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16 julho 2014
AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 18
Música
Nenhuma burocracia pode funcionar a
não ser que aqueles que se lhe encon-
tram sujeitos adotem atitudes, hábitos,
crenças e orientações especícas” diz Bruce Cur-
tis, mas “estas atitudes, hábitos, crenças e orienta-
ções não emergem de uma necessidade técnica;
são o produto de conitos complexos e prolonga-
dos”1.
As Academias e Conservatórios de Música ini-
ciaram muito recentemente um processo de de-
mocratização forçada pela universalização do
regime articulado no ensino vocacional da mú-
sica, e a sua cultura organizacional e pedagógica
demanda uma profunda reexão para acompa-
nhar as mudanças. Os paradigmas de liderança
precisam de legitimação mas antes é preciso sa-
ber qual é a função que a sociedade reserva para
este tipo de instituições. Será o papel ‘reprodutor’
que tinha nas suas origens? O nome de conserva-
tórios é signicativo pois historicamente contri-
buíam para conservar a sociedade. Ou será que
devem assumir um papel ‘transformador’ da so-
ciedade? A chave, como indica Mariano Fernán-
dez-Enguita em Educar em tiempos inciertos, não
está na escola, mas na sociedade à sua volta2.
Durante séculos, as mudanças sociais acontece-
ram lentamente e em setores minoritários. Eram
mudanças supra geracionais e quase imperce-
tíveis. Mais recentemente as mudanças come-
çaram a fazer-se mais patentes de uma geração
para a seguinte e abrangendo setores mais rele-
vantes da população. Atualmente as mudanças
acontecem de forma generalizada e até várias
vezes numa mesma geração. De uma sociedade
estática, onde os valores educativos e, neste ca-
so, artísticos eram incontestados, passamos pa-
ra uma sociedade em transformação onde uma
educação ideologizada foi utilizada como prin-
cipal instrumento de mudança. Neste momento
em que “as sociedades estão a mudar de manei-
ra errática ou imprevisível, a escola vê-se imersa
num desconcerto”, arma Fernández-Enguita3.
O ensino vocacional da música foi durante sé-
culos assente na música erudita ocidental e era
isso o que se esperava das instituições de ensi-
no de música. Os que demandavam essa educa-
ção para si ou para os lhos eram já portadores
de uns códigos culturais que valorizavam a mú-
sica erudita. Ao longo do século XX estas institui-
ções mantiveram-se éis a esse princípio mas -
caram ancoradas na erudição do século XIX, ig-
norando qualquer movimento modernista que
contrariasse o seu obsoleto romantismo. Ainda
Não há vaga na piscina
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em Educação Artística
assim, continuavam a ser procuradas pelas elites
sociais que lhe atribuíam o papel ‘reprodutor’ ou
de conservação dos modelos hierárquicos da so-
ciedade.
A chegada massiva de alunos aos conservatórios
e academias, com o regime articulado, represen-
tou uma democratização do ensino da música
quanto a oferta e possibilidades de escolha, mas
instalou a dúvida de se deveria continuar a cha-
mar-se ensino vocacional da música ou passar a
denominar-se educação musical como no ensi-
no genérico. Formar os futuros prossionais da
música ou formar pessoas que gostem da músi-
ca. Esse primeiro debate está por fazer e o Minis-
tério não mostra vontade de claricar a situação
mas é uma questão crucial para encarar a peda-
gogia dum modo prossional e responsável.
Por outra parte, Michael W. Apple diz-nos que “o
fascínio atual com os sistemas de gestão e redu-
ção de custos de forma a tornar-nos mais ecien-
tes e produtivos”, como um constructo ético que
envolve escolhas morais e políticas, “baseiam-
-se no discurso económico, como sendo a forma
primária de agir no mundo”4. Neste processo de
mercantilização “a democracia jamais será vis-
ta como um conceito político, mas sim como um
conceito económico. A democracia reduz-se ao
estímulo das condições de ‘escolha livre do con-
sumidor’ num mercado posto em liberdade”5. Es-
ta ênfase neoliberal para fazer do mundo um vas-
to supermercado onde tudo, mesmo os alunos,
são mercadoria que gera lucros, está a esvaziar o
conhecimento da componente do ‘trabalho inte-
lectual’ sério.
