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DOI 10.14393/OUV-v20n1a2024-67272
Manet e Mané: Visões da diferença
GABRIELA DE ANDRADE RODRIGUES
Gabriela Rodrigues é doutoranda em História da Arte, mestra em Filosofia,
especialista em Gestão Cultural, licenciada em Artes Visuais e bacharel em Direito. É
escritora, artista, produtora cultural, curadora independente e pesquisadora nas
áreas de História da Arte, Estética, Gênero e Anarquismo. Possui dois livros
publicados, "Launa" e "Educação Anarquista em Cultura Visual", além de ter
organizado o livro "Uma possível poética da Fuleragem" da artista Camila Soato. Foi
educadora social de Artes na Secretaria de Desenvolvimento Social do DF (SEDEST-
DF), analista no Ministério da Cultura (MinC) e professora do Instituto Federal de
Brasília (IFB). Possui artigos científicos publicados em periódicos acadêmicos de
Filosofia e Humanidades da Universidade de Brasília (UnB), Universidade de São
Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (UNESP). Em 2022, realizou a curadoria
da exposição "Isso que vocês chamam de amor é, na verdade, trabalho não pago" de
Camila Soato, na Galeria Alfinete (Brasília -DF). Em 2023, foi curadora da exposição
"Piriquitão Night Club: o patriarcado é um saco" da mesma artista, na Galeria Zip per
(São Paulo-SP).
Afiliação: Universidade de Brasília
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4540444540033349
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9553-9540
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•R E S U MO
O artigo realiza uma análise comparativa entre obras do pintor modernista Édouard Manet e
releituras da pintora contemporânea Camila Soato. Num primeiro momento, realiza -se uma
introdução ao formalismo de Clement Greenberg e a concepção histórico -social de T. J. Clark.
Posteriormente, demonstra-se uma crítica feminista à historiografia da arte por meio de
Griselda Pollock. A noção de espaço é tratada com relevo e aprofundada por uma análise que
ultrapassa o tratamento pictórico e se assenta sobre uma abordagem contextual. O diálogo
perpetrado entre o pintor e a pintora evidenciam os mecanismos d e um sistema de
diferenciação e hierarquização de gêneros e sexos. Por fim, a percepção de Audre Lorde
apresenta possibilidades de subversão e evidencia a potência estética e política de Soato.
•P AL A V RA S - CH A V E
Camila Soato, feminismo, historiografia da arte, Manet, pintura.
•A B S T RA CT
The article makes a comparative analysis between works of the modernist painter Édouard
Manet and reinterpretations of the contemporary painter Camila Soato. At first, an introduction
to Clement Greenberg's formalism and T. J. Clark's social-historical conception is carried out.
Subsequently, a feminist critique of art historiography is demonstrated through Griselda
Pollock. The notion of space is treated with emphasis and deepened by an analysis that goes
beyond the pictorial treatment and is based on a contextual approach. The dialogue
perpetrated between the painter and the female painter evidences the mechanisms of a system
of differentiation and hierarchy of genders and sexes. Finally, Audre Lorde's perception
presents possibilities for subversion and highlights Soato's aesthetic and political power.
•K E Y W OR DS
Art historiography, Camila Soato, feminism, Manet, painting.
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Introdução
A partir de um diálogo entre releituras da pintora contemporânea Camila
Soato (1985-) e as obras originais de Édouard Manet (1832-1883), pretende-se
evidenciar o funcionamento do sistema de diferenciação e hierarquização de
gêneros que forma e é formado pela cultura. Assim como, intenta-se analisar as
estratégias perpetradas por mulheres artistas para disputar estruturas sociais
como a historiografia da arte.
A revisão inicial do formalismo de Clement Greenberg (2001) se mostra
essencial para o entendimento da maneira como a historiografia da arte
formulou parâmetros que justificassem a canonização de algumas imagens e
artistas, excluindo toda uma diversidade de existências da história visual.
Partindo de pressupostos universais, fundamentados em critérios
supostamente imparciais de análise puramente estética, o formalismo teria
contribuído para legitimar e perpetuar um recorte específico de identidade,
inaugurado pela figura do flâneur no modernismo.
A concepção histórico-social de Timothy James Clark (2004) possibilitou
uma compreensão mais contextual do conjunto de transformações que
permearam os movimentos artísticos na França do início do século XX. O autor
faz uma análise inicial sobre as transições políticas que ensejaram nas
mudanças geográficas e sociais em Paris para, posteriormente, compreender
como essas renovações foram transfiguradas para o âmbito artístico. A partir
dessa compreensão, T. J. Clark (2004) conduz sua análise sobre a Olympia
(1863) de Manet, na qual o autor tenta demonstrar que a noção de classe
transparece na obra por meio do tratamento dado à nudez.
