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José Luiz Niemeyer dos Santos Filho | Leonardo Paz Neves |
Lier Pires Ferreira | Ricardo Basílio Weber
Coordenadores
CURSO DE
SEGURANÇA
INTERNACIONAL
Lições de Teoria Política e Pensamento Estratégico
Copyright © 2023 by José Luiz Niemeyer dos Santos Filho, Leonardo Paz
Neves, Lier Pires Ferreira e Ricardo Basílio Weber
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de acordo com ISBD
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CAPÍTULO 1
ABORDAGENS TRADICIONAIS PARA O
ESTUDO DA SEGURANÇA: O REALISMO
E A CRÍTICA AMPLIACIONISTA DO
LIBERALISMO
Marcelo M. Valença1
Luiza Bizzo Aonso2
1 Doutor em Relações Internacionais – PUC/RJ. Bacharelado em Direito – PUC/RJ. Professor
adjunto de Política Internacional e Segurança – ENG e do PPGEM/EGN. Sua pesquisa explora a
convergência entre o direito e a política internacional em temas relacionados aos estudos críticos
de segurança, política externa brasileira e estudos militares críticos. Também tem interesse
em questões de ensino e aprendizado ativos. Email: marcelo.valenca@marinha.mil.br/www.
marcelovalenca.com
2 Doutoranda em Estudos Marítimos – EGN. Mestre em Relações Internacionais – UERJ. Bacharel
em Relações Internacionais – Ibmec/RJ. Professora de Relações Internacionais – UCP. Tem
interesse na área de Ciência Política e Relações Internacionais, com ênfase em Segurança
Internacional, Política Externa Brasileira e Teoria das Relações Internacionais. luiza_bizzo@
hotmail.com
CURSO DE SEGURANÇA INTERNACIONAL
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INTRODUÇÃO
Os Estudos de Segurança (ou apenas Segurança, com “S”
maiúsculo) se consolidam como uma subárea das Relações
Internacionais principalmente a partir da década de 1950.
Com forte inuência dos Estudos Estratégicos e diretamente
relacionada à produção de respostas concretas aos desaos en-
frentados pela política externa norte-americana, a Segurança
acaba por reetir o corolário e premissas do Realismo Político.
Apesar desta relação estreita com o paradigma realista, é possí-
vel perceber outras inuências, agendas e debates ao longo das
décadas seguintes.
Neste capítulo, trabalharemos as origens e principais carac-
terísticas dos Estudos de Segurança desde a sua origem até o
início da década de 1980, quando os questionamentos ao seu
escopo começaram a se intensicar. Para tanto, discutiremos
a fundação do campo e os impactos da Guerra Fria sobre o
objeto da segurança. Traremos, também, alguns dos conceitos
centrais para compreender as dinâmicas de segurança. Depois,
exploraremos críticas à visão realista de segurança e alguns dos
esforços para ampliar o objeto de estudos desde uma perspec-
tiva liberal. Estas duas perspectivas, Realismo e Liberalismo,
apesar de defenderem dimensões diferentes para o conceito
de segurança e as políticas dele decorrentes, formam as bases
mais tradicionais do que se convencionou chamar de Segurança.
Encerramos o capítulo com indicativos sobre o desenrolar deste
debate, principalmente as críticas envolvidas na manutenção de
uma perspectiva realista e de eventuais tentativas de ampliar o
escopo do campo.
CAPÍTULO 01 23
1. A FUNDAÇÃO DO CAMPO DA
SEGURANÇA
Os Estudos de Segurança ganham corpo como uma subárea
das Relações Internacionais principalmente a partir do nal da
II Guerra Mundial. A Guerra Fria trouxe novos desaos à po-
lítica internacional e a bipolaridade que a caracterizou tornou
o pensamento sobre segurança parte integrante e central das
agendas políticas das duas superpotências, complementando
e auxiliando o processo decisório em política externa. Mesmo
o legado anteriormente existente dos estudos de guerra e de
paz, que deu origem à disciplina de Relações Internacionais no
início do século XX, parecia insuciente para atender às novas
e complexas questões que surgiam.
Em sua gênese, a Segurança reetia essencialmente as preo-
cupações políticas dos EUA no cenário que se seguia ao nal da
II Guerra Mundial. O resultado foi um diálogo estreito entre a
teorização dos acadêmicos do campo e as estratégias de política
exterior estadunidense (VALENÇA, 2010, p. 29-30). O desen-
volvimento teórico da Segurança dependia de sua capacidade
de inuenciar e atender aos decisores políticos nos desaos por
eles enfrentados na Guerra Fria, oferecendo respostas às per-
guntas dos formuladores de decisão, tal como nos primórdios
da disciplina de Relações Internacionais (KENKEL, 2005, p. 10).
Esta relação é tão forte que fez com que os Estudos de
Segurança também fossem conhecidos como teorias de segu-
rança nacional (WOLFERS, 1952; MORGENTHAU, 2003, p.
199-214), evidenciando as prioridades e os principais interesses
dos EUA no novo cenário internacional que se constituía. Como
consequência, questões como a deterrence, o uso estratégico de
forças convencionais e a diplomacia militar passaram a ocupar
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posição central nas agendas política e teórica de Segurança. Os
Estudos de Segurança ganhavam relevância na medida em que
eram capazes de oferecer alternativas e estratégias, com razoável
grau de sucesso e previsibilidade, para a política externa esta-
dunidense, principalmente diante da ameaça de uma expansão
soviética (VALENÇA, 2010, p. 30).
