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CAIRUS, PRADO & JARDIM | Um Ciclope francês...ALEA | Rio de Janeiro | vol. 25/3 | p.181-198 | set.-dez. 2023
https://doi.org/10.1590/1517-106X/202325311
ARTIGO
UM CICLOPE FRANCÊS NOS TRÓPICOS
A FRENCH CYCLOPS IN THE TROPICS
Henrique F. Cairus1
ORCID 0000-0003-1687-7205
João Batista Toledo Prado2
ORCID 0000-0003-3750-0976
Fernanda Jardim1
ORCID 0000-0002-8230-9591
1Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Araraquara, SP, Brasil
Resumo
O estudo parte de duas obras análogas – um livro e um folheto – produzidas no
século XVI e que retratam Nicolas Durand de Villegagnon como o Ciclope Polifemo,
gura estabelecida por textos clássicos como a Odisseia, de Homero, e o Ciclope,
de Eurípides. Através dessa inusitada comparação entre um monstro mitológico e
o Cavaleiro de Malta, tanto o poema quanto a gravura presentes no livro e folheto
representam Villegagnon e o aviltam por meio de estratégias discursivas. Tal projeto
invectivo tem fundamentos em querelas religiosas, políticas e econômicas no contexto
do empreendimento conhecido como “França Antártica” na Baía de Guanabara. O
francês Durand é transformado em bárbaro e incivilizado, tornando-se tão ameaçador
quanto as tribos canibais brasileiras.
Palavras-chave: França Antártica; huguenotes e católicos no Brasil; Nicolas Durand
de Villegagnon; Ciclope; monstricação do outro.
Abstract
e study starts from two analogous
works, a book and a pamphlet, produced
in the 16
th
century, which portray Nicolas
Durand de Villegagnon as the Cyclops
Polyphemus, a figure established by
classical texts such as the Odyssey by
Homer and Cyclops by Euripides.
Through this unusual comparison
between a mythological monster and
Résumé
L’étude part de deux ouvrages analogues,
un livre et un pamphlet, publiés au
XVIesiècle. Ils présentent Nicolas
Durand de Villegagnon comme le
Cyclope Polyphème, gure mythologique
établie par des textes classiques tels que
l’Odyssée et le Cyclope d’Euripide. Avec
cette comparaison insolite entre un
monstre mythologique et le chevalier
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Em 1560, circulava por Paris o desenho que representava Nicolas
Durand de Villegagnon, gurado como o ciclope Polifemo da Odisseia. O
desenho integrava um folheto e um livro redigidos por Pierre Richer. Numa
e noutra publicações, os desenhos, que, conquanto distintos, retratavam a
mesma gura, eram adornados por dizeres dispostos em diagrama, em que
um lado se opunha ao outro, e também de um poema que descreve e comenta
a gura e os dizeres que a ornam. Em ambas as publicações, os dizeres e o
poema são os mesmos.
Muitas publicações da aurora da Era da Prensa, assim como muitas do
século seguinte, eram introduzidas por um poema, frequentemente elegíaco,
e, mais frequentemente ainda, adulatório. O que se toma aqui em estudo,
contudo, traz a peculiaridade de não ter caráter laudatório, aliás, muito ao
contrário: trata-se de um longo vitupério.
Pode-se tomar tanto a gravura como a ilustração do poema quanto o
poema como uma descrição da imagem, mas, de uma forma ou outra, trata-se
de um poema de caráter ecfrástico que se serve de um vasto acervo erudito
para fazer um humor que poderíamos identicar com a mais ferina sátira,
dirigido a uma gama de leitores sucientemente erudita para apreender todas
as inúmeras referências nele contidas.
A erudição do poema vai desde as referências aos textos clássicos, que,
de resto, são citados e manipulados com grande destreza, até formas verbais
menos comuns e mais arcaicas. A instrumentalização da erudição envolve o
poema numa atmosfera helenística.
O contexto que atravessa a gravura e o poema foi o encontro entre
Villegagnon e Richer, no período de sua estada na colônia francesa na Baía
the Knight of Malta, both the poem
and the etching represent Villegagnon
and vilify him through certain discursive
strategies. Such an invective project is
grounded in religious, political, and
economic quarrels which have taken place
in the context of the enterprise known as
‘France Antarctique’ in Guanabara Bay.
e Frenchman Durand is transformed
into a barbarian and uncivilized gure,
becoming as threatening as the Brazilian
cannibal tribes.
Keywords: France Antarctique;
Huguenots and Catholics in Brazil;
Nicolas Durand de Villegagnon; Cyclops;
monstrousness of the other.
de Malte, le poème et le pamphlet
vilipendent Villegagnon avec un certain
nombre de stratégies discursives. Un tel
projet d’invective a ses fondements sur
des querelles religieuses, politiques et
économiques qui ont lieu dans le contexte
de l’entreprise connue sous le nom de
«France Antarctique » dans la Baie de
Guanabara. Le Français Durand est
représenté comme un barbare incivilisé,
aussi menaçant que les tribus cannibales
brésiliennes.
Mots-clés: France Antarctique; huguenots
et catholiques au Brésil; Nicolas Durand
de Villegagnon; Cyclope; monstrication
de l’autre.
