ArticlePDF Available

DOS POVOS QUE ENCONTREI NOS "SOPÉS DA SERRA DO ESPINHAÇO”

Authors:

Abstract

O texto apresentado traz, primeiramente, uma revisão de literatura identificando os Povos Caatingueiros localizados nas bases da Serra do Espinhaço, estes também presentes na obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e, que contextualiza a história dos moradores da região com o bioma Caatinga. E, vem ressaltar a necessidade dos esforços para preservação do patrimônio natural e, recentemente, o desejo de preservar o patrimônio histórico-cultural ao mesmo tempo em que abre as portas de seu território em busca de ampliar o desenvolvimento socioeconômico da região. O intento de ampliação da abertura para o turismo e preservação das memórias materializa-se por meio de um projeto local, em fase inicial de execução, denominado de “Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras/MG”, desdobrando fatos do passado, do presente e apontando perspectivas para o futuro dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço” (expressão de Cunha, 2010, P.119). Embora o texto se apresente com dupla autoria, cada autora pode falar por si em sua escrita, através do título apresentado no singular, e transpor para o papel a sua experiência de encontro e acolhimento pelos Povos Caatingueiros e a interpretação tecida a partir de cada campo de estudo: Ciências Sociais e História.
10.46551/alt0502202306
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
Of the People I met in the “foothills of the Serra do Espinhaço”
De las personas que conocí en las "estribaciones de la Serra do Espinhaço"
Angélica de Santana Rocha
1
Ana Maria Nogueira Rezende
2
Resumo: O texto apresentado traz, primeiramente, uma revisão de literatura, identificando os Povos
Caatingueiros localizados nas bases da Serra do Espinhaço e também presentes na obra Grande Sertão:
Veredas, de João Guimarães Rosa, a qual contextualiza a história dos moradores da região com o bioma
Caatinga. Assim, vem ressaltar a necessidade dos esforços para preservação do patrimônio natural e,
recentemente, o desejo de preservar o patrimônio histórico-cultural, ao mesmo tempo em que abre as
portas de seu território em busca de ampliar o desenvolvimento socioeconômico da região. O intento de
ampliação da abertura para o turismo e preservação das memórias materializa-se por meio de um projeto
local, em fase inicial de execução, denominado de “Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em
Gameleiras/MG”, desdobrando fatos do passado, do presente e apontando perspectivas para o futuro dos
povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço” (expressão de Cunha, 2010, P.119). Embora o
texto se apresente com dupla autoria, cada autora pode falar por si em sua escrita, através do título
apresentado no singular, e transpor para o papel a sua experiência de encontro e acolhimento pelos Povos
Caatingueiros, com a interpretação tecida a partir de cada campo de estudo: Ciências Sociais e História.
Palavras-chave: Caatinga, Ecomuseu, Povos Tradicionais, Desenvolvimento Sustentável
Abstract: The text presented brings, firstly, a literature review identifying the Caatingueiros Peoples located at
the bases of the Serra do Espinhaço, these also present in the work Grande Sertão: Veredas, by João Guimarães
Rosa, and which contextualizes the history of the residents of the region with the Caatinga biome. And, it highlights
the need for efforts to preserve the natural heritage and, recently, the desire to preserve the historical-cultural
heritage while opening the doors of its territory in search of expanding the socioeconomic development of the
region. The intention to expand the opening for tourism and preservation of memories is materialized through a
1
Universidade Estadual de Montes Claros - MG/ ITCP. E-mail: angrocha32@gmail.com
2
Mestra e Doutoranda em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável- Escola de Arquitetura/UFMG. E-mail:
anamariarezende@ufmg.br
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/alteridade
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
87
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
local project, in the initial phase of execution, called "Ecomuseum of the Caatingueiros Peoples in
Gameleiras/MG", unfolding facts of the past, of the present and pointing out perspectives for the future of the
peoples I met in the "foothills of the Serra do Espinhaço" (Cunha's expression, 2010, p.119). Although the text is
presented with double authorship, each author can speak for herself in her writing, through the title presented in
the singular, and transpose to paper her experience of encounter and welcome by the Caatingueiro Peoples and the
interpretation woven from each field of study: Social Sciences and History.
Keywords: Caatinga, Ecomuseum, Traditional Peoples, Sustainable Development
Resumen: El texto presentado, en primer lugar, trae una revisión de la literatura que identifica a los Pueblos
Caatingueiros ubicados en las bases de la Serra do Espinhaço, estos también presentes en la obra Grande Sertão:
Veredas, de João Guimarães Rosa, y que contextualiza la historia de los residentes de la región con el bioma
Caatinga. Y, destaca la necesidad de esfuerzos para preservar el patrimonio natural y, recientemente, el deseo de
preservar el patrimonio histórico-cultural al tiempo que abre las puertas de su territorio en busca de expandir el
desarrollo socioeconómico de la región. La intención de ampliar la apertura para el turismo y la preservación de
las memorias se materializa a través de un proyecto local, en la fase inicial de ejecución, llamado "Ecomuseo de
los Pueblos Caatingueiros en Gameleiras/MG", desplegando hechos del pasado, del presente y señalando
perspectivas para el futuro de los pueblos que conocí en las "estribaciones de la Serra do Espinhaço" (expresión
de Cunha, 2010, p.119). Aunque el texto se presenta con doble autoría, cada autora puede hablar por sí misma en
su escrito, a través del título presentado en singular, y trasladar al papel su experiencia de encuentro y acogida por
parte de los Pueblos Caatingueiro y la interpretación tejida desde cada campo de estudio: Ciencias Sociales e
Historia.
Palabras-clave: Caatinga, Ecomuseo, Pueblos Tradicionales, Desarrollo Sostenible
Introdução
“A serra que divide e une as pessoas, propõe que sejamos todos serranos, mas os
saberes e fazeres do lado de cá diferem dos saberes e fazeres do lado de lá. Se de cá,
convidamos pessoas para comer um arroz, de lá, nos convidam para comer um feijão.
