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Nº 2 – 10/ 2016 | 149-171 | https://doi.org/10.21747/ 2183-9077/rapl2a7
Revista da Associação Portuguesa de Linguística
Estudo de corpus sobre a anáfora pronominal em interpretação simultânea
Ana Correia, Sílvia Araújo
Centro de Estudos Humanísticos / Universidade do Minho
Abstract:
This paper aims to analyse and describe the functioning of pronominal anaphora in English-Portuguese and
Portuguese-English simultaneous interpreting. For this purpose, we selected a random sample of 24 speeches from
the plenary sessions of the European Parliament. This small sample was taken from a larger pool of speech
transcripts, which will be included in an interpreting corpus to be compiled at the University of Minho. We begin by
providing some theoretical notions on interpreting and on the recent paradigm of corpus-based interpreting studies.
Finally we analyse some examples to illustrate the instances where pronominal anaphora poses a challenge for the
interpreters.
Keywords: simultaneous interpreting, corpus linguistics, cohesion, pronominal anaphora
Palavras-chave: interpretação simultânea, linguística de corpus, coesão, anáfora pronominal
1. Introdução
O presente estudo tem por principal objetivo analisar e descrever o funcionamento da
anáfora pronominal com base num conjunto de discursos interpretados em modo simultâneo.
Contudo, ainda antes de dar início à análise propriamente dita, importa perceber o que é a
interpretação e que tipo de restrições é que este tipo de comunicação impõe quer sobre os atores
que nele participam, quer sobre o próprio discurso a interpretar. Para além deste aspeto, iremos
também apresentar uma breve resenha dos estudos de interpretação desenvolvidos até ao
momento com base em dados empíricos bem como alguns dos corpora atualmente disponíveis na
rede. Por último, descrevemos, em linhas gerais, o trabalho de colaboração com alunos da
Universidade do Minho na criação de um corpus de interpretação envolvendo o português
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europeu. Pretende-se, com esta introdução, fornecer ao leitor uma visão panorâmica dos estudos
de interpretação, com particular destaque para a sua vertente empírica.
1.1. O que é a interpretação (simultânea)?
Ao longo dos séculos, a interpretação tem sido definida de diversas formas, por autores
tão variados quanto os quadros teóricos que sustentam as suas afirmações. Contudo, há dois
aspetos intrínsecos à interpretação que parecem reunir consenso: o seu caráter oral
1
e a
importância do significado (postulado da Théorie du sens; Seleskovitch & Lederer, 1984) em
detrimento das palavras. Há ainda a questão da ‘imediatez’, que alguns autores reconhecem
como a principal característica da interpretação e aquela que fundamentalmente a distingue da
tradução (Kade, 1968 apud Pöchhacker, 2004: 10-11). De facto, a interpretação desenrola-se sob
uma pressão temporal constante, quer seja em modo simultâneo, quer seja em modo consecutivo.
No primeiro caso, o intérprete deve restituir o discurso original à medida que este vai sendo
proferido, adaptando o seu décalage de acordo com o ritmo de elocução do orador. No segundo
caso, o intérprete ouve a totalidade do discurso na língua de partida e só depois produz um
discurso equivalente na língua de chegada. Enquanto ouve o discurso, o intérprete pode tomar
notas, cuja função é somente a de complementar a sua memória aquando do esforço de produção
do discurso-alvo.
Como vimos, a interpretação comporta uma distinção básica entre o modo consecutivo e
simultâneo. Para além disso, há diversas modalidades, como sejam a interpretação de
conferências, comunitária, de acompanhamento, por videoconferência, etc. (Bendazzoli, 2010a).
Naturalmente, cada uma destas modalidades corresponde a um contexto muito específico, com
caraterísticas próprias. A interpretação comunitária, por exemplo, poderá decorrer num hospital e
caraterizar-se-á por um esquema comunicativo eminentemente dialógico, em que o intérprete
desempenha um papel central até pela sua presença física na situação. Por seu turno, a
interpretação de conferências, de que o presente artigo se ocupa, privilegia um formato
monológico, em que um orador se dirige a um público composto por um número indefinido de
1
Ou gestual, se nos estivermos a referir à interpretação em língua gestual. Contudo, o foco deste trabalho incide sobre a interpretação de línguas
orais.
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ouvintes e em que a presença do intérprete se confina a uma cabine à prova de som. Este é o tipo
de interpretação que ocorre nas sessões plenárias do Parlamento Europeu, que servem de base ao
estudo de caso descrito na secção 3 adiante. Este contexto particular apresenta um conjunto de
especificidades que tem, necessariamente, repercussões no discurso produzido pelos intérpretes.
O sistema de atribuição de palavra faz com que as intervenções dos eurodeputados sejam, em
regra, bastante curtas, rondando em média dois minutos por discurso. Por conseguinte, a fim de
tirar o máximo proveito do tempo que lhes é atribuído, a maioria dos eurodeputados prepara e lê
os seus discursos, o que se reflete numa velocidade elocutória e densidade lexical, sintática e
semântica muito mais elevadas do que num discurso genuinamente espontâneo. Trata-se,
portanto, de uma oralidade com características próprias, que são consequência direta do contexto
em que ocorre a interpretação e que necessariamente condicionam o trabalho do intérprete.