Um aspecto que deve ser destacado aqui é o impacto polí-
tico e a relevância buscados pela Segurança, o que se mostrou
possível tendo o Realismo Político como lente analítica predo-
minante. A teoria produzida visava a responder perguntas reais
de um mundo de verdade e o Realismo político se adequava
perfeitamente a esta pretensão. Este pragmatismo, como veremos
adiante, demarcou os limites aos quais a Segurança deveria se
ater e justicam, em um primeiro momento, a centralidade das
questões militares no campo. Tal pragmatismo também evi-
denciava o viés que o campo assumiria nas décadas seguintes
e que marcou os principais debates do campo. Em um cenário
político bipolar, e tendo os Estados Unidos como principal repre-
sentante do Ocidente, seus interesses, preferências e estratégias
acabavam por moldar o que era reconhecido como legítimo no
campo, em um processo de universalização do que se entendia
por segurança e quais respostas deveriam ser dadas para conter
eventuais ameaças (HAFTENDORN, 1991, p. 5; MORGAN,
2007, p. 14-15; BUZAN; HANSEN, 2010).
As condições políticas que levaram à formação do campo da
Segurança eram, portanto, favoráveis ao predomínio epistêmico
dos EUA. Ademais, as próprias bases intelectuais que existiam
nas Relações Internacionais facilitaram também com que os
Estudos de Segurança se conectassem ao processo decisório da
então superpotência global. Nas seções seguintes, estudaremos
a inuência do Realismo político e dos Estudos Estratégicos
na Segurança. Isso nos possibilitará compreender porque esta
CAPÍTULO 01 25
tradição teórica dominou e ainda predomina nos principais de-
bates, agendas e estratégias de segurança internacional.
1.1 O REALISMO
Para podermos compreender a Segurança desde um viés
realista (e a lógica orientadora dos principais conceitos que de-
correm de seu uso como lente analítica), é preciso estabelecer
três principais premissas analíticas, que se inter-relacionam de
modo inseparável. A primeira premissa diz respeito ao Estado
como unidade de análise da Segurança realista e das principais
consequências teóricas e políticas que decorrem desta escolha. A
segunda premissa envolve a natureza e a percepção de ameaças
à segurança decorrentes da eleição do Estado como objeto de
referência do campo. A terceira premissa aborda a relação entre
o conhecimento intelectual que é produzido desde uma leitura
realista e as respostas proporcionadas às perguntas feitas pelos
formuladores de decisão.
1.1.1 O Estado como unidade de análise
Como paradigma teórico, o Realismo abrange um grande
número de abordagens, postulados e níveis de análise que o
tornam uma teoria rica e complexa (SHEEHAN, 2005, p. 25).
Porém, mesmo diante de tanta diversidade, há elementos que
são centrais a essas abordagens e que, em maior ou menor graus,
ajudam o Realismo a ter uma estrutura interna coerente, rele-
vantes e distinguíveis de outras que tentam criticá-lo.
De forma mais especíca, são cinco os elementos centrais
a todas as diferentes leituras do Realismo. São eles (i) o Estado
como unidade central de análise, (ii) a anarquia como condição
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denidora do sistema internacional, (iii) o poder como objeti-
vo a ser buscado para garantir os interesses dos Estados, (iv) a
sobrevivência como interesse primordial dos Estados, e (v) a
autoajuda como forma de empregar estratégias em um espaço
sem garantias de cooperação (Pontes e Messari, 2005).
Desses cinco elementos, talvez o aspecto mais central para os
Estudos de Segurança que deva ser destacado seja o do Estado
como unidade de análise e ator primordial nas relações inter-
nacionais. Dessa premissa derivam as concepções de segurança,
das ameaças e das estratégias para superar eventuais condições
de insegurança. Em outras palavras, o Estado é referência chave
para o estabelecimento do que é segurança e de como lidar com
as ameaças, oferecendo o contexto para a construção do escopo
do campo e sua relação estreita com as ameaças em forma do
emprego da força militar, como veremos adiante.
A centralidade do Estado para a leitura realista da Segurança
reete a leitura percebida no paradigma realista das teorias de
Relações Internacionais: o Estado é o ator central das Relações
Internacionais e é nele (ou a partir dele) que a política, doméstica
e internacional, acontece. O Estado tem, inerentemente, duas
funções básicas, que acabam replicadas das teorias de Relações
Internacionais para a Segurança. São elas a garantia da manuten-
ção da paz dentro de seu território e a proteção de seus cidadãos
contra ameaças externas, vindas do sistema internacional. Essas
duas funções básicas acabam por impor uma dupla realidade
ao Estado que é incorporada pela Segurança. Se, no plano do-
méstico, a soberania decorre da autonomia e da legitimidade
da autoridade política, no plano internacional sua autoridade
não tem utilidade, pois não há uma autoridade central que se
sobreponha aos demais Estados – ou seja, temos um cenário
de anarquia, o segundo elemento caracterizador do Realismo.
CAPÍTULO 01 27
Em um ambiente anárquico, onde a política é pensada como
um jogo de soma zero, dicultando a cooperação e em estado
de permanente conito, a insegurança quanto às intenções dos
adversários permeia todo e qualquer cálculo racional feito pelo
Estado. Isso gera uma desconança e um receio entre os Estados,
tornando o poder o objetivo central a ser buscado, a sobrevivên-
cia o interesse primordial e a autoajuda, a lógica que norteia as
estratégias a serem tomadas.