Toda cidade tem a sua história; toda cidade é, portanto, uma cidade histórica. E sua
história contada, preservada, torna-se patrimônio cultural.” (Baleeiro, 2023, palestra
proferida em Gameleiras/MG).
Entre os dias 31/01 e 02/02/2023 ocorreu, no município de Gameleiras/MG, por
iniciativa das lideranças locais, o curso “Patrimônio Cultural de Gameleiras - Rotas Viáveis”,
ministrado pela historiadora Ana Maria Nogueira Rezende, com o objetivo de apresentar as vias
sustentáveis para preservar a história e a memória local. Para isso, houve o fomento das ideias
acerca do patrimônio cultural local - tanto material (objetos utilizados pelos antepassados para
a reprodução da vida cotidiana) como o imaterial (os saberes, fazeres e memórias), que se
mostraram alinhados no município de Gameleiras e nos circunvizinhos. Assim, no primeiro dia,
para maior interação entre os bens materiais e os saberes, os fazeres, a memória e a história, o
professor Zaurindo Baleeiro, apresentou aos participantes do curso a formação historiográfica
de Gameleiras. Alinhou a história de Gameleiras com o seu entorno, mostrando como a
geografia, a economia, a arquitetura e a identidade estão no dia a dia social, conferindo o
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
88
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
pertencimento da população local e regional. Dessa forma, o professor ressaltou que na
geografia e no meio ambiente ficam impressos como os moradores vivem e contam suas
experiências cotidianas. Gameleiras fica nos “sopés da Serra do Espinhaço”, na base da Serra
Geral, onde os povos catingueiros possuem hábitos diferentes, estando de um lado ou do outro
da serra, como proferiu o professor Zaurindo Baleeiro.
Durante o andamento do curso, dentro das perspectivas e percepções apresentadas, os
participantes intencionaram aumentar a visibilidade sobre os potenciais turísticos da região,
como também se preocuparam em construir um espaço voltado para o fomento do turismo dos
povos caatingueiros, para a comercialização do artesanato local, das comidas típicas e,
juntamente, mostrar os bens do patrimônio cultural material, de forma sustentável. No terceiro
e último dia, o curso foi voltado para a elaboração do projeto norteador, que contemplou o duplo
propósito: preservação cultural e ampliação do desenvolvimento socioeconômico no âmbito
regional. Inicialmente, pensava-se na construção de um Centro Cultural para esses propósitos
em Gameleiras. Todavia, a partir do diálogo e das exposições das ideias em conjunto com o
grupo participante caminhou--se para a criação do projeto de um Ecomuseu denominado de:
“Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras/MG”. Assim, a proposta inicial foi
ampliada, do local para o regional, inserindo as cidades vizinhas que estão presentes também
no Parque Estadual Caminho dos Gerais e no Quilombo do Gorutuba. Portanto, é um produto
alinhado com a trajetória regional, com estudos interdisciplinares entre a teoria e a prática, com
o envolvimento da história de cada participante, que constitui as vivências cotidianas desses
povos, representados na experiência de encontro (campo antropoetnográfico) e com a história
construída pelos povos caatingueiros (campo histórico, cultural e patrimonial). Logo, refletindo
sucintamente sobre a contribuição dos saberes diversos, somados neste momento inicial para
mostrar a possibilidade real da construção do espaço para a preservação do patrimônio
histórico-cultural, dos saberes dos povos tradicionais, percebe-se também o desenvolvimento
socioeconômico sustentável por meio do turismo, de forma que se mantenha preservado o seu
patrimônio ecológico fauna e flora do bioma Caatinga.
Nos “sopés da Serra do Espinhaço”, na base da Serra Geral - o encontro do local e o
regional na criação do Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras-MG
A participação no curso, em Gameleiras-MG, durante três dias, possibilitou o (re)
conhecimento da região, com os relatos de existência e resistência dos povos caatingueiros,
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
89
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
desde os seus primórdios. As investidas desenvolvimentistas, iniciadas em 1978, pregavam o
plantio das florestas de eucalipto e pinus para o crescimento da região da Caatinga, juntamente
aos moradores locais. Porém, com o avanço das plantações de eucaliptos, houve o
comprometimento das reservas hídricas, que levou à escassez da produção de arroz - exercida
amplamente pelos moradores, representando a cultura tradicional e a economia -
demasiadamente importantes para o crescimento local. Foi precisa a mobilização comunitária,
ocorrida pela falta de água e os desarranjos sociais e econômicos levados pela falsa promessa
de desenvolvimento propostos, para que houvesse a reivindicação de uma área territorial para
a sua transformação em uma unidade de conservação o Parque Estadual Caminho dos Gerais
- criado oficialmente no ano de 2007.
O trabalho foi árduo e demorado, cuidando das áreas que ainda conservavam o bioma
Caatinga, plantio das árvores nativas da região e o reflorestamento nas proximidades das
nascentes. Entretanto, atualmente, as lideranças locais, como todos os moradores, relatam com
emoção a recuperação do nível das águas, e, com isso, a restauração da fauna, da flora e do solo
na região. Um resultado plausível da preservação do Parque Estadual Caminho dos Gerais foi
a recente descoberta de uma nova espécie botânica, denominada Chionanthus monteazulensis
Zavatin & Lombardi (espécie de fruto da família oleaceae), encontrada no município de Monte
Azul, pertencente à cadeia da Serra do Espinhaço, na base da Serra Geral e também do parque.
A planta, um tipo de arbusto, recebeu o seu nome científico, seguido da homenagem ao lugar e
aos pesquisadores que identificaram a espécie. Logo, a região onde foi encontrada merece
resguardo, que as áreas na Serra do Espinhaço, nos limites do parque sofrem com especulação
mineratória e instalação de energia eólica (Zavatin; Almeida; Ramos; Lombardi, 2023).
