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Cooperativismo de plataforma ou plataformização solidária?
1
Rafael A. F. Zanatta
2
Resumo: O presente ensaio propõe o conceito de plataformização solidária como uma
estratégia de pesquisa e de engajamento com o movimento de cooperativismo de
plataforma no Brasil. Dialogando com os trabalhos de Rafael Grohmann, o ensaio
identifica características da plataformização solidária e identifica tensionamentos internos
à lógica da plataformização com o conceito de solidariedade, tal como elaborado pelo
filósofo André Gorz. O argumento avançado é que a plataformização solidária está
acoplada a três discussões centrais: o tensionamento da solidariedade no capitalismo
imaterial, as práticas de design justice e de inclusividade no desenho de plataformas e os
métodos de gerenciamento coletivo de dados pessoais, considerando que, na
plataformização, a extração de valor econômico dos dados para análise preditiva de
comportamento é um elemento central.
Sumário
Introdução ......................................................................................................................... 2
1. A chegada do cooperativismo de plataforma como conceito e como movimento........ 5
2. Algumas problematizações sobre o cooperativismo de plataforma.............................. 8
3. Rumo a uma plataformização solidária? Um resgate sociológico .............................. 14
3.1. O problema da solidariedade no capitalismo imaterial ........................................ 14
3.2. Tensionamentos da solidariedade: da integração ao todo à fragmentação dos
indivíduos .................................................................................................................... 18
3.3. Plataformização solidária como alternativa à plataformização capitalista .......... 21
Conclusão ....................................................................................................................... 29
Referências ..................................................................................................................... 29
1
Este ensaio expande algumas reflexões que foram feitas na Conferência do Cooperativismo de Plataforma
no Rio de Janeiro, em novembro de 2022, à convite do Prof. Trebor Scholz da The New School. A ideia de
“plataformização solidária” foi desenvolvida a partir de diálogos com Ricardo Neder e Victor Barcellos em
2023. Sou grato a Rafael Grohmann pelos diálogos e pela constante provocação crítica sobre o
cooperativismo de plataforma no Brasil. Por fim, agraço ao Flavio Chedid pelo convite de elaboração deste
ensaio.
2
Doutor pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, com período de estudo no
Instituto de Direito da Informação da Universidade de Amsterdam. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do
Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito e Economia Política
pela Universidade de Turim. Foi pesquisador visitante na The New School. Contato:
zanatta@dataprivacybr.org.
2
Introdução
O debate sobre o movimento do “cooperativismo de plataforma” ganhou grande
destaque nos últimos dez anos, desde a formulação do conceito por Trebor Scholz, sendo
amplamente disseminado pelos círculos de ativistas reunidos na The New School, uma
universidade conhecida pelo seu caráter progressista nos Estados Unidos da América.
3
A
The New School tem funcionado como um epicentro de disseminação do termo
cooperativismo de plataforma neste período (2013-2023), graças aos esforços
empreendidos por diversos ativistas e professores. O termo foi abraçado e discutido por
intelectuais progressistas dos EUA como Sasha Costanza, Juliet Schor, Yochai Benkler,
Nathan Schneider e Frank Pasquale, como uma reação às falácias e contradições da
chamada revolução da “economia do compartilhamento” (sharing economy), anunciada
no pós-crise de 2008 como um vetor de transformação econômica, capaz de criar
prosperidade econômica ao permitir novas transações a partir de ativos subutilizados,
como carros, utensílios domésticos e espaços na casa.
4
O movimento de crítica às plataformas da economia do compartilhamento
evidenciou a verdadeira economia política que rege a dinâmica de funcionamento de
empresas como Uber, Lift, iFood, Airbnb, WeWork, entre outras. Não se trata de ampliar
reciprocidade e sustentabilidade ambiental a partir da intermediação informacional da
transação de ativos subutilizados. Não se trata de criar um mercado de “caronas
solidárias”, como anunciou a Uber no início de suas operações no Brasil em 2014.
Partindo do investimento massivo de fundos de capital de risco, trata-se de um modelo
operacional que se caracteriza pela (i) transgressão das normas regulatórias locais; (ii)
criação de mercados de múltiplos lados, onde há público-alvo que demanda um serviço,
e um público-alvo que oferta um serviço; (iii) investimento massivo em profissionais que
operam na camada de negociação de políticas regulatórias (profissionais de public policy)
para constante tensionamento das normas locais; (iv) criação de valor econômico pela
escala de operação e possibilidade de exploração econômica de centenas de metadados
que permitem correlações estatísticas e produção de conhecimento; (v) eficiência
econômica pela estrutura hierarquizada da organização, permitindo ajustes rápidos nos
3
Para uma análise do conceito em sua formulação inicial, ver Scholz (2014) e Scholz (2016).
4
Para uma análise crítica da chamada sharing economy e suas tensões jurídicas, ver Zanatta, Paula & Kira
(2017).
3
códigos e políticas de precificação utilizados pela plataforma; (vi) explicitação de
relações não-trabalhistas entre os usuários da plataforma, considerando-os como
consumidores de um serviço de intermediação de informação, que é, ao mesmo tempo,
um mercado (marketplace). (vii) mobilização do sistema de justiça para permanente
contestação da aplicabilidade dos direitos trabalhistas, em uma estratégia que o jurista
Frank Pasquale chamou de ilicitude planejada (Pasquale, 2016).
Em comparação com o capitalismo de plataforma impulsionado pelos unicórnios
do Vale do Silício, o cooperativismo de plataforma possui características muito distintas.
A estratégia operacional se baseia no (i) respeito ao direito constituído e regras do
cooperativismo, (ii) criação de mercados de múltiplos lados, onde há público-alvo que
demanda um serviço, e um público-alvo que oferta um serviço; (iii) baixo investimento
em profissionais de negociação de políticas regulatórias; (iv) criação de valor econômico
pelo valor agregado de um serviço cooperado, em contraposição à pura lógica de
escalabilidade e exploração econômica de metadados e correlações estatísticas, (v)
eficiência econômica negociada com processos democráticos de gestão, diferenciando
processos de criação de normas primárias e secundárias (regras que permitem a um grupo
executivo tomar decisões em nome do coletivo em contraposição a normas que ditam
comportamentos e condutas exigíveis);
5
(vi) valorização do trabalho cooperado e
consideração de mecanismos de redistribuição a todos os tipos de trabalho relacionada à
criação e manutenção de plataforma; (vii) mobilização da comunidade e do próprio
sistema cooperativista para criação de modelos federados, criando federações de
pequenas cooperativas e sistemas de intercooperação.
6
Passados dez anos, o movimento espalhou-se para várias partes do mundo, mesmo
que ainda seja marginal, operando como fendas de resistência diante de economias cada
vez mais concentradas e mais sofisticadas em designs persuasivos e aditivos, que servem
como mola propulsora para exploração massiva de dados pessoais (Zanatta; Abramovay,
2019). Há empreendimentos que integram o movimento de cooperativismo de plataforma
5
A diferenciação entre normas primárias e normas secundárias é um elemento básico da teoria do direito,
explorado tanto por John Commons quanto por Herbert Hart no século XX. Essa diferenciação é central no
trabalho da economista Elinor Ostrom, que analisou a importância dos processos constituintes (normas de
criação de competências decisórias) nos processos de gestão de common pool resources. Essa diferenciação
também é notável nos trabalhos de Norberto Bobbio e outros pensadores que se dedicaram à elaboração de
uma teoria abrangente sobre as normas jurídicas.
6
Para uma breve análise sobre como a intercooperação e federação são remédios de competitividade diante
da existência das BigTechs, ver Zanatta & Grohmann (2020).
4
em locais tão diferentes quanto Argentina, Bangladesh, Canadá, Japão e Espanha. Como
se vê pelo Diretório organizado pelos pesquisadores da New School, trata-se efetivamente
de um movimento global, apesar da dimensão “micro” desse novo tipo de cooperativismo,
que se espalha, em muitos casos, de forma rizomática e sem cadeias de comando
verticalizadas, porém articuladas de formas distintas. Parte de sua força, enquanto
movimento social e econômico, vem de uma reação contra a precarização do trabalho
plataformizado, a exacerbação da lógica neoliberal que encara as pessoas como
empreendedoras e as formas profundamente hierárquicas de organização das relações
sociais de produção. O movimento contesta a narrativa do Vale do Silício de que há
somente uma rota de crescimento no setor de tecnologia e de plataforma (a fundação de
uma empresa por um número reduzido de pessoas, a viabilização de um produto de alta
escalabilidade, a obtenção de investimentos de fundos de venture capital, a constituição
e domínio de um novo mercado, a dependência dos usuários em sua infraestrutura, a
obtenção de mais rodadas de investimento e o faturamento na ordem dos bilhões com um
produto global).