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de Guanabara. Nessa ocasião, Villegagnon cou conhecido como vice-rei
do Brasil, apesar de esse título não ter realmente existido (MÁRIZ, 2008).
É bem conhecido que, em 1557, durante o empreendimento da
França Antártica, um pequeno grupo de calvinistas franceses veio ao Brasil,
esperando estabelecer uma colônia protestante permanente que os protegesse
da intolerância que sofriam na Europa (MÁRIZ, 2008). No entanto, o que
no início se apresentou como uma relação amistosa entre os huguenotes e
Villegagnon, em menos de um mês era abalado pelas divergências religiosas
sobre a Eucaristia (MÁRIZ, 2008), resultando em uma perseguição a quem
não seguia, como Villegagnon, o Catolicismo.
Registraram historicamente a ocupação francesa às margens da Baía
de Guanabara Jean de Léry, autor de Viagens à terra do Brasil, de 1578, e
André evet, com seu livro Singularidades da França Antártica, de 1557.
De fato, os dois cronistas franceses vieram ao Brasil naquele século, embora
não se tenham encontrado. O primeiro comenta brevemente o caráter de
Villegagnon, anado com a visão crítica de Richer, ambos protestantes e,
portanto, concordes com a mesma perspectiva acerca da transubstanciação
e da consubstanciação. evet, um frei católico, aproxima-se, por sua vez,
da perspectiva do cavaleiro de Malta pela religião, e aprova a forma com que
exerce sua autoridade.
Embora autores viajantes como evet e de Léry “monstricassem” com
mais frequência os nativos americanos, eles também davam a alguns europeus
representações teratológicas alegorizadas. Tal monstricação do europeu pelo
europeu fazia quase sempre parte de uma estratégia discursiva de vilanização
do inimigo, e, mais raramente, exaltava a potência ameaçadora do próprio
europeu que, tal qual um Héracles, deve ser um monstro na lida com outros
monstros. Nem sempre os monstros são épicos ou trágicos; por vezes, são
cômicos, como no drama satírico O Ciclope, de Eurípides, em que o lho de
Poseidon é alvo de troça por sua falha moral e ética, caracterizando-o como
selvagem. Guilherme de Farias Rodrigues, em sua dissertação de mestrado
(RODRIGUES, 2016), apresenta uma vasta argumentação de como o caráter
cômico do personagem está associado à selvageria e à lascívia. Polifemo não é
um ser da pólis, explica, mas um ser distante da cultura, de hábitos distantes
não só da civilização, mas da própria cultura (RODRIGUES, 2016). Tanto
a peça de Eurípides e a Odisseia, quanto a gravura de Richer, apresentam
um Ciclope incivilizado, incapaz de viver em um governo organizado, que
maldiz as leis, antropófago, mas conhecedor da prática de cocção da carne,
e com diculdade em lidar com bebidas alcoólicas. A falta de hospitalidade
das duas guras, Polifemo e Villegagnon, seria mais um ponto em comum,
pois Jean de Léry, em suas Viagens à terra do Brasil, registra que o cavaleiro
da Ordem de Malta recebe belicosamente os franceses protestantes recém-
chegados à América.
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Villegagnon é retratado como o ciclope Polifemo em uma gravura feita
e descrita por Pierre Richer em Libri duo apologetici ad refutandas naenias
(“Dois livros apologéticos para refutar exéquias”). Sob esse título um tanto
pretensioso, circulava um livro que era distribuído com o objetivo de denunciar
a postura de Villegagnon, de apresentá-lo e representá-lo como um monstro
dos mares, que, conquanto lho de Netuno (ou Poseidon), era a síntese da
antítese da cultura: desconhecia o fogo, o vinho, a linguagem e tudo o que o
teria deslocado do domínio quase estrito da natureza. Os hábitos selvagens de
Polifemo descritos na Odisseia são análogos ao comportamento que se atribui
a Villegagnon, em que ambas as guras seriam exageradamente violentas,
ignorantes e com o apetite por carne humana (BERBARA, 2020), gerando
essa gura limítrofe entre monstro e homem.
A comparação que Richer faz entre Villegagnon e Polifemo intensica-se
em complexidade se considerado que os Ciclopes apresentam, no contexto da
Idade Média e da Renascença, uma relação alegórica com a vaidade e com o
orgulho, como expõe o capítulo “e Modern Cyclops” do companion Cyclops,
de autoria de Mercedes Aguirre e Richard Buxton (2020). Através de uma
discussão da simbologia de possuir apenas um olho, os autores apontam que:
e cyclops is said to have one eye in its forehead because this wildness of
youth takes neither a full nor a rational view of things, and the whole period
of youth is roused to a pride like that of the Cyclops. So with the one eye
in the head that sees and comprehends nothing but vanity (AGUIRRE;
BUXTON, 2020, p.425).1
Na esteira dessa assertiva dos autores do companion (que, de resto, não
faz qualquer referência às obras de Richer), pode-se considerar que o poema
e as gravuras2 coincidem com a perspectiva que Richer tinha do cavaleiro
de Malta, esse homem que estaria cego por uma vaidade e um orgulho tão
intensos que, qual uma áte, o tornaram próximo de uma selvageria plena.