A pintora brasiliense contemporânea Camila Soato realiza uma
reinterpretação da pintura de Manet, utilizando sua técnica tipicamente
escrachada, conduzida pelo método que nomeia como “fuleragem”
1
. A
contemporaneidade da tela é enfatizada pela presença dos rastros do fazer,
pela bidimensionalidade evidenciada por espaços sem adição pictórica. A
1
Termo desenvolvido a partir do conceito de “fuleragem”, criado pelo grupo brasiliense de
pesquisa Corpos Informáticos, para se referir às performances realizadas por eles: ações
efêmeras, muitas vezes descomprometidas com o registro, contra o mercado de arte e aberta
às contaminações. Também visa desmistificar lugares convencionais, transformando-os em
espaços de arte.
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artista faz referência à controvérsia em torno do corpo e do sexo feminino,
proposta por Manet, mas acrescenta outras narrativas ao se representar junto
à Olympia. A pintura é, ao mesmo tempo, uma releitura e um autorretrato.
Assim, Soato realiza um ato político por meio da sua prática pictórica, se insere
visual e virtualmente na história da arte.
Griselda Pollock (2008) desenvolve uma crítica à história social da arte,
apresentada por Clark (2004), devido à naturalidade com que o autor aceita a
suposta masculinidade universal do espectador de arte. Apesar do avanço
proporcionado pela história da arte de inspiração marxista, o posicionamento
secundário da análise de gênero em relação à classista, efetuado pelo
pensador, impede uma revisão aprofundada da historiografia da arte. Pollock
propõe, então, uma tripla noção de espaço para complexificar a abordagem
contextual.
A partir das considerações da autora, apresenta-se outras duas releituras
combinadas a autorretratos da pintora Camila Soato que dialogam com obras
de Manet. Na obra Monet, Manet e Mané, a pintora evidencia a maneira crítica
com que se insere na história da arte. Na obra Cafajestes subverte a dinâmica
objetificante do olhar, presente em muitos quadros de Manet e no próprio
cotidiano de muitas mulheres de antes e agora. Assim, pretende-se, neste texto,
evidenciar os mecanismos de diferenciação e hierarquização de gêneros e
sexos presentes no âmbito da arte historicamente. Por fim, destaco também a
concepção de Audre Lorde (1984) sobre o poder do uso do erótico que
evidencia a potência estética e política de Soato.
O Manet: Modernidade e Moderni smo
Em certo modernismo, a produção pictórica consistiu numa investigação
do que poderia ser feito com valores e estímulos transfigurados sobre uma
superfície plana, mais que isso, que tipos de jogos seriam possíveis nessa
prática. A pesquisa muitas vezes foi realizada a partir de produções do passado
e, nesse sentido, um jogo dialético foi realizado ao se alterar, pressionar ou
colocar em xeque parâmetros de toda uma antiga economia visual. Contudo,
tal entendimento não se confunde com uma noção de ru ptura.
Clement Greenberg (2001), influente crítico de arte americano, defendeu
que o modernismo nunca pretendeu uma ruptura com o passado, mas
significou uma continuidade da tradição. O autor identificou o modernismo
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como o movimento que mais intensificou o processo de autoanálise iniciado
com o filósofo Immanuel Kant. De origem iluminista, a autocrítica modernista
poderia levar a arte a se resumir ao entretenimento se não tivesse conseguido
situar seu valor em si mesma. A essência do modernismo subsiste na utilização
dos métodos característicos de uma disciplina para limitá-los mais firmemente
em suas competências, ao invés de romper com esses métodos pura e
simplesmente. Cada expressão artística deveria demonstrar sua competência
por conta própria. Assim, ficou evidente que, a cada área da arte, o que valia
era sua unicidade, o que era próprio à natureza de seus meios. “’Pureza’
significava autodefinição, e a missão de autocrítica nas artes tornou -se uma
missão de auto-definição radical” (GREENBERG, 2001. p. 2).
Esse modernismo atentou para as limitações próprias da pintura: a
planura da superfície, o formato do suporte, as especificidades da tinta.
Contudo, para o autor, foi a ênfase dada à planaridade da superfície que definiu
o modernismo em si mesmo, pois a superfície plana era a condição única e
exclusiva da arte pictórica. Deste modo, os/as pintores/ras modernistas
conseguiram evidenciar a qualidade pictórica de suas produções não ao
abandonar a reprodução de objetos reconhecíveis, mas ao rejeitarem a
similitude do espaço que esses objetos podiam ocupar. A representação de
objetos identificáveis não afetava essa busca, pois ela se baseava nas
associações possíveis entre todas as entidades reconhecíveis – entre as quais
se inclui a própria pintura. Assim, a ilusão tridimensional não é negada
totalmente no modernismo, mas é relacionada com a ênfase da
bidimensionalidade da pintura.
