ChapterPDF Available

BILA, Josué. Prefácio, In MALOA, Nwana wa (MALOA, Joaquim). Crime, “Estado Social” e Espaço Urbano

Authors:

Abstract

Prefácio: O País conhecido por Moçambique – prefiro substantivá-lo por Bantulândia, designação reveladora de situações humanas e sociais particularmente negro-africanas, ou, a título de exemplo, Baruelândia ou, ainda, Maguiguanalândia , nomes que, dentre múltiplas interpretações, me lembram de revoltas dos meus ancestrais na luta contra a tirania da colonização portuguesa, a uma alcunha desprezivelmente qualquer (Moçambique, de origem oriental-asiática), cuja imposição pelos nossos algozes da época colonial resultou na sua reprodução no pós-Independência pela elite revolucionária e independentista – completará 45 anos de Independência Nacional, em meio a sopros de violências, cidadania rancorosa e confusa construção de política republicana. Esta política republicana poderia inspirar-se nos seculares catálogos de algumas transparências políticas africanas, em sintonia com os princípios do Estado de Direito. (...).
BILA, Josué. Prefácio, In MALOA, Nwana wa (MALOA, Joaquim). Crime, Estado Social e Espaço Urbano:
Uma reflexão sobre a realidade moçambicana. Novas Edições Acadêmicas, 2020:2-5.ISBN 978-620-2-80477-6
Prefácio
Xikomo xo lomba a xina nzima
1
- Provérbio changana
Uma enxada emprestada não cava.
Não esperes que outros façam o teu trabalho.
I
O País conhecido por Moçambique prefiro substantivá-lo por Bantulândia, designação
reveladora de situações humanas e sociais particularmente negro-africanas, ou, a título de
exemplo, Baruelândia
2
ou, ainda, Maguiguanalândia
3
, nomes que, dentre múltiplas
interpretações, me lembram de revoltas dos meus ancestrais na luta contra a tirania da
colonização portuguesa, a uma alcunha desprezivelmente qualquer (Moçambique, de origem
oriental-asiática), cuja imposição pelos nossos algozes da época colonial resultou na sua
reprodução no pós-Independência pela elite revolucionária e independentista completará 45
anos de Independência Nacional, em meio a sopros de violências, cidadania rancorosa e
confusa construção de política republicana. Esta política republicana poderia inspirar-se nos
seculares catálogos de algumas transparências políticas africanas, em sintonia com os
princípios do Estado de Direito.
II
Apesar desses vícios da nossa História recente, o surgimento no espaço nacional de jovens
pensadores, nascidos particularmente no pós-1975, dos quais o sociólogo Joaquim Maloa
pertence, confunde-se, entre vários factores concorrentes, com o fato de as ciências sociais
em Moçambique terem recebido uma rebobinagem com a abertura, em plena década de 1990,
da Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais (UFICS), depois do
encerramento dos cursos de História, Linguística e Geografia em 1979. De salientar que o
encerramento desses cursos ocorreu em meio aos solavancos marxista-leninistas de que o
partido governamental se encapuzava para cercear as liberdades de pensamento e de
1
RIBEIRO, Armando (Pe.). 601 provérbios changanas. 2ª edição. Lisboa: Silvas C.T.G. 1989.
2
Este substantivo Baruelândia é de criação minha, a partir do nome regional “Barué”. Refero, neste caso, à
resistência colonial dos povos zambezianos, centrada em torno dos Barué. Mais detalhes sobre esta
resistência, confira: Isaacman, Allen F (com a colaboração de Barbara Isaacman). A tradição de resistência em
Moçambique O Vale do Zambeze, 1850-1921. Porto: Edições Afrontamento, 1979.
3
Maguiguanalândia, em referência a Maguiguane, ministro de Guerra de Ngungunhane, o rei de Gaza.
produção de conhecimento não festejáveis e nem dançáveis nas passarelas da teatrocracia
4
do
antigo (?) Partido-Estado, caracterizada pelas comédias políticas e tragédias econômicas.
Ao longo de duas décadas, as ciências sociais encontram-se numa evolução e contam com
excelentes contribuições de especialistas da área, convidando-me a verbalizar que não mais
podemos negar o nascimento do pensamento moçambicano em ciências sociais, pela
quantidade e qualidade de produção, embora muito ainda se deva incentivar e produzir, com
sistematicidade e sem dependências dos apitos do exterior.
5
Os processos deste nascimento
de ciências sociais estão a acasalar-se com a constatação de que o presente e o futuro da
produção científica devem estar atrelados aos pressupostos da História. Um bom entendedor
desabrocharia comigo que as ciências sociais em países que se encontram nos espaços
bantulândia podem obter resultados cientificamente rigorosos se sempre perguntarem as
condições históricas em que os fenômenos sociais, políticas e econômicas ocorrem.