Nessa gramática de contestação à ideologia do Vale do Silício, o cooperativismo
de plataforma é visto como um movimento que integra empreendimentos de pequena
escala, não orientados exclusivamente ao lucro, capazes de fortalecer comunidades,
proporcionando a gestão coletiva dos recursos imateriais (softwares, bases de dados,
códigos e algoritmos) e sistemas deliberativos e participativos de gestão, no qual há
assembleias, sistemas de voto e democracia econômica. A valorização da pessoa ocorre
na politização de sua participação na plataforma: ela não é somente uma usuária que
contribui com a construção do valor econômico, mas é uma pessoa cooperada que possui
poder de voto. É nesse quadro de busca de alternativas econômicas mais solidárias –
menos centradas nos exemplos de Uber, Airbnb, WeWork, Spotify e Tencent – que os
princípios e formas organizacionais do cooperativismo têm ganhado bastante
atratividade. Projetos como Start Coop, nos EUA, concentram-se no incentivo à abertura
de novas cooperativas. Criado por Greg Brodsky, trata-se de um programa de aceleração
de cooperativas que tem duração de 12 a 16 semanas, que mistura mentoria e apoio
financeiro para estruturação de novos empreendimentos. Em 2022, a Start Coop apoiou a
Staffing Co-op, plataforma de agenciamento de mão de obra autogerenciada, a Driver’s
Seat Cooperative, plataforma de agregação de dados de corridas gerida por motorista, e a
5
Savvy Coop, plataforma de intermediação de serviços de pesquisa com pacientes, que
monetiza os dados produzidos pelos próprios pacientes.
7
Qual a força do movimento de cooperativismo de plataforma no Brasil?
Essa não é uma pergunta fácil de responder. Não há uma instituição de ensino com
força de mobilização semelhante à The New School. Também não há um ecossistema
financeiro robusto, com filantropias, incubadoras de cooperativas de tecnologia e No
Brasil, a escolha pelo cooperativismo implica em uma série de consequências
institucionais e obstáculos específicos, considerando o monopólio legal existente pela
Organização das Cooperativas Brasileiras – reforçados pelo Supremo Tribunal Federal,
que reafirmou a constitucionalidade do modelo instituído há décadas que assegura à OCB
o registro das cooperativas legalmente constituídas no Brasil – e os regimes jurídicos
profundamente “juridificados” desde a Era Vargas, quando o cooperativismo tornou-se
política de Estado de caráter indutivo e mediado pelo governo. Analisando o cenário de
novas plataformas de “espírito cooperativista” no Brasil – como Cataki, AppJusto e
Señoritas Courrier –, nota-se que a maioria dos empreendimentos não se constituem como
cooperativa em sentido formal. Faz sentido então falarmos de um movimento de
cooperativismo de plataforma sem novas cooperativas? Ou estamos diante de um
fenômeno de “plataformização solidária”, no qual valores de solidariedade,
redistribuição, reconhecimento e democratização também estão em jogo?
Neste ensaio, argumento que estamos diante de um impasse conceitual para
descrever o movimento brasileiro de contestação à ideologia do Vale do Silício ao
pensarmos em economias de plataforma. Defenderei a viabilidade de utilizarmos o
conceito de plataformização solidária para melhor descrever o que se passa no Brasil.
1. A chegada do cooperativismo de plataforma como conceito e como movimento
Recentemente, no recém-publicado livro Own This: how platform cooperatives
help workers build a democratic Internet, Scholz apresentou uma definição sintética de
uma plataforma cooperativa como “um projeto ou um negócio que primariamente utiliza
um website, aplicativo de celular, ou protocolo para vender bens (incluindo dados) ou
7
A fundadora da Savvy Coop é uma ex-funcionária de uma grande empresa de tecnologia do Vale do Silício,
o que torna a história desta cooperativa ainda mais interessante.
6
serviços, e que se vale de processos decisórios democráticos e propriedade comunitária
compartilhada da plataforma por trabalhadores e usuários” (Scholz, 2023, p. 8). Para
reforçar que se trata de um fato institucional e não uma “imaginação utópica” (Scholz,
2023, p. 8), o autor reforça que já existem 543 negócios cooperativos e autogeridos em
49 países que permitem reimaginar uma economia digital, combinando elementos dos
modelos de negócios de plataformas digitais com o modelo cooperativista clássico, que
inclui quase 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo (Scholz, 2023, p. 11).
Como argumentado em estudo sobre a disseminação do movimento do
cooperativismo de plataforma no Brasil (Zanatta, 2022), o conceito encontrou terreno
fértil em nosso país em razão da forte tradição de economia solidária existente desde a
década de 1980, das lutas contra a precarização do trabalho diante da chegada de grandes
empresas-plataforma como Uber, iFood e Rappi, e da força do “cooperativismo
institucionalizado”, formado pelas cooperativas ditas tradicionais, que passaram a
enxergar no cooperativismo de plataforma uma oportunidade de competição em mercados
movidos a dados e caracterizados pela estrutura de mercados de múltiplos lados, no qual
novos mercados podem ser estruturados a partir de um enfoque em match-making e novas
soluções de intermediação (Barns, 2020).
Aos poucos, o termo cooperativismo de plataforma ganhou ressonância no Brasil
e passou a ser apropriado de forma multifacetada, a partir dos olhares específicos de quais
grupos sociais passaram a mobilizar o conceito. Atualmente, o conceito é bastante
presente em diferentes círculos e espaços, de diferentes matizes ideológicas. Além de ser
um tópico abertamente discutido nos congressos anuais da Organização das Cooperativas
do Brasil, o Sesc de São Paulo organizou um curso aberto sobre cooperativismo de
plataforma em 2022. Além disso, o Brasil é um dos poucos países do mundo a possuir um
Observatório do Cooperativismo de Plataforma, idealizado pelo professor e ativista
Rafael Grohmann, atualmente professor da Universidade de Toronto. O Observatório foi
instituído pela DigiLabour, da Unisinos, e contou com apoio da Fundação Rosa
Luxemburgo, com fundos do Ministério Federal para Cooperação Econômica e
Desenvolvimento da Alemanha.
8
O conceito também foi abraçado pelo próprio setor do
cooperativismo institucionalizado, fazendo parte do repertório da Organização das
Cooperativas do Brasil (OCB) e das instituições de ensino do Sescoop (Zanatta, 2022).
8
Ver https://cooperativismodeplataforma.com.br/
7
Desde 2021, por exemplo, o curso “Cooperativismo de Plataforma” encontra-se
na plataforma Capacitacoop do Sistema OCB.
9
Como observado por acadêmicos
(Grohmann & Zanatta, 2020) e também pela Sescoop do Mato Grosso, o Brasil é um dos
países mais fascinantes para cooperativismo de plataforma no mundo em razão da
população altamente conectada (152 milhões de usuários), uma tradição de
cooperativismo com mais de 6.000 cooperativas integradas ao sistema OCB e novos
projetos que buscam a conexão entre inovação e empreendedorismo, como os projetos da
Escoop, InovaCoopo e Coonecta (Cesar, 2022).
10
Como analisado por Samara Araújo,
coordenadora de processos do Sistema OCB, apesar de ser uma agenda incipiente dentro
do cooperativismo, projetos de conexão de startups e cooperativas buscam impulsionar o
cooperativismo de plataforma (Cesar, 2022). Guilhermo Dawson Junior, em tese de
doutorado da Unisinos, também descreveu a estratégia da FecoAgro/RS de
intercooperação, a partir de missões técnicas de inovação e plataformização
desenvolvidas nos EUA, Argentina e Alemanha, com apoio da OCB (Dawson Junior,
2022). O interesse no cooperativismo também vem de uma percepção de competição
futura diante das Big Techs. Os alemães, percebendo que a Google havia investido
milhões de euros na Farmer’s Business Network e na estruturação de plataformas para
agricultores, se articularam de forma intercooperada para criação ad Raiffeissem
Networld, uma plataforma de 29 cooperativas que “poderão ser agrupadas em uma
empresa limitada especialmente projetada para investir no desenvolvimento de sua
própria infraestrutura de comércio digital” (Dawson Junior, 2022, p. 80).
Talvez o maior exemplo de demonstração de interesse da OCB na temática seja o
fato de que ela foi uma das principais apoiadoras institucionais da conferência anual de
Platform Cooperativism promovida pelo Instituto da Economia Cooperativa Digital. A
edição ocorreu em novembro de 2022 no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e teve o
apoio decisivo da OCB como apoiadora institucional. O evento foi patrocinado pela
9
Ver https://www.sistemaocesp.coop.br/?a=noticias&c=8248
10
Ao mesmo tempo, em tom cético, alertamos: “Entre os princípios do cooperativismo de plataforma estão
propriedade coletiva, trabalho associado, pagamentos decentes e seguridade de renda, transparência e
portabilidade de dados. Não é difícil enxergar a conexão desse modo de organização do trabalho
intermediado por sistemas sociotécnicos com a agenda de direitos digitais no século 21. (...) Essas
iniciativas evidenciam que é possível imaginar outros mundos possíveis na economia de plataformas.
Porém, é preciso lembrar que não há fórmula nem manual para uma cooperativa de plataforma. São
experiências e laboratórios em construção. As iniciativas não vão fazer sucesso em um passe de mágica só
com a construção de um aplicativo. As barreiras de entrada são altas, tanto pelo custo de capital para
desenvolvimento da plataforma quanto pelos incentivos feitos para formação da base de usuários.”
(Grohmann & Zanatta, 2020).
8
Sescoop/RJ e pela CooperSystem, uma das maiores cooperativas de profissionais de
tecnologia da informação do mundo, fundada em 1998. Para o cooperativismo
institucionalizado, o movimento encontra ressonância com valores estruturais deste
segmento, como os tradicionais princípios firmados pela International Cooperative
Alliance em 1937: participação abertura e voluntária, controle democrático dos membros,
participação econômica, autonomia e independência, educação e formação, cooperação
entre cooperativas e preocupação com a comunidade.
