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15 junho 2011
AS ARTES ENTRE AS LETRAS
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música
A
violinista alemã, Anne Sophie Mutter, numa
visita que fez a Madrid com a Orquestra de
Câmara de Londres no ano 2004, para um
par de concertos dedicados a Mozart, foi entrevistada
para o diário El País – jornal que patrocinava os con-
certos – e ao perguntarem-lhe pela visão que tinha
de Mozart, respondeu: “Visão, nenhuma. A música
ouve-se”1.
Essa concisão verbal, sem deixar margem para am-
biguidades, é talvez a disciplina que lhe permite ser
uma grande intérprete em constante aperfeiçoamen-
to e comprometida com o seu tempo e os composito-
res actuais, aos que estimula com encomendas para
aumentar o seu repertório de concertos e recitais.
Isso também lhe permite ter critério próprio e livre
sobre o acontecer quotidiano e na mesma entrevista
criticava duramente o novo Papa por umas desafor-
tunadas declarações sobre a condição feminina: “Ir
contra um género é ir contra a humanidade, contra
todos, e ainda pior quando se faz em nome de Deus,
porque para mim, Deus não tem sexo, nem cor, não é
homem nem mulher, nem branco nem preto”2.
Com certeza há pessoas que podem interpretar isso
como uma excentricidade de diva, nomeadamente
quando o que está a esclarecer é óbvio pois todos sa-
bem que o som se percebe pelo ouvido. Mas, reetin-
do sobre essa precisão linguística, deparamos que o
binómio visão-audição está na base de outros coni-
tos. Com frequência, ouvimos referir queixas de que
esta ou aquela pessoa não olha nos olhos quando se
fala com ela e esse comportamento tem-se, mesmo,
por uma má educação. Se a linguagem é falada, por-
tanto auditiva, porque olhar nos olhos?
Existe uma linguagem intercorporal, não-verbal, que
relaciona os corpos humanos através da distância fí-
sica e do tempo num contexto cultural3. Algo que a
psicologia social tem estudado muito e que as equi-
pas de vendedores treinam diariamente para obter
melhores resultados económicos. Assim, classicam
os clientes segundo o canal de comunicação domi-
nante que utilizam, resultando três categorias bási-
cas: visuais, aqueles que olham de frente; auditivos,
os que desviam o olhar para ouvir melhor; e kinési-
cos, aqueles que evitam o olhar e comunicam com
os sentimentos4, categoria na que podem incluir-se
muitos artistas. Basta, pois, adaptar-se ao interlocu-
tor para não contrariar a sua comunicação.
O hiper consumismo visual deformou de tal modo a
audição que cada vez menos pessoas conseguem ou-
vir música de olhos fechados e só olham para o seu
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em educação artística
A música ouve-se
1 Ruíz-Mantilla, J. (29 de Abril de 2004).
Entrevista: Anne Sophie Mutter Violinista - “Me
hubiese gustado que Mozart compusiera para mí”.
El País, p. 37.
2 Ibid.
3 Poyatos, F. (1994). La comunicación no verbal I.
Madrid: Istmo.
4 Henric-Coll, M. (Agosto de 2003). Programación
neurolinguística. Obtido em 11 de Abril de 2011, de
www.gestiopolis.com: http://www.gestiopolis.com/
canales/derrhh/articulos/63/pnl.htm
5 Adorno, T. W. (2008). Teoria Estética. (A. Morão,
Trad.) Lisboa: Edições 70, p. 187.
6 Ibid. p. 175.
7 Attali, J. (1977). Ruidos. Ensayo sobre la economía
política de la música. Valência: Ruedo Ibérico, p. 9.
NOTA:
Este texto é escrito ao abrigo do novo Acordo
Ortográco, respeitando o original do autor.
vazio interior. A diferença entre o que eles ouvem e o
que ouve o iniciado – segundo nos esclarece Theodor
Adorno na Teoria Estética – “circunscreve o caráter
enigmático”5 já que “a expressão é o olhar das obras
de arte”6.
O economista Jacques Attali – presidente da comis-
são para a libertação do crescimento francês – num
ensaio sobre a economia política da música, logo na
primeira página clarica a importância do auditivo
sobre o visual com estas palavras: “o mundo não se
olha, ouve-se; não se lê, escuta-se. Ouvindo os ruídos
poderemos compreender melhor para onde nos ar-
rasta a loucura dos homens e das contas, e quais as
esperanças ainda possíveis”7.
Visão, pois, nenhuma; a música ouve-se.
Dr