Deste modo, entender que a preocupação central da
Segurança realista gire em torno de questões militares – como
disse Stephen Walt (1991, p. 222), segurança diz respeito ao uso,
à ameaça e ao controle do poder militar – parece fazer todo o
sentido. O foco do Realismo em se ater aos problemas que de
fato afetavam as agendas internacionais permitia que este para-
digma abordasse temas que eram percebidos como estruturantes
no contexto político do pós-Segunda Guerra Mundial e cada
vez mais visíveis no ambiente de Guerra Fria. Seu arcabouço
analítico mostrava-se eciente na abordagem destes temas e sua
capacidade de oferecer soluções todas como viáveis pelos for-
muladores de decisão ajudaram decisivamente na consolidação
do Realismo como a abordagem tradicional e predominante dos
Estudos de Segurança.
1.1.2 Natureza das ameaças e a lógica da segurança
De acordo com a perspectiva realista, falar sobre segurança
reete uma questão central: a preocupação com a força mili-
tar. Apesar da força militar não ser a única questão que afeta a
segurança, ela constitui aspecto estruturante para o campo da
Segurança (WALT, 1991, p. X). Uma denição recorrentemente
citada arma que os Estudos de Segurança envolvem o estudo
da ameaça, do uso e do controle da força militar (WALT, 1991,
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p. 222). Outras questões, como economia e diplomacia, podem
até ser importantes para a política internacional, até mesmo
temáticas de grande impacto, mas não constituem temas de
Segurança: apenas questões incidentes à força militar corres-
pondem ao objeto de estudo da Segurança. E foi com base nessa
premissa que a abordagem realista dos Estudos de Segurança
estruturou a natureza das ameaças, o ator de referência e colocou
limites analíticos e políticos no escopo do campo.
Nesse contexto, resta a pergunta: por que a força militar
ganhou tamanho destaque?
A resposta, apesar de não ser simples, é bastante objetiva.
Primeiramente, ela reete o cenário político que caracterizou o
plano internacional durante a segunda metade do século XX. A
Guerra Fria e a centralidade da ameaça soviética, com a conse-
quente resposta em termos militares – tanto por meio da força
convencional quanto da nuclear. A agenda de política exterior
estadunidense girava em torno de respostas a essa demanda e,
portanto, a força militar ganha prioridade ao consistir, ao mesmo
tempo, em estratégia para aumento da inuência internacional
e em m a ser buscado, dado que o aumento do poder militar
ocasionaria a contenção das ações do adversário, impedindo que
este projetasse poder e alcançasse seus objetivos.
Ademais, em termos epistemológicos, o destaque deste ele-
mento decorre da escolha teórica para explicar o mundo, seus
eventos e as respostas a ele. O foco no Estado como principal ator
político e o modelo de racionalidade que explica as suas ações re-
percute com mais impacto na área militar, pois esta é uma amea-
ça crível e concreta ao principal ator das Relações Internacionais.
Em termos políticos, o foco na dimensão militar se mostra
conveniente. A força militar é uma ameaça quanticável, que
permite ser operacionalizável por meio de políticas públicas
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facilmente inseridas e justicadas com base na retórica política.
E, considerando o cenário internacional então em vigor, ameaças
militares são de fácil assimilação pela população, tornando-as
politicamente relevantes. A construção da ameaça militar estran-
geira se adequava à reprodução e perpetuação do duplo papel do
Estado na teoria realista: a manutenção da paz em seu território e
a proteção de sua população contra adversários externos. Em ou-
tras palavras, a parceria entre o Realismo político e a Segurança
focada em aspectos militares é uma profecia autorrealizável.
Em suma, restringir o objeto de estudo aos aspectos inerentes
à força militar ajudam o campo tanto cientíca quanto politi-
camente (WALT, 1991). Um objeto de estudos restrito permite
construir uma teoria explicativa elegante, ou seja, com capacida-
de de explicar uma diversidade de fenômenos usando o menor
número de variáveis possíveis. Permite, também, que essa teoria
tenha capacidade de resolução dos problemas a ela propostos,
instruindo o processo decisório. Finalmente, e por consequência,
um objeto limitado garante à Segurança uma relevância política,
conforme os termos que ela mesma estabeleceu.
1.1.3 Relação entre teoria e prática
As questões acerca do estudo da força militar envolveriam,
desde uma abordagem realista da Segurança, as mais altas res-
ponsabilidades dos governos. Tal conexão entre a contribuição
acadêmica e as agendas políticas permitiriam uma relação estrei-
ta e clara entre a produção teórica e a prática política. Ademais,
em um contexto como o da Guerra Fria, e considerando as fun-
ções básicas do Estado para o Realismo, focar em aspectos mili-
tares poderia contribuir para mitigar os impactos da insegurança
derivados da anarquia internacional, mesmo que a natureza
dos atores ou a condição anárquica não pudessem ser alteradas.
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O resultado é que os Estudos de Segurança se apresentavam
como um campo intelectual ainda mais evidente (FREEDMAN,
1998; MUTIMER, 1999, p. 92), com diálogo direto com os di-
lemas e problemas enfrentados pelos decisores políticos. Como
consequência, notamos novamente que a agenda teórica da
Segurança representava as questões enfrentadas pelos Estados
Unidos em sua política exterior.
Há, contudo, consequências negativas decorrentes desta bus-
ca por relevância e por adequação imediata às agendas políticas.