11
O apoio do cooperativismo institucionalizado não é, no entanto, o principal vetor
de força para essa agenda no Brasil. Como tenho insistido desde meus primeiros ensaios
sobre cooperativismo de plataforma, acredito que o Brasil é um dos países mais aptos a
organizar uma agenda de transformação digital e plataformização solidária a partir de
sua tradição de economia solidária e justiça social. O surgimento do debate sobre
cooperativismo de plataforma no Brasil se dá após décadas de experiências nacionais de
fomento aos “empreendimentos solidários” (Gaiger, 2011) e organização coletiva do
trabalho no âmbito da economia solidária, que se orienta pela associação de pessoas em
gestões democráticas para produzir meios de vida, segundo ideais normativos de
solidariedade, reciprocidade e igualdade (Singer, 2002; Godoy & Coelho, 2011).
A seguir, discuto algumas limitações do conceito de cooperativismo de plataforma
diante das evidências empíricas sobre multiplicidade de formatos organizacionais em um
cenário de plataformização no Brasil. Argumento que, apesar da atratividade do conceito
e sua elasticidade, a ideia de plataformização solidária pode oferecer lentes de análise
um pouco mais amplas, retomando a tradição crítica inaugurada por Paul Singer e muitos
outros teóricos brasileiros que se dedicaram às economias solidárias.
2. Algumas problematizações sobre o cooperativismo de plataforma
Desde sua articulação na década passada, a ideia de cooperativismo de plataforma
busca retomar a compatibilização dos ideais do cooperativismo do final do século XIX –
o poder do sujeito trabalhador enquanto cooperado, a democracia econômica, a
participação voluntária, a atribuição de poderes de gestão, a prestação de contas, etc –
com o fenômeno de empreendimentos econômicos que constituem mercados de múltiplos
11
A história brasileira revela, no entanto, caminhos distintos no fomento ao cooperativismo, em razão das
experiências fracassadas de impulsionamento do cooperativismo na área agrícola até a década de 1940.
9
lados, fazendo com que uma plataforma seja, ao mesmo tempo, tanto um marketplace
quanto uma infraestrutura que constitui mercados a partir do desenho de seu código, a
alta capacidade de produção de dados e a capacidade de produção de matchmaking,
unindo partes distintas para habilitação de uma transação econômica.
Na provocação de Trebor Scholz, o cooperativismo de plataforma colocaria uma
outra visão sobre a Uber e o AirBnb. No caso da Uber, e se os motoristas fossem os donos
da própria plataforma, produzindo uma co-gestão democrática da plataforma? E se eles
tivessem voz para definir os mecanismos de precificação? No caso do AirBnb, e se os
próprios moradores fossem os proprietários da plataforma de aluguel de residências para
turismo e viagens de curta temporada? E se associações de bairro estivessem na posição
de definir taxas de intermediação e retorno do valor extraído das transações para a própria
comunidade? Seria possível a organização de um empreendimento deste porte,
configurado por características específicas de mercados de múltiplos lados, a partir da
lógica da cooperação, como defendido por Yochai Benkler? Seria possível, na esteira das
investigações da socióloga Juliet Schor, viabilizar múltiplos empreendimentos da
chamada “economia do compartilhamento”, por lógicas de democracia econômica e
gestão não hierárquica (Schor; Attwood-Charles, 2007)?
Como argumentado na introdução deste ensaio, foram essas provocações e essas
lentes teóricas – uma certa teoria social e econômica progressista dos estudos de Internet
economy, que apresenta uma alternativa ao modelo corporativista dos fundos de capital
de risco do Vale do Silício – que levaram Scholz a buscar catalogar projetos como
LaZooz, Resonate, CoperCycle, OuiShare e muitos outros. O que Scholz observou é que
esses vários empreendimentos buscavam organizar uma nova forma de cálculo do
trabalho imaterial (o valor atribuído ao trabalho de programação, de configuração de
mapas, de produção de dados), uma nova forma de redistribuição dos valores obtidos a
partir dos usuários dos serviços mediados pela plataforma (em superação ao modelo
simplista de atribuição de uma taxa de intermediação direcionada exclusivamente à
empresa que criou a plataforma) e uma forma não hierárquica de decisão sobre os rumos
desses empreendimentos, valorizando os processos deliberativos e a construção de
inteligência coletiva. Scholz enxergou aí uma espécie de retorno ao cooperativismo no
século XXI.
Um dos problemas cruciais desses mercados é a obtenção de capital para
alavancagem e investimentos iniciais. Tome-se o exemplo do AirBnb. Nos anos iniciais,
10
a empresa de São Francisco foi incubada pela Y Acceletator, empresa especializada em
conectar fundos de capital de risco com empreendimentos emergentes, na época gerida
por Sam Altman, hoje diretor executivo da OpenAI. A aceleradora mobilizou diversos
investidores do setor de capital de risco quanto grandes fundos como Sequoia Capital.
Em pouco tempo, a quantidade de capital investido foi tão massiva (mais de 1 bilhão de
dólares), que o AirBnb conseguiu alavancar uma estratégia de entrada simultânea em
centenas de jurisdições no mundo todo, transgredindo normas locais de turismo e aluguel
de imóveis e constituindo novos mercados a partir do ingresso de milhões de proprietários
em suas bases de dados. Com a quantidade massiva de capital investido, a AirBnb
conseguiu empregar os maiores talentos de modelagem de preço e de design de
plataformas, criando um produto de alta qualidade. Com o efeito winner-takes-it-all, a
AiBnb tornou-se global sem qualquer tipo de competição, produzindo altos retornos aos
fundos que alocaram capital para tornar a empresa global. Seguindo a lógica de um dos
seus investidores, o bilionário Peter Thiel, a “competição é para perdedores”. O segredo
das economias de plataforma é criar mercados novos e dominá-los completamente,
eliminando a competição.
As plataformas cooperativas não possuem entrada no universo dos fundos de
capital de risco e dos grandes investidores e não possuem a ambição de domínio global
de mercados, conforme a lógica de Peter Thiel e Sam Altman. Existe uma valorização da
coexistência de empreendimentos de menor escala que podem se unir em modelos
federados de cooperação, como é a lógica de funcionamento do cooperativismo. Além
disso, o que se identificou foi o surgimento de um mercado alternativo de investimentos
sociais, caracterizado pela junção de centros universitários, empresas de tecnologia da
informação dedicadas à criação de softwares e investidores sociais. Tome-se como
exemplo o caso notável da Up&Go, plataforma federada de mulheres imigrantes que
fazem a limpeza de apartamentos em Nova Iorque e outras cidades dos EUA. A ideia da
plataforma foi apoiada uma empresa dedicada à criação de softwares para
empreendimentos sociais. Além disso, foi apoiada pelo fundo de investimento Robin
Hood, que é um fundo dedicado a empresas que podem promover impacto social
significativo. As articulações que permitiram unir programadores com investidores
sociais também foram feitas com apoio do ativismo local, como organizações sem fins
lucrativos que trabalham no território no apoio direto às mulheres migrantes, e do setor
educacional, que mobiliza alunos para realização de extensão universitária. A Up&Go
11
contou com apoio de estudantes de escolas de administração que se voluntariaram para
apoiar na gestão do empreendimento, considerando há um modelo de crescimento
pautado pela lógica do cuidado.
12
Como seria possível, portanto, o surgimento de um cooperativismo de plataforma
no Brasil sem esses circuitos alternativos de capital e sem essas conexões entre empresas
de T.I., investidores sociais e centros universitários?
Uma primeira diferenciação entre o cenário do Brasil e dos EUA começa aí. No
Brasil, o grau de maturidade do segmento de investimento de impactos sociais é bem
menor que nos EUA. O país também possui uma tradição incipiente de filantropia, ao
passo que, nos EUA, muitos projetos de fomento às cooperativas de plataforma são
apoiados por RobinHood, MacArthur Foundation e até mesmo Google/Alphabet. O
segmento filantrópico movimenta bilhões de dólares lá. Organizações como Mozilla e
Ford Foundation, por exemplo, possuem fundos específicos para apoiar “Tecnologistas
de Interesse Público”, ou seja, pessoas da área de computação e informática que aceitam
trabalhar em empreendimentos sociais. Há, também, toda uma rede de bancos e
investidores que criam condições especiais para empresas que atribuem poder aos
trabalhadores, como no caso de employee shareholders.
13
Não é meu objetivo aprofundar essas diferenças entre as condições financeiras de
apoio ao cooperativismo de plataforma, mas o que tenho observado é que, diante da
escassez de recursos do próprio setor privado e do sistema financeiro, muitos
“empreendimentos solidários de plataforma” no Brasil são apoiados pela rede de
incubadoras tecnológicas, pertencentes às universidades públicas. Tais incubadoras
possuem grande relevância na história das políticas públicas de fomento à economia
solidária no Brasil. No Brasil, há todo um circuito pré-existente de incubadoras de
projetos de economia solidária, projetos universitários de fomento às “tecnologias
sociais”
Poderíamos falar de múltiplos cooperativismos de plataforma no Brasil e não
somente algo monolítico. Uma das conclusões de meu estudo como pesquisador visitante
12
A lógica “mova-se rápido e quebre coisas” simplesmente não funciona aqui. Não se trata de maximização
do número de usuários, fidelização e entrada em novos mercados. A Up&Go depende da força comunitária
de mulheres que, juntas, são capazes de organizar o trabalho de limpeza, decidindo em conjunto sobre
valores, apoio fornecido e gestão da informação.
13
Apesar das diferenças legais entre ser um acionista e ser um cooperado, as cooperativas são vistas como
empoderadoras do poder do trabalhador, considerando que ele possui copropriedade e direito de voto.