Desta pequena resenha, conclui-se, então, que a interpretação, quer simultânea, quer
consecutiva, é uma atividade de transmissão de significado entre duas línguas através do meio
oral (ver nota 1) e com caráter imediato. O contexto é, sem dúvida, uma variável determinante do
processo interpretativo e todas as considerações atinentes a este fator são extremamente
relevantes do ponto de vista metodológico. Se é verdade que a interpretação não ocorre no vazio,
então devemos assumir que o estudo desta atividade tem de manter uma estreita relação com as
coordenadas espácio-temporais (hic et nunc) em que se insere. A linguística de corpus
desempenha aqui um papel importante, dado que tem por premissa o estudo dos fenómenos
linguísticos através da observação sistemática de exemplos reais do uso da língua.
1.2. Estudos de interpretação baseados em corpora
Embora a investigação sobre interpretação tenha sido impulsionada, numa primeira fase,
por estudos psicolinguísticos e de psicologia cognitiva, é inegável que a linguística
(principalmente, a linguística de texto e a análise do discurso) contribuiu para um conhecimento
mais aprofundado do produto – e, por conseguinte, do processo – resultante da interpretação nos
seus diferentes modos e modalidades. Mais recentemente, a linguística de corpus tem vindo a
ganhar preponderância no estudo da interpretação. Este fenómeno foi em larga medida motivado
pelo êxito dos resultados alcançados nos estudos de tradução com recurso a esta metodologia.
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Miriam Shlesinger, autora prolífica dos estudos de interpretação, foi pioneira ao reconhecer os
méritos desta sinergia e, em 1998, publicou um artigo seminal em que apelava a uma colaboração
mais estreita entre a linguística de corpus e os estudos de interpretação (Shlesinger, 1998). Nos
anos seguintes, vários autores começaram então a dedicar-se à recolha de dados empíricos para
criar os seus próprios corpora.
Na aceção da linguística de corpus, um corpus é um “conjunto de textos autênticos
(incluindo transcrições de dados orais), organizados numa plataforma eletrónica, que pretende ser
representativa de uma determinada língua ou variedade linguística” (tradução nossa)
2
. Contudo,
não podemos ignorar as compilações manuais de textos que, embora não estejam organizados
numa plataforma eletrónica, não deixam de ser corpora. Nos estudos de interpretação, é possível
encontrar ambos. Uma parte significativa destes corpora não informatizados é composta pelas
produções orais de alunos a frequentar pós-graduações de interpretação, que são gravadas e
posteriormente transcritas. Este tipo de coletânea tem vindo a ser utilizado para identificar, com
maior ou menor grau de sistematicidade, os erros cometidos pelos alunos, chegando mesmo a
culminar na criação de tipologias de erro. A título de exemplo, citamos os estudos de Gile (1987,
1992) e Falbo (1998) sobre os erros cometidos por estudantes de interpretação simultânea durante
o seu período de aprendizagem. Este tipo de estudo contribui para o enriquecimento dos
conteúdos formativos na área da interpretação, podendo também aplicar-se à tradução.
Embora o paradigma dos estudos de interpretação baseados em corpora seja uma
tendência recente, julgamos ser possível distinguir três grandes áreas de investigação. Num
primeiro grupo, enquadram-se os estudos de pendor marcadamente teórico sobre a metodologia
de compilação de corpora de interpretação (aqui entenda-se corpus na aceção da linguística de
corpus, i.e., corpus eletrónico). Entre outros, destacam-se os trabalhos de Bendazzoli (2010b),
Wang (2009) e Falbo (2012). Os estudos sobre fenómenos linguísticos têm sido uma área fértil
para os estudos baseados em corpora, constituindo o segundo grande grupo. Aqui, incluem-se os
trabalhos de Sandrelli, Bendazzoli & Russo (2010) sobre colocações, de Bertozzi (2015) sobre o
uso empréstimos, de Loureda (2010) sobre marcadores discursivos e de Russo (2012) sobre as
2
“ (...) collection of (1) machine-readable (2) authentic texts (including transcripts of spoken data) which is (3) sampled to be (4) representative of
a particular language or language variety.” (McEnery et al., 2006: 4-5 apud Bendazzoli, 2010b: 16)
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assimetrias morfossintáticas entre o par espanhol-italiano. Para além do âmbito linguístico, a
análise de corpora tem-se revelado útil para obter um conhecimento mais aprofundado de
diversos aspetos sociológicos da interpretação. Neste terceiro e último grupo, contam-se os
trabalhos de Kurz (2001) sobre as expetativas dos utentes, de Straniero Sergio (2003) sobre
normas, de Marzocchi (2005) sobre ética e de Zwishcenberger & Behr (2015) sobre qualidade.
