (legado pelos neoplatônicos), podemos compreender e aceitar
que a ὑπόστασις, no discurso teológico, assegure a perenidade que a
οὑσία garantia no discurso filosófico. No discurso teológico, por sua
vez, a οὑσία está ligada a contextos de proveniência: “consubstancial
ao Pai por Quem tudo foi feito [ὁμοούσιος τῷ Πατρὶ, δι οὗ τὰ πάντα
ἐγένετο], como diz o Símbolo da Fé Nicenoconstantinopolitano, mas
também Pseudo-Dionísio Areopagita (provavelmente no século V), em
seu Dos Nomes Divinos (Περὶ Θείων ὀνομάτων).
A luz se divide a partir de si, como dissemos, sem subtração e sem
mudança de οὐσία (ousía), mas a divisão afeta seu caráter hipostático.
Quando dizemos “vinde tomar a luz da Luz que não se apaga” [Δεῦτε
11. As liturgias aqui em análise não incluem as tradições eslavas, mas centram-se nos ritos gregos
praticados pelas seguintes Igrejas: Patriarcado Ecumênico (de Constantinopla), Patriarcado de Jerusa-
lém, Patriarcado de Alexandria e toda a África, Patriarcado de Antioquia e todo o Oriente, Igreja Auto-
céfala da Grécia e Igreja Autocéfala de Chipre. A tradição litúrgica grega é seguida também pela Igreja
Melquita, sob a Igreja Católica Apostólica Romana. Há diferenças não essenciais entre a tradição grega
e a eslava, e uma delas diz respeito à forma com a qual os Bispos portam os dikirotríkira.
12. O conjunto formado por ambos tem o nome de δικηροτρίκηρα.
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T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
λάβετε φῶς ἐκ τοῦ ἀνεσπέρου Φωτός],13 dizemos que é transmitida a
οὐσία, como εὐλογία (bênção), mas não como mistério ou sacramen-
to (ainda que, o contrário, possa acontecer, é claro, por milagre, por
θαῦμα, o que é outro tema).
Em um dos hinos mais antigos e caros à tradição ortodoxa, entoado
no Ofício Lucernário e nas Grandes Vésperas, na cerimônia que cele-
bra a Ressurreição, a Ação de graças diante da lâmpada (ou do kandili/
λύχνος) [Ἐπιλύχνιος εὐχαριστία] ou a Luz jubilosa [Φῶς ἱλαρὸν] que
se mostra em meio ao ocaso do sol simboliza, com o rito do acender dos
círios a partir da luz perpétua do túmulo de Cristo, a plena iluminação
da Anástasis, a luz viva de Deus. Seu registro mais remoto encontra-se
nas Constituições Apostólicas, datadas aproximadamente de fins do III e
início do IV séc., sendo o primeiro a ser considerado um hino no senti-
do moderno do termo:14
Luz jubilosa da santa glória do imortal Pai
Celeste, Santo, Bem-aventurado, Jesus Cristo.
Tendo chegado ao pôr do sol e contemplado a luz vespertina,
nós louvamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Deus.
Digno de ser louvado a todo momento por ditosas vozes,
ó Filho de Deus, que deste a Vida; por isso, todo o cosmo Te glorifica!15
13. Vinde receber a Luz da Luz que não se apaga [Δεῦτε λάβετε φῶς ἐκ τοῦ ἀνεσπέρου φωτός,
καὶ δοξάσατε Χριστὸν τὸν ἀναστάντα ἐκ νεκρῶν]: canto repetido inúmeras vezes durante a Cerimô-
nia de Ressurreição, que antecede a Divina Liturgia de Páscoa. Durante a entoação deste canto, a igreja,
antes no escuro, vai se iluminando com as velas que são acendidas no fogo dos círios que o sacerdote
segura diante da Porta Real.