Greenberg (2001) quis demonstrar que o modernismo foi capaz de
transformar possibilidades estéticas em práticas empíricas, o que teria
permitido que fatores considerados fundamentais para a experiência artística
fossem deixados de lado sem que a produção pictórica perdesse sua aptidão
em proporcionar uma experiência estética em essência. Deste modo, o crítico
defendeu que modernismo contribuiu para o estabelecimento de um valor
próprio para a arte e, consequentemente, sua autonomia.
Contudo a arte não possui valores próprios por si, baseados em
fundamentos estéticos somente. A arte é essencialmente um fenômeno social
e participa ativamente de todas as dinâmicas de poder que permeiam as
sociedades. Operações como essas travestem a produção artística com uma
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roupagem sobre-humana e naturaliza mecanismos de criação e manutenção de
privilégios utilizados por diversos grupos ao longo da história da arte.
O historiador social T. J. Clark (2004) realizou uma pesquisa sobre a
história da arte francesa sob uma perspectiva diversa da usual investigação
formalista, na qual analisou as práticas artísticas de acordo com as influências
sofridas pelas transformações políticas que ajudaram a estabelecer a
modernidade. Deste modo, não alijou de seu trabalho a investigação material
dessas atividades, ao mesmo tempo em que considerou o contexto
socioeconômico em que a produção ocorria.
Clark (2004) não foge à acepção do modernismo como uma investigação
sobre a superfície chapada do tratamento pictórico, mas se indaga sobre o
porquê dessa preocupação. O motivo que levou a tornar a bidimensionalidade
da pintura um valor estético. Para além de uma questão física ou óptica, o tipo
de procedimento modernista foi, muitas vezes, visto como uma afronta ao
burguês comum. A falta da perspectiva clássica constituía uma barreira que o
impedia de participar de um espaço apartado da vida comum, carregado de
significados coerentes com os desejos desse agente. Para o autor, na
sociedade capitalista, a classe figura a representação social em torno da qual
todas as outras se organizam, um fator determinante na vida social de um
indivíduo. Esta classificação se apoia na efetiva posse ou alijamento dos meios
de produção, consiste numa situação relativa e não inerente.
A obra Olympia foi produzida em um contexto histórico de instabilidade
e mudanças sociais. A cidade de Paris era submetida a um forte processo de
modernização urbana encetado por Napoleão III e o barão Haussmann, o que
acarretou transformações estruturais e socioeconômicas. Para a população
como um todo, não havia uma perda de status social propriamente dita, apesar
dos processos de gentrificação e setorização engendrados pelo novo
planejamento urbano, mas uma incapacidade em se definir o que significava,
na nova ordem parisiense, a atual situação social – o que reforça o aspecto
relacional da concepção de classe.
A representação pictórica da prostituta já era lugar-comum na época,
mas o status social dessa categoria personificava cada vez mais a modernidade
em sua instabilidade, pois se deslocava gradativamente da marginalidade para
os espaços centrais da sociedade. O quadro de Manet proporcionou pistas
precárias ou incoerentes dos aspectos sociais e sexuais de uma identidade
contraditória, o que na opinião do autor, tornou a obra um marco da arte
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moderna. Pistas inconsistentes por conceder “vários lugares dos quais o
espectador poderia se apropriar de sua ficção principal, mas eles acabavam se
mostrando variados demais; direi que eram contraditórios e inabitáveis”
(CLARK, 1984. p. 130).
No salão parisiense de 1865, Manet expôs Olympia e Jesus insultado
pelos soldados lado a lado, o que causou grande indignação e escárnio entre
críticos e público em geral. Não somente pela junção de temas tão
contraditórios, a pintura da mulher causou primordial desconforto. Apesar de
generalizadas, as representações das cortesãs ou prostitutas propriamente
ditas se assentavam em imagens abstratas que faziam referências claras às
musas clássicas. Contudo, para a maioria dos críticos da época, a prostituta de
Édouard Manet trazia as marcas da classe trabalhadora em sua pele,
demarcação que não pode ser afirmada sem alguma inconsistência pela própria
instabilidade que a imagem carrega.
Não obstante, Manet faz uma evidente referência à Vênus de Urbino
(1538) de Ticiano Vecellio (1488-1576) por meio da postura da mulher retratada
e da reconfiguração moderna dos acessórios e coadjuvantes da tela. De
qualquer maneira, o tratamento que o pintor dispensou ao olhar e a mão que
cobre o sexo da prostituta são inteiramente diferentes, melhor, diametralmente
opostos. O sonolento cão de estimação da pintura de Ticiano é substituído por
um arredio e crispado gato negro, único signo que, para Clark, poderia evocar
uma presença fálica na pintura de Manet – e que, em Ticiano, está presente no
olhar desejoso e na mão que envolve uma ausência no sexo da figura feminina
em primeiro plano.