6
Experimentar responder às condições históricas reduz a reprodução dos dogmas da descrição
pitoresca e grotesca de que algumas obras sobre África ou Moçambique nos habituaram. São
as descrições pitorescas e grotescas responsáveis por uma grande parte daquilo que em meu
blog, Bantulândia, designei de cidadania rancorosa, num texto em que critiquei o político
Venâncio Antônio Bila Mondlane na sua luta contra a corrupção, cujo objetivo é ver quadros
seniores da FRELIMO encarcerados por desvios públicos, sem necessariamente refletir sobre
o emaranhado social e histórico da corrupção. Como uma das características de políticos de
algumas províncias é ser coscuvilheiro seria luxo para tais possíveis destinatários uma
chamada de atenção para a reflexão sobre as condições históricas nas quais (re)produção das
corrupções sociais, com implicações políticas, se assenta.
Por assim verbalizar, a publicação de obras de qualidade como esta se desdobra no fato de o
sociólogo Maloa ter exorcizado a História em alguns blocos, a saber: “O Estado social”.
Interessa-me, a título de exemplo, o capítulo “Relações raciais em Moçambique…”, onde o
autor ventila as condições histórico-coloniais nas quais o racismo burocrático-institucional
mobilizara e estruturara certos tipos de relações sociais e raciais, das quais ainda hoje somos
legatários. A partir deste modelo histórico-sociológico o capítulo mostra o contexto em que
as descrições e testemunhos soltos de Mia Couto (branco, nascido no tempo colonial) e Chil
David (negro, nascido no tempo pós-Independência) sobre o racismo se inserem ou ainda o
4
Para quem se interessar sobre o teatro e o drama na Política, lembro-me de memória: Balandier, Georges. O
Poder em Cena. Trad. Luiz Tupy Caldas de Moura. Brasília: UNB, 1982 (Cap.1).
5
Alguns debates correspondentes e bem pontuados: PINHEIRO, Cláudio. Descolonização do pensamento. In
REVISTA Ciência Hoje. 312. Vol. 52, março/2014; Coelho, João Paulo Borges. Cruz & Silva, Teresa & Neves de
Souto, Amélia. Como Fazer Ciências Sociais e Humanas em África: Questões Epistemológicas, Metodológicas,
Teóricas e Políticas (Textos do Colóquio em Homenagem a Aquino de Bragança). Dakar: CODESRIA, 2012; e
Santos, Boaventura de Sousa & Meneses, Maria Paula (Org.). As Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina,
2009.
6
Pode-se conferir em, primeiro: CARDOSO, Carlos, MACAMO, Elísio & PESTANA, Nelson. Da possibilidade do
político na África Lusófona. Alguns subsídios teóricos. Cadernos de Estudos Africanos [Online], 310 3 | 2002,
posto online no dia 17 Dezembro 2014, consultado o 16 Julho 2019. URL: http://cea.revues.org/1082 ; DOI :
10.4000/cea.1082; segundo: Mills, Wright C. The Sociological Imagination (with a new afterword by Todd
Gitlin). 40 ª Edition. Oxford: Oxford University Press, 2000 (Cap. 8); e, terceiro: Silverman, Sydel. On the uses
of history in anthropology: the palio of Siena. New York: City University of New York, 1979.
desabafo consciente de João Carlos Trindade (branco, nascido no tempo colonial) em que
numa entrevista criticou o fato de que quando se for branco as vantagens sociais são maiores
em detrimento da sua contra-parte relacional, maioritariamente negra.
Em minhas modestas leituras às ciências sociais, depreendo que uma sociologia ou uma
antropologia compreensiva em contextos do autor poderá aprimorar o conhecimento da
História das sociedades africanas para que aborde, com as devidas variáveis, o lugar da
participação dinâmica dos africanos nos problemas que ele levanta. Esta é uma maneira de
salientar que estudar as relações raciais em Moçambique ou África necessita de um olhar
também anterior à colonização, pois, nós como africanos, também industrializamos sistemas
políticos etno-raciais antes e em decorrência do colonialismo, embora talvez a nossa
violência racial seja inferior se comparada àquela perpetrada pelos europeus. O racismo, à luz
das minhas interpretações cosmopolitas às Nações Unidas
7
, não ocorre apenas na relação
brancos-negros ou negros-brancos, mas igualmente entre etnias que supostamente têm as
mesmas origens ancestrais referentes regionalmente como, por exemplo, entre negros-negros
(tsuti-hutus, no Ruanda, ou norte e centro-sul, em Moçambique) e brancos-brancos (e, ainda,
hoje, os europeus do Norte consideram-se superiores comparativamente aos do Sul. Aliás,
como escreve Boaventura de Sousa Santos, em tempos coloniais, os europeus do Norte
adjectivavam os do sul de “primitivos”
8
). Ainda em Moçambique, a instalação algo colonial
do Império de Gaza é um exemplo disso quem são as pessoas que ocupavam espaços de
poder central? A resposta óbvia indica que as elites monárquicas, sim, apesar de que um e
outro mabuyandhlela
9
tivesse espaço na estrutura central de Poder
10
, tal como Maguiguane.