Durante as décadas de 1950 a 1980, parte signicativa das teorias
desenvolvidas buscavam exclusivamente a resolução de proble-
mas. Isto reete uma limitação no pensamento de segurança no
que tange a teorização ampla, como o desenvolvimento de uma
teoria geral que abarcasse o campo (MILLER, 2001). Contudo,
e tal como o objeto de estudos restrito da Segurança na ameaça,
uso e controle da força militar, isto não era um problema para
o Realismo. Tais “limitações” eram adequadas à lógica desta
tradição de pensamento e acabavam por reforçar as premissas
epistemológicas do campo.
1.2 DILEMA DE SEGURANÇA
O conceito de dilema de segurança é uma derivação lógica
da perspectiva realista de segurança. Ele reete os problemas
de compreensão derivados da ameaça, do uso e do controle da
força militar em um mundo anárquico. Sua estrutura concei-
tual decorre, pois, da própria condição da anarquia e da incer-
teza que surge dessa condição. Como a condição de anarquia
internacional é algo insuperável, toda teoria séria de Relações
Internacionais deveria lidar com o dilema de segurança, pois ele
seria uma questão essencial da política internacional (BOOTH;
CAPÍTULO 01 31
WHEELER, 2008, p. 1-3). Porém, as condições estruturantes do
Realismo político fazem com que o dilema de segurança seja
mais evidente nesta tradição.
O dilema de segurança é fruto do medo de grupos de serem
atacados, dominados ou aniquilados por outros grupos, fazendo
com que se preparem para o pior (HERZ, 1950), levando-os a
desenvolver mecanismos de autodefesa. A estrutura conceitual
do dilema de segurança se estrutura sob as contradições que esses
mecanismos de autodefesa geram, bem como nas condições que se
imaginam que poderiam levar à sua superação – mas não o fazem.
A lógica subjacente ao dilema de segurança é que as armas
que garantiriam a proteção de um grupo ameaçam, potencial-
mente ou de fato, outros grupos. Logo, Estados detentores de
armamentos podem provocar a incerteza e o medo em outros
Estados, mesmo que essas armas não sejam utilizadas para nada,
além da própria proteção.
A incerteza e o medo poderiam ser minimizados, mas não
eliminados, com o fortalecimento de instituições e a cooperação
internacional (BOOTH; WHEELER, 2008, p. 6-7). O dilema
de segurança persistirá enquanto não houver uma autoridade
superior que suprima essa incerteza e medo. Porém, como a
anarquia é condição primária do sistema internacional, o dilema
de segurança é irresolúvel.
1.2.1 O que é o dilema de segurança
O dilema de segurança é um dilema estratégico que decorre
de duas premissas que se mostram incompatíveis, obrigando o
decisor político a escolher uma linha de ação que contradiz uma
dessas premissas. A primeira premissa reete a impossibilidade
de tomarmos decisões plenamente embasadas sobre as inten-
ções e objetivos de outros indivíduos. Isto nos impossibilitaria
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compreender inteiramente suas ações. A segunda premissa é de
que a função das armas, se de defesa ou de ataque, são ineren-
temente ambíguas. Por isso, a obtenção de armamentos por um
Estado gera desconforto aos seus adversários.
Ele opera em dois níveis decisórios. O primeiro, mais básico,
leva o decisor a ser confrontado com o dilema de escolher entre
duas alternativas que afetam sua segurança. A decisão envolve a
incerteza sobre capacidades e intenções do adversário. Seriam
elas defensivas ou há interesses ofensivos?
O segundo nível decisório deriva do primeiro e consiste no
dilema sobre qual a forma mais racional de agir. Como o Estado
deveria agir diante da aquisição de armamentos por parte de
outro Estado?
As duas premissas conitantes apontadas no início desta
seção evidenciam uma relação complexa entre as condições ma-
teriais e psicológicas incidentes neste dilema. O resultado é que
o dilema de segurança não acontece por conta das intenções e
capacidades dos Estados envolvidos. Ele decorre da percepção
de que há uma condição existencial e irresolúvel de incerteza
(BOOTH; WHEELER, 2008, p. 6-7).
Por outro lado, uma reação baseada exclusivamente na hos-
tilidade mútua não representa um dilema de segurança. Neste
caso, falamos do paradoxo da insegurança.
1.2.2 Paradoxo da insegurança
O paradoxo da segurança ocorre quando dois ou mais
Estados, buscando apenas promover sua própria segurança, pro-
vocam por meio de suas ações um aumento na tensão mútua.
O resultado é uma sensação de menor segurança para todos os
envolvidos (BOOTH; WHEELER, 2008, p. 4-5).
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Tal como o dilema de segurança, o paradoxo da segurança
opera em um nível estratégico – i.e., o que fazer –, mas reete um
erro de interpretação quanto à reação dos Estados não o choque
entre duas premissas. A distinção entre o dilema de segurança
e o paradoxo da segurança está na existência de tensão entre a
dimensão psicológica e a material, ou se apenas há uma espiral
de hostilidade entre os Estados envolvidos. No primeiro caso, há
o dilema de segurança; no segundo, o paradoxo da segurança.