Assim, dentro dessas novas perspectivas ocasionadas pela preservação que vem
ocorrendo e a sua recuperação hídrica, levam a população local a sonhar com novas
possibilidades agrícolas sustentáveis, sendo possível até mesmo o resgate da tradição do cultivo
de arroz em Gameleiras - tão importante em outros tempos (Baleeiro, 2023).
Dessa forma, unindo o conhecimento apresentado no curso com as idealizações dos
moradores locais, outras possiblidades se mostraram viáveis para a manutenção da tradição do
cultivo de arroz, com as demais histórias presentes na oralidade memorialística regional, os
quais se refletem na cultura material e imaterial. Assim, as proposições acerca das linguagens
e funcionamento de um Ecomuseu tomaram forma para o grupo cursista. Houve o entendimento
de que toda a comunidade dos povos caatingueiros residentes na encosta, ou seja, nos sopés da
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
90
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
Serra Geral, prolongamento nas bases da Serra do Espinhaço, podem constituir um modelo
diferenciado de museu, em que o ambiente como um todo e a população que nele reside, com
suas vivências atuais, as memórias dos antepassados, formam a herança e o legado cultural
perpetuado em um espaço: um museu vivo, dinâmico, atento à preservação como também às
mudanças que a própria realidade histórica invariavelmente coloca nas tessituras cotidianas
(Cunha, 2010; Rezende, 2023; Riviére, 1992).
O espaço físico que representa esse modelo de museu e sua coleção material, portanto,
não é a figura principal de representatividade dessa linguagem museológica. Na verdade, o
espaço físico e toda a sua composição faz repercutir a amplitude filosófica que abarca:
ambiente, povos, relações, significantes, significados, memórias e heranças dos antepassados e
proporciona uma imersão cultural vívida das pessoas (povos visitantes) no contexto do outro
(alteridade), envolvendo-se e cooperando com o ideal de preservar não apenas objetos
significativos, mas toda uma gama de elementos que holisticamente compõem sua identidade,
sua singularidade.
Sim, “o Sertão é do tamanho do mundo” e a Caatinga do Norte Mineiro se faz presente
na singularidade histórica
No período ‘das águas’ o verde toma conta da vegetação. No período ‘das secas’ todas
as árvores perdem a folhagem e uma aparência acinzentada toma conta da paisagem. Assim se
caracteriza a Caatinga, como define a etimologia da palavra. Caatinga, de origem indígena, da
nação Tupi e significa Floresta Branca (Caa = mata; tinga = branca), dando nome a um dos
mais importantes, quiçá, o bioma mais brasileiro de todos (Sena, 2011, p.13).
João Guimarães Rosa, ao escrever o livro Grande Sertão Veredas, em 1956, afirmou
que “o sertão é do tamanho do mundo” (Rosa, 1994, p. 96). Nota-se que o autor tem razão. E
mais, a Caatinga representa o único bioma exclusivamente brasileiro, cujo patrimônio biológico
não se repete em nenhuma outra localidade do globo terrestre (Sena, 2011, p.13), sendo que
3,8% se encontra no Norte de Minas Gerais (IBGE, 2019). A Caatinga em solo mineiro
compreende os municípios de Gameleiras, Mamonas, Espinosa, Monte Azul, Mato Verde,
Catuti, Porteirinha, Janaúba, Pai Pedro, Jaíba, Serranópolis de Minas, Verdelândia,
Varzelândia, Patis, Matias Cardoso, Januária, Pedras de Maria da Cruz, São João das Missões,
Manga, Juvenília, Miravânia, Montalvânia, São Francisco, Japonvar, São João da Ponte,
Montes Claros e Cônego Marinho, compondo a totalidade do território de alguns desses
municípios, ou partes em outros (Idesisema, 2018). A seguir, são apresentados os mapas
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
91
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
elaborados pelo IBGE (2019), com delimitação do bioma Caatinga, no estado de Minas Gerais
com a Bahia.
Fonte: IBGE, Diretoria de Geociências, Coordenação de Recursos Naturais e Estudos Ambientais, Banco de
Dados de Informações Ambientais - BDi (IBGE,2019, P.37).
A colonização da área, na base da Serra do Espinhaço, aconteceu a partir da chegada de
migrantes portugueses e italianos, que se dedicaram à agricultura familiar (Cunha, 2010) e
originaram os grupos que hoje se denominam Povos Caatingueiros. Os Povos Caatingueiros
estão listados entre os vinte e sete (27) Povos e Comunidades Tradicionais - PCT’s do Brasil
(França, 2022).
Antropologicamente, o termo Caatingueiro pode ser analisado a partir do conceito de
etnicidade ecológica (Cunha, 2010), expressão que diz da ligação identitária dos grupos ao seu
ambiente natural, com o qual tecem as vivências cotidianas, criam significados e símbolos a
partir do contato com os elementos específicos do meio. A etnoecologia se incumbe de conhecer
e compreender o saber acumulado pelas populações sobre o ambiente natural em que vivem, as
formas de manejo dos recursos naturais e seus usos (THE, 2010), a partir da abertura cada vez
maior da região serrana para as experiências, as trocas turísticas, os conhecimentos e as práticas
rurais dos povos catingueiros, residentes na base da Serra do Espinhaço, que socialmente
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
92
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
afirmam a identidade local e regional, idealizada no projeto do Ecomuseu dos Povos
Caatingueiros em Gameleiras/MG (SEBRAE, 2010).
Logo, a região vem galgando, por meio de atividades que envolvem o turismo e a
sustentabilidade, a legitimidade da Caatinga e sua gente, enquanto difusora dos saberes e
fazeres, das artes e dos artesanatos. Um bom exemplo está nas ações previstas no Plano de
Desenvolvimento Econômico de Monte Azul-MG, que ressalta veementemente a expressão
“Povos Caatingueiros”, fazendo dela a frase bordada atualmente pelo Grupo de Artesãos de
Monte Azul GAMOA. As bordadeiras se reúnem para a confecção de diversos artigos
tradicionais e entre eles, o bornal (sacola de pano, com alças nas laterais, utilizada para carregar
alimentos, ferramentas, entre outras necessidades). A seguir, a imagem mostra uma das versões
do Bornal Tremedal, produto que representa a identidade cultural de Monte Azul e nele é
bordado: “Povo Caatingueiro que vive com leveza”.