1.3. Corpora de interpretação
Alguns dos trabalhos acima mencionados foram realizados com base em corpora
eletrónicos, que se encontram acessíveis na rede. O maior corpus de interpretação de que
dispomos atualmente é o European Parliament Interpreting Corpus (EPIC), criado entre 2004 e
2006 pela equipa interdisciplinar SITLeC, do polo de Forlì da Universidade de Bolonha:
Figura 1) Interface de pesquisa do EPIC
Trata-se de um corpus comparável trilingue (espanhol, italiano e inglês), compilado com
discursos proferidos em sessões plenárias do Parlamento Europeu (Bendazzoli & Sandrelli,
2005). Posteriormente, surgiram diversas iniciativas conducentes à criação de corpora de
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interpretação representativos de outras populações, outras modalidades de interpretação, outras
línguas e outros contextos discursivos. Ainda no âmbito da interpretação de conferências, mas em
contextos distintos, destacam-se o corpus DIRSI-C, composto por discursos de natureza médica
em inglês e italiano (Bendazzoli, 2010a), e o corpus FOOTIE, que reúne interpretações de
conferências de imprensa realizadas durante o campeonato europeu de futebol de 2008 (Sandrelli,
2012). No que respeita à interpretação comunitária, importa mencionar o trabalho desenvolvido
pelo Hamburger Zentrum für Sprachkorpora, cujo repositório inclui o corpus Dolmetschen im
Krankenhaus (DiK) (House, Meyer & Schmidt, 2012) e o corpus Consecutive and Simultaneous
Interpreting (CoSi) (Bührig et al., 2012). O primeiro visa a interpretação comunitária num
contexto hospitalar e o segundo está direcionado para a interpretação em situação de conferência,
quer em modo consecutivo, quer em modo simultâneo. Por fim, a interpretação para os media
está representada no Corpus of Television Interpreting (CorIT), que contempla um conjunto
alargado de interpretações levadas a cabo em eventos da televisão italiana ao longo de 50 anos
(Straniero Sergio & Falbo, 2012). Sem qualquer pretensão de exaustividade, a amostra acima
apresentada contém apenas alguns exemplos de corpora que têm vindo a ser desenvolvidos para
estudar uma ampla gama de fenómenos linguísticos e extralinguísticos (ver secção 1.2.).
1.4. Experiência pedagógica na UM no âmbito da interpretação
Na Universidade do Minho, estamos neste momento a reunir material para a compilação
de um corpus de interpretação multimédia bidirecional. Recorrendo ao manancial do Parlamento
Europeu, selecionámos uma amostra de discursos proferidos em sessões plenárias deste órgão
legislativo por eurodeputados portugueses e britânicos. Este trabalho tem sido desenvolvido em
colaboração com os alunos da licenciatura em Línguas Aplicadas, no âmbito da unidade
curricular de 3º ano Princípios de Interpretação. Desde o ano letivo 2013/2014, os alunos têm
participado na transcrição e/ou revisão de discursos com recurso ao software EXMARaLDA –
Partitur, e no alinhamento dos originais com as respetivas interpretações, usando o alinhador web
Youalign. Com base no material assim preparado, cada aluno produziu uma análise global das
interpretações, tendo como ponto de referência uma tipologia adaptada de Falbo (1998). Esta
metodologia está esquematicamente representada na figura abaixo:
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Figura 2) Metodologia usada em aula
A julgar pelo feedback dos alunos, esta experiência didática, à qual pretendemos dar
continuidade nos próximos anos, tem surtido efeitos positivos. Entre os aspetos mais apreciados
pelos alunos, destaca-se a utilização de software de transcrição e de alinhamento, a exploração de
corpora com recurso a expressões regulares de pesquisa, e a aprendizagem de uma aparelhagem
concetual simples mas eficaz para descrever, com rigor científico, os fenómenos observados nos
textos por eles transcritos. Em relação a este último aspeto, em particular, a explicitação da noção
de coesão referencial (anáfora ou coreferência não anafórica) e a realização de alguns exercícios
para deteção dos princípios subjacentes à funcionalidade da anáfora revelaram-se particularmente
importantes para levar os alunos a encontrar problemas de coesão textual nas interpretações por
eles transcritas.
2. Mecanismos linguísticos de coesão textual
Ao longo desta segunda secção, iremos refletir sobre as propriedades que nos permitem
reconhecer um fragmento discursivo como um texto, dando especial relevo aos conceitos de
coesão e coerência. É nossa intenção enquadrar a anáfora num fenómeno mais vasto, que é o da
textualidade, pois só assim é possível compreender o verdadeiro impacto que o processo
anafórico tem na compreensão e produção discursivas.