O sobrenatural que rodeia a gura de Nicolas Durand de Villegagnon
não se limita à alegoria do Polifemo, pois o almirante acumulou ainda outras
inimizades na colônia francesa e que também tentaram difamá-lo. Após ter
proibido que franceses e indígenas mantivessem contato sem uma relação de
matrimônio, aplicando punições severas a quem o desobedecesse, provocou
uma forte indignação entre aqueles que antes o seguiam (LISBOA, 1834).
1 “Diz-se que o Ciclope possui um olho em sua testa porque essa selvageria de juventude não comporta
uma visão nem completa nem racional das coisas e todo o período da juventude é mobilizado por um
orgulho tal qual o do Ciclope. Então, seu único olho na cabeça não vê nem compreende nada além da
vaidade.” (tradução nossa).
2 Vale lembrar aqui que, conquanto nas duas publicações o poema seja exatamente o mesmo, as gravuras,
embora análogas, não o são.
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Em resposta a sua administração, queriam assassiná-lo e, fracassando na
tentativa, difundiram a notícia de que ele possuía poderes prodigiosos que
teriam feito adoecer a aldeia com que fazia trocas comerciais (LISBOA, 1834).
Há, portanto, dois processos paralelos e complementares de monstricação:
um alegórico, dependente de estratégias discursivas urdidoras de veracidade,
e outro não alegórico, dependente do simbólico e que, à margem do real, é
sequioso da produção de um verídico. Ambos operam com o imaginário e
o campo da representação, embora ocorram em diferentes níveis do real, do
verídico e do verossímil.
Se essa doença desconhecida que acomete os indígenas é retratada qual
a peste da Ilíada ou de Tebas, em André evet, aliado de Villegagnon, ela
ganha outras feições. Em seu livro Cosmograa universal (2009), o frei descreve
que os nativos acreditavam que a doença teria sido um castigo de Tupã, que é
lido como Jeová no processo de catequização, por estarem andando em más
companhias, os franceses católicos. A crença teria surgido através de boatos
feitos por franceses calvinistas em uma disputa de poder que gradualmente
se intensicava. evet consegue reverter a complexa situação com a ajuda
de um intérprete, explicando-lhes que ele era, na verdade, amigo de Tupã.
Segundo o frei, os indígenas passam a acreditar então que a doença ter-lhes-
ia atingido por terem se enganado quanto ao caráter dos franceses católicos.
Sobre a capacidade de adoecer intencionalmente um povo, Yves
D’Évreux, viajante francês autor de Continuação da história das coisas mais
memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614, explica sobre a
crença dos ameríndios:
Estes pobres selvagens são tão enlouquecidos quando estão com seus feiticeiros,
especialmente os grandes, que crêem rmemente que eles podem enviar
doenças, fome e tirá-las quando lhes aprouver, e embora saibam dos próprios
feiticeiros que todos eles são embusteiros, não julgam poder curar-se sem que
passem pelas mãos de outro (D’ÉVREUX, 2007, p.283).
Além disso, os hábitos antropofágicos de Polifemo, aqui desdobrados
em alegoria de Villegagnon, são comparados por Pierre Richer a outras guras
igualmente monstruosas, apresentadas no livro de viagem de Jean de Léry,
os ouetacas3, uma tribo brasileira que espanta o cronista europeu por comer
carne humana crua, um traço extremo de barbárie. A comparação entre os
3 “Desse lugar avistamos uma terra plana na extensão de léguas e que é ocupada pelos Uetacá, índios tão
ferozes que não podem viver em paz com outros e se acham sempre em guerra aberta não só contra os
vizinhos mas ainda contra todos os estrangeiros. [...] Em suma esses diabólicos Uetacá, invencíveis nessa
região, comedores de carne humana, como cães e lobos, e donos de uma linguagem que seus vizinhos não
entendem, devem ser tidos entre os mais cruéis e terríveis que se encontram em toda a Índia Ocidental.”
(LÉRY, 2007, p.80).
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ouetacas e Villegagnon é justicada pela associação que se fazia da Eucaristia
católica com a teofagia, porque os católicos não comungam de um pão e de
um vinho que trazem à memória um Cristo vivo, mas creem que o Corpo
e o Sangue de Cristo têm presença real naquelas espécies que, pela epíclese
sacerdotal, transubstancializam-se verdadeiramente em essência. Assim, na
perspectiva protestante, a fé católica preconiza uma autêntica teofagia, e,
sendo Cristo teantropo (Deus e homem a um só tempo), à teofagia soma-se
a antropofagia (LESTRINGANT, 1997). Lestringant (1997) expõe que:
[...] o colérico Pierre Richer, chefe da missão genebrina e pastor da igreja
reformada, escandaliza-se com tal materialismo e compara o adversário aos
ouetacas, esses antropófagos da pior espécie que ignoram o cozimento dos
alimentos. Léry conclui que, de fato, Villegagnon e seu inane preposto Jean
Cointra, carmelita descalço, queriam ‘não apenas grosseiramente, muito mais
do que espiritualmente, comer a carne de Jesus Cristo, mas, pior ainda, à
maneira dos selvagens ditos Ouë-tacas, eles a queriam mastigar e engolir toda
crua’ (LESTRINGANT, 1997, p.108-109).