Figura 01: Bornal Tremedal, produto de identidade cultural de Monte Azul/MG Fonte: Arquivo pessoal
Observa-se que o povo caatingueiro tem a necessidade desse reconhecimento, de sua
presença notada além dos “geraizeiros”, como são chamados os moradores de uma vasta porção
geográfica do Norte de Minas, e ainda, socialmente, generalizada sob o termo ‘Sertanejos’ ou
‘Norte Mineiros’. Por isso se faz pertinente mostrar a singularidade identitária, em um ambiente
formado por identidades múltiplas (Lopes, 2016; Costa, 2017). Faz lembrar Guimarães Rosa,
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
93
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
no livro Grande Sertão Veredas, referenciando que “o sertão está por toda parte” (1994, p.13),
e, logo, ao descrever o lugar, as paisagens narradas por seu personagem, Riobaldo, que mostra
a geografia do ambiente presente na Caatinga e suas vivências históricas:
Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e municípios, jogamos uma viagem
por este norte, meia geral. Assim conheço as províncias do estado, não há onde eu não
tenha aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa Maria - Barreiro Claro - Cabeça
de Nego - Córrego Pedra do Gervásio - Acari - Vieira - e Fundo - buscando jeito de
encostar no de São Francisco. Novidade não houve. Passamos numa barca. Só sempre
bater para o nascente, diretamente em cima de Tremedal, chamada hoje Monte-Azul
(Rosa, 1994, p. 82).
(...) O Brejo dos Mártires, a cachoeirinha Roxa, o Mocó, a Fazenda Riacho-Abaixo, a
Santa Polônia, a Lagoa da Jabuticaba. E, daí por alguns atalhos: o Córrego
Assombrado, o Sassapo, o Poço d’Anjo, o Barreiro do Muquém. Nesse meu, caminho
fazendo, tirei minha desforra: faceirei. Severgonhei. Estive com o melhor de
mulheres. Na Malhada comprei roupas. O vau do mundo é a alegria! (Rosa, 1994, p.
430)
Brejo dos Mártires, citado por Rosa (1994, p. 430) é distrito do município de Gameleiras
e figurou como berço da trajetória dos povos caatingueiros na região serrana. Conta-se que no
ano de 1700, quando caçadores e comerciantes de ouro entre Minas e Bahia (Baleeiro, 2006)
navegavam pelo rio São Francisco, encontrando-se com o Rio Verde. Ambiciosos por encontrar
esmeraldas devido a cor verde do rio, decidiram acampar. O local inicialmente escolhido não
era fértil para a produção de arroz e cana de açúcar. Então se estabeleceram na encosta - sopé
da Serra - e formaram o brejo com seus cultivos, irrigando-os através de canais que puxavam
do rio (regos) para poças de água represadas nos arredores das plantações (açudes). Reza a
tradição oral local que, devido ao sobrenome dos ocupantes (Mártires), o local ficou conhecido
como Brejo dos Mártires (Baleeiro, 2006). Assim, o bioma da caatinga representa o sertão e
sua gente dentro das narrativas vividas e imaginadas por João Guimarães Rosa.
Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras/MG - identidade, memória e
pertencimento
O Ecomuseu, pretensão de Gameleiras/MG para preservação do patrimônio histórico-
cultural dos povos caatingueiros, teve sua ideia originada na França, na década de 1970, em um
contexto para a promoção da ressignificação, tanto da museologia como no empoderamento de
uma comunidade na tomada de decisões em relação ao território ao qual pertencia (BURLON,
2015).
Burlon (2015) apresentou a história da primeira experiência francesa que adotou o termo
Ecomuseu para a sua definição, o Écomusée du Creusot Montceau-les-Mines, “criado em 1974,
em uma comuna da Borgonha, na França” (BURLON, 2015, p.268). O contexto era de
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
94
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
retomada, pela comunidade, do território que quatro gerações havia sofrido a influência
política e paternalista de uma única família, mas que, após a falência de seus empreendimentos,
deixou a região (BURLON, 2015). Esse fato levou os museólogos a se mobilizarem para
preservar o patrimônio histórico e as memórias locais, construídas a partir da vivência da
comunidade no entorno do empreendimento e da influência daquela família, mas de forma que
as pessoas, seus relatos, suas memórias e suas narrativas tivessem mais significado que as
coleções materiais que pretendiam expor. Portanto, não se trataria de um museu convencional
(RIVIÉRE, 1992; BURLON, 2015). Assim, a “originalidade do projeto estaria justamente na
união, até então inusitada, da arte, da história e da etnologia em um discurso museal”
(BURLON, 2015, p. 270). Nesse contexto, em que o protagonismo estava voltado para as
pessoas que compunham a comunidade, não seriam os especialistas quem determinariam as
coleções materiais a serem expostas e a linguagem do espaço que representaria o Ecomuseu,
mas sim, as pessoas, que formavam os moradores locais, que contariam o que tinha significado
para elas e por que deveria ser preservado. Nesse caso, “o patrimônio, assim, começava com
uma pergunta e não com um acervo ou coleção pré-constituída por valores de outros, de outro
tempo, ou de outras pessoas” (BURLON, 2015, p. 276).
O patrimônio cultural a ser resguardado partia das dúvidas, perguntas do presente para
o passado e apontando para o futuro que se configuraria. Assim, o Ecomuseu tem o intuito de
preservar os lugares de memórias, baseado em fontes interdisciplinares do conhecimento e sua
interação com o ambiente natural, urbano, humano e econômico em uma mesma paisagem, no
caso, a região de Gameleiras, seus municípios circunvizinhos que se desenvolveram nos “sopés
do Espinhaço” (RIVIÉRE, 1992; REZENDE, 2023; NORA, 1993; RIBEIRO, 2007).