14. Sobre a história desse hino e seus diferentes lugares na tradição litúrgica oriental e ocidental,
cf. TRIPOLITIS (1970). Em seu Liber de Spiritu Sancto (29, 73), São Basílio, o Grande, nos dá tes-
temunho da antiguidade do Φῶς ἱλαρὸν: Pareceu conveniente aos nossos pais receber a graça da luz
vespertina não em silêncio; mas imediatamente, tendo ela se mostrado, render graças. E quem é o pai
daquelas palavras de ação de graças diante do lucernário (epilyxníon) não podemos dizer; no entanto,
o povo entoava um canto antigo, e os que diziam “Louvamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo” jamais
foram considerados ímpios por ninguém. Se alguém conhece o hino de Atenógenes, que, como um
dito de despedida, deixou aos seus discípulos já chegando ao fim diante do fogo, conhece também o
pensamento que tinham os mártires acerca do Espírito [Ἔδοξε τοῖς πατράσιν ἡμῶν μὴ σιωπῇ τὴν
χάριν τοῦ ἑσπερινοῦ φωτὸς δέχεσθαι· ἀλλ’ εὐθὺς φανέντος εὐχαριστεῖν. Καὶ ὅστις μὲν ὁ πατὴρ
τῶν ῥημάτων ἐκείνων τῆς ἐπιλυχνίου εὐχαριστίας, εἰπεῖν οὐκ ἔχομεν ὁ μέντοι λαὸς ἀρχαίαν ἀφίησι
τὴν φωνὴν, καὶ οὐδενὶ πώποτε ἀσεβεῖν ἐνομίσθησαν οἱ λέγοντες· “Αἰνοῦμεν Πατέρα καὶ Υἱὸν
καὶ ἅγιον Πνεῦμα Θεοῦ”. Εἰ δέ τις καὶ τὸν ὕμνον Ἀθηνογένους ἔγνω, ὃν ὥσπερ ἄλλο τι ἐξιτήριον
τοῖς συνοῦσιν αὐτῷ καταλέλοιπεν, ὁρμῶν ἤδη πρὸς τὴν διὰ πυρὸς τελείωσιν, οἶδε καὶ τὴν τῶν
μαρτύρων γνώμην ὅπως εἶχον περὶ τοῦ Πνεύματος].
15. Φῶς ἱλαρὸν ἁγίας δόξης ἀθανάτου Πατρός,
οὐρανίου, ἁγίου, μάκαρος, Ἰησοῦ Χριστέ,
ἐλθόντες ἐπὶ τὴν ἡλίου δύσιν, ἰδόντες φῶς ἑσπερινόν,
ὑμνοῦμεν Πατέρα, Υἱόν, καὶ ἅγιον Πνεῦμα, Θεόν.
Ἄξιόν σε ἐν πᾶσι καιροῖς ὑμνεῖσθαι φωναῖς αἰσίαις,
Υἱὲ Θεοῦ, ζωὴν ὁ διδούς· διὸ ὁ κόσμος σὲ δοξάζει.
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Nesse Hino da Luz, nas três estrofes que o constituem, Cristo e a
Trindade figuram como pontos que, à maneira de um círculo, unem
e simbolizam luz e glória. Essa relação intrínseca é ressaltada também
no primeiro verso da Grande Doxologia, cantada antes no início da
Divina Liturgia de São João Crisóstomo: Glória a ti, que mostras a luz
[Δόξα σοι τῷ δείξαντι τὸ φῶς]. No desenrolar das três estrofes do Φῶς
ἱλαρὸν, Cristo é a luz jubilosa da santa Glória do Pai; o que, em relação
à luz, no instante do pôr do sol e na luz vespertina, se mostra como
parte da Trindade indivisível; o que é Filho de alguém dá a todos a vida;
todos que são vidas a constituir o universo. Novamente hipóstases da
mesma ousía: Deus tripostático e pleno.
A Luz, como ‘representação essencial’ da divina ὑπόστασις cristo-
lógica, guarda a plenitude da perfeição, não só no aspecto hipostático
e ousiástico, mas também no que diz respeito à sua forma de figurar o
Santo Paradoxo trinitário. A ἕνωσις (hénosis) tem papel primordial aí,
uma vez que a Luz é essencialmente indivisível e aglutinável, ou seja, ela
traduz para o universo físico a ideia mesma de ὑπόστασις.