1.3 DETERRÊNCIA
A deterrence foi um dos conceitos mais trabalhados den-
tro do campo dos Estudos de Segurança durante o período da
Guerra Fria (NYE; LYNN-JONES, 1988, p. 11). A disputa polí-
tica e militar entre EUA e URSS, principalmente no campo nu-
clear, enfatizou a centralidade do conceito neste cenário bipolar
e alimentou estratégias de contenção entre os rivais. A deterrence
exemplica a natureza da teorização sobre segurança durante o
período da Guerra Fria. A teoria da deterrence oferece subsídios
ao decisor político sobre problemas da agenda política interna-
cional. Assim, ao responder a um problema concreto que incidia
sobre a política exterior dos EUA, a deterrence oferecia uma teo-
ria útil e politicamente relevante, estreitando as relações entre os
formuladores de decisão e os teóricos de Relações Internacionais.
Deterrence consiste na tentativa de inuenciar o processo
decisório de outrem por meio da ameaça do emprego da força
militar (PAYNE; WALTON, 2002, p. 168-169). Uma estratégia
de deterrence bem sucedida depende, necessariamente, que o
processo decisório do adversário seja alterado sem que a força
militar tenha sido empregada. Ou seja, se o ator ameaçado mu-
dar seu processo decisório após o emprego de força militar, a
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deterrence falhou, ainda que o resultado pretendido por quem
ameaçou tenha sido alcançado. Deve-se perceber, também, que
a ameaça empregada na deterrence deve envolver o emprego da
força militar: sanções econômicas, políticas ou outro tipo de
ameaça não conguram deterrence.
1.3.1 Tipos de deterrence
A deterrence pode ser analisada a partir de duas categorias. A
primeira diz respeito à forma da sua ameaça; a segunda, quanto à
natureza dos seus efeitos (PAYNE; WALTON, 2002, p. 167-169).
A deterrence é punitiva quando a ameaça empregada envolve
a retaliação diante certo tipo de ação, ou seja, se um Estado zer
algo, o outro retaliará. A lógica por trás desse tipo de deterrence
é que, caso o agente que sofra a ameaça insista em não alterar
seu processo decisório, os benefícios advindos de sua ação serão
menores que os custos sofridos pela punição. Já a deterrence
negatória envolve negar ao agente ameaçado o sucesso de sua
ação, por meio de ameaça que impediria o objetivo desejado.
Em outras palavras, se um Estado tentar fazer algo, ele não será
capaz de concluir sua ação, pois o outro Estado fará algo que
impedirá seu sucesso.
Va l e o bs e r v a r qu e e s t e s d oi s t i p os de deterrence podem acon-
tecer em uma mesma ameaça, ou seja, a ameaça pode ser, ao
mesmo tempo, punitiva e negatória. O aspecto a ser observado
aqui é que a resposta dada pelo lado que tenta dissuadir o outro
deve ser tão custosa que um cálculo racional de interesses fará
o agente que sofre a deterrence a desistir de agir.
Já quanto à natureza dos seus efeitos, a deterrence pode ser
ampla ou especíca. A deterrence de efeitos amplos envolve uma
resposta vaga, sem que determinada ação seja vinculada a uma
resposta especíca. A deterrence de efeitos especícos, por sua
CAPÍTULO 01 35
vez, informa exatamente o que esperar diante da continuida-
de da ação do agente ameaçado, facilitando o cálculo sobre os
benefícios de continuar ou não o comportamento ameaçado.
1.3.2 A importância da credibilidade
Dois fatores são chaves para a análise do sucesso da deterrence.
O primeiro é considerar os envolvidos como atores racionais e
que estruturam suas ações a partir de um cálculo utilitarista.
O segundo é o impacto da credibilidade de quem promove a
ameaça (PAYNE; WALTON, 2002).
As formas de ameaça e os seus efeitos evidenciam um as-
pecto importante da deterrence. Ela pressupõe que os atores
envolvidos são racionais e que, portanto, calculam os riscos e
benefícios de sua ação a partir de uma lógica de razoabilidade.
Em outras palavras, se há percepção de ganhos em manter a
ação, o ator ameaçado provavelmente o irá fazer. Do contrário,
caso este analise racionalmente que os custos serão maiores que
os benefícios, o processo decisório será alterado.
Desta forma, há uma relação direta entre a razoabilidade
da ameaça e o bem ameaçado. Ambas as partes envolvidas de-
vem perceber a racionalidade da ação do adversário, de forma
a perceber custos e benefícios envolvidos. Uma ameaça despro-
porcional ao bem ameaçado pode sugerir, desde uma lógica do
ator racional, que a concretização de tal desao não é plausível.
O mesmo pode se dizer, por exemplo, sobre comportamentos
recorrentes, de um lado ou de outro, sem que o ator a concretize
ou de persistência em determinado tipo de comportamento. O
histórico de interações pode, por vezes, ser um fator valioso para
analisar o sucesso ou o fracasso da deterrence.
Entretanto, o elemento mais importante para o sucesso
da deterrence é a credibilidade do ator que promove a ameaça
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(PAYNE; WALTON, 2002). A referência à credibilidade aqui não
se limita à intenção de proceder com a ameaça apresentada. O
ator deve ser capaz de efetivamente cumprir a ameaça. Desta
forma, há uma relação que deve ser apurada entre o teor da
ameaça, os interesses aparentes em jogo por parte daquele que
promove a ameaça e sua efetiva capacidade de proceder com a
ação. Uma conjunção positiva destes três fatores indica que há
credibilidade e possibilidade na execução da ameaça. Por outro
lado, caso algum – ou alguns – destes fatores não que aparente,
pode-se entender que a ameaça não é crível e a deterrence não
seja bem-sucedida.