No Brasil, a implantação de Ecomuseus se intensifica, principalmente, a partir da década
de 1980, fato que pode ser visto como um marco da redemocratização do país. E, como afirmou
Santos (2017), na experiência brasileira, o movimento internacional voltado para essa nova
museologia - especificamente mostrando a função social dos museus. Logo, a citação abaixo
exemplifica o envolvimento das diversas instituições pertencentes ao território, ao lugar,
apontando as experiências brasileiras de ecomuseu, evidenciando o caráter coletivo das
iniciativas, inspirando a leitura de que necessidade da participação ativa e real das
comunidades locais e regionais, como também das instituições públicas e do poder político,
para que os objetivos intrínsecos sejam alcançados:
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
95
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
Em 1982 é iniciado o Projeto São Cristóvão Cultural, um ecomuseu de bairro
denominado Ecomuseu Integrado de São Cristóvão, que foi implantado pela ONG
Mouseion, em parceria com o Museu do Primeiro Reinado e apoio do Comitê
Brasileiro do Icom. O projeto reuniu diversas instituições do bairro São Cristóvão
(Rio de Janeiro/RJ), um dos mais antigos da cidade: Museus, o Observatório
Astronômico, o Instituto de Investigação científica, o Jardim Zoológico, o mercado,
grandes feiras, escolas de samba, igrejas, associações de moradores, indústrias,
comércios etc. O grupo de pesquisa e animação do projeto foi composto por um
representante de cada instituição e realizou calendários de atividades culturais nos
diversos espaços, nas quais a comunidade inteira foi convidada a participar e
gradativamente transformaram-se em articuladores do projeto (SANTOS, 2017, p.
173).
Dessa maneira, fazendo uso da pesquisa realizada por Santos (2017), identifica-se as
diversas experiências brasileiras denominadas como Ecomuseus, por ano de suas criações,
cidade e estado em que se desenvolveram, bem como áreas de abrangência (comunidade[s] de
atuação):
Ano de
criação
Cidade
UF
Comunidade de
atuação
1971
Florianópolis
SC
Ribeirão da Ilha
(distrito)
1982
Rio de Janeiro
RJ
São Cristóvão
(bairro)
1987
Foz do Iguaçu
PR
29 municípios
1988
Roseira Velha
SP
População de Roseira
Velha e turistas
1995
Rio Grande
RS
Rio Grande
1995
Rio de Janeiro
RJ
Santa Cruz
1997
Chapecó
SC
Chapecó
1998
Bom JArdim
RJ
Sítio Córrego de
Santo Antônio
(bairro)
1999
Rio Grande
RS
Comunidades e
visitantes do Estuário
Lagoa dos Patos
2001
Fortaleza
CE
Sabiaguaba (bairro)
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
96
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
2002
Manaus
AM
Manaus
2003
Porto Belo
SC
Comunidades
Litorâneas
2004 (?)
Matozinhos
MG
Região do Carste
2005
Maceió
AL
Comunidade do
Graciliano e
adjacências
2005
Ouro Preto
MG
Comunidades dos
Morros da Queimada
(sítio arqueológico),
de Santana, de São
João, de São
Sebastião e da
Piedade
2006
São Bento do
Sapucaí
SP
São Bento do Sapucaí
2006
Sobradinho
DF
Sobradinho
2006
Maranguape
CE
Comunidade rural de
Cachoeira (distrito)
2006
São Luís
MA
Coroadinho (bairro)
2007
Belém
PA
13 comunidades
rurais ( a autora cita o
nome de cada
comunidade em sua
publicação)
2007
Rio de Janeiro
RJ
Complexo de
Manguinhos (bairro)
2007
Blumenau
SC
Região da Mina da
Prata
2007
Angra dos Reis
RJ
População de Ilha
Grande
2008
Divino
MG
Comunidade
Quilombola de São
Pedro de Cima
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
97
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
2008
Pelotas
RS
Colônia de
Pescadores Z3
2008
Osasco
SP
Jardim das Flores
(bairro)
2008
Bento
Gonçalves
RS
Bento Gonçalves
2009
Curuçá
PA
09 comunidades (a
autora as descreve em
sua publicação)
2009
Rio de Janeiro
RJ
Morro Santa Marta -
Botafogo (bairro)
2009
Rio de Janeiro
RJ
Maciço da Pedra
Branca
2010
Rio de janeiro
RJ
Sepetiba (bairro)
2012
Rio de Janeiro
RJ
Comunidades do
Morro do Andaraí
2013
Jaboticatubas
MG
Comunidades do
entorno da Fazenda
do Cipó (Serra do
Cipó)
2013 (?)
Cachoeiras de
Macacu
RJ
Comunidade do
bairro do Valério e
visitantes
2014
Rio de Janeiro
RJ
Senador Camará
(bairro)
2014
Sobradinho,
Planaltina,
Paranoá e
Itapoã
DF
População, escolas,
instituições públicas e
privadas e
associações de
moradores das quatro
cidades
2014
Rio de Janeiro
RJ
Sítio Paraíso Verde
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
98
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
2014
Abadiânia,
Águas Lindas,
Alexânia,
Corumbá de
Goiás,
Cocalzinho,
Pirenópolis,
Santo Antônio
do Descoberto
GO
Comunidade,
movimentos sociais,
projetos, instituições
da sociedade civil e
governamentais
2014 -
2015
São José dos
Campos
SP
Comunidade de
Campos de São José
(bairro)
2015
Pacoti
CE
Serra do Batiruté
2015
Mangaratiba
RJ
Mangaratiba
2015 (?)