A ἕνωσις (hénosis), pelo privilégio da imagem e semelhança de Deus
(Gn 1,26-28), ganha uma relevância social, quando São Pedro, em sua
Primeira Epístola (2,9), evoca a luz para concluir a série de designativos
pelos quais se reconheciam os judeus para os cristãos: “Vós sois a estirpe
eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo preservado para que anun-
cieis as virtudes daquele que vos chamou da treva para a sua maravilho-
sa luz” [ὑμεῖς δὲ γένος ἐκλεκτόν, βασίλειον ἱεράτευμα, ἔθνος ἅγιον,
λαὸς εἰς περιποίησιν, ὅπως τὰς ἀρετὰς ἐξαγγείλητε τοῦ ἐκ σκότους
ὑμᾶς καλέσαντος εἰς τὸ θαυμαστὸν αὐτοῦ φῶς] (Α Πε. 2,9). Estir-
pe eleita (γένος ἐκλεκτόν), realeza sacerdotal (βασίλειον ἱεράτευμα),
nação santa (ἔθνος ἅγιον), povo poupado (λαὸς εἰς περιποίησιν) são
conhecidas maneiras pelas quais o povo hebraico se reconhecia. No Li-
vro do Êxodo (19,5-6) encontra-se a passagem à qual São Pedro faz refe-
rência: “se ouvirdes, com a audição, a minha voz, se tu fizeres tudo que
ordenei a ti, e se vós guardardes minha aliança, sereis o povo poupado
entre todas as nações, pois a terra toda é minha. Vós sereis a realeza
sacerdotal e a nação santa” [ἐὰν ἀκοῇ ἀκούσητε τῆς ἐμῆς φωνῆς καὶ
ποιήσῃς πάντα, ὅσα ἂν ἐντείλωμαί σοι, καὶ φυλάξητε τὴν διαθήκην
μου, ἔσεσθέ μοι λαὸς περιούσιος ἀπό πάντων τῶν ἐθνῶν· ἐμὴ γάρ
ἐστι πᾶσα ἡ γῆ· ὑμεῖς δὲ ἔσεσθέ μοι βασίλειον ἱεράτευμα καὶ ἔθνος
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T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
ἅγιον]. Em São Pedro, contudo, a luz dá nova dimensão a essa identida-
de: “para que anuncieis as virtudes daquele vos chamou da treva para sua
maravilhosa luz”. A luz aqui, portanto, não é senão a união, a ἔνωσις,
desse novo povo que anuncia as virtudes de Deus ao antigo povo que foi
conduzido para fora da escravidão do paganismo. A luz que reúne luzes
em si é, enfim, a mesma que ilumina o caminho, mostrando a verdade
que torna possível e plena a vida. Pedro não faz senão preservar, guardar,
φυλάττειν a Aliança (a Διαθήκη), desde a voz do Antigo Testamento
(Παλαιὰ Διαθήκη) até a visão da Nova Aliança (Καινὴ Διαθήκη), cato-
licizando o povo de Deus em torno da luz.