Se a musa de Ticiano “representava o desejo do homem e a
desejabilidade da mulher” (CLARK, 1984. p. 184), a Olympia de Manet marcava
a presença de uma sexualidade própria e de um desejo controverso. No
primeiro, o nu é casto e impessoal, no outro, é particular e, por isso, imoral. Em
um, colabora para o desejo sexual do espectador masculino, noutro, expõe o
desconforto desse desejo. Para o autor, o quadro de Manet trata sobre o poder
sexual e a beleza de Olympia em relação ao fato dela ser uma mulher.
A façanha da Olympia, eu diria, é que ela confere a seu objeto feminino
uma sexualidade particular, em oposição a uma sexualidade geral. Essa
particularidade deriva, a meu ver, não de haver uma ordem referente ao
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corpo na cama, mas de haver inúmeras, e nenhuma delas estabelecida
como a dominante. Os signos de sexo estão presentes em abundância,
contudo não conseguem, por assim dizer, somar-se uns aos outros. O
sexo não é evidente e inteiriço na Olympia; o fato de uma mulher ter um
sexo – e certamente Olympia tem um – não a torna de imediato uma coisa
a ser apreendida visualmente por um homem: seu sexo é uma construção
de algum tipo, ou talvez a incongruência entre vários (CLARK, 1984. p.
191).
O contraste seco, com claros-escuros acentuados, é observado no
sombreamento da mulher em primeiro plano. Contudo, o tratamento modernista
foi julgado moralmente por muitos críticos, o que levou a considerarem
Olympia, uma prostituta suja e de classe inferior. O procedimento inusitado
realizado pelo pintor levou até ao questionamento sobre a feminilidade da
personagem, considerada masculinizada em sua postura de autodeterminação.
A releitura contemporânea da pintora Camila Soato (Figura 1) realiza operação
análoga à de Manet, mas traz elementos atuais à controvérsia em torno do
corpo e do sexo feminino, pois a artista representa ela mesma, numa postura
escrachada, junto à Olympia.
A Mané e a contemporaneidade
Um dos traços eminentemente modernistas apontado no quadro de
Manet foi o tratamento apurado em algumas partes da imagem e, em outr os,
um procedimento quase que inacabado ou pouco ilusionado, o que teria
transparecido a planaridade da pintura e evidenciado o processo de produção
pictórica. Na tela de Camila Soato, a planura da pintura é levada até seu último
grau com pedaços de tela sem qualquer aplicação de tinta. Ainda, a planaridade
é reforçada pela adição de listras sem sombreamento sobre uma superfície nua.
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Figura 1. Camila Soato. O que é isso novinha?! - Tomando umas 3 ou 9 com Olympiá no
boteco do ovo colorido, 2015. Óleo sobre tela. 250 x 150 cm. Fotografia da galeria Alphaville.
Se em Manet as marcas do fazer são reveladas por imagens com pouco
tratamento pictórico, na pintura de Soato, o processo de produção convive com
a representação imagética e constitui mais um dos elementos presentes. O
pincel é limpo diretamente sobre tela ao longo do processo de feitura e os
escorridos de tinta não são apagados.
Por seu turno, as linhas demarcadas pela falta de gradação no claro-
escuro do pintor modernista são substituídas pela aplicação abundante de tinta
em algumas partes da tela de Soato. A massa de matéria faz contraste com a
ausência completa. Por meio de outros tipos de tratamento, a instabilidade e a
incongruência continuam representadas na pintura contemporânea, apesar de
não mais se assentarem na forte oposição entre o preto e o branco.
Na obra de Camila Soato, as figuras a receberem maior tratamento
volumétrico são as mulheres. Tudo evoca a dissimulação da pintura pelo realce
das marcas do fazer, menos a imagem de Olympia e da própria artista que
possuem maior materialidade no espaço pictórico. A prostituta ganha volume e
um mamilo que antes era quase ausente. A parte solta do cabelo de Olympia,
que se funde ao biombo no quadro de Édouard Manet – e que, para Clark,
suaviza inesperadamente um rosto enrijecido pela ausência dos longos e fartos
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cabelos que geralmente emolduram os rostos das musas – em Soato está
presente de uma maneira simples e natural. Assim como a presença da
prostituta que se reclina à vontade na cama enquanto segura seu copo e a
garrafa de “cerva”.
No quadro contemporâneo, a mão tensionada de Olympia que marcou
seu sexo e tanto escandalizou os críticos franceses do século XIX é substituída
pela mão que carrega displicente uma cerveja. Se a prostituta de Manet lidou
com a presença de um olhar masculino sobre seu sexo, nudez e classe, a
prostituta de Camila Soato parece simplesmente não se importar com esse
olhar ou qualquer opinião sobre sua pessoa. Não que esse olhar não esteja
presente ou representado no quadro da pintora contemporânea, tanto a
prostituta quanto a artista, que parece rir silenciosamente enquanto bebe e se
depila, possuem consciência desse espectador masculino que a observam,
entretanto, sua presença simplesmente não lhes diz nada.