Delfinópolis
MG
Grupos escolares de
Delfinópolis e
moradores no geral
2016
Lauro Muller
SC
População de Lauro
Muller e turistas
s/d
Pirassununga
SP
Pirassununga
s/d
Santa Vitória
do Palmar
RS
Santa Vitória do
Palmar
s/d
Três Coroas
RS
Vale do Paranhana
s/d
Itatiaia
RJ
Itatiaia
s/d
Bias Fortes
MG
Comunidade
Quilombola da
Colônia do Paiol
Quadro 01: Ecomuseus brasileiros por ano de criação. Fonte: Santos (2017).
Após a análise do quadro dos ecomuseus brasileiros, confirma-se a variedade de
composições possíveis como: uma comunidade inteira, conjuntos de comunidades, áreas
específicas unidas em torno de suas particularidades ou toda uma região, constituindo museus
vivos sob a lógica de que “o meio ambiente seria determinado por uma compenetração da
ecologia natural e da ecologia humana, que poderiam até mesmo se confundir” (BURLON,
2015, p. 280). Para muito além das coleções, a memória coletiva local é a sua principal
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
99
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
representação. Os objetos expostos no Ecomuseu apresentam as experiências do que foi vivido
e construído pelos moradores, as pessoas que o habitam, em especial. Assim, como expressou
Burlon (2015): antes de uma coleção, de um prédio, e de uma vontade de museu, um
território. A partir da etnografia do espaço delimitado se desenvolve um Ecomuseu.
A etnografia, também conhecida como observação participante, pesquisa interpretativa,
pesquisa hermenêutica, dentre outros, desenvolveu-se no final do século XIX e início do século
XX (Mattos, 2011), como método a partir do qual se pesquisa um povo em seu meio. A
etnografia é principalmente utilizada pela antropologia e preocupa--se com uma análise
holística da cultura, como um todo e para todos. E, também observando os significantes, em
torno dos quais as pessoas tecem significados e seus contextos, como eventos, fatos, ações,
percepções e interpretações, construindo, assim, as particularidades culturais que, mesmo no
âmbito regional, não deixam de serem singulares (MATTOS, 2011).
Nesse sentido, o foco do Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras/MG é o
próprio povo caatingueiro, seu ambiente natural - a Caatinga - sua história, memórias, narrativas
e aspirações presentes e futuras para si e para o meio em que vivem. Assim, o quadro a seguir,
mostra as vivências cotidianas regionais, características da região:
Quadro 02 - Moradora de Brejo dos Mártires produzindo alimento típico da região, o beiju; trecho da Serra do
Espinhaço em Monte Azul e imagem do fruto da árvore popularmente conhecida como Chichá, que ocorre em
Brejo dos Mártires. Fonte: Arquivo pessoal.
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
100
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
O campo de saber antropoetnográfico contribui, nesse contexto, no sentido de ‘ler’ as
relações pessoas/natureza, identificando significantes, significados, símbolos, formas de
expressão e produtos dessas relações que constituem a identidade, memória e pertencimento,
assim compondo questões fundamentais para que as próprias comunidades sejam as
interlocutoras do que é significativo para si e possam, assim, construir o próprio acervo, o
inventário desse patrimônio histórico-cultural.
Assim, o Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras/MG busca preservar o
patrimônio histórico-cultural local e regional, compreendido em um escopo ampliado
apresentado no conceito de Ecomuseu. Portanto, é a comunidade que aponta, registra, cataloga,
expõe e divulga a abrangência do próprio patrimônio. Logo, para não perder o elo com a
história do Norte de Minas e dos povos caatingueiros, Gameleiras contou com o entusiasmo do
professor Zaurindo Baleeiro para resgatar e perpetuar as vivências dos saberes tradicionais e
também do passado para que esse legado não se perca no mundo atual. A cultura presente no
carro de boi, o pilão, o arado, o engenho, as casas de roda, o tear manual, dentre outros
instrumentos e ferramentas de trabalho, foram de suma importância para a vida cotidiana das
pessoas e o desenvolvimento da economia, sendo representados na memória dos moradores, a
partir de suas narrativas. também as festas religiosas, os casamentos, as brincadeiras
populares, as histórias contadas durante as noites nas casas dos vizinhos, os benzimentos e os
remédios caseiros presentes na sabedoria popular. Tudo isso significava alegria e diversão dos
povos tradicionais da região, mesmo diante de trabalhos pesados e penosos, como na moagem
da cana durante a fabricação de rapadura, nas casas de roda fabricando a farinha de mandioca,
o polvilho (goma) e o beiju, e ainda, nos mutirões capinando o arroz ou realizando outras
atividades agrícolas e pecuárias. Entre elas, a tradição de criar o gado solto, entre os arbustos
de espinho, com os vaqueiros e sertanejos campeando com suas vestimentas de couro (gibão)
no sertão, presente na caatinga. Mesmo diante de todas as dificuldades, os povos caatingueiros
ainda tinham motivos para expressar alegrias, jogando versos e emboladas, gênero poético e
musical realizado por uma pessoa ou em dupla em tom de desafios, muito comum no Nordeste
(Baleeiro, 2006:2023).
Nesse contexto, os especialistas se apresentam como norteadores do conhecimento
teórico para que a prática cotidiana de outrora e de agora seja mostrada (Rezende, 2023). Para
finalizar, a presença da pesquisa etnográfica e interdisciplinar na região tende a contribuir para
a ampliação do conhecimento e de novos saberes científicos no campo antropológico,
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
101
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
sociológico, político e historiográfico, bem como no empoderamento dos povos e comunidades
tradicionais do bioma Caatinga, na defesa de seus direitos na região serrana.
Considerações finais
Apresenta-se neste texto um pouco da experiência de encontro com as vivências e
aspirações dos povos caatingueiros, residentes nas encostas da Serra Geral, “nos sopés da Serra
do Espinhaço” (expressão de CUNHA, 2010, P.119). Durante o curso, “Patrimônio Cultural
de Gameleiras - Rotas Viáveis”, foi compartilhado o sentimento de que a trajetória de trabalho
e estudos brinda a todos, aliando teorias e práticas possíveis, com encontros e experiências
únicas, tais como as vivenciadas junto aos povos caatingueiros, nesse ideal de construção do
Ecomuseu em Gameleiras.
