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23 fevereiro 2011 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS 13
crónica
A racionalidade intrínseca de uma civilização
confere uma validade universal à sua cultura e
permite-lhe impor as suas luzes às outras civilizações”1,
arma Laurent de Briey em O conito dos paradigmas.
Como cultura dominante – e com a «boa consciência» de
sentir-se sob a proteção divina, que Eduardo Lourenço
identica em O esplendor do Caos2 – podemos profanar as
crenças e conhecimentos de outras culturas, mas não será
aceite que essas culturas ‘inferiores’, abandonadas do ‘deus
verdadeiro’ (capital, religião, losoa, bem-estar) ousem
ofender os nossos valores. Profanamos o silêncio dos
que pensam e não suportamos que os seus pensamentos
esclareçam a nossa confusão; desrespeitamos o espaço
sagrado dos outros e irritamo-nos quando se aproximam
do nosso templo.
Na cultura islâmica, o termo ‘música’ está reservado à
vida secular e mundana, portanto não pode ser utilizado
num espaço de oração como uma mesquita3. Se insistimos
em chamar música à recitação melismática do Alcorão,
estaremos a cometer um ato de impiedade, um sacrilégio.
Para um ator, como para um músico, o seu território
sagrado, de veneração e respeito, é o palco e não deveria
ser profanado. Mas quando se profana aos criadores vivos,
roubando ou ignorando seu trabalho, a sociedade europeia
situa-se na condição de consumidora passiva de uma ideia
de cultura-comércio dominada pelo poder da mass media
usa-americana.
Todos temos os nossos sacrários, onde arrumamos as
coisas que retiramos da esfera pública, protegendo-as com
o direito à privacidade. Ofende a dignidade humana quem
as restitui ao uso profano sem consentimento.4
Qual o direito que nos autoriza a profanar a cultura
dos outros? Acaso a intranscendência da cultura pós-
moderna? Eduardo Lourenço diz-nos que “à globalização
ideológica e política sucedeu a forma de poder mais
sedutor que os homens inventaram: a globalização
cultural”5. O cultural é mais do que ópio para o povo e
quem é proprietário do imaginário, com um poder de
sedução sem igual, é virtualmente o senhor do mundo.
O cultural deixou de ser a imagem e o esplendor de uma
economia para se transformar numa mercadoria de
rendimento innito com a culturização de todos os objetos
de consumo6.
Na mochila dos soldados americanos viaja esse ópio
culturizante em forma de musiquetas, pastilha elástica,
coca-cola ou comida lixo que seduz as vontades dos
indivíduos num simulacro de satisfação. O manto sublime
do cultural cobre todos os conteúdos da existência numa
“feérie cultural permanente” que E. Lourenço diz ser
“puramente decorativa e fantasmagórica”7.
Talvez a globalização nunca chegue a uniformização
total porque o que alimenta este mundo é precisamente
a diferença, mas a hegemonia faz com que todas
as expressões culturais, inclusive as europeias, se
transformem em subprodutos comerciais de um
espetáculo global. Valorizar a nossa diferença e recuperar
o prestígio ‘profanado’ passa pela invocação do poeta e
parafraseando o Fradique de Eça de Queirós, na língua
verdadeiramente reside a diferença8.
Octávio Paz, ao longo da sua obra, fala de um futuro no
que a humanidade se dividirá em dois: os que leem e os
que veem televisão. Talvez agora seja mais elucidativo
falar dos que defendem a cultura e dos que a profanam.
Direito de profanação
O Bardo na Brêtema
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística
“
1 Briey, L. d. (2009). O conito dos paradigmas. (R. Pacheco, Trad.)
Lisboa: Instituto Piaget, p. 26.
2 Lourenço, E. (2007). O Esplendor do Caos (5ª ed.). Lisboa:
Gradiva, p. 95.
3 Wade, B. C. (2004). Thinking Musically. New York: Oxford
University Press, p.6
4 Agambem, G. (2006). Profanações. Lisboa: Cotovia.
5 Lourenço, E. op. cit., p. 120.
6 Ibid., p. 22
7 Ibid., p. 124
8 Queiroz, E. d. (1980). A correspondência de Fradique Mendes.
Lisboa: Europa-América, p. 79.
NOTA
Este texto é escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográco,
respeitando o original do autor.
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