2. CRÍTICAS AO REALISMO E A
AMPLIAÇÃO DO OBJETO DA
SEGURANÇA
O predomínio do Realismo Político nos Estudos de Segurança,
ainda que tenha atrelado a agenda às premissas teóricas e polí-
ticas desta tradição, não resultou em consenso ou da ausência
de críticas às suas premissas. Havia críticas à centralidade do
poder militar como objeto de estudos e do Estado como objeto
de referência do campo, além da percepção teórica e política de
que novos temas deveriam integrar as agendas da área. Havia a
percepção, principalmente por teorias de orientação liberal, de
que a Segurança deveria olhar para o cenário que se constituía.
As críticas seguiram caminhos diversos, como a recorrência da
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ameaça, o nexo entre segurança e economia, pleitos por autode-
terminação e a crítica à centralidade dos EUA e de sua agenda
política ao campo (KOLODZIEJ, 1992, p. 429).
De forma breve, podemos elencar aqui três críticas de orien-
tação liberal às premissas realistas da Segurança. Ainda que estas
críticas não esgotem os debates no campo, elas representam cor-
rentes importantes para a construção de uma agenda alternativa
à segurança tradicional.
A primeira crítica diz respeito ao papel do Estado como ator
político internacional e, até então, objetos de referência para a
Segurança. Se para os realistas, o Estado era um ator monolítico
responsável por garantir a ordem interna e a segurança contra
ameaças externas, a leitura liberal da segurança impõe novos
desaos e responsabilidades ao Estado. O Estado passa a ter
a obrigação de não apenas garantir a segurança e promover a
ordem interna, mas oferecer as condições políticas que promo-
vam o bem-estar dos seus cidadãos. A concepção de segurança
passaria a incorporar não apenas ameaças à integridade física do
Estado, mas também desaos que resultassem na perda da qua-
lidade de vida dos indivíduos e do aumento da vulnerabilidade
das sociedades diante das dinâmicas políticas (ULLMAN, 1983).
Como consequência, vem a segunda crítica proposta. Ela
se apoia nesta nova concepção do papel do Estado e se dirige
ao escopo de estudos do campo, constituindo o eixo central
do que caria conhecido como abordagem ampliacionista da
segurança. Se o escopo da segurança realista se restringiria ao
uso, à ameaça e ao controle do poder militar (WALT, 1991, p.
222), a crítica liberal apontava a necessidade de perceber novas
e mais relevantes ameaças à segurança (KOLODZIEJ, 1992).
Desaos como conitos armados internos, motivados por dis-
putas étnicas, territoriais ou econômicas e que antes eram con-
tidas pelas duas superpotências em suas áreas de inuência,
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passaram a eclodir e se tornaram desaos regionais à segurança.
Como consequência, problemas como refugiados, instabilidades
econômica e política e fragilidade institucional de Estados do
chamado Terceiro Mundo proliferaram, demandando soluções.
A própria noção de legitimidade de um governo passaria a ser
considerada também como um fator de instabilidade e ameaça
à segurança (KOLODZIEJ, 1992, p. 422).
Igualmente, questões ambientais entravam na pauta da
Segurança como desaos a serem solucionados (ULLMAN,
1983, p. 146). Temas como aquecimento global, preservação do
meio ambiente e segurança ambiental passaram a ser percebidas
como essenciais para prevenir a diminuição brusca da qualidade
de vida dos indivíduos. Estas questões eram compreendidas
como tão importantes quanto à ameaça militar e, de certa forma,
já estariam presentes nas agendas políticas. Assim, o desao à
segurança realista e à sua busca por relevância política era co-
locada em termos semelhantes. Se a Segurança se pretende ser
relevante e atender às demandas mais urgentes da sociedade,
como acontecia durante a Guerra Fria, ela deveria olhar para o
novo cenário que se construía. Para tanto, a Segurança precisaria
expandir seu objeto de estudos para incluir estas novas deman-
das, vistas como mais recorrentes e de ameaça mais imediata à
sociedade internacional (ULLMAN, 1983, p. 123; KOLODZIEJ,
1992, p. 6). E, conforme a conjuntura política internacional se
alterasse e percebesse novas ameaças, estas deveriam ser igual-
mente incluídas nas agendas do campo. A ampliação do escopo
da Segurança permitiria que a área se mantivesse relevante e
atenta aos desaos que ora surgiam.
Finalmente, a terceira crítica surge como parte dos arranjos
para garantir segurança. As respostas percebidas às ameaças
à segurança passam a incorporar arranjos institucionais e de
cooperação internacional, como forma de perceber que estas
CAPÍTULO 01 39
ameaças afetam a sociedade como um todo. É possível perceber
que o fortalecimento de instituições e regimes internacionais,
além da preocupação com o fortalecimento das instituições in-
ternas dos Estados. Para tanto, e em caráter ilustrativos, esforços
como as operações de paz da ONU se tornaram recorrentes para
a resolução de conitos armados internos, além de ações inter-
nacionais para a reconstrução de Estados e de suas instituições
políticas. É o fenômeno que chamamos de interdependência.
A interdependência se congura a partir da percepção dos
atores políticos – no caso, dos Estados – de que a relação entre
eles é tão estreita e conectada que as ações e omissões de um
deles acaba por afetar os demais. Considerando a interdepen-
dência no plano político, as relações internacionais passam a
ter outra variável de análise, que também difere da abordagem
realista da Segurança. Ao invés dos Estados olharem apenas para
si e tomarem decisões baseados nos seus próprios interesses, de
forma absoluta, há uma percepção de que os Estados estão em
um ambiente social, se afetando mutuamente (KEOHANE; NYE,
1977; KEOHANE, 1984). A consequência é que estes arranjos de
segurança passam a ter maior importância, contribuindo para
o afastamento das ameaças e da percepção de maior qualidade
de vida e bem estar aos Estados e indivíduos. Tais elementos
reforçam alguns dos conceitos que discutiremos a seguir.