No momento, o projeto do Ecomuseu se encontra em fase de estabelecimento de
parcerias, conexões e captação de recursos para construção do espaço físico, que representará
a sua amplitude filosófica, bem como em fase de comunicação do ideal aos municípios vizinhos,
empreendida por Gameleiras, convidando-os ao envolvimento nessa proposta de fortalecimento
da identidade cultural regional e ao empoderamento frente às investidas de empreendimentos
cuja lógica filosófica difere do ideal apresentado pelas comunidades tradicionais.
A cultura de um povo é o seu bem mais precioso e deve ser cultivada e preservada.
Dentro dessa perspectiva, necessidade do apoio dos diversos setores da sociedade, para
mobilizar e captar recursos em prol da construção do ECOMUSEU DOS POVOS
CAATINGUEIROS EM GAMELEIRAS-MG. O terreno para a construção do espaço físico foi
adquirido pela Prefeitura Municipal de Gameleiras, encontrando-se na fase de regularização
documental e possuindo o projeto arquitetônico para a devida apresentação aos órgãos
governamentais para o seu apoio. O espaço retratará a cultura e a história local, apontando as
memórias, as tradições passadas de geração em geração pelos povos caatingueiros da região
serrana e o desenvolvimento das atividades turísticas em consonância com as Prefeituras
Municipais, Secretarias de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, o Parque Estadual Caminho dos
Gerais e o Quilombo do Gorutuba. O espaço construído permitirá que a memória cultural,
como também os saberes tradicionais do povo da Caatinga, não se percam de maneira lenta e
gradativa, pois encontram-se em processo de extinção. Vale ressaltar que o Ecomuseu dos
Povos Caatingueiros em Gameleiras/MG será um espaço para a divulgação, comercialização e
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
102
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
cursos de artesanato, visando o crescimento sustentável com o turismo promovido,
promovendo, assim, o desenvolvimento econômico local e regional, para que os valores dos
povos tradicionais da caatinga norte-mineira não se extingam.
A execução desse projeto é de fundamental importância na preservação da memória
cultural do povo da Caatinga, pois permite que as novas gerações possam conhecer, valorizar e
respeitar a diversidade dentro da mineiridade do Norte de Minas. Além de ser um ponto
turístico, servirá também como fonte de pesquisa para os habitantes, visitantes e pesquisadores
que buscam a interlocução científica com o bioma Caatinga.
Dentro do Ecomuseu dos Povos Caatingueiros em Gameleiras haverá um Centro de
Atividades Culturais em homenagem ao professor Zaurindo Baleeiro, grande entusiasta e
incentivador da história e cultura local.
Referências
BALEEIRO, Zaurindo Fernandes. Gameleiras: dos primórdios à emancipação. Montes Claros:
Unimontes, 2006.
BRASIL. IBGE. Mapa de Biomas e Sistema Costeiro-Marinho do Brasil, 2019. Disponível
em: <https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-
mapas/informacoesambientais/15&lang=pt842-biomas.html?edicao=25799>. Acesso em: jun.
2023
BURLON, Bruno. A invenção do Ecomuseu: o caso do Écomusée du Creusot Monteceau-les-
mines e a prática da museologia experimental. Mana 21 (2). Ago. 2015. Disponível em:<
https://www.scielo.br/j/mana/a/6h57ScQ68skw5dZVV6fLBxQ/?format=pdf >. Acesso em jun. 2023.
CARRARA, Â. A. Minas e currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais 1674
1807. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2007.
COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: a configuração do englobamento,
da exclusão, e do entre-lugar em Minas Gerais. 334p. Editora Unimontes. Montes
Claros/MG, 2017.
CUNHA, Maria das Graças Campolina. Territorialidades sertanejas: permanências e
transformações no espaço rural norte mineiro. In: COSTA, João Batista de Almeida;
OLIVEIRA, Cláudia Luz de (Org.). Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos
sertões roseanos, 2010.
FRANÇA, Bianca Luiza Freire de Castro. FGV, 2022. Por que devemos falar sobre a
valorização de Comunidades e Povos Tradicionais no Brasil?, FGV, 2022. Disponível
em:<https://portal.fgv.br/artigos/devemos-falar-sobre-valorizacao-comunidades-e-povos-
tradicionais-brasil>. Acesso em jun. 2023.
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
103
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
IDE SISEMA. Infraestrutura de dados espaciais: modelo de gestão corporativa e
compartilhada dos dados, padrões e tecnologias geoespaciais de seus órgãos componentes,
implementado por Comitê Gestor, composto por setores técnicos especializados da Secretaria
de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Fundação Estadual do
Meio Ambiente (Feam), Instituto Estadual de Florestas (IEF) e Instituto Mineiro de Gestão das
Águas (Igam). IDE SISEMA, 2018.Disponível em:
<https://idesisema.meioambiente.mg.gov.br/webgis>. Acesso em jun. 2023.
LOPES, Camilo Antônio Silva. Vaqueiros, seleiros, carreiros e trançadores: uma
etnografia com coisas, pessoas e signos. 2016. 252f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) -
Curso de Ciências Sociais. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2016.
MATTOS, Cármen Lúcia Guimarães de. A abordagem etnográfica na investigação científica.
In MATTOS, Cármen Lúcia Guimarães; CASTRO, PA. (Org). Etnografia e educação:
conceitos e usos [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2011. pp. 49-83. ISBN 978-85-7879-
190-2. SciELO Books. Disponível em:<https://books.scielo.org/id/8fcfr/pdf/mattos-
9788578791902-03.pdf>. Acesso em abr. de 2023
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São
Paulo:PUC-SP. N° 10, p. 12. 1993.