Sobre a comparação entre Villegagnon e indígenas convergirem através
da monstruosidade e do canibalismo, Maya Suemi Lemos (2020) explica:
“O espelho canibal, como vemos, é deformado: o europeu no qual se reete
a imagem do ameríndio antropófago é mais monstruoso do que o monstro,
seus traços abomináveis se distorcem ainda mais na anamorfose especular
provida pela experiência com a alteridade” (LEMOS, 2020, p.212). Nesse
sentido, o canibal europeu é ainda mais bestial, pois se afasta da civilidade
que um dia experimentou.
Ainda que um dos principais pontos de desavença entre os franceses
protestantes e católicos fosse a religião, outros fatores inuenciaram para
que a querela se desenvolvesse progressivamente, como os diferentes projetos
políticos para a colônia. Mendonça (2008) indica que os franceses residentes
na França Antártica se dividiram em três grupos com seus respectivos líderes
e ocupando áreas distintas na região: “o partido de Villegagnon”, que seguia o
projeto de Henriville; “o partido dos pastores calvinistas”, que se caracterizava
também pela relação amistosa e distanciada que mantinham com os nativos; e
“o partido de Jean Conta”, que se juntou aos indígenas e adotou seus costumes.
Ademais, o projeto urbano francês rivalizava com outro, o português, liderado
por Mem de Sá, quem mais tarde os expulsaria (VAINFAS, 2020), dada a
relevância estratégica e comercial da região.
São, pois, diversas as motivações que parecem ter tido as invectivas
de Richer contra Villegagnon. Ainda que fosse sucientemente aviltante a
representação do personagem como Polifemo, Richer ainda apresenta a imagem
acompanhada de um diagrama de ideias e conceitos dispostos de forma a
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Figura 1 – Polifemo de Pierre Richer. In: De venerandissimo ecclesiae sacricio...
adversus Calviniani evangeli, i1, 1562.
apontar a relação antitética entre uma civilidade, confundida com a própria
cultura, e uma barbárie, confundida com a selvageria, qual faziam a retórica
e a poética da Antiguidade Ocidental. Aqui, apresentamos, primeiramente,
a imagem que consta do folheto de Richer (Figura 1) e, em seguida, a que
gura no livro (Figura 2). Note-se que, entre outras várias similitudes, tem sido
usado o mesmo clichê para certos elementos de ornamento da gura central.
Outra representação de Villegagnon como Polifemo, agora de um
paneto de 1561, mas com exatamente os mesmos dizeres, ainda que em
outra disposição gráca:
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Os dizeres das imagens podem ser esquematizados no Quadro 1.
As duas ilustrações que apresentam Villegagnon como Polifemo são análogas
e foi breve o lapso temporal entre suas publicações, que distam entre si em
apenas um ano. A edição de 1561 consiste num livro de 236 páginas, ao passo
que a de 1562 consistia num folheto de apenas 47 páginas, ambos em latim.
Berbara (2020) comenta que Richer segue, nas duas gravuras, “a iconograa
tradicional do Ciclope: compleição robusta, parcial nudez, único olho no meio
da testa. [...] em ambas um Villegagnon/Polifemo em clássico contraposto,
Figura 2 – Polifemo de Pierre Richer. In: Petri Richerii Libri duo apologetici ad
refutandas nænias, & coarguendos blasphemos errores, detegendáque mendacia
Nicolai Durandi qui se Villagagnonem cognominat, 1561.
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apoiado em uma enorme clava e com uma auta pendurada no pescoço, é
gurado um cenário campestre” (BERBARA, 2020, p.229), consonante
com as vestes pastoris. Nas duas representações de Villegagnon, o Ciclope é
posicionado de forma semelhante, ainda que com distintos tracejados: mos-
trando a gura de corpo inteiro, com um dos braços apoiados no corpo, o
outro segurando um longo cajado, em que parece se rmar, uma das pernas
estendida, apoiando o peso do corpo e a outra dobrada, em pose tradicional
de retrato. Yobenj Aucardo Chincangana-Bayona (2018) comenta que essa
postura era amplamente reproduzida e sustenta que o gestuário é um signi-
cante que reivindica como signicação, para usar os termos do pesquisador,
“não só com uma posição de importância, mas também com um estado de
ânimo da gura representada, seja europeu ou índio: altivo, desaante nobre
e orgulhoso” (CHICANGANA-BAYONA, 2018, p.189-190).
A gravura apresenta topoi imagéticos que podem ser reconhecidos,
por exemplo, em esculturas e vasos produzidos na Antiguidade grega e
romana. Assim, a disposição da roupa do Polifemo e a forma com que
a veste se ajusta ao seu corpo idealizado e musculoso, os detalhes para
registrar os contornos do corpo de forma a não sobrecarregar o desenho
com excessos, e a pose. O Ciclope de Richer tem uma postura que se
assemelha, por exemplo, à da estátua que recebeu o nome de Soberano
helenístico (Figura3). Tal imagem é evocada por Chicangana-Bayona (2018),
como um modelo de representação imagética que, sendo tópico, concede
celeridade na constituição e inteligibilidade na recepção.