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2.1. O binómio coesão/coerência
Consideramos, na senda de Fonseca (1992: 228), que o texto se realiza numa sequência de
frases interligadas de modo a configurar um todo dotado de sentido. Trata-se, pois, como
assinalam Barbeiro & Pereira (2007: 8), de uma unidade em que essas frases se combinam entre
si, estabelecendo relações de coesão linguística e de coerência lógica. Segundo o Dicionário
Terminológico (2008), são sete as principais propriedades que configuram a textualidade, que
designaremos, de forma mais simplificada, como propriedades do texto: coesão, coerência,
progressão temática, intertextualidade, metatextualidade, relação tipológica e polifonia. No que
respeita às noções de coesão e coerência textuais, por serem aquelas que mais implicações
apresentam para o tratamento do fenómeno anafórico, julgamos oportuno relembrar, na esteira do
trabalho pioneiro desenvolvido por Halliday & Hasan (1976), a existência no texto de uma
estrutura externa e de uma estrutura interna. Trata-se de dimensões extralinguísticas que, em
concomitância com os mecanismos estritamente linguísticos da produção discursiva, contribuem
para a construção do sentido do texto.
A coesão (ou conetividade sequencial) de um texto resulta de mecanismos léxico-
gramaticais que tornam o texto numa sequência de frases corretamente articuladas entre si. A
coesão textual concretiza-se através de vários meios: conetores que ligam os enunciados, regras
sintáticas de concordância (pessoa, género, número, tempo e modo), anáforas correferenciais,
entre outros. A coerência (ou conetividade concetual) de um texto implica e depende da
interligação semântica entre as frases que o constituem, ou seja, da sua conformidade com a
nossa apreensão cognitiva do mundo (coerência lógico-concetual) e da sua adequação ao
contexto comunicativo (coerência pragmático-funcional). A não contradição, a relevância e a
ausência de tautologia são elementos essenciais para assegurar a coerência de um texto e a
realização de um sentido que ultrapasse o das frases consideradas isoladamente. A coerência
prende-se com a existência de sentido no texto, ao passo que à coesão se atribuem propriedades
formais, isto é, regras gramaticais (Lopes & Carapinha, 2013: 108). Importa obviamente referir
que estas duas dimensões não se podem separar: uma implica a outra (Amor, 1993).
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2.2. Diferentes tipos de anáfora
A anáfora é essencialmente um fenómeno textual que depende de uma outra expressão
mencionada anteriormente no texto, geralmente designada de antecedente. Segundo Lopes &
Carapinha (2013: 56-68), existem diversos tipos de anáfora, conforme ilustram os exemplos
retirados de transcrições de discursos proferidos em sessões plenárias do Parlamento Europeu e
que comentamos de seguida:
a) Anáfora pronominal
Quando o antecedente é de natureza nominal, a anáfora pronominal parece ser o tipo de
anáfora contextual mais frequente na construção da referência de um texto. Podemos, a partir do
exemplo (1a) que se segue, definir a anáfora pronominal como uma relação anafórica em que os
termos são heterogéneos, quer do ponto de vista das categorias linguísticas a que pertencem - um
SN e um pronome -, quer do ponto de vista da sua autonomia referencial - o antecedente tem
autonomia referencial mas o termo anafórico não tem. Importa referir que os eurodeputados
portugueses tendem a alongar as frases através de mecanismos recorrentes de subordinação,
nomeadamente através do pronome relativo que, conforme ilustrado no exemplo abaixo:
(1a) A União Europeia deve estimular a Líbia a adotar soluções legais e sociais que
melhorem a desumana condição de vida dos cerca de 2 milhões de migrantes que trabalham na
Líbia, cerca de um quarto da população. Esses imigrantes merecem proteção legal, não podendo
continuar a ser tratados como hati, escravos.
(1b) We’ve got to make sure that about 2 million migrants who work in Libya have
decent human conditions. That’s about a quarter of the population. These immigrants do need
legal protection, they can’t continue to be treated as hati. That means slaves in Arabic.
A repetição de que no original português exige um esforço cognitivo adicional e maior
tempo de processamento, dado que mobiliza antecedentes (primeiro antecedente: soluções legais
e sociais / segundo antecedente: 2 milhões de migrantes) diferentes numa mesma frase. A
interpretação em inglês apenas preserva a cadeia anafórica relativa ao segundo antecedente (2
million migrants / who), sem que se perca, contudo, a informação veiculada pela cadeia anafórica
associada ao primeiro antecedente (a saber, a melhoria das condições de vida dos imigrantes). É
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de realçar a capacidade do intérprete de, numa única frase, condensar o conteúdo de duas orações
relativas, conseguindo assim economizar tempo de processamento para os restantes segmentos.
b) Anáfora zero ou elipse
Quando, na relação anafórica, o termo anafórico não tem realização lexical, i.e.,
corresponde a uma categoria vazia, falamos de elipse e de termos elípticos:
(2a) Although the High Representative has made excellent senior appointments, I’ve seen
some of these before AFET, I must ask why you’ve been short-changed in a stitch-up by the
Commission, who seem to have retained a disproportionate amount of resources for EU
enlargement and the ENP. This split does not provide value for money to EU taxpayers, nor does
it serve our foreign policy interests.