A Olympia de Manet já subverteu a representação pictórica da nudez
feminina ao figurar uma prostituta que destaca o domínio do seu próprio sexo,
que evidencia o olhar de um espectador burguês masculino, que expõe a
realidade claustrofóbica de um quarto qualquer destinado à mercantilização do
sexo. Soato dá um passo além ao representar a si própria num ato doméstico,
íntimo e corriqueiro, ressalta a naturalidade do seu sexo e se afasta ainda mais
da objetificação do corpo feminino. Subverte a situação ao representar dua s
mulheres bebendo, que se divertem sem notar a suposta presença masculina,
ao ocuparem um espaço público e hostil à presença feminina: tanto o boteco,
indicado pelo título da obra; quanto o espaço da historiografia da arte,
assinalado pela representação da própria pintora.
Visões da diferença
De acordo com a historiadora da arte Griselda Pollock (2019), T. J. Clark
realiza uma análise em direção à perspectiva feminista, mas aceita o espectador
masculino com uma naturalidade que impede uma compreensão mais profunda
dos mecanismos históricos e sociais que envolvem a produção modernista. É
notável a profusão de obras manufaturadas nesse período que tratam do
aspecto comercial da sexualidade, mas Clark se furta à investigação desse
fenômeno sob o viés das dinâmicas de gênero, exatamente por aceitá-las como
manifestações naturais.
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A autora afirma que, ao estabelecer o espectador masculino como
consumidor primordial da obra Olympia, faz-se necessário compreender a
posição feminina implícita nessa concepção. Nesse sentido, o escândalo
causado pela exposição da pintura se deve mais pela provável presença de
damas burguesas no respeitável ambiente do salão, do que pela fruição dos
cavalheiros familiarizados com a realidade boêmia.
A burguesia se estabeleceu como classe política e social por meio da
diferenciação, mecanismos de definição mútua, das categorias
socioeconômicas e de gênero. Esses sistemas se contradizem e se determinam
relativamente por meio de táticas sociais históricas, que se travestem de uma
ordem intrínseca e determinista para naturalizar o que, em realidade,
constituem dinâmicas socioeconômicas de diferenciação e hierarquização.
Nesse sentido, tanto o mapeamento geográfico das cidades modernas,
quanto a separação entre as esferas públicas e privadas, com suas categorias
de ocupantes cabíveis, foram essenciais para o estabelecimento do estilo de
vida burguês, a modernidade e o modernismo. Para além disso, à proporção
que se estabelecia a ideologia da domesticidade foram se difundindo os
códigos de comportamento pertinentes aos sujeitos que ocupavam as
diferentes esferas sociais e geográficas – entre os quais, o feminino e o
masculino, compostos pelos signos que constituíam e foram constituídos pela
ordem social, política e econômica em ascensão: a burguesia, o capitalismo e
a modernidade.
No entanto, esses territórios da cidade burguesa não eram apenas
gerados por uma polaridade entre masculino e feminino. Eles se tornaram
locais de negociação de identidades de classe pautadas pelo gênero. Os
espaços da modernidade são aqueles onde a classe e o gênero interagem
de maneiras críticas, uma vez que são palco das trocas sexuais. (…) Eles
são, como as obras canônicas indicam, os espaços marginais ou
intersticiais onde os campos do masculino e do feminino se cruzam e
estruturam a sexualidade no âmbito de uma ordem de classes (POLLOCK,
2019. p. 132).
Considerando o contexto socioeconômico e de gênero do produtor de
arte, seu processo de interação com materiais e as influências de tradições,
convenções técnicas e conotações ideológicas de tema, o modernismo não só
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representou o registro das contradições e determinações de uma nova ordem,
mas contribuiu para o seu estabelecimento.
Griselda Pollock (2008) amplia a noção de espaço, como uma categoria
de análise da história da arte, para uma definição de espacialidade que abarca
espaços sociais, representados e imaginados numa prática artística. Assim, o
espaço representado consiste no espaço da cidade e as suas estratificações
entre esferas públicas e privadas. O espaço imaginado se refere à construção
pictórica de imagem social em um retângulo bidimensional. Já o espaço social
engloba tanto o espaço físico, econômico e psicossocial de um produtor(a) de
arte, quanto seu contexto histórico e geográfico.