2.1 PAZ DEMOCRÁTICA
A Teoria da Paz Democrática se sustenta em uma premissa
com bases institucionais domésticas e internacionais. Em termos
domésticos, a ideia é que democracias tendem a ser mais estáveis
politicamente que não-democracias, garantindo representativi-
dade, participação política e bem-estar aos indivíduos daquele
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Estado. Seria, em poucas palavras, a síntese acerca do que se
espera do Estado liberal na Segurança.
Mas qual seria, então, a premissa subjacente à Paz
Democrática?
A ideia que sustenta esta estratégia é de que democracias
não entram em guerra contra outras democracias. Esta premis-
sa apresenta elementos conceituais e empíricos para garantir a
efetividade da teoria.
Conceitualmente, a Teoria da Paz Democrática se baseia na
ideia de que há constrangimentos institucionais e culturais em
democracias que tornam o uso da força algo oneroso (RUSSETT,
1993). Em termos institucionais, há uma série de freios e con-
trapesos que tornam o processo decisório relacionado ao uso
da força demorado, o que permitiria que as disputas e tensões
se resolvessem de outra maneira. Dentre esses freios e contra-
pesos está o envolvimento de diferentes setores políticos e da
sociedade, o que signicaria o escrutínio das decisões e das
consequências acerca do emprego da força (VALENÇA, 2006,
p. 574). Na relação entre democracias, ambas saberão que o
processo decisório do seu adversário passará por tal vericação,
de modo que decisões apressadas ou inconsequentes poderiam
ser evitadas (RUSSETT, 1993, p. 24-25).
Em termos culturais, a premissa é de que haveria a percepção,
desenvolvida e fortalecida ao longo do tempo, de que guerras e
conitos armados são prejudiciais ao Estado e à sua população.
O envolvimento em um desses eventos comprometeria a capaci-
dade do Estado de prover condições de bem estar à sua popula-
ção. Ademais, a estrutura institucional de uma democracia gera
as condições culturais para a população perceber as formas mais
ecientes de comunicação junto a seus representantes. Estes, por
sua vez, entendem que seguir a vontade da população é uma forma
CAPÍTULO 01 41
eciente de manter seus cargos e posições. Portanto, culturalmente,
há o entendimento de que guerras não são uma boa solução para
problemas e a força deve ser empregada com parcimônia, principal-
mente em questões envolvendo regimes igualmente democráticos.
Porém, quando a relação se dá com não-democracias, estas
premissas ainda vigoram, mas sob o alerta de que em não-de-
mocracias o processo decisório é diferente. Por haver menos
constrangimentos institucionais, maior arbitrariedade do líder
político e potencialmente maior celeridade no processo decisório
em usar a força militar, as democracias continuam a entrar em
guerra contra não-democracias.
Em termos empíricos, a Teoria da Paz Democrática se sus-
tenta por conta da inexistência de guerras entre duas ou mais
democracias. Historicamente, desde o século XVIII, não há re-
latos ou estatísticas de guerras entre dois Estados que partilham
de regimes democráticos. Eventuais conitos armados entre
países entendidos como democracias são análises imprecisas
dos regimes políticos daqueles países em dado momento. Estes
“falsos positivos”, contudo, levam às críticas à teoria da paz de-
mocrática (MANSFIELD; SNYDER, 2005; VALENÇA, 2006).
Talvez a crítica mais contundente a esta teoria seja acerca
do que consiste e sobre que bases o conceito de democracia é
denido. Para os adeptos desta teoria, a democracia é baseada
no regime político dos EUA e este serve como referencial para
se analisar outras democracias. Assim, modelos que não seguem
este ideal ocidental podem ser vistos como não democráticos,
ainda que apresentem características de ser uma democracia,
comprometendo a análise das relações entre os Estados. Porém,
em termos absolutos, a teoria da paz democrática reete a bus-
ca por um objeto ampliado da segurança e reete a percepção
de que arranjos colaborativos podem ser capazes de mitigar a
ameaça e a insegurança internacionais.
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2.2 COMUNIDADES DE SEGURANÇA
O conceito de comunidades de segurança decorre da for-
mulação de novas perguntas a antigos desaos percebidos pela
Segurança. A partir disso, os desaos até então analisados assu-
mem novas características e, por isso, permitem novas possibi-
lidades de respostas. Temos, portanto, um questionamento da
visão realista de segurança e da ameaça militar que dominava
as agendas e a consequência dessa nova abordagem é que as
ameaças à segurança internacional – assim como a beleza – estão
nos olhos do observador.
Se os realistas se perguntam “por que as guerras aconte-
cem?”, os liberais adicionam um elemento condicionante a tal
pergunta e tem, como resultado, o desao de reetir acerca do
“por que as guerras não acontecem na maior parte do tempo?”.
De forma semelhante, a pergunta de “por que alguns Estados
fazem guerra?” se torna “por que guerras são inconcebíveis para
alguns Estados?”.
