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Odres de vaidade
O espírito musical grego originou recor-
rentes renascimentos na música ociden-
tal e, em cada um deles, aconteceram ino-
vações técnicas e expressivas sem prece-
dentes, dando lugar a novas pedagogias.
Quando em 1762 (período clássico na his-
tória da música ocidental e neoclássico
nas outras artes), Jean Jacques Rousseau
publicou Émile ou De l'éducation, estava
a propor uma utopia baseada no clas-
sicismo grego. Só no seguinte período
clássico, conhecido pelo sobrenome de
modernismo, é que aquele ideal começou
a orescer com o movimento da Escola
Nova de Maria Montesori, Adolphe Fer-
rière, Alexander Neill, Celestin Freinet,
Jean Piaget e, mais tarde, Paulo Freire.
A Escola Nova gerou uma nova pedagogia
para o velho romantismo burguês, mas
não uma pedagogia para a nova música.
Nesse sentido, guardava delidade às
crenças musicais rousseaunianas, que
eram muito banais. Rousseau atacara
veementemente o Traité de l’harmonie de
Jean-Philippe Rameau, obra capital para
o desenvolvimento da tonalidade duran-
te os dois séculos seguintes. Ansiava a
celebridade como compositor de óperas,
mas a sua utopia musical baseava-se em
melodias simplórias com um suporte téc-
nico muito rudimentar e daí que toda a
sua produção musical fosse arrumada na
gaveta do esquecimento.
Aquela Pedagogia Nova, que aparece
nos nais do século XIX, não encarava
as exigências evolutivas da música nem
a necessidade de superar o colapso do
sistema tonal, que já começara a diluir-
-se. Nas primeiras décadas do século XX,
a Escola Nova deu origem, na música, a
novas correntes metodológicas, como as
iniciadas por Emile-Jacques Dalcroze, Ed-
gar Willems, ou Justine Bayard Ward, que
pretenderam mudar a perceção da músi-
ca e valorizar a sua utilização no ensino
genérico. Posteriormente, Zoltan Kodaly,
Carl Or ou Maurice Martenot aproxima-
ram essas metodologias a uma expressão
algo mais moderna. Contudo, a incidên-
cia dessas metodologias no ensino artís-
tico especializado da música foi bastante
limitada, já que, em muitos casos, pouco
mais fez que modicar o nome da disci-
plina de Solfejo para Formação Musical.
Foi o compositor Arnold Schoenberg
(1874-1951) quem assumiu o protagonis-
mo na grande mudança de paradigma,
que transformou a música ocidental e
inaugurou a era serial nos inícios do sé-
culo XX, como Kandinsky na pintura,
Einstein na física, Gaudí na arquitetura
ou Freud na psicologia, pois todos eles
conseguiram ultrapassar a queda do dis-
curso positivista e foi aí que as ciências
chamadas humanas, articiais ou do
impreciso, começaram a construir uma
pedagogia própria para um mundo novo.
A principal obra pedagógica, docente e
losóca de Arnold Schoenberg, – o Har-
monielehre, Harmonia na edição portu-
guesa – foi publicada em 1911. Esta obra
representa a certidão de óbito do sistema
tonal, bem como da pedagogia tradicio-
nal no ensino da harmonia e da criação
musical. A harmonia é a ciência mãe da
nossa música e trata da concatenação dos
acordes ou simultaneidade de diferentes
alturas do som. O prefácio da primeira
edição começa com a frase: “Este livro eu
aprendi dos meus alunos”1, o que prova
que a origem do texto está ligada a uma
nova prática pedagógica, centrada nos
alunos que interagem com o professor
num constructo criativo do currículo.
É um odre novo para um vinho novo. O
professor já não dita o seu conhecimento
nem dá receitas: acompanha o desenvol-
vimento do aluno e faz sugestões de leitu-
ras e análises.
Até aqui, não difere dos princípios da Es-
cola Nova, mas enquanto esta olha para o
passado, Schoenberg abre, como já zera
Rameau, as portas do futuro. A pedagogia
tradicional morre com o próprio sistema
hierárquico que a gerou, a tonalidade,
ainda que Ramón Barce, tradutor da ver-
são espanhola, assinalou que, antes e
depois, há longos períodos ascendentes e
descendentes. Um ‘prelúdio’ de quase um
século para pôr em prática o princípio de
tonalidade, e um ‘poslúdio’, não menos
longo, onde se pratica uma sorte de ne-
crofagia com o cadáver do sistema tonal2.
Enquanto não se mudar de ideologia
não é preciso alterar a pedagogia. O pro-
blema existe quando uma larga quanti-
dade de professores continua refém do
passado, acreditando que a doutrina
hierárquica da tonalidade é o ‘sistema
natural’ da organização musical. Em
1865, na Introduction à la mèdicine ex-
périmentale, Claude Bernard escrevia:
“Os sistemas não estão na natureza,
mas no espírito do homem”3. Ao derru-
bar o mito positivista, as ciências do en-
genho, vagarosamente, desabrocham.
Na música, a resistência à mudança foi,
e continua a ser, enorme; a maioria con-
tinuou aferrada à decadência românti-
ca, pois a vitalidade da nova música
irritava o raciocínio conformista daque-
les odres de vaidade.
Já estamos num novo renascimento ou
período clássico, que podemos denomi-
nar de Neomodernidade múltipla – no
sentido em que Jürgen Habermas lhe atri-
bui no Discurso Filosóco da Modernida-
de, uma existência livre de dominações.
Todo o renascimento começa sempre
pelo exemplo das elites, os professores,
que são o modelo que arrasta o povo, os
alunos. A educação, para conviver na
polis, continua a ser uma utopia. Não é
o manual ou a sebenta que fazem a di-
ferença; os professores têm que renascer
como odres novos para albergar o vinho
novo. Se os professores acreditarem nas
sombras da caverna de Platão, não será
possível elucidar os alunos na ‘mais nova’
música.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em
Educação Artística e Ensino de Música
1 Schoenberg, A.:
Harmonia
. São Paulo:
UNESP, 2001, p. 31.
2 Schoenberg, A.:
Tratado de Armonía
. Ma-
drid: Real Musical, 1979, p. X.
3 Bernard, C.:
Introduction à la mèdicine ex-
périmentale
. Paris: Librairie Joseph Gibert,
1865, p. 297.
15NOV’23
Retrato de A.
Schoenberg por Oskar
Kokoschka (1924).