Qual é, anal, a pedagogia que deve orientar o tra-
balho dum professor no assim chamado ‘ensino
vocacional da música’? Nesse contexto, toda a li-
derança carece de legitimação, mesmo que esta
fosse fruto dum processo de eleição democráti-
ca, porque ninguém pode liderar quando desco-
nhece os objetivos, e as práticas culturais e so-
ciais do dia-a-dia divergem. Só as relações de do-
mínio podem assegurar o discurso economicis-
ta.
Os professores do ensino vocacional da música
foram formados durante séculos num modelo
Percursos do ensino da música
19 | 16 julho 2014
AS ARTES ENTRE AS LETRAS Música
O Bardo na Brêtema
de raiz elitista e de pronto veem-se confrontados
com uma realidade desconhecida e sem ferra-
mentas pedagógicas nem intelectuais para agir. O
Ministério está a aplicar uma ‘revolução’ no ensi-
no da música mas sem explicitar em que consiste
nem para onde se dirige. As direções das acade-
mias têm que gerir a imprevisibilidade do Minis-
tério contratando ou dispensando professores
de um dia para outro, ou modicando a carga leti-
va dos alunos, ou mesmo das disciplinas, segun-
do se publicam Portarias, muitas vezes contradi-
tórias e sempre na última da hora ou já em atraso.
A burocracia impregna tudo. Os professores re-
voltam-se e culpam as direções, reclamando de-
mocracia, mas não conseguem denir qual a sua
missão nas instituições para além de cumprir o
horário e receber o ordenado. Quanto ao ordena-
do, o Ministério nem sequer cumpre os compro-
missos contratuais e atrasa os pagamentos vários
meses criando situações de desespero económi-
co aos professores e às direções. Alguns professo-
res chegam a suspender os contratos por falta de
dinheiro para s e deslocarem às escolas. Ninguém
sabe para onde caminhamos e assim não é possí-
vel criar lideranças.
Por outra parte, nas desistências normais que se
produzem em qualquer ensino vocacional, o Mi-
nistério, contradizendo o espírito democrático
que está na base do regime articulado, aplica um
critério reducionista e elimina as vagas dos alu-
nos que abandonam, o que provoca amputações
no corpo docente.
Hargreaves, arma que “na economia baseada
no conhecimento, só a parte emocional das pes-
soas, a que é mercantilizável e gerível, é objeto da
atenção das empresas”6.
O ensino da música, seja este vocacional ou
não, é um capital social que deve ser cultivado.
Fukuyama dene o capital social como “um con-
junto de normas informais e de valores partilha-
dos pelos membros de um grupo que permite a
colaboração entre eles” e conclui que “sem capi-
tal social não existiria sociedade civil e… sem so-
ciedade civil não existiria democracia”7. O capi-
tal social, segundo Hargreaves, “suporta a apren-
dizagem, alimenta-a, encontra um caminho e um
propósito para ela”. Os professores devem culti-
vá-la porque “o capital social é o alicerce da pros-
peridade e da democracia: desenvolvê-lo consti-
tui uma prioridade educativa”8.
Neste contexto é que deve entender-se a missão
das instituições do ensino de música, no trânsi-
to de escolas de corte elitista, para escolas demo-
cratizadas pela força dos acontecimentos. Ainda
precisarão de anar muita coisa para ser plena-
mente democráticas mas o proceder errático do
Ministério também não ajuda.