Deste modo, Pollock intenta transformar o modo como a análise da
história da arte é realizada, permitindo uma perspectiva feminista que não
somente reforce os parâmetros masculinistas que pautam as relações sociais
e, por consequência, solidificaram a história da arte. Uma historiografia da arte
feminista não consiste somente na mudança do objeto de estudo da história da
arte, dado que a supressão da mulher dessa disciplina e espaços relacionados
não constituiu num mero acaso, mas foi o resultado de um sexismo estrutural
que produziu e perpetua a diferenciação e hierarquia entre gêneros.
A historiografia social da arte permitiu novas formulações sobre a
produção cultural, principalmente sob um viés marxista de análise,
proporcionou novos paradigmas para a estruturação de uma perspectiva
feminista de pesquisa. Contudo, endossada pelo próprio T. J. Clark, a
concepção social da história da arte compreendeu a investigação feminista
como um complemento ao exame primordial pautado pela lógica de classes,
ignorando que a diferenciação e hierarquias de gênero contribuíram ativamente
para o estabelecimento do capitalismo e suas estratificações.
As divisões sexuais embutidas nos conceitos da arte e do artista fazem
parte dos mitos e ideologias culturais peculiares à história da arte. Mas eles
contribuem para o contexto mais amplo de definições sociais de
masculinidade e feminilidade e, portanto, participam no nível ideológico da
reprodução de hierarquia entre os sexos. É esse aspecto da história da
arte que os estudos marxistas nunca abordaram (POLLOCK, 2008. p. 30,
tradução nossa).
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A concepção marxista entende a obra de arte como um objeto que
produz e condiciona seu consumo. Para além de uma criação individual, o
trabalho artístico produz mais do que um objeto, mas uma prática. Nesse
sentido, práticas culturais são sistemas de significação que produzem sentidos,
ao mesmo tempo em que direcionam suas representações.
A cultura é o âmbito em que as imagens e definições de uma
determinada realidade são produzidas, contudo, essas produções podem ser
mobilizadas para legitimar relações de dominação presentes na sociedade. A
historiografia da arte, como um aspecto da própria produção cultural, não foge
dessa possibilidade. Por conseguinte, noções como genialidade e demais
critérios de qualidade estética foram forjados sobre bases que perpetuam a
exclusão da mulher dos espaços da arte e simultaneamente justificam a
aclamação da produção artística masculina.
Diferenças do olhar
Édouard Manet realizou operação parecida à efetuada no quadro
Olympia em O almoço sobre a relva (1863), tão condenada quanto a primeira
que fora exposta no Salão dos Recusados de Paris (1863). Nessa obra o pintor
modernista também evidencia as marcas do fazer ao aprofundar o tratamento
pictórico em algumas partes da tela e, em outras, deixar a impressão de q uase
inacabamento. Realiza o mesmo sombreamento cru que ressalta os claros-
escuros e linhas da figura em primeiro plano. Evidencia a nudez feminina
consciente do observador masculino em contraste aos acompanhantes
masculinos vestidos que se divertem alheios. Apresenta a realidade da
mercantilização do sexo sem, novamente, se furtar de carregá-la com as
incertezas e incongruências que lhe são inerentes.
Essa também é uma obra que foi alvo de referência para que a artista
Camila Soato pudesse expor sua perspectiva. Contudo, nessa segunda pintura,
realiza uma complexa composição de imagens, em que relaciona diferentes
signos interligados pelo seu tom jocoso característico. Em realidade, o trabalho
de Soato não se resume a um ponto de vista individual, como um exemplar da
“arte feminina” ou a representação de uma vivência própria, da experiência
específica de um corpo generificado. A produção da artista estabelece diálogos
e embates com a própria historiografia da arte mediante releituras que, além de
evidenciar o aspecto político dessas imagens, expõem incongruências por meio
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do ridículo ou evocam outras questões sociais pelo inter-relacionamento com
outras imagens.
Na obra Monet, Manet e Mané (Figura 2), Camila Soato se insere na
história da arte de maneira cômica e inferiorizada ao se denominar a “mané” na
linha sucessória das releituras modernistas. O termo “mané” é um brasileirismo,
um termo informal e pejorativo. Destaca-se que consiste num substantivo
masculino e significa: “1. Sujeito tolo, menos inteligente ou com pouca
capacidade intelectual. 2. Sujeito desleixado ou displicente com suas coisas ou
com si mesmo” (MANÉ, 2021). Ao se intitular desta maneira, a artista expõe a
impossibilidade inerente à formatação da historiografia da arte de abarcar e
compreender a produção feminista de arte. A produção de uma mulher será
sempre considerada inferior se contrastada aos padrões produzidos por esta
história e, por isso, a artista realiza tratamentos pictóricos de forma "desleixada",
deixa evidente seu processo criativo tanto para explicitar essas incongruências,
quanto para se inserir de maneira contraditória em uma historiografia pautada
por padrões masculinistas.