12
do Instituto de Economia Digital Cooperativa
14
da The New School é que existem
tensionamentos, contradições e dualidades fundamentais entre tipos de movimentos
muito distintos que utilizam o nome “cooperativismo de plataforma” no Brasil. É muito
difícil encontrar os mesmos valores, estruturas organizacionais e arranjos jurídicos entre
projetos tão díspares quanto a Cataki, o AppJusto, a CargOn, o Señoritas Courrier e a
Ciclos, por exemplo (Zanatta, 2022, p. 110-122).
Existem, na realidade, dois universos um tanto quanto distintos e ainda pouco
compreendidos por quem estuda a configuração de novos mercados digitais. De um lado,
existe um interesse crescente das cooperativas de grande porte pertencentes à
Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) de explorar novos mercados digitais,
novos serviços de intermediação e mercados intensivos em dados, que se organizam a
partir de estruturas de plataformas. Nesse sentido, a plataformização do cooperativismo
– que pode ser vista como um fenômeno acoplado a processos sociais e econômicos
maiores, como a “plataformização dos mercados” (Bauer & Latzer, 2016) na economia
da Internet ou a modificação de estruturas de poder em razão da “construção de realidades
pela governança de algoritmos” (Just & Latzer, 2017) – apresenta-se como oportunidade
de inovação, de criação de novos mercados e de maximização de retornos a extração de
valor a partir de mercados de logística, de novos serviços financeiros e de match-making
em mercados já organizados por cooperativas, como no caso da Ciclos, no qual uma
pessoa paga uma taxa de integralização de capital social única e passa a fazer parte da
plataforma Ciclos como cooperado, podendo alugar parte de uma usina fotovoltaica para
obtenção de energia limpa. A Ciclos foi incubada pelo projeto Somos Coop, da OCB, e
se apresenta como uma cooperativa de plataforma que tem por objeto social atividades de
intermediação e agenciamento de serviços.
15
De outro lado, estão empreendimentos solidários centrados na plataformização do
trabalho e na possibilidade de “plataformas de propriedade de trabalhadores” (Grohmann,
2022). Aqui estão as múltiplas experiências comunitárias, não pertencentes ao
14
O IEDC está sediado na The New School: “o propósito do instituto é fornecer às cooperativas de
plataforma existentes e em potencial conhecimentos aplicados e teóricos, educação e análise de políticas.
Estamos comprometidos em concretizar novas visões para um futuro mais justo de trabalho fundamentado
em pesquisas relevantes, impulsionadas por propostas imaginativas. As questões iniciais de pesquisa se
concentram em administração distribuída, dimensionamento, marketing e financiamento de startups. O
Instituto de Economia Digital Cooperativa (ICDE) torna esse conhecimento acessível a diversos públicos
em formatos inovadores”. Ver https://platform.coop/pt/instituto-de-economia-digital-cooperativa/
15
Ver https://ciclos.coop.br/wp-content/uploads/2021/04/novo-estatuto-15-50.pdf
13
cooperativismo institucionalizado, que contestam processos acentuados de
“racionalidade liberal e empreendedora” (Grohmann, 2022, p. 209). Essas plataformas
não idealizam seus potenciais – como a (im)possibilidade de escalabilidade à altura de
uma Uber ou iFood – e operam com outras lógicas de empreendedorismo, às margens dos
atores dominantes nesses novos mercados. Operam em brechas, fissuras, em nichos de
plataformização solidária.
A Señoritas Courier, por exemplo, organiza seu trabalho a partir da solidariedade
entre mulheres e entre ciclistas, bem como uma lógica feminista do cuidado
(Sevenhuijsen, 2003), mesmo diante de mercados altamente competitivos, como os de
entrega (Salvagni; Grohmann; Mattos, 2022). Rafael Grohmann, ao estudar as
experiências da Señoritas Courier (São Paulo) e Pedal Express (Porto Alegre), em
comparação com diversos outros coletivos de entregadores de Barcelona, Valência, Paris
e Bordeaux, evidenciou diversas trajetórias, como luta sindical e lutas da comunidade
LGBTQI+, bem como diversidades de modos de organização. Nesse sentido, Grohmann
conclui que a construção de “iniciativas de propriedade de trabalhos em contexto de
plataformização” não é algo que segue um modelo predefinido que se relaciona a um
conceito a priori, como cooperativismo de plataforma. Nesse sentido, o autor conclama
uma espécie de “desocidentalização dos estudos de plataformas” no sentido de “evitar
somente replicar determinados modelos bem-sucedidos na Europa, por exemplo”
(Grohmann, 2022, p. 229).
A multiplicidade de projetos que hoje emergem no Brasil dizem respeito a uma
“plataformização solidária” e não propriamente uma expansão, em terras brasileiras, do
“cooperativismo de plataforma” discutido na The New School. No entanto, o estímulo à
solidariedade possui limitações severas, que são agravados pela própria estrutura e
affordances dos mercados de plataforma. As condições sócio-técnicas dos mercados de
plataformas tornam a emergência da solidariedade mais complexa e difícil.
16
A seguir,
discuto dois problemas severos da plataformização solidária: o resgate à solidariedade no
neoliberalismo tardio e as affordances individualizantes dos arranjos sócio-técnicos das
16
Os estudiosos de sociologia usam três grupos de teorias como mecanismos explicativos da emergência e
dinâmica dos mercados: redes (Granovetter; White), instituições (Fligstein, DiMaggio) e performatividade
(Callon; Munieza; Mackenzie). Enquanto a rede enfoca “os laços tradicionais entre atores como a base
material da estrutura social”, os institucionalistas têm enfocado “o modo como a cognição e ação estão
contextualizadas em regras de mercado, poder e normas”. Já a escola de pensamento da performatividade
vê a ação econômica “como resultante de processos de cálculo que envolvem tecnologias e artefatos
específicos” (Fligstein, 2007, p. 482).
14
plataformas, que exigem práticas de design e de articulação realmente focadas em práticas
solidárias.
3. Rumo a uma plataformização solidária? Um resgate sociológico
Que traços seriam definidores da solidariedade? Para uma reflexão adequada
sobre a plataformização solidária, precisamos de uma boa noção conceitual do que
consiste a solidariedade e ação solidária. Só assim podemos ganhar uma clareza analítica
para distinguir um tipo de plataformização que pode ser considerado como solidário e um
tipo de plataformização que pode ser considerado não solidário, pois são relações sociais
de um certo tipo que ajudam a constituir determinados arranjos sócio-técnicos que
estruturam um fenômeno de plataformização e constituição de mercados. A seguir,
apresento algumas noções básicas sobre solidariedade no plano conceitual e as
dificuldades de manutenção da solidariedade diante das estruturas do capitalismo
imaterial, tal como teorizado pelo filósofo André Gorz.
3.1. O problema da solidariedade no capitalismo imaterial
A solidariedade é um tema caro à teoria social. Em Knowledge and Politics, na
década de 1970, Roberto Mangabeira Unger afirmou que uma definição básica da
solidariedade seria a face social do amor (Unger, 1976). Em ensaios posteriores, o teórico
social argumentou que a solidariedade seria uma capacidade de reconhecimento do outro
e de alteridade nas relações sociais.
17
Para ele, o tensionamento entre solidariedade/amor
e resistência/transcendência é uma questão maior levantada pelas religiões bíblicas.
18
Sociedades democráticas contemporâneas também vivem o dilema de solucionar o
tensionamento entre requerimentos da autoconstrução individual e as demandas de
solidariedade social. Para Unger, um dos pontos centrais do experimentalismo
democrático é como habilitar um refinamento progressivo da subjetividade, ao mesmo
tempo que arranjos institucionais podem estimular a solidariedade (Unger, 2000). Para o
autor, a solidariedade é um componente crucial da democracia e do Estado de Bem-Estar
17
A expressão usada por Mangabeira Unger é the otherness of the other.
18
A solidariedade também é um tema recorrente no pensamento cristão, como se observa na encíclica
Rerum Novarum de 1891 (que fala sobre o impulso natural de associação entre irmãos e apoio mútuo) e
Populorum Progressio de 1967 (que aborda a realidade da solidariedade humana com relação às obrigações
sociais de interpendência).
15
Social, possuindo o direito uma função de difusão da solidariedade enquanto princípio –
um argumento próximo ao de Émile Durkheim no sentido de reconhecer as limitações do
direito regulatório e a necessidade de difusão moral da solidariedade, diante dos riscos de
anomia,
19
ressentimento individualista e debilitação da coesão social.
Stefano Rodotà, em livro inteiro dedicado à solidariedade como uma utopia que
mobiliza o pensamento liberal democrático, afirmou que ela seria o reconhecimento
social da dignidade, quando passamos a compreender nossa interdependência e nossa
relação de humanidade, uma ideia fundante da própria União Europeia. Para Rodotà, a
solidariedade não é somente uma ideia de apoio uns aos outros (a solidariedade diante de
uma tragédia como uma inundação ou a solidariedade quando nos juntamos para um
protesto na rua diante de uma injustiça), mas é um elemento fundante da ordem jurídica
contemporânea, firmada no princípio da dignidade humana presente em diversas
Constituições do pós-guerra. O argumento defendido por Rodotà é que a solidariedade é
a referência central de um modelo de cidadania do século XX, que combina liberdade
com igualdade, sendo um princípio informativo para ações individuais e coletivas
(Rodotà, 2016).