Figura 3 – escultura. In: Do Apolo de Belvedere ao guerreiro tupinambá: etnograa e
convenções renascentistas. CHICANGANA-BAYONA, 2006. Museu das Termas de
Diocleciano.
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Quadro 1 – Textos das representações de Polifemo de Pierre Richer
POSIÇÃO
(Ed. 1562) TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUZIDO POSIÇÃO
(Ed. 1561) TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUZIDO
Parte superior da gravura
(fora da gura e escrito
na horizontal)
Polyphemus: Ipse Iouem
et caelum sperno, et
penetrabile fulmen1
Polifemo [diz]: desprezo
Júpiter e o céu, bem
como o penetrante raio.
Parte inferior da
gravura (fora da
gura e escrito
na horizontal)
Monstrum horrendum,
informe, ingens, cui
lumen ademptum,
Solamenque mali de collo
stula pendet2
Monstro horrendo, disforme, imenso,
que foi privado da luz, e a fístula, consolo
de seu mal, pende de seu pescoço.
Lado esquerdo
externo
(fora da gura e escrito
na vertical)
Ἄγριος οὔτε δίκας εὖ
εἰδὼς οὔτε θέμιστας3
Selvagem [que] não
conhece bem nem a
justiça dos homens nem
a divina (texto em grego)
Lado direito
externo
(fora da gura
e escrito na
vertical)
οὐ γὰρ Κύκλωπες Θεοῦ
ἀθανάτου ἀλέγουσιν4
os Ciclopes, de fato, não se importam
com um Deus imortal (texto em grego).
1 Referência à fala sacrílega de Polifemo nas Metamorfoses de Ovídio (XIII, 857): quique Iouem et caelum sperno et penetrabile fulmen [sou o que desprezo Júpiter e o ceú, e também
o raio penetrante].
2 Citação da Eneida, de Virgílio (III, 658 [Monstum ...ademptum] e 661 [solamenque mali]). Comentaristas como Gian Biaggio Conte consideram “de collo pendent” um hemistíquio
espúrio ou uma interpolação tardia. De fato, o solamen parece ser a segunda parte do aposto presente no verso 660: Lanigerae comitantur oves : ea sola voluptas [ovelhas lanígeras
o acompanham: elas são seu único deleite]; esse verso seria completado, em enjambement por solamenque mali [solaz de seu mal]. O autor ou editor que tomou essa passagem a
Virgílio desprezou o verso sobre as ovelhas e privilegiou a fístula pendurada ao pescoço, razão pela qual ela consta de ambas as ilustrações.
3 Citação dos Centos Homéricos [segundo o Manuscrito A], de Santa Eudócia de Heliópolis (401-460), v.1488, descrição de Polifemo.
4 οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν / οὐδὲ θεῶν μακάρων (Odisseia, IX, 275-6) [os Ciclopes, de fato, não se importam com Zeus, portador da égide, nem com nenhum
dos deuses bem-aventurados].
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POSIÇÃO
(Ed. 1562) TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUZIDO POSIÇÃO
(Ed. 1561) TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUZIDO
Lado esquerdo
externo
Nauarchus Navarco
Lado esquerdo
interno
Pirata Pirata
eologus Teólogo Sophista Sosta
Rex et sacerdos
Antarcticus Rei e sacerdote Antártico Iugerum 4 ἄθεος
Anarchicus de 4 jeiras5, ateu (em grego), anárquico
Franciae Antipolaris
Somniator
Visonário da França
Antipolar
Setentiae Antipaulinae
assertor Defensor das Sentenças Antipaulinas.
Lado
direito externo
Nicolaus Durandus
Villagagno. Illustris
Nicolau Durand
Villegaignon. Ilustre.
Lado
direito interno
Νεικοκόλαξ6. Nicolaus
Driandus7
Villis Ganeo
Litigioso adulador (vitupério inventado).
Nicolau Driand nome de Villegagnon
latinizado, com um trocadilho
pejorativo: vilis ganeo = vil glutão.
Extravagante.
5 i.e. pessoa que possui quatro jeiras em tamanho, uma referência ao tamanho descomunal de Polifemo.
6 Neologismo formado por νεῖκος (discórdia, contenda) e κόλαξ (adulador). Na pronúncia então usada para o grego, o neologismo νεικοκόλαξ /nikokólax/ fazia ressoar o nome
de “Nicolau”.
7 Trocadilho a partir de um dos nomes de Villegagnon, Durand; muito provavelmente uma referência a Johannes Driandus, citado por Otto O. F. Schütz no quarto livro de seus
comentários sobre a Vita Davidis Chystraei [Vida de David Chystraeus, um dos primeiros luteranos, que viveu entre 1530 e 1568], de 1720. À página 36, Schütz fala da importância
de Johannes Driandus, médico vienense, ao lado de Eberhard Moller (1528-1588, prefeito, i.e., “Consul” de Hamburgo em 1571), como continuadores imediatos de Philippus
Melanchton, importante comentarista luterano de Tucídides (mas também de Píndaro, de Sófocles, de Eurípides entre outros). David Chystraeus fora contemporâneo mais novo
de Philippus. Aparentemente trata-se de uma referência a uma alegada falsa erudição ou à uma dicção empolada de Villegagnon.