A cultura é adquirida, não herdada, e provem do
ambiente social do indivíduo, não dos genes. Os
professores de música precisam de tomar a ini-
ciativa e a responsabilidade da construção do ca-
pital social que querem partilhar com os alunos e
o resto da sociedade. O Relatório da UNESCO so-
bre Educação, um Tesouro a D escobrir, identica
“os quatro pilares da educação”: aprender a co-
nhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos
e aprender a ser9. Os dois primeiros formam par-
te da economia baseada no conhecimento mas
os dois últimos põem a ênfase na democracia,
no sentido de comunidade, na responsabilidade
pessoal e no capital social. Aprender a viver jun-
tos é algo que os professores ainda têm que expe-
rimentar se, algum dia, queremos um ensino da
música verdadeiramente democrático.
Em Culturas e organizações, Geert Hofstede diz
que “cada um de nós transporta consigo padrões
de pensamento, de sentimentos e de ação po-
tencial, que são resultado de uma aprendizagem
contínua”. Muitas dessas aprendizagens foram
adquiridas e assimiladas durante a infância, on-
de começa a construir-se a ‘programação mental’
dos indivíduos. “Quando certos padrões de pen-
samento, sentimentos e comportamentos se ins-
talam na mente de cada um, antes de aprender
algo diferente, torna-se necessário desaprender,
e desaprender é mais dicil que aprender pela
primeira vez”10.
Quando não há vaga na piscina, a opção de estu-
dar música passa a ser considerada e assim é co-
mo muitas crianças começam a tocar um instru-
mento que tanto elas como seus pais nunca an-
tes ouviram. As metodologias para ensinar e
motivar estes alunos não podem ser as mesmas
que se aplicavam antes mas esta é uma ótima
oportu-nidade para conseguir novos públicos e
ampliar a base social do ensino da música.
Ainda bem que não há vaga na piscina.
Como os professores de música não podem car
à espera da inspiração do Ministério, aconteceu
de 7 a 9 de julho último, em Ponte de Lima, o pri-
meiro Simpósio Nacional Percursos do Ensino da
Música para pôr toda a comunidade educativa a
reetir sobre políticas e pedagogias da música,
gestão das instituições do ensino da música, co-
mo se ensina ou fomenta a criatividade musical
e, ainda, um concerto-debate sobre o tema ‘Como
nasce um compositor em Portugal’. O Simpósio
está integrado no Festival Percursos da Música e
a organização é uma parceria entre a Academia
de Música Fernandes Fão e a Universidade do Mi-
nho através do Centro de Investigação em Estu-
dos da Criança e do Instituto de Educação.
O título deste artigo foi-me sugerido pela Douto-
ra Helena Vieira logo que lhe falei da necessida-
de de iniciar um debate público sobre a questão e
começarmos a organizar o Simpósio. David
Hargreaves diria que “As equipas são valiosas,
quan-do se baseiam em relações entre as
pessoas e são movidas por um propósito moral
partilhado”
11.
NO TA
1 Curtis, B. (1992). True Government by Choice Men?
Toronto: University of Toronto Press, p. 121.
2 Fernández-Enguita, M. (2009).
Educar en tiempos inciertos. Madrid: Morata, p. 14.
3 Ibid. pp. 1415.
4 Apple, M. W. (2001). Educação e Poder.
Porto: Porto Editora, p. 19.
5 Ibid. p. 21.
6 Hargreaves, A. (2003).
O Ensino na Sociedade do Conhecimento - A educação
na era da insegurança. Porto: Porto Editora, p. 82.
7 Fukuyama, F. (1995).
Trust: The Social Virtues and the Creation of Prosperity.
London: Hamish Hamilton, p. 16.
8 Hargreaves, A. op. cit. p. 83.
9 UNESCO. (1998). Educação, um Tesouro a Descobrir.
São Paulo: ASA, p. 89.
10 Hofstede, G. (2003). Culturas e Organizações.
Compreender a nossa programação mental.
Lisboa: Sílabo, p.18.
11 Hargreaves, A. op. cit. p. 81.