4. Luz e trevas: aspectos ontológicos
A passagem das trevas à luz está no início dos mais importantes
Livros das Sagradas Escrituras, a saber, o Gênesis e o Evangelho de São
João. A relação entre esses dois Escritos, é sabido, não se restringe a
esse início, mas é claramente assinalado por ele, como demonstram os
inúmeros estudos sobre a intertextualidade nos textos joaninos. No Gê-
nesis, temos:16
No princípio Deus fez o céu e a terra. A terra era invisível e incôndita, e
a treva [estava] sobre o abismo, e o Espírito de Deus se estendia sobre a
água, e disse Deus: faça-se a luz, e surgiu a luz, e Deus viu que a luz, por-
que era boa, e Deus distinguiu a luz, porque era boa, e Deus distinguiu o
que está em meio à luz e o que está em meio às trevas (Gn 1,1-4).17
A cosmogonia da Nova Aliança, enunciada por São João, tem, pelo
menos, o sentido de parafrasear o Livro de Gênesis (ratificando a Alian-
ça) e o de trazer a Boa Nova, o Evangelho, que revela o sentido da Luz
e une a Salvação (do NT) à existência (do AT):
16. Este artigo, por pensar o tratamento dispensado à “luz” pela Teologia da Igreja Ortodoxa, em-
prega somente o texto da Septuaginta (Edição da Ἀποστολικὴ Διακονία τῆς Ἐκκλησίας τῆς Ἑλλάδος –
Diaconia Apostólica da Igreja da Grécia, com tradução dos autores do presente artigo), assinalado nas
referências bibliográficas. Para o Novo Testamento, utiliza-se a Edição do jesuíta Augustinus Merk,
em detrimento de outras mais dedicadas a questões filológicas sem pertinência para o tratamento aqui
proposto do tema. A Edição de Merk, de 1933, colocando a filologia a serviço da história (e não o con-
trário, como evidentemente fazem os estabelecimentos protestantes, como o Nestle-Aland), respeita as
tradições dos textos canônicos (Ortodoxo, Católico Romano etc.).
17. Ἐν ἀρχῇ ἐποίησεν ὁ Θεὸς τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν. ἡ δὲ γῆ ἦν ἀόρατος καὶ ἀκατασκεύαστος,
καὶ σκότος ἐπάνω τῆς ἀβύσσου, καὶ πνεῦμα Θεοῦ ἐπεφέρετο ἐπάνω τοῦ ὕδατος. καὶ εἶπεν ὁ Θεός·
γενηθήτω φῶς· καὶ ἐγένετο φῶς. καὶ εἶδεν ὁ Θεὸς τὸ φῶς, ὅτι καλόν· καὶ διεχώρισεν ὁ Θεὸς τὸ φῶς,
ὅτι καλόν· καὶ διεχώρισεν ὁ Θεὸς ἀνὰ μέσον τοῦ φωτὸς καὶ ἀνὰ μέσον τοῦ σκότους (ένεσις, α᾽,1-4).
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REB, Petrópolis, volume 84, número 327, p. 85-105, Jan./Abr. 2024
No princípio era o Verbo,18 e o Verbo era para Deus, e Deus era o Ver-
bo. Este era, no princípio, para Deus. Tudo por ele foi criado, e sem
Ele nada do que aconteceu aconteceu. NEle estava a vida, e a vida era
a luz dos homens,19 e a luz brilha na treva, e a treva não a envolve.20
A relação clara entre Luz e criação pressupõe outra, aquela entre
criação e revelação. A luz é, em tudo, apocalíptica, desveladora; sua pre-
sença, no princípio, se dá pela criação, e seu caráter escatológico se cons-
titui pela revelação.
As trevas, nesse desenho cosmogônico, não são o equivalente ao mal
em si, e pode-se encontrar, em outras cosmologias gregas vulgarizadas
com o processo de helenização, elementos que ocupam esse lugar, como
o Caos (Χάος) em Hesíodo21 ou mesmo a φῦσις (phýsis) em muitos
pensadores, a partir dos órficos.22 As trevas são a ausência da luz, que
só se transforma em mal quando oposta às trevas, tal qual o Caos é o
oposto do κόσμος (kósmos), mas, aos poucos, assume o lugar antitético.
A luz preenche; dá sentido, e, inexoravelmente, prevalece sobre a treva,
que nada pode contra ela, senão a efêmera sombra. A luz é superior às
trevas, capaz de envolvê-las e dominá-las, como lembra São João; não
são as trevas que envolvem a luz [ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν], a treva
não a envolve, não a toma. Como vemos na abertura do Salmo 103,
primeira leitura do Ofício de Vésperas, a luz se faz qual manto que cobre
o Senhor [ἀναβαλλόμενος φῶς ὡς ἱμάτιον].