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POSIÇÃO
(Ed. 1562) TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUZIDO POSIÇÃO
(Ed. 1561) TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUZIDO
Lado
direito externo
Eques Melitensis Cavaleiro de Malta
Lado
direito interno
Asinarius molitensis
Asinário (referência a um só tempo ao
equivalente do cavaleiro em relação ao
“montador de asno”, e ao ocial gótico
do século VI d.C., que traiu seu exército,
provavelmente vendendo-se). Molitense
(um sosticado trocadilho com
‘Melitensis’, i.e., ‘de Malta’ e ‘molitor’,
‘moedor’), faz ainda reverberar esse nome
a palavra mollis, de uso frequentemente
pejorativo como afeminado e pouco ou
nada viril.
Doctor legum Doutor de leis Coctor gulae8Cozinheiro de gula
In senatu Parisiensi
advocatus
advogado no Senado
Parisiense In coeno Pharisi. Rabula.
Rábula, no lixão da Messênia (Messênia:
‘Pharis’ – região agreste do Peloponeso,
um trocadilho com ‘Parisii’, nome celta
de Lutetia, hoje, Paris. Além disso, a
palavra soa como Pharisaei, Fariseu).
8 Trocadilho doctor/coctor (doutor/cozinheiro).
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As duas gravuras diferenciam-se em alguns dos elementos visuais.
Isso ca claro desde as posições espelhadas: na edição de 1562, o corpo
de Polifemo está virado para a esquerda, enquanto, na edição de 1561,
está inclinado para a direita. Mas distinguem-se sobretudo pelo estilo dos
desenhos, nos componentes que preenchem o fundo e na forma em que os
elementos textuais estão dispostos, ainda que as palavras sejam as mesmas. A
edição de 1561 (aquela em livro) usa uma disposição de clichês mais livre, e,
portanto, menos linear, empregando um diagrama com composição ousada
e trabalhosa na aurora da prensa.
A representação de Villegagnon segue a tradicional iconograa do
selvagem, de resto, recorrente na iconograa acerca dos seres monstruosos
do Novo Mundo. Villegagnon-Ciclope é, assim, caracterizado por certa
politriquia, notada em seus cabelos e barba longos. É, ainda, eloquente
que esteja parcialmente vestido, indicando, talvez, seu hibridismo entre
civilizado e selvagem, assim como há, nas imagens, o encontro entre o
monstruoso e o não monstruoso. Um bom indício dessa parcial convergência
é a presença das cavidades oculares nas quais, aliás, não há olhos. O olho
é aquele único de Polifemo. Ainda que os demais Ciclopes tenham dois
olhos, as cavidades oculares de Villegagnon Polifemo são a “régua” humana
pela qual se mede o prodígio.
Embora não seja o escopo deste artigo, é necessário tecer um breve
comentário acerca de toda uma tradição retórica ocidental, cujos primeiros
registros são da chamada poesia grega arcaica. Essa tradição envidou notórios
recursos discursivos para propor e impor uma equação entre o selvagem
(natural) e o bárbaro, em oposição a outra equivalência, entre o cultural
e o civilizado.
A observação dos dizeres que compõem as gravuras revela um jogo de
palavras de um humor ácido em que, na parte interna da imagem de 1562, o
vice-almirante da Bretanha é elogiado e, na parte mais externa, é dito o oposto,
vituperando-o. Alguns termos utilizados na inscrição da gravura, na parte
externa do diagrama, explicitam o caráter que é atribuído a Villegagnon, algo
entre o bárbaro e o selvagem. Esses doestos parecem atingir seu ápice com os
qualicativos “anárquico” e “ateu”. Essas características, de fato, também são
as mesmas que normalmente são associadas aos ameríndios, como se pode
ver no Tratado da terra do Brasil, de 1576, em que o cronista português Pero
de Magalhães Gandavo arma que os gentios brasileiros não teriam em sua
língua os fonemas F, L e R pela ausência da Fé, das Leis e de um Rei na sua
organização social (GANDAVO, 1576 [2008]). E, numa passagem ainda
mais emblemática, descreve os aimorés, que, qual os Ciclopes, possuiriam
uma dimensão física descomunal, fazendo-os parecer “quase gigantes”. O
viajante português enfatiza que o idioma dos aimorés era incompreensível por
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outras etnias, e que eram canibais, possuíam uma brutalidade animalesca e
eram incapazes de viver juntos em uma sociedade organizada (GANDAVO,
1576 [2008]).
Além disso, Lestringant (1997, p.10) aponta que, para alguns autores,
como Léry, há a diferenciação entre um “bom” e um “mau” canibalismo: um
primeiro em que os aborígenes poderiam ser perdoados por cozer a carne
humana, um ato que poderia ser alegórico por representar a vingança da
memória de seus parentes, desenvolvida como algum ritual (LESTRINGANT,
1997); e um segundo, omofágico, e que, tivesse por objeto um europeu ou um
ameríndio, era condenável pela barbárie. A omofagia também era associada às
guras das bruxas, representadas por mulheres velhas, corrompidas por esse
apetite anormal e justicado pela inuência de Satã, e também era relacionada
aos judeus (LESTRINGANT, 1997), em uma equívoca comparação entre a
agiotagem e a antropofagia.