(2b) Apesar de a Alta Representante ter indicado pessoas nos serviços de ação externa, e
que são escolhas excelentes, porque é que não há aqui uns meios desproporcionalmente elevados
para o alargamento? Ø Não serve neste momento a nossa política externa nem os nossos
interesses específicos.
Em (2b), o recurso à elipse aumenta a opacidade do discurso, já de si complexo, que
coloca entraves ao estabelecimento de uma relação lógica entre as duas frases que compõem o
excerto. Esta elipse poderá ter sido uma consequência direta do elevado nível de densidade
informativa do original, que terá impedido a atribuição de um sujeito sintático ao verbo servir.
c) Anáfora nominal
Como relembra Figueiredo (2001: 398), a anáfora nominal resulta de um prolongamento
natural do antecedente por meio de repetição ou de substituição lexical ou, como veremos na
alínea seguinte, de processos inferenciais e de saberes partilhados, o que se traduz numa anáfora
não correferencial (associativa):
(3a) The AU, the African Union, could do far more. We have heard many platitudes
from the AU but we've seen little concrete action so far.
(3b) A União Europeia, a União Africana com certeza que poderiam fazer mais.
Ouvimos já belas declarações da UE mas até agora poucas ações.
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O exemplo (3b) exibe uma conexão interfrásica bem-sucedida do ponto de vista da coesão
e da coerência. Contudo, o antecedente único do discurso original (the African Union) passa a
assumir uma entidade dupla (A União Europeia, a União Africana) no discurso interpretado, que
despoleta a retoma parcial da entidade errada, provavelmente devido à semelhança fonética entre
‘AU’ e ‘EU’.
d) Anáfora associativa
A anáfora associativa pressupõe um mecanismo referencial (Marques, 2009) que se opõe
aos outros tipos de anáfora acima mencionados. Como refere Figueiredo (2001: 405), a anáfora
por associação é não correferencial e estabelece-se por via de uma relação meronímica de
parte/todo, pressupondo-se o saber partilhado de uma mesma comunidade linguística:
(4a) We know that Bulgaria and Romania have serious problems with crime and
corruption and I do not believe that their border controls are as good as those which would obtain
in other Schengen countries. They will therefore become a route and a conduit for illegal
immigrants into the European Union who, within the Schengen area, would then be free to come
to Calais and would definitely have the effect of increasing illegal immigration into the United
Kingdom.
(4b) Bulgária e Roménia têm problemas graves com o crime e a corrupção e eu não
acredito que os controlos na fronteira sejam da mesma forma e da mesma qualidade que noutros
países. Há rotas de migração ilegal e na área Schengen teremos esta liberdade destas rotas para
chegarem até Calais, isto vai aumentar também a imigração ilegal para o Reino Unido.
No contexto específico da imigração ilegal, é legítimo afirmar que existe um nexo
semântico associativo entre o SN Bulgária e Roménia (todo) e o SN rotas de migração ilegal
(parte). Contudo, devido à distância que separa estes dois elementos na linearidade do texto, esse
nexo poderia tornar-se mais saliente se o intérprete tivesse recorrido, por exemplo, a um locativo
espacial com valor anafórico (e.g., ‘lá’, ‘nesses países’).
Como podemos ver, cada uma das cadeias referenciais apresentadas nos quatro casos
anteriores faz uso de procedimentos léxico-gramaticais (Oliveira 1987; Kleiber 1994; Corblin
1995; Perdicoyanni-Paléologou 2001, entre outros) que instauram a dependência de um conjunto
de termos anafóricos relativamente a uma expressão nominal plena que inicia a cadeia
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referencial. Obtém-se, assim, uma rede de ligações intra e interfrásicas passível de se propagar ao
longo de todo um discurso, com implicações de processamento mais ou menos profundas. De
facto, considerando que o nosso objeto de estudo consiste num conjunto de discursos, torna-se
necessário observar os efeitos da anáfora numa perspetiva discursiva, ou seja, para além da
fronteira frásica (Lopes & Carapinha, 2013: 55).
3. A anáfora pronominal em interpretação simultânea
Sendo um texto uma tessitura resultante de uma ou várias cadeias anafóricas que se
entrelaçam, parece-nos importante relembrar que a construção do sentido passa precisamente
pelo encadeamento adequado entre os diferentes elementos que compõem essa tessitura. O
processamento cognitivo subjacente a estas operações torna-se obviamente mais complexo
quando realizado exclusivamente em suporte oral e sob fortes restrições temporais como é o caso
da interpretação simultânea.