Figura 2. Camila Soato. Monet, Manet e Mané, 2015. Óleo sobre tela. 250 x 450 cm.
Fotografia do Catálogo Brasilidade pós-modernismo (Centro Cultural Banco do Brasil)
Novamente, espaços de tela sem tinta são apresentados com manchas
causadas pela limpeza do pincel sobre a superfície, assim como, escorridos
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não apagados e listras sem tratamento ilusório. Há ainda um esboço a carvão
que não recebe pigmento algum, figurando uma espécie de entidade oculta na
composição. A imagem representa o orixá Logunedé, que apresenta em suas
características qualidades femininas e masculinas. Sob esta representação, há
uma figura com a postura de uma santa católica, mas fortemente maquiada e
com um manto com as cores do arco-íris – símbolo do movimento LGBTQIA+.
Ao lado das figuras, um prato de comida disposto como uma oferenda. A artista
materializa no centro da tela representações que remetem à subversão da
dualidade do sexo. Soato santifica e exalta símbolos que subvertem o sistema
de diferenciação e hierarquização de gêneros.
Desta vez, a artista aparece nua substituindo o personagem masculino
no almoço sobre a relva que se comporta de maneira mais à vontade com a
situação. Contudo, a artista veste chinelos e enfia o dedo no ânus de um
cachorro que aparece na cena. A imagem ridiculariza completamente a aura
respeitosa que envolve somente os personagens masculinos da pin tura de
Manet, mas o faz através da exposição cômica da própria artista. Assim, Soato
joga com a posição da mulher produtora de arte, que lida com uma
historiografia povoada por imagens objetificadas de si.
Do lado direito da tela, a artista é novamente representada com os seios
à mostra, o que reforça a presença do próprio gênero, mas vestindo calças,
uma vestimenta reservada ao masculino a séculos atrás. Camila Soato equilibra
um vaso de coqueiro na cabeça e encara o espectador como se esta fosse a
única maneira em que conseguisse ser percebida. Ao fundo da releitura de
Manet, se figura novamente, substituindo a personagem que está dentro d’água
com roupas íntimas, mas desta vez, a artista se representa completamente
vestida carregando comicamente um galão d’água. Na pintura do modernista,
a mulher ao fundo é observada sem o saber, reforçando o apelo erótico do olhar
voyeurístico. Soato, mesmo que também alheia ao olhar invasivo, se representa
completamente vestida numa postura agachada displicente, o que interrompe
o jogo sexual perpetrado por Manet.
A dinâmica do olhar possui relevo no sistema sexual de diferenciação.
No século XIX, a reputação de uma mulher poderia ser destruída por um simples
olhar, as pinturas de Manet frequentemente retratam mulheres que encaram o
olhar inquisidor do espectador, supostamente masculino, como uma obrigação
subserviente. Em outra releitura de Manet (Figura 3), a pintora contemporânea
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Camila Soato explicita a dinâmica sexual do olhar ao se retratar na obra O
balcão (1868) com olhos esbugalhados que encaram o observador.
O tratamento pictórico característico da artista é o mesmo: tela crua
aparente, limpezas de pincel sobre a própria estrutura, listras que reforçam a
planaridade, volumetria intensa por meio de grossas camadas de tinta.
Novamente só algumas das personagens recebem o forte procedimento
volumétrico, a própria artista e o casal de cachorros que copulam. O balcão de
Manet é quase todo reproduzido mas, uma vez mais, a artista se furta a
reproduzir o contraste excessivo do pintor modernista. A contemporaneidade
da artista se assenta no contraste entre ausência e presença, diferente do claro -
escuro de Édouard Manet. O contraste ainda está presente, mas de maneira
mais sutil e condizente com a incongruência da posição social e sexual
ocupada pela artista.
Figura 3. Camila Soato. “Cafajestes”, 2015. Óleo sobre tela. 180 x 130 cm. Fotografia da
Zipper galeria.
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Contudo, se na tela modernista nenhuma das figuras representadas
encaram o espectador, na tela de Soato quase todos os personagens fitam
insistentemente esse observador. Os cachorros copulando o encaram, a mulher
que ajusta suas luvas o observa entediada. A graciosidade feminina é
substituída por posturas de mulher e o homem burguês, pela representação da
artista que posa debochada de cuecas aparentes, com pequenos corações
vermelhos, e a sua despojada cerveja. Sua mirada é cômica, aviltante e
insubordinada. Um olhar que ridiculariza a perspectiva do voyeur, desejoso,
invasor, inquiridor, eroticamente agressivo e, predominantemente, masculino.