Esse binômio entre trevas e luzes, prenunciado pelo proêmio23 do
Evangelho de São João, está presente em outros momentos do texto
evangélico do Teólogo, como este:
18. Clara referência à ἀναρχία (anarkhía) do Lógos, tema abordado anteriormente aqui.
19. Nota-se aqui a introdução ao tema da “Luz da vida” (Φῶς ζῳῆς).
20. Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος. Οὗτος ἦν ἐν
ἀρχῇ πρὸς τὸν Θεόν. πάντα δι᾿ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἓν ὃ γέγονεν. ἐν αὐτῷ
ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων. καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ
κατέλαβεν.
21. Teogonia v. 116: antes de tudo havia o Caos [πρώτιστα Χάος γένετο]. Essa assertiva é citada
por Aristófanes, em sua comédia As aves (v. 693).
22. Cf. Cairus, 2021, passim.
23. O tema da “autenticidade filológica”, que considera as possíveis interpolações no Evangelho
de São João, não tem nenhuma pertinência neste breve estudo cujo objeto é a luz na teologia da Igreja
Ortodoxa.
100
T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
Não são doze as horas do dia? Se alguém caminha de dia, não tropeça,
porque a luz vê a luz deste mundo, mas se alguém caminha de noite,
tropeça, porque a luz não está nele.24
Aqui introduz-se outra questão relativa à luz: sua emissão. A Luz
não pode ser emanada por quem dela se beneficia, mas tampouco a vê,
senão vê por ela, e, apesar de revelar o caminho, ela própria é o cami-
nho, conquanto se identifica com Hipóstase Divina.
Considerações nais
Visão e luz: aspectos fenomenológicos
A luz é intangível, invisível em si, não cede aos sentidos, não é da
ordem dos νοητά (noetá) platônicos, tampouco dos αἰσθητά (aisthetá)
aristotélicos: é algo que frequenta esses dois universos da percepção, sem
pertencer completamente a nenhum deles. Apomímesis divina, a luz não
se faz ver, mas faz com que se veja.
“Em tua luz, veremos a luz” [Ἐν τῷ φωτί Σου ὀψόμεθα φῶς]25
(Sl 35,10), canta-se na Grande e na Pequena Doxologia, a luz que vem
de Deus (Φῶς ἐκ φωτός, Luz de luz) fê-lo ver e a visão é o princípio
da perpétua théosis divina, porquanto liga a luz à Luz: Deus criou a luz
e viu, como está no Livro de Gênesis. A visão da Luz, é, por isso, uma
fundamental figuração eucarística; razão pela qual o Hieratikón bizan-
tino prevê que o coro das Liturgias entoe imediatamente após a distri-
buição do Santíssimo Sacramento Eucarístico essa breve oração: “Vimos
a luz verdadeira, recebemos o Espírito celeste, encontramos a fé verda-
deira, adorando a indivisível Trindade, pois esta nos salvou” [Εἴδομεν
τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ἐλάβομεν Πνεῦμα ἐπουράνιον, εὕρομεν πίστιν
ἀληθῆ, ἀδιαίρετον Τριάδα προσκυνοῦντες, αὕτη γὰρ ἡμᾶς ἔσωσεν].
Comungar do Corpo e do Sangue do Salvador é, assim, ver a luz verda-
deira, pela qual se recebe o Espírito celeste e é, enfim, encontrada a fé
verdadeira. A Luz torna a caminhada possível para a recepção do Espí-
rito e o encontro com a fé.
O tema da visão, quando pensamos na Luz, evoca, por si mesmo, o
capítulo nono do Evangelho segundo São João, a narrativa do caso do
24. οὐχὶ δώδεκά εἰσιν ὧραι τῆς ἡμέρας; ἐάν τις περιπατῇ ἐν τῇ ἡμέρᾳ, οὐ προσκόπτει, ὅτι τὸ
φῶς τοῦ κόσμου τούτου βλέπει· ἐὰν δέ τις περιπατῇ ἐν τῇ νυκτί, προσκόπτει, ὅτι τὸ φῶς οὐκ ἔστιν
ἐν αὐτῷ. (κατὰ Ἰωαννην, ια’,10).