3.1. Hipóteses de partida
Vários fatores linguísticos parecem-nos poder comprometer esta arquitetura,
nomeadamente:
i) o tipo de esquema sintático das línguas envolvidas – dado que o inglês tende para um
esquema paratático e o português para um esquema hipotático (Guillemin-Flescher, 1986;
Hoarau, 1997; Zemmour, 2012), é razoável esperar que haja um maior número de pronomes nos
discursos ingleses, quer nos originais, quer nas interpretações;
ii) a extensão da cadeia anafórica – devido à eventual sobrecarga da memória, também
nos parece legítimo avançar que quanto maior for a distância entre o antecedente e o termo
anafórico, maior será o número de cadeias anafóricas indevidamente restituídas.
3.2. Corpus de análise
Para testar estas hipóteses, foram analisados doze pares de discursos do Parlamento
Europeu. As transcrições destes discursos não contêm anotações de cariz paralinguístico (e.g.,
pausas, hesitações, palavras truncadas). Visto que estas não constituem o objeto de estudo do
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presente artigo, a sua introdução poderia dificultar a leitura dos excertos abaixo citados a título de
exemplo.
A amostra está equitativamente distribuída em termos de direção linguística, contendo
seis pares de discursos com original português (2.201 palavras) e interpretação em inglês (2.006
palavras) e seis pares de discursos com original inglês (1.644 palavras) e interpretação em
português (1.350 palavras). No total, a amostra contém 7.201 palavras.
Com base neste corpus, procedeu-se a uma extração de pronomes
3
. A tabela seguinte
mostra uma clara assimetria numérica nas duas línguas: quer consideremos o inglês como língua
de partida, quer como língua de chegada, os pronomes são mais frequentes na língua germânica
do que na românica:
Tabela 1: Número de pronomes
Como veremos, esta assimetria não se deve apenas ao facto de o inglês ser, por oposição
ao português, uma língua de sujeito foneticamente realizado mas também à predileção dessa
língua por estruturas coordenadas que consistem em ordenar ao lado umas das outras orações sem
estabelecer um nexo de dependência entre elas (do grego, para(παρα) = ao lado de e taxe(ταξη) =
ordenação) (Matos, 2005: 687).
3
Embora o foco deste trabalho incida sobre a anáfora pronominal, achámos importante incluir nesta contagem os determinantes possessivos, uma
vez que estes marcadores suscitam casos de ambiguidade que nos pareceu relevante analisar (ver secção 3.4.3.)
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3.3. Características gerais da utilização de pronomes
Uma análise preliminar deste corpus revela dois padrões linguísticos que perpassam os
discursos interpretados de português para inglês: a predileção pela hipotaxe e a utilização
estratégica do pronome we.
3.3.1. Esquema hipotático (PT) versus paratático (EN)
Como referimos acima, assiste-se na passagem do original português para a sua
interpretação em inglês a uma utilização mais recorrente da coordenação em detrimento da
subordinação, o que obriga o intérprete a atribuir um sujeito sintático ao verbo de cada uma das
orações coordenadas por ele criadas. Em (5b), o pronome pessoal we é suficientemente impessoal
para que o intérprete possa atribuir, sem se comprometer, um sujeito sintático à oração
independente que introduz no seu discurso:
(5a) Neste debate não podemos esquecer que existe uma proposta dum chamado pacto de
competitividade através do qual o diretório, comandado pela Alemanha, quer desferir novos
ataques ao regime público solidário e universal da segurança social, aumentar a idade da reforma
e desvalorizar salários, tentando pôr fim à sua indexação à taxa de inflação apenas para
beneficiar o setor financeiro, o qual pretende encontrar nas pensões novas formas de maiores
ganhos especulativos.
(5b) We must remember in this debate that there is a proposal relating to the
competitiveness pact. Germany in particular seems to be very ready to attack the system of public
security by lowering salaries, by exacerbating inflation largely for the benefit of the financial
sector and we know that the financial sector wants to continue to gamble through private
financing of pensions.
Existe neste excerto original em português um grupo nominal (pacto de competitividade /
sector financeiro) que identifica o referente para a interpretação de cada um dos pronomes
relativos subsequentes ((d)o qual). Neste caso, o original opta claramente pela hipotaxe que
ordena duas orações, estabelecendo a dependência de uma relativamente à outra (do grego,
hipo(υπο) = posição inferior e taxe(ταξη) = ordenação) (Matos, 2005: 687). Na passagem para a
interpretação em inglês, pelo contrário, perdemos estes pronomes; as orações passam a ser
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associadas entre si quer por justaposição, quer por coordenação. A construção destes esquemas de
parataxe pode ser muitas vezes complicada, entre outros fatores, pela velocidade de elocução do
original. Este fator pode, por exemplo, obstaculizar o processo de reconhecimento e atribuição de
sujeito sintático às orações que vão sendo criadas. Nestes casos, verificou-se uma tendência de
utilização do pronome pessoal genérico we. A tendência é, aliás, comprovada pela discrepância
entre a frequência deste pronome nos originais portugueses por oposição aos originais ingleses:
sete ocorrências versus vinte e oito ocorrências, respetivamente.