Estas relações de Poder podem ser igualmente interpretadas à luz étno-racial. Seja como for,
o artigo de Maloa de que me refiro foi fiel ao seu objetivo e traz uma limpidez intelectual
para a compreensão do fenômeno racial entre nós, com, obviamente, referências coloniais e
atuais.
O capítulo sobre “A urbanização moçambicana contemporânea…” é, a meu ver, ligada à
questão colocada anteriormente. As relações sociais e espaciais moçambicanas atuais serão
compreendidas sob a condição da organização político-administratativa colonial, na qual o
espaço de cidadania européia teria sido concebido para congregar aos portugueses, onde os
direitos, investimentos e serviços públicos tinham de satisfazer exclusivamente ao sistema
7
Estou a falar da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial da
ONU.
8
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: O social e o político na Pós-Modernidade. 14ª edição. São
Paulo: Cortez, 2013:190-1.
9
Populações que se encontravam no vale do Limpopo e em Magude eram assim designadas pelos Zulus.
Mabuyadhlela - aqueles que abriam o caminho, quanto mais os Ngunes avassalavam as populações locais e
pilhavam os seus bens.
10
GENTILI, Anna Maria. O leão e o caçador uma história da África Sub-saariana. Maputo: Arquivo Histórico
de Moçambique, [1995]1999:114-5; Serra, Carlos (dir.). História de Moçambique. Volume 1. Maputo: Imprensa
Universitária, 2000; e, ainda, LIESEGANG, Gerhard. Ngungunyane: A figura de Ngungunyane Nqumayo, Rei de
Gaza 1884 a 1895 e o desaparecimento do seu Estado. ARPAC Arquivo do Patrimônio Cultural: Maputo,
1996.
colonial. O surgimento da estrutura periférica actual é consequência do racismo espacial e
patrimonial contra africanos. Mesmo depois da independência essa estrutura colonial
acompanha as nossas relações espaciais e patrimoniais, onde, ali e acolá, se confunde, por
exemplo, o uso do vaso sanitário como “coisa de branco” ou “coisa de civilização”. Aliás,
talvez seja por isso que as nossas lideranças governamentais, porque substitutas linhageiras”
das autoridades coloniais e, não raras vezes, industrializadoras da humilhação desenhem e
implementem políticas públicas de saneamento básico, distribuindo a latrina melhorada (o
que a latrina melhorada tem de melhorada?) aos grupos populacionais, representantes etno-
sociais dos indígenas de ontem. A latrina melhorada, hoje, é uma extensão contemporânea
do tipo de mentalidade colonial sobre as infra-estruturas que poderiam ser pensadas e
implementadas às “bestas-feras” da periferia negra. A burocracia classificatória colonial que
distinguia os “brancos” dos “assimilados” e destes dos “indígenas” vez uma e vez outra sai
do nosso baú memorial do massacrado de ontem, o qual ocupa os espaços cimeiros do algoz
de ontem, através da anorexia republicana, das rancorosas organizações não-governamentais,
os gravatismos académicos, ali e acolá. Embora o meu bom amigo Joaquim Maloa tenha
inspirado a costurar essas considerações, faltou-lhe pensar a urbanização ou o mapeamento
das cidades africanas do sul ou cidades onde Moçambique se localiza, anteriores ao tempo
colonial. Não descrever esse fenômeno, mesmo que seja em uns pouquíssimos parágrafos, é
não oferecer aos leitores a História das cidades africanas, construídas pelos africanos,
destruídas pela novidade civilizacional mundial, cuja liderança se confunde com a expansão
europeia, o mercantilismo e a escravatura e uma simples leitura à História Geral de África
os dados caem em nossas mãos como se fossem os tais cajus maduros.
III
Sem esgotar a riqueza deste livro em suas mãos, estou confiante que através deles e de outros
correlatos, e os que ainda surgirão, as ciências sociais moçambicanas podem, repito,
orgulhar-se por ter pessoas de geração pós-Independência que pensam e escrevem sobre a
nossa realidade. O objetivo do sociólogo Maloa é o debate a partir da nossa realidade e dos
pensadores da casa, para não mais pedirmos emprestado, com alto grau de dependência, a
enxada social dos outros. Assim, um livro destes ajuda-nos a cavar com a nossa enxada
académica. Caberá, portanto, às gerações vindouras, a continuação deste legado, fabricando-
nos charruas intelectuais e outras técnicas académicas.
Josué Bila
São Paulo, 8 de Julho de 2019
ResearchGate has not been able to resolve any citations for this publication.
ResearchGate has not been able to resolve any references for this publication.