A solidariedade, enquanto ideal normativo, possui uma espécie de crítica do
individualismo e uma reação ao que seria uma desintegração dos laços comunitários – e
essa é uma ideia-força que se sustenta há mais de um século. Ao menos na tradição
sociológica europeia, as primeiras elaborações teóricas sobre solidariedade por Auguste
Comte e Ferdinant Tönnies levavam em consideração os efeitos da Revolução Francesa
e da modernização capitalista nas ordens sociais espontâneas e conhecimentos tácitos de
pertencimento e enraizamento em um lugar e comunidade (o que Tönnis chamou de
Gemeinschaft). A modernização capitalista, ao induzir um paradigma contratual, o
trabalho assalariado, a eliminação do status e eliminar as formas intermediárias de poder
(os guilds, associações, corporações de ofício), gerou uma outra dimensão relacional e
laços impessoais de uma vida urbana industrializada (o que Tönnies chamou de
Gesellschaft).
20
Émile Durkheim, em argumento clássico em Da Divisão do Trabalho na
Sociedade, argumentou que a divisão social do trabalho em sociedades complexas e
19
A anomia, em Durkheim, é a manifestação de desregramento que torna precária a vida em comum, corta
laços sociais e empurra a sociedade para o imprevisível.
20
Para uma análise aprofundada, ver as republicações do trabalho do autor em Tönnies (2005).
16
funcionalmente diferenciadas geraria um tipo específico de solidariedade: com a
atomização das profissionais e aumento das técnicas, o trabalho passaria a ser um
elemento de integração e de solidariedade nas sociedades capitalistas, porém de um tipo
específico. A solidariedade mecânica seria típica de sociedades não complexas, com
baixas diferenciações funcionais, com crenças morais semelhantes e fortes, dotadas de
baixa divisão social do trabalho. Já a solidariedade orgânica seria típica de sociedades
complexas, com altas diferenciações funcionais, com funções especializadas e
interdependentes (Durkheim, 2008). Com a expansão das sociedades capitalistas, o
direito deixaria de ser repressivo e passaria a ser mais direcionado às regulações civis, de
direito privado. Um dos maiores teóricos durkheiminianos do direito hoje, Roger
Cotterrell, afirma que a solidariedade não é um “estado de coisas” natural em sociedades
politicamente organizadas (Cotterrell, 2017). Apesar da existência da solidariedade
orgânica, o ideal normativo de coesão e inclusão social é difícil de ser alcançado na
medida em que há impulso de individualização, de fragmentação dos valores
comunitários e de alienação dos trabalhadores em meros consumidores.
Esse é um dos paradoxos contemporâneos. Em um estado de fragmentação do
Estado de Bem-Estar Social, financeirização, retorno do “liberalismo autoritário”
(Chamayou, 2020) e domínio ideológico de um neoliberalismo de vertente
antidemocrática (Brown, 2019), quais os limites de indução da solidariedade pelas
instituições? Quanto mais se agravam os problemas de inflação, desemprego e
instabilidade econômica, maiores são os incentivos a uma estratégia “salve-se quem
puder”. Além disso, há uma crucial diferenciação entre o tipo de trabalho exercido no
final do século XIX e o tipo de trabalho exercido no século XXI, com a transição para um
regime “pós-fordista” e de sociedade da informação.
A precarização permanente, alavancado nas décadas de 1970 e 1980 em diante
com a fragmentação do Estado de Bem-Estar Social, se soma aquilo que André Gorz
identificou, no início deste século, como uma das principais características do capitalismo
imaterial configurado nas últimas décadas: a construção de uma identidade do self como
um consumidor especial, alguém que possui desejos únicos, que são afirmados por um
consumo personalizado, advindo das técnicas pós-fordistas de produção (exemplo: a
fabricação de um tênis especial da Nike que só é finalizado na fábrica após o ato de
compra e a designação de um desenho especial feito pelo consumidor). Não é sem razão
que André Gorz via no ethos hacker e na fundação do movimento Software Livre, com
17
suas formas comunitárias de produção em conjunto e espírito de projetos coletivos, uma
das formas de oposição à transformação do cidadão em mero consumidor. Esses seriam
os “dissidentes do capitalismo imaterial”
21
.
O problema posto por Gorz no livro L’Immatériel: connaissance, valuer et capital
em 2003, que pode ser lido como uma crítica às teses de Durkheim sobre solidariedade
mecânica, é que o capitalismo imaterial provoca a desintegração do trabalho assalariado
tradicional, dando origem aos trabalhos flexíveis, temporários, freelancers, típicos da
produção de serviços intangíveis, como a programação de códigos, a edição de vídeos, a
roteirização de vídeos, a produção de pesquisa e do jornalismo. Esses trabalhos não são
somente trabalhos de prestação de serviços, mas envolvem também expressão,
engajamento e uma produção de subjetividade que é de difícil mensuração. O que Gorz
chama de travail immatériel é caracterizado por uma autoprodução e um avénement du
self-entrepreneur. O computador e a informação são mediadores de uma produção na qual
o trabalhador precisa ser empreendedor de si mesmo, responsável pelo seu próprio capital
humano e por sua contínua renovação, estimulando uma competição incessante entre
indivíduos, freelancers, prestadores de serviços. Nesse sentido, como descreve Gorz, sua
vida precisa ser gerida como um negócio, o que faz com que pessoas façam cursos de
capacitação no seu período de férias.
A partir de leitura de Pierre Veltz, Maurizio Lazzarato e Yann Moulier-Boutang,
22
André Gorz identificou um elemento central desse trabalho imaterial e do
empreendedorismo. Em razão das mediações dos computadores e sistemas de gestão da
informação, o “saber vivo” é extraído juntamente com o valor dos dados. Diz Gorz:
21
Cito uma passagem chave de André Gorz no capítulo sobre os dissidentes do capitalismo digital no livro
O Imaterial: “Com o desenvolvimento da web e do movimento de programas de computador livres, esse
neoproletariado se tornou o lugar geométrico para o qual convergem, e de onde se propagam mundialmente,
todas as contestações radicais do capitalismo globalizado e financeirizado. De fato, os programas de
computador são ao mesmo tempo os meios de criação de redes e meios de transmissão, de comunicação,
de partilha, de troca e de produção. O poder de comando do capital não é mais, de agora em diante, inscrito
na e garantido pela materialidade da propriedade privada de um dos principais meios de produção e de
troca. O programa de computador não somente se presta à apropriação coletiva, à partilha e à
disponibilidade gratuita para todos, mas ele quase as reivindica, pois que assim sua eficácia e sua utilidade
se encontram aumentadas. A comunidade virtual, virtualmente universal, dos usuários-produtores de
programas e de redes livres, instaura relações sociais que esboçam uma negação prática das relações sociais
capitalistas” (Gorz, 2005, p. 66).
22
Tanto Yann Moulier-Boutang quanto Maurizio Lazzarato são intelectuais próximos de Antonio Negri.
Moilier-Boutang vem de uma trajetória do movimento operaísta francês e participa da criação da revista
Matériaux pour l’intervention em 1972 e da revista Camarades em 1974. Em 2000, torna-se diretor de
redação da revista Multitudes, conhecida pela disseminação das pesquisas de Negri.
18
O trabalho do saber vivo não produz nada materialmente palpável. Ele é,
sobretudo na economia da rede, o trabalho do sujeito cuja atividade é produzir a
si mesmo. Todo usuário do trabalho em rede sincroniza-se continuamente com os
outros, e os dados que manipula põem em marcha um processo em que o resultado
coletivo excede de longe a soma dos dados manipulados individualmente (Gorz,
2005, p. 20).
Mais adiante, Gorz reforça a tese do auto-empreendedor, hoje amplamente
reconhecida na figura daqueles que são motoristas de aplicativos como Uber e 99, hosts
de Airbnb, coaches que vendem cursos via Instagram e TikTok, consultores e palestrantes
que se autopromovem no LinkedIn. No coração dessa metamorfose do trabalho está a
eliminação das diferenças entre pessoa e empresa, bem como a eliminação do regime
assalariado que dominou o século passado:
A subsunção total da produção de si pelo capital encontra limites inultrapassáveis
por tanto tempo quanto subsista, entre o indivíduo e a empresa, entre a força de
trabalho e o capital, uma heterogeneidade que permita a essa força de trabalho
retirar-se do jogo, recursar uma imersão total no trabalho. Basta anunciar esse
obstáculo à subsunção total para que o meio de contorná-lo salte aos olhos: a
diferença entre o sujeito e a empresa, entre a força de trabalho e o capital, deve
ser suprimida. A pessoa deve, para si mesma, tornar-se uma empresa; ela deve se
tornar, como força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente
reproduzido, modernizado, alargado, valorizado. (...) Cada um deverá se sentir
responsável por sua saúde, por sua mobilidade, por sua adaptação aos horários
variáveis, pela atualização dos seus conhecimentos (Gorz, 2005, p. 23-24).
A análise de Gorz, que nos parece absolutamente correta em termos de previsão
de mudanças sistêmicas no capitalismo contemporâneo diante da sociedade em rede, nos
provoca a pensar nos enormes desafios de resgate à solidariedade e ao cooperativismo no
século XXI. Ele nos mostra, acima de tudo, tendências do capitalismo imaterial que
antecedem à Uber, AirBnb, AmazonTurk e outros gigantes do trabalho plataformizado.
Essas empresas, que se tornaram globais na década de 2010, exploraram tendências de
transformação econômica e social já postas do capitalismo imaterial.