3.3.2. Uso estratégico da 1ª pessoal do plural
O uso deste pronome pessoal torna-se um instrumento particularmente útil quando o
intérprete não consegue identificar de forma exata o antecedente. Em (6b), por exemplo,
deparamo-nos com um elo anafórico pouco evidente entre o pronome ela e o antecedente
imediatamente anterior (Europa pós-queda do muro):
(6a) Isto parece-me uma perversão fundamental dos princípios da Europa pós-89, da
Europa pós-queda do muro. O que ela queria dizer é que nós não abandonaríamos os nossos
irmãos europeus de qualquer país à censura e à repressão à liberdade de expressão.
(6b) I think this runs completely counter to the principles of Europe, particularly after
the fall of the Wall. We have said that we will not leave Europeans subject to censorship in any
country.
As operações de conversão da hipotaxe em parataxe implicam por parte do intérprete um
esforço de explicitação do sujeito sintático. Dado que nem sempre é fácil encontrar um sujeito
adequado, o uso do pronome genérico we adquire uma dimensão estratégica de grande utilidade.
3.4. A anáfora pronominal: um desafio de interpretação
Nas secções que se seguem, apresentamos alguns casos em que a anáfora pronominal se
coloca como um desafio de processamento textual, que o intérprete deve superar a fim de restituir
a mensagem original de forma coesa e coerente. Importa salvaguardar que os exemplos abaixo
citados não esgotam a variedade de problemas relacionados com este fenómeno linguístico.
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3.4.1. Transposição do antecedente
O discurso original que se segue contém uma relação anafórica, na qual o SN diversidade
de condições naturais é o antecedente e o pronome clítico -la é o termo anafórico. O intérprete
procura manter essa cadeia anafórica, mas opta por converter o nome diversidade no adjetivo
diverse. Essa operação não levanta à primeira vista grandes problemas, dado que, em inglês, o
pronome them, que surge duas vezes, retoma devidamente o seu antecedente plural (natural
conditions); no original em português, o clítico -la (também repetido) retoma de igual modo o
sintagma nominal singular a que está associado (diversidade de condições naturais). De facto,
não parece haver aqui em nenhum dos casos uma rutura da cadeia anafórica. No entanto, o
vestígio da preposição of parece indicar que ficou armazenada na memória do intérprete a
combinação do original (a diversidade das condições naturais) e não aquela que acabou por ser
efetivamente verbalizada (diverse natural conditions):
(7a) Uma segunda nota para chamar a atenção para a enorme diversidade de condições
naturais e, consequentemente, de ecossistemas florestais que ocorrem na Europa. Impõe-se
reconhecê-la e valorizá-la, valorizando a sua multifuncionalidade e o seu potencial gerador de
emprego e de desenvolvimento no mundo rural.
(7b) A second point to draw your attention to the very diverse natural conditions and
therefore of the forestry ecosystems that exist in Europe. One has to recognise them and make
use of them, make using [sic] of their multipurpose value and helping to develop the rural world.
Como vemos, estes processos de transposição (Chuquet & Paillard, 1989) são
perfeitamente possíveis em interpretação, mas é importante não descurar as alterações que
decorrem dessa transposição.
3.4.2. Distância entre antecedente e termo anafórico
A reconstituição das cadeias anafóricas por um intérprete pode tornar-se particularmente
difícil quando pelo meio vai surgindo uma série de orações participais ou gerundivas que afasta
consideravelmente o termo anafórico (neste caso, o pronome relativo que) do seu antecedente
(quadro financeiro plurianual):
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(8a) Quando se vive uma crise económica e social, um dos maiores desafios que se coloca
é encontrar um novo quadro financeiro plurianual em que haja um aumento significativo do
orçamento comunitário para apoio da coesão económica e social, acompanhado da diminuição da
obrigatoriedade da comparticipação nacional, reduzindo-a, no máximo, a 10 % do projeto
apresentado, sobretudo nos países com maiores dificuldades financeiras, que aposte no
investimento, em serviços públicos, no apoio à produção, na criação de emprego com direitos, na
erradicação da pobreza, das desigualdades sociais e de todo o tipo de discriminações,
designadamente de género.
(8b) If you've got an economic and social area, the major challenges are the Multiannual
Financial Framework. You can have a significant increase in community monies to support
economic and social cohesion there, flanked with a reduction of necessity of Member States to
participate. Unless we do things properly, countries which have financial difficulties are going to
have problems investing in public investment areas, in getting rid of poverty, getting rid of social
inequalities and any type of discrimination, particularly gender discrimination.
A distância entre os dois polos da relação anafórica amplia o espectro de potenciais
antecedentes. Devido à capacidade limitada de armazenamento de informação, o intérprete
estabelece, neste caso, uma relação entre o anafórico e o antecedente mais próximo,
acrescentando uma informação que não figura explicitamente no original (“countries which have
financial difficulties are going to have problems investing in public investment areas”).