A referência, no poema, ao cão (canis), pode trazer à mente do
leitor letrado a imagem dos cinocéfalos, que antes guravam nos relatos
de Colombo sobre os povos do caribe. Lestringant (1997) postula que “Na
palavra ‘canibal’ [....] Colombo percebeu confusamente o radical latino canis;
donde a assimilação a cinocéfalo” (LESTRINGANT, 1997, p.30).
Embora conhecedor do fogo, o Ciclope não dominava sua tékhne,
e, antropófago (ἀνδροβρώς, no dizer de Eurípides, Ciclope, 93), pode ser
considerado um omophágos, qual sereias ou centauros. As imagens do Ciclope
Polifemo nas duas publicações de Richer trazem aos olhos do público letrado essa
gura, portadora de todos os topoi imagéticos e insígnias do personagem, e são
acompanhadas desse sosticado poema ecfrástico que se apresenta a seguir (Figura
4 e 5), acompanhado de tradução preparada especicamente para este texto.
Figura 4 – Poema de Pierre Richer. In: De venerandissimo ecclesiae sacricio ... adversus
Calviniani evangeli,i1, 1562
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Para este texto, o poema.
Transcrição do poema da edição de 1561 Tradução
Tabella pictum que tibi exhibet monstrum
Cyclopicum, benigne Lector, et luscum,
Hanc addidisse quippiam putas falsi?
Aliquid silentio potius abest pressum,
Quod contineri pagina breui haud possint
Tam multiformes corporis notae vasti,
Animique studia tam varia mali, et motus.
Insigniora vitia sola promemus.
A tela que te exibe um monstro picto,
gentil Leitor, de um só olho um Ciclope,
julgas que ela te pôs algo de falso?
De mais denso algo falta por silêncio,
por não poder caber em breve página
de um vasto corpo os traços multiformes,
gestos, vigor tão vário de má índole.
Mostremos só os vícios mais notórios:
N Nicolao Nicocolacis illustre
Consentiensque moribus refert nomen,
Quercusque durae stipitem gerit corde,
Vel glande dignus vescier. Sed et stemma
Quia nullum auitum sanguinis sui nouit,
Quo se superbus venditet apud ignaros,
Titulos inanes aucupatur et falsos,
Genitore natus villico bubulcóque.
Ni iudicandus nobilis, quòd impressa
Corpori et inusta Gallici ferat sceptri
Insignia: et quod denegarit iniusta
Natura nascenti, sit hoc sua nactus
Industria, rebúsque fortiter gestis.
Agaso equitibus se aggregat mola dignus,
Legúmque Doctor credier, gulae coctor
Aectat, onagros inter ebrios, ructus
Dum crepat, et ampullas vomit, canis foedus,
Cynaedici gregis cliens et assecla.
Verùm meretur maximum decus, nulla
Quòd ceciderit caussa Patronus excellens.
Credo. Quis adeò stolidus et velit iusta
Sua credita huic Praedoni hianti et indo?
Quanuis repente eologus siet factus
De Rege nullis subditis satis noto,
Imperij et arctis nibus: quod aequabat
Agrestis aut cortis vel areae aut templi
Sacri spatia. Et enim Dei euidens hostis
Et religionis, se tamen Sacerdotem
Summum creare voluerit, puto lippis
Tonsoribúsque cognitum: quid etiam inde
Sit consecutum: destitutus ut cunctis
Comitibus, et viribus Anarchia fractis
Reuiseret nostram Arcton, alteri ut Regi
Rubro galero se locaret et Papae.
Cuius culinae feruido tumens iure,
Et poculis Sorbonicis madens totus
(Quippe excitatur bilis hoc modo et zelus)
Pro veritate suscipit graues curas,
Sacráque doctrina tuenda, ab infandis
Et vindicanda erroribus. Quod ut at,
Antropophagus alto elicit polo Christum,
Manditque viuum dentibus feris Cyclops.
por Nicolau, remete o ilustre nome a
Nicocólax, conforme seus costumes;
no peito, um tronco duro de carvalho,
capaz de comer glande. Sua linhagem,
por não ter ancestral seu consanguíneo,
com que, orgulhoso, venda-se aos ignaros,
tolos títulos vai caçando e falsos;
lho de um pai feitor e boiadeiro.
Que não se o julgue nobre, por gravada
a ferro, em seu gaulês corpo, as insígnias
reais: e o que terá negado a injusta
Natureza ao nascer, com zelo obteve-o,
Co’ indústria, com façanhas, sempre à força.
Ginete bom de pôr nas mós c’os asnos;
doutor em leis ser tido quer; glutão
cozinheiro; entre burros ébrios solta
arrotos; golfa vinho, o cão sarnento;
cliente e assecla da caterva bicha.
Mas merece honra imensa, esse Patrono
excelso em causa alguma em que caiu.
Decerto. Quem tão tolo conaria
suas causas ao voraz inel Pirata?