Audre Lorde nos fala dos usos do erótico como potência no ensaio Usos
do erótico: o erótico como poder (2020). A autora salienta que o erótico diz
respeito à intensidade e completude do que fazemos e não, o que fazemos
propriamente dito. “Com a celebração do erótico em todos os nossos esforços,
meu trabalho passa a ser uma decisão consciente – uma cama tão desejada,
na qual me deito com gratidão e da qual me levanto empoderada” (LORDE,
2020. p. 69). Mas Lorde alerta para a fato de que uma demanda interna pela
excelência do erótico não deve ser confundida com a exigência do impossível
– tendo em vista que nossos padrões produtivos foram construídos sobre as
bases de uma sociedade patriarcal, qualquer parâmetro é inalcançável para a
mulher pelo simples fato dela não ser um homem.
E mais, adverte que mulheres são ensinadas a desassociar o erotismo
de todas as demandas vitais de suas vidas, menos a do sexo. O sistema
capitalista, como uma estrutura fundamentalmente econômica, redefine suas
relações a partir da lógica do lucro, assim como a satisfação pessoal. O sistema
patriarcal, compreendido como uma organização social estruturante do sistema
capitalista, reforça o uso do erótico a serviço do poder masculino. O uso do
erótico feminino se restringe à utilização externa pelo homem. Assim, o usufruto
produtivo desse erótico é desviado para funções subalternas de trabalho e
sexo. À mulher, é furtado o encanto pela vida, pela satisfação e pela realização.
Audre Lorde destaca que, ao ignorarmos o uso do erótico em nossas
produções, no desenvolvimento e manutenção de um poder próprio, na própria
interação com a vida e outras pessoas, ignorando a satisfação dos próprios
desejos, nos objetificamos e objetificamos as outras mulheres a nossa volta.
Nos afastamos do gozo da satisfação e da realização do erótico como potência
própria. Algo que T. J. Clark vislumbrou na Olympia de Manet, mas não pode
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compreender integralmente por naturalizar posições produzidas por dinâmicas
sociais.
Conclusão
Assim como o título e as operações estéticas da obra Monet, Manet e
Mané indicam, Camila Soato se insere formalmente e criticamente numa
historiografia marcada pela construção de um sujeito que exclui a possibilidade
de seu gênero. Clement Greenberg elaborou uma linha evolutiva e teleológica
para o modernismo europeu a fim de justificar a inserção da arte que vinha
sendo produzida em seu contexto geográfico e temporal numa historiografia
consagrada. Soato estabelece relações formais com um pensamento, que por
muito tempo conduziu as análises sobre a história da arte, ao evidenciar a
bidimensionalidade da pintura e explicitar os processos que envolvem a feitura
do seu trabalho.
Sua inserção nessa historiografia é ao mesmo tempo estética e crítica,
sua produção explora elementos modernistas em gradações acentuadas pela
própria intensificação dos componentes da pintura: partes de tela sem adição
pictórica, rascunhos de desenhos e listras que exacerbam a planura; grossas
massas de tinta que figuram imagens e registram tanto paletas quanto a diluição
de pincéis carregados. Sua pintura é eminentemente contemporânea, mas
inscrita na historiografia de um determinado modernismo – não porque deseja
reafirmá-lo, ao contrário, para estabelecer um diálogo crítico com a narrativa
estética e social que o fundamentou.
Não por acaso, Soato escolheu as obras de Manet para empreender
releituras com seus autorretratos. T. J. Clark também o escolheu como um
símbolo do processo de ascensão e estabelecimento da classe burguesa
francesa, modelo de organização social que seria exportado mundialmente por
diversos mecanismos culturais. Contudo, como denunciado por tantas
historiadoras da arte feministas, entre as quais destacamos Griselda Pollock,
Clark presumiu a universalidade de um espectador masculino e, assim,
naturalizou o próprio mecanismo que engendrou essa possibilidade. Em sua
releitura da Olympia, Camila Soato dialoga com essa suposta universalidade
masculina ao subverter os elementos eróticos utilizados para sedução e
sujeição, ao mesmo tempo, corrobora com a real diversidade do olhar ao
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evidenciar escrachadamente essa erotização objetificada/objetificante e
estabelecer um ambiente de naturalidade e cumplicidade entre mulheres.
Além de se inserir em uma historiografia da arte como mulher produtora
de arte contemporânea, Soato subverte os parâmetros masculinistas arraigados
neste sistema e, por isso, se estabelece como artista feminista, propositora de
novos paradigmas, criando um espaço próprio na história da arte.
Paralelamente, a “fuleragem” da sua produção resgata uma potência erótica,
própria da criação, e nos permite vislumbrar utopias de liberdade e subversão.
Referências
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Recebido em 16/10/2022 - Aprovado em 03/09/2023
Como Citar
DE ANDRADE RODRIGUES, G. Manet e Mané: Visões da diferença. ouvirOUver, [S. l.], v. 20, n. 1,
[s.d.]. DOI: 10.14393/OUV-v20n1a2024-67272. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/67272.
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