3.2. Tensionamentos da solidariedade: da integração ao todo à fragmentação dos
indivíduos
Além do aspecto intersubjetivo – de reconhecimento do outro, do sentimento de
irmandade, do pertencimento ao mesmo grupo que precisa se apoiar –, a solidariedade
19
também possui um aspecto processual: o comprometimento de uma experiência unitária
faz com que ações sejam coordenadas para perseguir objetivos em comum. Essa é, aliás,
a origem da responsabilidade solidária no direito civil, com inspiração no direito romano.
Como explicado pelo sociólogo alemão Hauke Brunkhorst no seu influente livro sobre
solidariedade:
A solidariedade é sólida. Solidus é denso e firme. O conceito jurídico romano in
solidum significa obrigação para o todo, responsabilidade solidária
(Gesamthaftung), dívida comum, obrigação solidária: obligatio in solidum. Um
por todos e todos por um. Todos assumem responsabilidade por quem não
consegue pagar a sua dívida e, inversamente, são responsáveis por todos os
outros. O parasitismo é legalmente descartado, sem apelar à moralidade. O
vínculo de solidariedade é sólido não só para a própria comunidade devedora,
mas também para o credor, que pode, se necessário, recorrer ao substituto que
tem condições de pagar. Assim, a obligatio in solidum já une pessoas
desconhecidas, papéis complementares e interesses heterogêneos no meio do
direito abstrato (Brunkhorst, 2005, p. 2).
A plataformização contemporânea rompe com a ideia de que há obrigação
solidária ou dívida comum. Trata-se da antítese da obligation in solidum. Há uma divisão
profunda entre as partes, tornando-as não pertencentes ao “todo”. A plataformização
capitalista – ao estilo Uber, Rappi, iFood, AirBnb – considera as pessoas meramente como
usuárias. Não há qualquer obrigação para o todo, pois não há um vínculo jurídico forte
que cria qualquer tipo relação obrigacional conjunta. A regra fundante é imunidade de
responsabilização ao estilo da Section 230 aprovada pelo Congresso dos EUA em
fevereiro de 1996 (Título V do Telecommunications Act de 1996). Esta norma jurídica
prevê uma regra geral de imunidade de responsabilidade para provedores de aplicação de
Internet e usuários a partir da conduta de terceiros.
23
Ela é, parcialmente, a inspiração do
princípio de “inimputabilidade da rede” do campo da governança da Internet, que prevê
que “o combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de
acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da
privacidade e do respeito aos direitos humanos”
24
.
Esse ímpeto da imunidade da responsabilização, um elemento jurídico
constitutivo dos mercados de plataformas, é o que estrutura, também, algumas regras do
23
A Section 230 diz: No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher
or speaker of any information provided by another information content provider.
24
Comitê Gestor da Internet, Resolução CGI.br/RES/2009/003/P. Disponível em:
https://cgi.br/resolucoes/documento/2009/003/
20
Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), em especial a regra que diz que “o provedor
de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de
conteúdo gerado por terceiros” (art. 18, MCI) e a norma que estipula que “com o intuito
de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de
internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de
conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as
providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo
assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as
disposições legais em contrário” (art. 19, MCI). A ideia é de limitação da responsabilidade
civil e de “inimputabilidade da rede” para questões criminais.
Também para o campo trabalhistas, a argumentação é que as plataformas operam
em uma zona de imunidade para aplicabilidade do direito trabalhista. No caso Cabify vs.
Tribunal Regional do Trabalho,
25
julgado pelo Supremo Tribunal Federal, o ministro
Alexandre de Moraes decidiu um caso reforçando “outras formas de contratações civis,
diversas da relação de emprego estabelecidas pelo art. 3º da CLT”. A decisão do Tribunal
Regional do Trabalho reconhecia o vínculo de emprego de motorista de aplicativo da
Cabify. Ao analisar a reclamação constitucional apresentada pela Cabify, o ministro
Moraes analisou a decisão da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 324,
relatada pelo ministro Luis Roberto Barroso, que decidiu pela constitucionalidade da
terceirização da atividade-fim ou meio. A decisão também se orientou pela tese firmada
pelo Tema 725 de Repercussão Geral, julgado pelo ministro Luiz Fux. Nesta decisão, o
STF reconheceu a licitude de outras formas de “divisão do trabalho entre pessoas jurídicas
distintas”. Em 20 de julho de 2023, o ministro Moraes decidiu que “é possível assentar
que a posição reiterada da Corte se consolidou no sentido da permissão constitucional de
formas alternativas da relação de emprego”. Nota-se como a decisão do ministro Moraes
aceita as teses apresentadas pelos advogados da Cabify, que sustentaram perante o STF o
seguinte:
(...) o trabalho realizado através da plataforma tecnológica, e não,
necessariamente, para ela, não deve ser enquadrado nos critérios definidos nos
artigos 2º e 3º da CLT, pois o motorista pode decidir quando e se prestará seu
serviço de transporte para os usuários do aplicativo Cabify, sem qualquer
exigência mínima de trabalho, de número mínimo de viagens, de faturamento
mínimo, sem qualquer fiscalização ou punição pela decisão do motorista. Diante
disso, verifica-se que a Cabify é uma plataforma tecnológica que faz a
25
STF, Medida Cautelar na Reclamação 60.347 Minas Gerais. Disponível em:
https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RCL60347.pdf
21
intermediação de serviços de transporte, facilitando a conexão entre os usuários
cadastrados em sua base que buscam um serviço de transporte e os motoristas
parceiros, autônomos, que contratam a plataforma para ter acesso aos clientes do
aplicativo. Cumpre ressaltar, também, que junto ao CNAE, a reclamante [Cabify]
tem sua atividade econômica principal classificada como intermediação de
serviços diretos. Portanto, são os motoristas os verdadeiros clientes da empresa,
evidenciando a relação civil entre as partes (STF, 2023).
A tese da Cabify de que cada motorista é um autônomo e responsável pela sua
própria prestação de serviço cabe perfeitamente na descrição do fenômeno de auto-
empreendedor de André Gorz (2005). Essa construção depende, enfim, de duas mudanças
paradigmáticas de interpretação jurídica: (i) a superação do monopólio das teorias
trabalhistas, a partir da fissuras provocadas pela reinserção de um direito civil de matriz
liberal, que presume “partes iguais” e (ii) a construção de uma tese específica de economia
política sobre as plataformas, que nega sua associação com a atividade fim (“Uber é uma
plataforma de transporte” ou “AirBnb é uma plataforma de aluguel”) e considera a
“intermediação informacional” como uma atividade-fim em si mesmo.
É com base nessa arquitetura jurídica, que é possível uma aceleração da
fragmentação dos usuários a nível de indivíduos e empreendedores, rompendo com a
tradição jurídica da solidariedade enquanto obligatio in solidum.
3.3. Plataformização solidária como alternativa à plataformização capitalista
A estratégia discursiva das plataformas, desde a década de 2000, tem sido a de
argumentar que elas são responsáveis pelo provimento de uma aplicação de Internet que
é capaz de interconectar usuários para atividades econômicas. Portanto, sua atuação seria
de um tipo específico, algo como um conector, um marketplace, apenas um espaço sócio-
técnico no qual verdadeiras relações jurídicas acontecem (as transações entre as partes,
como o aluguel de um imóvel, a compra de um aparelho celular usado, a prestação de um
serviço de transporte, etc). Esse reducionismo sobre o papel das plataformas, no entanto,
oculta o verdadeiro sentido das plataformas e da plataformização hoje. Como
argumentado pela filósofa Julie Cohen:
As plataformas tornaram-se intermediários omnipresentes, reestruturando tanto
os padrões de intercâmbio económico como os padrões de fluxo de informação
de forma mais geral. A plataforma não é simplesmente um novo modelo de
negócio, uma nova tecnologia social ou uma nova formação infraestrutural
22
(embora também seja tudo isso). Pelo contrário, é a forma organizacional central
da economia informacional emergente. É importante ressaltar, porém, que as
empresas de plataforma também são entidades jurídicas distintas, com interesses
e agendas próprias (Cohen, 2017, p. 192).
Uma das questões centrais a se pensar é como a solidariedade pode ser produzida
ou fomentada em infraestruturas que atomizam as relações dos indivíduos a partir de
mediações tecnológicas que operam como relações do tipo “usuário-plataforma-
algoritmo-plataforma-usuário”. Ou seja, a plataformização opera pela lógica de mercados
de múltiplos lados nos quais há uma verdadeira segregação. Isso depende, também, do
reconhecimento de que as “materialidades técnicas da plataforma e a mediação
algorítmica que gerencia o trabalho” são “atores fundamentais neste processo e
transformam as relações e práticas que atravessam” (Guerra; Duarte, 2022, p. 40).