Nomeado embora um súbito Teólogo
por súdito nenhum de rei sabido,
nas fronteiras do Império, em que igualava
campos, cortes, sagrados templos, praças.
De Deus e religião jurado imigo,
quis nomear-se sumo sacerdote,
reconhecido, creio, por ramelas
e tonsuras. Daí, então, o que
se passou: pelos companheiros todos
desertado, e alquebrado na Anarquia,
voltava ao nosso Norte; p’ra vender-se
c’o chapéu rubro de Papa, a outro Rei.
cuja cozinha o inchou de tanto caldo,
e a Sorbonne encharcou de tantos tragos
(assim se excita o ardor e a bile, é claro).
De fato, assume ingentes imcumbências:
sacras doutrinas proteger, punindo-as
de infandos erros. Acontece que ele
derriba Cristo do céu, e o Antropófago
Ciclope trinca-o vivo em dentes feros.
Figura 5 – Tradução do poema de Pierre Richer
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Poema e imagem, semelhantes, quase idênticos, no livro e no folheto,
seguem um costume corrente à época de fazer acompanhar as publicações
de proêmios, geralmente em versos, cuja erudição legitimasse o conteúdo
da publicação. A peculiaridade desse proêmio não é apenas a de contar com
uma imagem, ornada de um diagrama que, imediatamente em seguida, é
detalhada e explicada por um poema ecfrástico com uma pletora de referências
eruditas, muitas vezes com jocosa ambiguidade. O presente artigo buscou
apresentar como a combinação desses três elementos pré-textuais constrói um
imaginário da gura a ser vituperada, Nicolau Durand de Villegagnon, que,
malgrado os esforços envidados por Richer e outros protestantes, inscreveu-se
na história do Brasil e da Guanabara.
Referências
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1. ed. New York: Oxford University Press, 2020.
BERBARA, Maria. Sobre o Polifemo de Pierre Richer: a França Antártica e o
canibalismo do outro. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila
(org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp,
2020. p.225-234.
CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Do Apolo de Belvedere ao guerreiro
tupinambá: etnograa e convenções renascentistas. História, v. 25, n. 2, p.15-
47, 2006.
CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de canibais e selvagens do
Novo Mundo: do Maravilhoso Medieval ao Exótico Colonial (séculos XV-XVII).
Tradução de Marcia Aguiar Coelho. 1. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2018.
Transcrição do poema da edição de 1561 Tradução
Romana meretrix militem suum laeto
Foueat sinu reducem. Quid illa fecisset
Atlante tali vidua? Quid-ue Sorbona?
O Demochares, humeris dem tuis fultam
Qui Christianam sustines, fatigatos
Artus rece. Consociet agmen et tecum
Mallardus Heros inclytus graui vultu.
Romana sedes stantibus tribus vobis
Stabilis manebit. Sin loco et gradu pulsos,
(Breui hoc futurum est) vos necessit as cogat
Vertere solum, Nauarchus iste Dux et Rex
Classe numerosa ducet in nouas terras:
Vbi reparato Ecclesiae statu vestrae
Hinc euocare poteritis Deum Papam.
PETRI
Romana puta embala em morno colo
Seu revindo soldado. O que faria a
tal Atlas a viúva? Ou a Sorbonne?
Demócares, que a fé cristã sustentas
sobre teus ombros, membros teus refaz
cansados. Que reúna a tropa e a ti
o ínclito herói Mallardo em grave senho.
Pátria Romana, estando os três de vós,
rme será. De casa e à pressa expulsos
(cedo e logo!), a pobreza vos obrigue
a só voltar, o Rei, Capitão, Guia
à nova terra irá levar em frota:
recomposto da Igreja vossa o estado
poderás evocar aí Deus-Papa.
De Pedro (= Pierre Richer)
Figura 5 – Cont.
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Henrique F. Cairus. Doutor em Letras Clássicas pela UFRJ. Professor de Língua
e Literatura Grega da UFRJ. Docente do Programa de Pós-Graduação em Filosoa
da UFRJ. Docente do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada da UFRJ. Coordenador do Programa de Estudos em Representações da
Antiguidade.
E-mail: hcairus@ufrj.br
João Batista Toledo Prado. Doutor em Letras Clássicas pela USP.Professor de Língua
e Literatura Latina da FCLAr-UNESP.Docente do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Literários da UNESP.
E-mail: jbtprado@gmail.com
Fernanda Jardim. Mestranda do Curso de Pós-graduação em Linguística Aplicada
da UFRJ.
E-mail: f.jardimfa@gmail.com
Recebido em: 15/10/2022
Aceito em: 15/08/2023
Declaração de Autoria:
Henrique F. Cairus, João Batista Toledo Prado e Fernanda Jardim, declarados autores, conrmam sua participação por
igual em todas as etapas de elaboração do trabalho: 1. Concepção, projeto, pesquisa bibliográca, análise e interpretação
dos dados; 2. Redação e revisão do manuscrito; 3. Aprovação da versão nal do manuscrito para publicação; 4.
Responsabilidade por todos os aspectos do trabalho e garantia pela exatidão e integridade de qualquer parte da obra.
Parecer Final dos Editores:
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a
versão nal deste texto para sua publicação.