3.4.3. Ambiguidade da relação entre antecedente e termo anafórico
A ambiguidade é um problema recorrente na interpretação, que se agrava na presença de
determinantes possessivos. No exemplo que segue, o determinante possessivo sua é precedido de
três candidatos possíveis à função de antecedente:
(9a) A Líbia deve ser persuadida a ratificar a Convenção de Genebra sobre os
Refugiados, não se compreendendo que, sendo já parte da Convenção Africana para os
Refugiados, não reconheça na sua ordem interna o Estatuto do Refugiado.
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(9b) Libya has to be persuaded to ratify the Geneva Convention on Refugees. It is part
of the African Convention for Refugees but that does not recognise the status of refugee within
it.
Na interpretação, a oração completiva transforma-se numa oração coordenada adversativa
encabeçada pelo pronome demonstrativo that, que remete para o antecedente imediatamente
anterior (African Convention for Refugees) e não para o antecedente expectável (Líbia). Neste
caso, a ambiguidade resultante do possessivo no original leva o intérprete a introduzir um
pronome que remete, mais uma vez, por motivos de memória textual, para o antecedente mais
próximo. Como vimos, o termo anafórico pode surgir afastado do antecedente, em virtude da
introdução de elementos parentéticos, pelo que a escolha do antecedente imediatamente anterior
nem sempre é adequada.
3.4.4. Perda do antecedente
Um raciocínio inicial um pouco complexo que diz respeito à súbita alteração do modo de
reembolso das viagens dos eurodeputados exigiu um esforço adicional de compreensão por parte
do intérprete, inviabilizando a restituição do segmento subsequente (“E o mesmo tipo de critério
se aplica aos nossos salários e despesas”). Nesse segmento, figura o antecedente (nossos salários
e despesas) de uma cadeia anafórica que o intérprete não consegue recuperar, pelo que recorre ao
substantivo genérico decisions, ao qual aplica o adjetivo excessive:
(11a) Desculpem lá, mas não é normal que deputados que viajaram sempre em económica
tenham passado a fazê-lo em executiva mal os voos começaram a ser reembolsados ao bilhete e
não ao quilómetro. E o mesmo tipo de critério se aplica aos nossos salários e despesas. A minha
opinião é a de que eles são excessivos, nalguns casos até são extravagantes, mas não é isso que
está agora em causa, o que está em causa é saber se temos a coragem de votar pelo menos o
congelamento destas despesas.
(11b) Sorry, but it’s not right for MEPs who never travelled business in the past to do so
now, who started changing things in light of different circumstances. I think a lot of the decisions
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we've taken are excessive and indeed extravagant but what's really at stake is: do we have the
courage to at least vote in favour of freezing this expenditure?
A utilização do substantivo ‘decisão’ no plural revela que o intérprete foi sensível à
existência de mais elementos implicados no raciocínio para além das viagens, mas não foi capaz
de os recuperar. Admitimos, contudo, que os ouvintes deste discurso, estando diretamente
envolvidos na temática abordada, sejam capazes de inferir o âmbito de aplicação das decisions a
que o intérprete se refere. Este dado vem corroborar a importância dos fatores extralinguísticos na
interpretação, nomeadamente os complementos cognitivos (Seleskovitch & Lederer, 1984) do
ouvinte, que permitem colmatar lacunas decorrentes de eventuais omissões por parte do
intérprete.
4. Considerações finais
A referência anafórica é, sem dúvida, uma condição básica para a construção de qualquer
ato comunicativo. É ela que contribui para a organização textual, na medida em que assegura a
progressão temática. Este fenómeno reveste-se de especial importância numa atividade como a
interpretação, cujo objetivo último consiste em promover a inteligibilidade comunicativa de uma
mensagem-fonte. Através deste estudo baseado numa pequena amostra aleatória, foi possível
identificar alguns problemas de natureza anafórica resultantes de fatores como a distância entre
anafórico e antecedente, a ambiguidade da relação entre estes dois elementos, a mudança de
categoria gramatical e a omissão do antecedente. Os exemplos analisados parecem sustentar as
hipóteses inicialmente avançadas, tendo-se verificado i) um maior número de pronomes em
inglês (sobretudo we) resultante da conversão do esquema hipotático em paratático, que obriga a
um esforço de reconfiguração das relações anafóricas; e ii) uma maior dificuldade em preservar
as cadeias anafóricas do original em função da distância entre anafórico e antecedente, devido à
capacidade limitada da memória de trabalho.
Este tipo de reflexão baseia-se na premissa de que o trabalho de reflexão sobre a prática
da interpretação através de dados reais, i.e., de um corpus (informatizado ou não), promove a
consciência metalinguística nos estudantes e pode, por conseguinte, ajudar a desenvolver
estratégias de antecipação e resolução de problemas (Sandrelli, 2010).
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Agradecimentos
Este trabalho foi realizado com o apoio da Bolsa de Investigação com a referência SFRH / BD /
88142 / 2012, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia no âmbito do Programa
Operacional Potencial Humano inscrito no Quadro de Referência Estratégico Nacional
(Formação Avançada), comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do
Ministério da Educação e Ciência.
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