As escolhas de design importam aqui. Ao se cadastrar no AirBnb, você não passa
a ter acesso a um diretório com todos os outros proprietários da sua rua, para construção
de solidariedade e apoio mútuo. O mesmo ocorre com Uber: ao se transformar em
“motorista parceiro”, você não sabe mais quem é motorista e não há um diretório central
– ou uma sala de bate-papo, no mínimo – que oportuniza a criação de relações de
solidariedade entre motoristas. Isso se relaciona às fissuras do trabalho temporário e
uberização do trabalho, descritos por Erik Forman, um dos fundadores da The Drivers
Cooperative nos EUA. Diz Forman:
Embora haja muito Karl Marx em The Drivers Cooperative, também há muito
Adam Smith. O ex-funcionário do governo Obama e economista David Weil
fornece uma ponte entre os dois. Weil teorizou que no nosso movimento atual de
capitalismo em fase avançada, o local de trabalho tornou-se “fissurado” através
da terceirização, da subcontratação, do trabalho temporário e, finalmente, da
uberização do trabalho. Todos pretendiam separar mais eficazmente os
trabalhadores do valor que criam e isolar os centros de comando e controle que
se apropriam dos lucros dos trabalhadores que empregam. Outros teóricos
chamaram um fenômeno semelhante de “Pós-Fordismo”, a divisão de grandes
estruturas empresariais em redes de empresas mais pequenas baseadas no
mercado, cada uma delas prestando serviços no mercado que anteriormente eram
internos às grandes empresas. Embora este fenômeno tenha sido catastrófico para
o trabalho, abre um caminho potencial para uma entrada na economia capitalista
de propriedade dos trabalhadores (Forman, 2022, 28).
A tese de Forman é que é possível que trabalhadores façam um movimento de
empreendedorismo, como second-mover, a um custo muito mais baixo da empresa que
23
fez a primeira alocação de capital para constituir um mercado novo. Daí a ambivalência
de uma plataformização solidária: ela pode aproveitar as próprias estruturas das
economias de múltiplos lados e das dinâmicas de plataformização para a constituição de
mercados mais solidários.
A plataformização solidária depende de escolhas de design e pessoas que queiram
estruturar um modelo alternativo às plataformas capitalistas e que não estejam motivadas
exclusivamente por dinheiro. Tome-se o exemplo de Erik Forman na constituição da The
Drivers Cooperative nos últimos três anos. No início, um pequeno grupo foi formado com
Alissa Orlando (ex-gerente de operações da Uber) e Ken Lewis (gerente de transportes
em Nova Iorque), a partir de uma causa comum: a organização de uma cooperativa de
motoristas para criação de um sistema de autogestão, democracia econômica e
remuneração justa. Partindo dos contatos políticos deste primeiro núcleo duro, eles
mobilizaram a política de esquerda Alexandria Ocasio-Cortez para utilizar os serviços da
cooperativa durante a ação “Early Voting”, que estimulava a participação de pessoas para
votar durante a pandemia, em especial para candidatos progressistas. Uma campanha de
voluntários com 100 pessoas foi organizada e US$ 25.000,00 foram coletados por
doações. Alissa Orlando conseguiu uma incubação do projeto na The Workers Lab, o que
permitiu a compra de um aplicativo que pudesse operacionalizar o empreendimento. A
partir da solidariedade de programadores, em uma relação não remunerada, houve a
customização dos códigos para a cidade de Nova Iorque e prototipagem inicial para
garantir usabilidade.
O mais impressionante na narrativa de Forman é o conjunto de ações solidárias
que foram necessárias para a estruturação inicial da cooperativa. Além da dedicação
voluntária dos programadores de Nova Iorque, eles receberam apoio gratuito de um
estúdio de design chamado Partner & Partners e reeberam apoio jurídico da professora
Gowri Krishna (fundadora do Urban Justice Center), que mobilizou os estudantes da New
York University para um trabalho voluntário de estruturação jurídica inicial da
cooperativa. Além do apoio da New York University – uma instituição de prestígio e
dotada de jovens talentos –, a The Drivers Cooperative teve apoio da Jonathan Askin
Brooklyn Law Incubator and Policy Clinic. Além disso, o teste de usabilidade dos
serviços da cooperativa foi feito por outra cooperativa, a Cooperative Home Care
24
Associates, a maior cooperativa de prestação de serviços de acompanhamento de pessoas
idosas e pessoas doentes nos EUA, com sede no Bronx, em Nova Iorque.
26
As estratégias de solidariedade precisam superar as condições sócio-técnicas do
trabalho plataformizado e sua vertente individualizante e atomizante. Um exemplo
interessante é o da Cataki, aplicativo que constitui um mercado de transações entre os
produtores de resíduos sólidos, trabalhadores que coletam os resíduos sólidos (os
“catadores”) e as indústrias capazes de agregar grande quantidade de resíduos sólidos e
promover sua reciclagem. Neste ciclo de trocas, quem produz o resíduo sólido faz um
pagamento ao coletor, que é um empreendedor individual, que pode emitir uma nota fiscal
como um Microempreendedor Individual. A Cataki não é empregadora da pessoa que
trabalha realizando a coleta e tampouco é quem oferece os instrumentos de trabalho. Cada
pessoa possui sua própria “carroça”. O que a Cataki faz, no entanto, é um conjunto de
ações de promoção de espírito comunitário, como, por exemplo:
• A realização de eventos artísticos nos quais o artista Mundano realiza
obras em grafite nas carroças, promovendo autoestima e valorização da
pessoa que realiza as coletas;
• A produção de vídeos para Instagram e TikTok, explicando a realidade de
quem está na rua realizando a coleta seletiva e promovendo a
sustentabilidade em uma grande cidade (o que gera visibilização);
• A realização de grandes assembleias em um galpão na Zona Oeste de São
Paulo para discussão de estratégias de atuação em grandes eventos, como
Carnaval, com debates e votações em casos específicos;
• A disponibilização de uma rede de apoio da Associação Pimp My Carroça
para solucionar problemas tecnológicos, como a utilização do aplicativo
do Cataki, a negociação via Whatsapp, a emissão de notas fiscais e os
pagamentos via Pix;
26
Como expliquei em outro ensaio: “A Cooperative Home Care Associates foi fundada no Bronx, um bairro
tipicamente marcado pela imigração latina e caribenha, em 1985, a partir da iniciativa de Rick Surpin e
Peggy Powell. O objetivo inicial era de maximizar os salários dos cooperados e benefícios a partir de um
modelo de trabalho de cuidados primários e secundários. Atualmente, a CHCA é a maior cooperativa de
trabalho de cuidados dos EUA. As trabalhadoras são 99% mulheres. 74% são latinas ou hispânicas e 15%
são afro-americanas. 56% são imigrantes. Desde 1985, o modelo de treinamento já formou mais 10.000
trabalhadoras. Anualmente, 600 pessoas trabalham regularmente a partir da cooperativa. A cooperativa
trabalha com o conceito de “riqueza comunitária”. Essa riqueza é mensurada a partir dos princípios de
treinamento gratuito, serviços de qualidade, emprego, tutoria, desenvolvimento profissional e a ideia de ser
dono do próprio negócio” (Zanatta, 2019).
25
Assim como a The Drivers Cooperative, a Cataki conta com diversos apoios
voluntários, como time jurídico, colaboração de artistas que promovem vídeos de
divulgação da vida dos catadores e outros trabalhos de promoção do aplicativo nos meios
jornalísticos e nas redes sociais. Sem os investimentos voluptuosos em marketing e
expansão global – somente a Uber gasta, anualmente, US$ 1,7 bilhões em marketing –, a
Cataki conta com voluntários que realizam ações de promoções da plataforma. Em 2022,
uma pesquisa realizada pela Cataki constatou que catadores autônomos coletam em média
7,5 toneladas de material reciclável por mês. A pesquisa também traçou um perfil
sociodemográfico de trabalhadores em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro,
entrevistando 421 trabalhadores. 72% deles são negros e pardos e 67% já foram vítima
de preconceito pelo trabalho realizado. Cerca de 30% dos trabalhadores que participaram
da pesquisa entraram na catação devido ao desemprego e outras situações de
vulnerabilidade e 12% dos entrevistados ingressaram neste trabalho por influência
familiar.
Além da Cataki, há diversos projetos que poderiam ser qualificados como
plataformização solidária, pois são constituídos por lógicas não exclusivamente
capitalistas, por métodos de construção de unidade comunitária, por incentivo à
democratização da tomada de decisão sobre a performatividade dos algoritmos e por um
processo mais participativo de design. Esse é um elemento bastante central da
plataformização solidária e que se relaciona com a teoria de Design Justice desenvolvida
pela ativista e professora do MIT Sasha Costanza-Chock:
O design justice como uma moldura reconhece a universalidade do design como
uma atividade humana. Design significa fazer uma marca, fazer um plano ou
resolver um problema; todos os seres humanos, nesse sentido, participam do
design. No entanto, apesar de todos os seres humanos fazerem design, nem todos
são pagos para fazerem. (...) Os designers geralmente assumem que o usuário não
marcado tem acesso a vários privilégios muito poderosos, como cidadania dos
EUA, proficiência na língua inglesa, acesso à Internet de banda larga, um
smartphone, um corpo com capacidade normativa e assim por diante. (...) A
justiça do design concentra-se nas maneiras como raça, classe, gênero e
deficiência estruturam tanto as assimetrias de informação quanto a variação nas
necessidades do produto do usuário (Costanza-Chock, 2020, p. 74-78).
Experiências como as feitas pelo aplicativo Contrate Quem Luta do Núcleo de
Tecnologia do MTST e do Cataki da Associação Pimp My Carroça mostram uma
26
preocupação com um design que possa estar relacionado aos valores e assimetrias de
poder da comunidade de usuários. Por exemplo, a Cataki utiliza testes de usabilidade para
que a plataforma seja intuitiva para quem não saber ler. As próprias políticas de
privacidade e proteção de dados podem ser explicadas por Whatsapp, por meio de áudios
que são enviados, facilitando a compreensão pela oralidade. Essas são escolhas de design
que estão orientadas a um olhar ao outro, em especial um outro que é muito diferente de
quem faz a programação da plataforma. Isso exige uma solidariedade de tipo especial,
que é uma solidariedade no design e na construção de softwares, considerando que eles
produzirão affordances e terão como consequência modular o comportamento daqueles
que estão inseridos em um ambiente sócio-técnico.