25. Este Salmo está integralmente presente na Grande e na Pequena Doxologia de Rito Bizantino.
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REB, Petrópolis, volume 84, número 327, p. 85-105, Jan./Abr. 2024
cego de nascença. Ali temos também a famosa frase “Eu sou a Luz do
mundo”, mas, dessa vez, a relação com a visão é reforçada tanto pelo
contexto – a história da cura do cego – quanto pela referência ao dia e à
noite. O primeiro diz respeito à permanência de Jesus no mundo, o que
nos remete, naturalmente, ao campo sacramental e ao papel da Igreja:
“Devemos trabalhar a obra dAquele que me enviou enquanto é dia.
Aproxima-se a noite, quando ninguém pode trabalhar. Quando Eu esti-
ver no mundo, eu sou a Luz do mundo” [ἡμᾶς δεῖ ἐργάζεσθαι τὰ ἔργα
τοῦ πέμψαντός με ἕως ἡμέρα ἐστίν·ἔρχεται νὺξ ὅτε οὐδεὶς δύναται
ἐργάζεσθαι. ὅταν ἐν τῷ κόσμῳ ὦ, φῶς εἰμι τοῦ κόσμου].
A Luz hipostática, portanto, tem relação com a presença, com a
παρουσία divina. Tal presença, por sua vez, tem continuidade em for-
ma sacramental, especialmente na Eucaristia, onde o Cordeiro-Luz é
presentificado.
Depois da Santa Comunhão, nas duas Divinas Liturgias bizantinas,26
o sacerdote apresenta ao povo o Santo Cálice com a Divina Eucaristia,
e profere uma ecfonese ad Occidentem:27 “Salva, Senhor, o teu povo, e
abençoa a tua Herança” [Σῶσον, Κύριε, τὸν λαόν Σου, καὶ εὐλόγησον
τὴν Κληρονομία Σου], ao que o povo (ou o coro) responde: “Vimos a
Luz verdadeira, recebemos o Espírito celeste, encontramos a verdadei-
ra fé, adorando a Trindade indivisível, pois ela nos salvou” [Εἴδομεν
τὸ φῶς τὸ ἀληθινόν, ἐλάβομεν Πνεῦμα ἐπουράνιον, εὕρομεν πίστιν
ἀληθῆ, ἀδιαίρετον Τριάδα προσκυνοῦντες· αὕτη γὰρ ἡμᾶς ἔσωσεν].
Esse breve tropário enfatiza o aspecto passivo da visão, e exorta à atitu-
de: ver (a Luz), receber (o Espírito) e encontrar (a fé) são qual hipóstases
da adoração (na indivisível Trindade), e encontram sua razão no caráter
soteriológico do Sacramento central (pois Esta nos salvou [αὕτη γὰρ
ἡμᾶς ἔσωσεν]).
Cristo é, em São João Teólogo, a Luz que não se apaga, o dia poten-
cialmente pleno. As trevas, diante de Cristo, deixam de ser trevas para
serem a noite, “quando ninguém pode trabalhar”, um καιρός (kairós),
26. Há três Liturgias Eucarísticas Bizantinas: a de São João Crisóstomo, a de São Basílio (às quais
nos referimos aqui) e a dos Dons Pré-Santificados. Esta última, no entanto, celebrada ao cair da tarde,
durante a Santa Quaresma, não é propriamente uma Liturgia Eucarística, porquanto não inclui a Con-
sagração dos Dons, mas somente à distribuição dos Dons Pré-Santificados. Seu rito é extremamente
solene e profundo.
27. Uma ecfonese ad Occidentem é uma fala pública do sacerdote (ecfonese – ἐκφώνησις) voltado
para o povo (ad Occidentem).