Os realistas acusariam a incerteza decorrente da anarquia
internacional, o papel do Estado na proteção dos seus cidadãos
e a busca por poder e sobrevivência como respostas plausíveis
para tais questionamentos. Contudo, uma leitura liberal da se-
gurança, pensada também em termos de arranjos multilaterais
para promoção da segurança, nos ofertaria outra resposta. E,
ainda que não sejam simples, as respostas a essas perguntas são
compatíveis com o ethos liberal, a ampliação do escopo da se-
gurança e da busca por instituições e práticas colaborativas para
a segurança.
Neste contexto, temos que a resposta para essas perguntas
alternativas é que alguns Estados se encontram em um nível de
integração tão consolidados entre si que partilham um senso
de comunidade. Essa percepção decorre, principalmente, do
compartilhamento de instituições e práticas políticas que fazem
CAPÍTULO 01 43
com que o recurso ao uso da força entre estes Estados seja pra-
ticamente descartado (DEUTCH et al., 1957; Sheehan, 2005).
Eventuais disputas ou conitos seriam resolvidos de forma pa-
cíca, consolidando práticas e percepções de que a guerra não
é algo viável ou desejável entre os membros desta comunidade
de Estados. Constitui-se, assim, uma comunidade de segurança.
As comunidades de segurança podem ser de dois tipos. O
primeiro são as comunidades de segurança amalgamadas, en-
quanto o segundo são as comunidades de segurança pluralistas
(DEUTCH et al., 1957).
As comunidades de segurança amalgamadas são raras na
história dada a complexidade para a sua constituição. Elas são
criadas a partir de dois ou mais Estados independentes que bus-
cam um governo comum, abrindo mão de parcela de sua sobe-
rania para uma entidade supranacional, em nome do bem-es-
tar comum.
As comunidades de segurança pluralistas, por outro lado,
tendem a ser mais recorrentes. Elas se iniciam a partir de um
processo de integração, seja ele conduzido por meio de insti-
tuições formais ou de práticas políticas e formação de regimes.
Tal integração não afeta a soberania dos Estados envolvidos,
que continuam politicamente independentes, mas com um alto
nível de compatibilidade de valores políticos e estreita rede de
comunicação política e interação entre seus membros. Estas
formas de comunicação e os valores compartilhados favorecem
modos de resolução de disputas diferentes da forma militar,
mesmo que haja histórico de conitos entre eles. Tais formas
de comunidade de segurança são mais fáceis de se estabelecer e
se manter do que as comunidades amalgamadas.
Em uma comunidade de segurança pode até haver a previ-
são de mecanismos de segurança coletiva, mas não podemos
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confundir um com o outro. Enquanto o conceito de segurança
coletiva pressupõe arranjos contra ameaças externas, mas sem
excluir a possibilidade de um conito armado entre os Estados,
as comunidades de segurança afastam o risco da guerra nas
relações internacionais entre seus membros.
É importante perceber que as comunidades de segurança
oferecem respostas que o Realismo político não é capaz, ou não
está disposto, a fazer. Exemplo disso é o caso da ausência do
dilema da segurança – ou do paradoxo da segurança – entre
Estados que são parte de uma comunidade de segurança. Estas
análises, por outro lado, são foco central de uma perspectiva
liberal de segurança. Há, neste caso, a preocupação com formas
de incrementar a cooperação política e promover a convergên-
cia de interesses entre os Estados, consolidando mecanismos
colaborativos para os arranjos de segurança.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A
IMPORTÂNCIA PARA O DEBATE NO
CAMPO DA SEGURANÇA
Este capítulo introduziu o debate sobre segurança a partir
da perspectiva realista e explorou suas principais características.
Dentre elas estão o objeto de estudos restrito ao uso, à ameaça e
ao controle do poder militar, a busca por relevância política por
meio de conhecimentos que subsidia o processo decisório e a
proximidade da Segurança às estratégias de política exterior dos
CAPÍTULO 01 45
EUA. A própria concepção de ameaça e a centralidade na análise
do poder militar ressaltam o papel do Estado para a segurança
realista, tornando esta abordagem coerente e politicamente rele-
vante, ao menos para o contexto global percebido desde o nal
da II Guerra Mundial até o nal da Guerra Fria. Neste sentido,
conceitos como deterrence e o dilema de segurança se aproxi-
mam de uma perspectiva realista de segurança, na medida em
que evidenciam a convergência de interesses, poder e ameaças
compatíveis com essa perspectiva.
Depois, apresentamos a crítica a partir de uma perspectiva
liberal. Esta visão critica o escopo limitado da abordagem rea-
lista, propondo uma ampliação do campo de estudos para se
adequar às demandas que surgiam a partir da década de 1980.
Esta leitura ampliacionista permitia, também, a revisão do papel
do Estado e as expectativas que passavam a surgir a partir do
nexo segurança-economia e a busca por bem estar dos indiví-
duos. Arranjos cooperativos para a segurança passaram também
a fazer parte desta leitura, o que permitiu que uma série de
conceitos e premissas fossem adotadas, derivadas do concei-
to de interdependência. Assim, expusemos o conceito de Paz
Democrática e de comunidades de segurança, duas leituras que
somente são possíveis caso o paradigma realista seja superado
e novas possibilidades de perceber as relações internacionais
sejam adotadas.
Estas duas abordagens, bem como os conceitos trazidos aqui,
não são as únicas leituras possíveis da Segurança. Porém, são
abordagens que estruturam o campo, orientam a formulação de
estratégias políticas e acabam por estar presentes nas principais
agendas. Isso reforça a importância de leituras realistas e liberais
que, apesar de amplas e contendo diferentes nuances, passam
pelas bases aqui expostas.
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