As práticas de co-design focadas em justiça social são um desenvolvimento
relativamente recente advindo da sociedade civil organizada. Os projetos que deram
origem à moldura de Design Justice são originários de trabalhos feitos entre 2016 e 2018
pelo Research Action Design, Open Technology Institute e organizações como Hack The
Hood, Palante Technology Cooperative e Engine Room. Como argumentado por
Costanza-Chock, a prática do Design Justice requer total inclusão, responsabilidade e, em
última análise, controle por pessoas com experiência direta das condições que a equipe
de design está tentando mudar: “a liderança comunitária não é apenas ética, mas também
o conhecimento tácito e experiencial dos membros da comunidade irá certamente
produzir ideias, abordagens e inovações que ninguém mais seria capaz de criar”
(Costanza-Chock, 2020, p. 85).
A defesa do Design Justice e suas relações com as plataformas geridas por
trabalhadores também é feita por Rafael Grohmann, em ensaio que defende a
ressignificação do cooperativismo de plataforma e um espírito de constante
experimentação e construção de “laboratórios possíveis”, na linha do pensamento do
socialista Erik Olin Wright:
A utilização de tecnologias livres e abertas, com códigos abertos, que priorizem
a privacidade está relacionada à busca por tecnologias não alinhadas, sem a
dependência infraestrutural das plataformas. Isto significa rever todo o
ecossistema da plataforma. Envolve também a revisão do design da plataforma a
partir de uma perspectiva de justiça de design, com base em elementos como os
propostos por Sasha Costanza-Chock. A concepção e os algoritmos das
plataformas pertencentes aos trabalhadores devem colocar os trabalhadores no
centro. É bem conhecido como algoritmos e outras tecnologias podem reproduzir
desigualdades históricas (classe, raça, género, sexualidade) através do poder da
automação (Grohmann, 2022).
27
A plataformização solidária enfrentará alguns desafios agudos para poder avançar
de forma coerente no Brasil. Primeiro, demandará que as práticas de formulação de
softwares e plataformas não sejam vistas apenas do ponto de vista instrumental (a solução
de um problema concreto por meio da programação ou a construção de uma arquitetura
de sistemas de que atenda a um determino fim pré-determinado), mas ressignificadas por
uma espécie de prática participativa e orientada a valores comunitários no processo de
design. Segundo, demandará que o processo de tomada de decisão sobre diversos
elementos fundacionais de uma plataforma que estrutura uma atividade econômica (a
precificação, o matching, a resolução de conflitos, os mecanismos de denúncia, o método
de realização da transação financeira, a taxa de intermediação, o método de redistribuição
e pagamento) sejam decididos de forma comunitária e não autoritária. Terceiro,
demandará que a governança de dados pessoais e outros ativos imateriais que são
produzidos coletivamente sejam, de alguma forma, geridos por uma estrutura
institucional específica de matriz coletiva. Nesse ponto, há uma profunda conexão com
os debates contemporâneos sobre “cooperativas de dados” e práticas de design de
arquiteturas de sistemas que permitem um gerenciamento coletivo dos aspectos de acesso,
exclusão e utilização econômica de dados em sistemas informacionais (Hardjono;
Pentland, 2020).
No Brasil, o debate sobre cooperativismo de dados é praticamente incipiente e não
há, ainda, plataformas que realizam práticas de gerenciamento de consentimento e
transações econômicas, a partir dos dados pessoais de seus cooperados, com base em
obrigações fiduciárias assumidas pela cooperativa perante seus membros, tal como
propõem Hardjono e Pentland (2020).
27
Acredito que o modelo proposto por Hardjono e
Pentland enfrenta um obstáculo enorme no Brasil, considerando que os dados pessoais
são considerados projeções da personalidade e recursos não transacionáveis. A Lei Geral
27
Nesse aspecto, argumentam os autores sobre as possibilidades do cooperativismo de dados nos EUA: “as
cooperativas de dados com obrigações fiduciárias para com os membros fornecem uma direção promissora
para o empoderamento dos indivíduos através do uso coletivo dos seus próprios dados pessoais. Uma
cooperativa de dados não só pode dar ao indivíduo aconselhamento especializado e baseado na comunidade
sobre como gerir, organizar e proteger o acesso aos seus dados pessoais, como também pode executar
análises internas que beneficiam os membros coletivos. Essas percepções colectivas proporcionam uma
ferramenta poderosa para negociar melhores serviços e descontos para os seus membros. As cooperativas
de crédito licenciadas pelo governo federal já estão legalmente habilitadas a atuar como cooperativas de
dados, e acreditamos que existem muitas outras instituições semelhantes que também poderiam fornecer
serviços cooperativos de dados” (Hardjono & Pentland, 2020, p. 19).
28
de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) assume um regime de titularidade
enquanto pretensão de proteção jurídica e tutelabilidade dos dados pessoais, conforme as
obrigações e princípios previstos na LGPD, mas não propriedade um regime de
propriedade privada sobre dados pessoais. Hardjono e Pentland propõem que os membros
de uma plataforma cooperativa devem exercer um unambiguous legal ownership sobre
seus dados, habilitando transações a partir de consentimento informado e armazenamento
dos dados pessoais em um personal data store (Hardjono & Pentland, 2020). Apesar da
alegação de que o princípio superior seria o “benefício direto aos seus membros” e não a
monetização do dado para lucro individual, ainda há questões jurídicas complexas quando
se fala de cessão de dados de membros de toda uma cooperativa para enriquecimento de
dados e analytics. Uma solução possível é a construção de um regime jurídico específico
de propriedade, no qual mecanismos de licenciamento podem ser deliberados
coletivamente e podem estipular um arranjo temporário de exploração de valor dos dados,
mas nunca a sua transferência, duplicação ou cessão para usos econômicos ilimitados.
Este é um tópico avançado de discussão – os arranjos jurídicos de gestão coletiva
de dados dentro de empreendimentos de plataformização solidária – que merece
aprofundamento e enfrentamento, em estudos futuros, à luz do Marco Civil da Internet
(Lei 12.965/2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018). Uma
solução possível é não confundir a discussão de gerenciamento coletivo de dados com
propriedade privada sobre dados pessoais e alienação, mas sim reconhecer a discussão
como de natureza redistributiva (redistribuição de recursos providos do uso de recursos
imateriais), como uma nova espécie de licenciamento de natureza coletiva.
28
A plataformização capitalista possui total desinteresse no debate sobre data
commons e gerenciamento coletivo de dados. Como contraposição, o fortalecimento da
agenda de plataformização solidária precisa, urgentemente, organizar conhecimentos
técnicos e teóricos sobre como lidar com o valor extraído dos dados no capitalismo
imaterial e como processos de tomada de decisão podem se inspirar nos ensinamentos de
28
Raciocínio semelhante é feito em ensaio recente de filosofia da informação: “através da propriedade dos
dados, os titulares dos dados exigem a satisfação das necessidades e direitos materiais e, assim, articulam
e negociam reivindicações sobre a redistribuição de recursos. E para os seres sociais para os quais uma vida
plena depende de pré-requisitos intersubjetivos, a propriedade dos dados codifica ainda mais as expectativas
e exigências no reconhecimento dos proclamados proprietários dos dados” (Hummel; Braun; Dabrock,
2021).
29
Elinor Ostrom, algo que tem sido avançado por pesquisadores de gestão coletiva de dados
de saúde, como Barbara Prainsack (2019).
Conclusão
A plataformização solidária é um conceito que pode ser mobilizado para explicar
o surgimento de mercados de plataforma que se contrapõem a alguns elementos
capitalistas, hierarquizados e individualizantes das plataformas que hoje dominam a
camada de aplicações de Internet e a prestação de serviços de intermediação. Apesar das
muitas semelhanças com o cooperativismo de plataforma, o argumento defendido aqui é
que a plataformização solidária possui três elementos que podem ser interessantes para a
comunidade brasileira.
O primeiro é sua evidente conexão com a tradição de economia solidária e as
noções mais alargadas de empreendimentos solidários, que fazem parte da cultura de
discussão de economias sociais desde final do século XX no Brasil. O segundo é o
enfoque na dimensão processual da plataformização enquanto processo econômico e o
enfoque na construção de formas de solidariedade enquanto processo social. Isso impede
um enfoque estático na constituição da plataforma em si enquanto cooperativa, a partir
de elementos formais que pudessem qualificar um empreendimento A ou B como uma
cooperativa. O terceiro é que a plataformização solidária está acoplada a três discussões
centrais não tão discutidos na literatura de cooperativismo de plataforma: o
tensionamento da solidariedade no capitalismo imaterial, as práticas de design justice e
de inclusividade no desenho de plataformas e os métodos de gerenciamento coletivo de
dados, considerando que, na plataformização, a extração de valor econômico dos dados
para análise preditiva de comportamento é um elemento central.
O debate sobre plataformização solidária não serve para anular ou suplantar a
discussão sobre plataformas de propriedade dos trabalhadores ou cooperativismo de
plataforma, tal como elaborado por Grohmann (2022) e por Scholz (2023). Pelo contrário.
O esforço de conceitualização se soma a esses importantes movimentos intelectuais de
modo a alargar nossas lentes de análise e abrir novos campos de investigação.
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