REZENDE, Ana Maria Nogueira. Patrimônio Cultural - Rotas Viáveis- Gameleiras/ MG
Palestra e Curso. Gameleiras/MG, 2023.
RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro:
IPHAN/COPEDOC, 2007.
RIVIÈRE, Georges Henri. L’Écomusée, un modèle évolutif. In: WASSERMAN, F. (Ed.)
Vagues: une anthologie de la nouvelle muséologie. v. 1 M.N.E.S., 1992, p. 440-445.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Nova Aguilar, 1994.
SANTOS, Suzy da Silva. Ecomuseus e Museus Comunitários no Brasil: Estudo Exploratório
de Possibilidades Museológicas. 2017. 768f. Dissertação (Mestrado em Museologia) -
Programa de Pós Graduação Interunidades em Museologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo.
SEBRAE. Cartilha do Tour da Experincia elaborado pelo Instituto Marca Brasil por
solicitação do Ministério do Turismo e SEBRAE 2010.
______. Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas -SEBRAE. O que é
economia criativa: Conceito. Publicação: 2015. Disponível em:
<http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/O-que-%C3%A9-Economia-Criativa>.
Acesso em: 04 ago. 2023.
SENA, Liana Mara Mendes de , SILVA, Sandino Moreira. Conheça e Conserve a Caatinga -
Volume 01 - O Bioma Caatinga. 2011. Disponível em:
<https://www.acaatinga.org.br/wpcontent/uploads/Conhe%C3%A7a_e_Conserve_a_Caatinga
_-_Volume_1__O_Bioma_Caatinga.pdf > Acesso em abr. de 2023.
Angélica de Santana Rocha, Ana Maria Nogueira Rezende
Dos povos que encontrei nos “sopés da Serra do Espinhaço”
;
104
Revista Alteridade, Montes Claros MG, v. 5, n. 2, p. 86-104, jul./dez.-2023.
THE, Ana Paula Glinfskoi. NAS ÁGUAS DO RIO Saudades da vazante geral: um estudo
etnoecológico sobre as mudanças socioambientais na pesca artesanal no Alto-Médio São
Francisco, Minas Gerais. In: COSTA, João Batista de Almeida; OLIVEIRA, Cláudia Luz de
(Org.). Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos, 2010.
ZAVATIN, Danilo Alvarenga; ALMEIDA, Roberto Baptista Pereira; RAMOS, Renato;
LOMBARDI, Julio Antonio. Chionanthus Monteazulensis (Oleaceae), uma espécie nova do
campo rupestre da Serra do Espinhaço, Brasil. Revista Phytotaxa, Departamento de Botânica,
Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2023.
Artigo submetido em: 26 de setembro de 2023.
Artigo aceito em: 27 de outubro de 2023.
Artigo publicado em 10 de novembro de 2023.
ResearchGate has not been able to resolve any citations for this publication.
Article
Full-text available
A descolonização dos museus, à qual se referiram alguns museólogos que pretendiam fazer uma museologia de vanguarda nos anos 1960 e 1970, diz respeito a um conjunto de conceitos que tinham por objetivo revolucionar a prática museológica do final do século XX. A ideia do "ecomuseu", como o protótipo para uma prática museológica experimental, é "inventada" no bojo dessa transformação. A partir da análise histórica do Écomusée du Creusot Montceau-les-Mines, criado na França, na região da Borgonha, em 1974, este artigo investiga o processo de mudança da "gramática axiológica" local, engendrado pela gramática museal, bem como traça uma reflexão mais ampla sobre a própria mudança de valores atravessada pela museologia internacional a partir do conceito do "ecomuseu" e do movimento da nova museologia.
Gameleiras: dos primórdios à emancipação
  • Zaurindo Baleeiro
  • Fernandes
BALEEIRO, Zaurindo Fernandes. Gameleiras: dos primórdios à emancipação. Montes Claros: Unimontes, 2006.
Mapa de Biomas e Sistema Costeiro-Marinho do Brasil
  • Brasil
  • Ibge
BRASIL. IBGE. Mapa de Biomas e Sistema Costeiro-Marinho do Brasil, 2019. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-
Minas e currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais 1674 -1807
  • Â A Carrara
CARRARA, Â. A. Minas e currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais 1674 -1807. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2007.
Mineiros e Baianeiros: a configuração do englobamento, da exclusão, e do entre-lugar em Minas Gerais
  • João Costa
  • Batista De Almeida
COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: a configuração do englobamento, da exclusão, e do entre-lugar em Minas Gerais. 334p. Editora Unimontes. Montes Claros/MG, 2017.
Territorialidades sertanejas: permanências e transformações no espaço rural norte mineiro
  • Maria Cunha
  • Das Graças
  • Campolina
CUNHA, Maria das Graças Campolina. Territorialidades sertanejas: permanências e transformações no espaço rural norte mineiro. In: COSTA, João Batista de Almeida;
Por que devemos falar sobre a valorização de Comunidades e Povos Tradicionais no Brasil?
  • Bianca França
  • Luiza Freire De Castro
  • Fgv
FRANÇA, Bianca Luiza Freire de Castro. FGV, 2022. Por que devemos falar sobre a valorização de Comunidades e Povos Tradicionais no Brasil?, FGV, 2022. Disponível em:<https://portal.fgv.br/artigos/devemos-falar-sobre-valorizacao-comunidades-e-povostradicionais-brasil>. Acesso em jun. 2023.
Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), Instituto Estadual de Florestas (IEF) e Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam)
  • Ide Sisema
IDE SISEMA. Infraestrutura de dados espaciais: modelo de gestão corporativa e compartilhada dos dados, padrões e tecnologias geoespaciais de seus órgãos componentes, implementado por Comitê Gestor, composto por setores técnicos especializados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), Instituto Estadual de Florestas (IEF) e Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). IDE SISEMA, 2018.Disponível em: <https://idesisema.meioambiente.mg.gov.br/webgis>. Acesso em jun. 2023.