102
T.O. Ribeiro; H.F. Cairus. A luz e a hipóstase na tradição ortodoxa grega
não mais um χρόνος (khrónos). Ausência de Luz é o precioso momen-
to em que a única atividade deve ser a procura e o desejo da Luz, que,
como todo desejo, nasce de uma falta. Deus se faz, pela apomímesis
hipostática da luz algo para além do καιρός e para além do χρόνος,
constituindo esse complexo conceito de ‘séculos dos séculos’ [αἰῶνες
ῶν αἰώνων (aiônes tôn aiónon)]: um tempo intimamente relacionado à
vida, capaz de imiscuir a vida efêmera à eterna.
É conhecido o lugar dos ícones na Ortodoxia. Os ícones não são
meras representações pictográficas das figuras sagradas, Cristo, Nossa
Senhora ou os Santos. Os ícones são a concessão do invisível ao visí-
vel, por intermédio direto do Espírito Santo. São, pois, instrumento
de adoração e de veneração, mas são também, em si mesmos, objetos
de veneração, por dois motivos: pela gratidão a Deus relativa ao bene-
plácito para com a fraqueza da fé humana (uma clara referência a São
Tomé28), e pela evocação imediata de inúmeros e complexos códigos,
que, imediatamente acolhidos pelos sentidos e reconhecidos pela me-
mória, tomam uma aura sacramental, porquanto produzem mais essa
ingressão no universo sagrado.29 Os sacros ícones, na Ortodoxia, não
são apenas conotativos, mas são fortemente denotativos.30 Através dos
olhos dos ícones (sempre dois, pois jamais há perfis representados) vê
o fiel ortodoxo sua própria alma em sua morada eterna. Entre o fiel e o
ícone, contudo, figura o kandili (καντήλιον), não só como uma marca
da vivacidade do culto, mas sobretudo como a própria presença denota-
tiva de uma mesma Luz que revela ao fiel o olhar e os códigos do ícone,
e, ao ícone, o olhar do fiel e sua despida alma. O kandili, assim como o
ícone que ele guarda, ilumina e revela, tem também seu rito próprio, e
deve ser alimentado preferencialmente (mas não só) com o azeite que é
abençoado no Batismo, como a primeira Unção,31 ou no Sepultamen-
to, como a última. Essa tradição enfatiza eloquentemente a natureza
28. Jo 20,24-29 (Nono Evangélio Eothinón).
29. Os ícones são pintados sob condições muito especiais de oração e jejum, seguindo modelos
muito específicos e uma quantidade considerável de codificações relativas a cores, gestos, objetos, posi-
ções, roupas, cenários.
30. Por seu caráter denotativo, grande parte dos ícones (geralmente aqueles aos quais se atribuem
mais milagres) é revestida de metais preciosos, ficando, pelas razões logo adiante explicitadas, exposta a
pintura do rosto da figura representada.
31. Não se trata, é claro, do Sacramento do Crisma, no qual se utiliza tão-somente o Santo Myron,
consagrado pelo S.S. o Patriarca e recebido exclusivamente das mãos do Bispo da Igreja.
103
REB, Petrópolis, volume 84, número 327, p. 85-105, Jan./Abr. 2024
apomimética da Luz ali presente, que, entre o ícone e o fiel, ele próprio
ícone de Deus, aponta o Caminho, revela a Verdade e possibilita a Vida.
A ideia de visão, portanto, evocada pela potência da ação (expressa
pela locução δύναμαι ἐγάζεσθαι [dýnamai ergázesthai]) encontra seu
caminho e sua verdade na Luz: “quando Eu estiver no mundo, sou a Luz
do mundo” [ὅταν ἐν τῷ κόσμῳ ὦ, φῶς εἰμι τοῦ κόσμου].
Manter a Luz acesa é, enfim, o trabalho que a Igreja Ortodoxa to-
mou para si, esse ‘quando, enquanto’ (ὅταν [hótan]) é o tempo que
a Igreja Ortodoxa reivindica para estar junto à Luz ‘pelos séculos dos
séculos’ (εἰς τοὺς αἰῶνας τῶν αἰῶνων).
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Artigo recebido em: 17 nov. 2020
Aprovado em: 26 fev. 2024