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Educ. Soc., Campinas, v. 44, e273812, 2023 1
RESUMO: O artigo analisa os desaos decorrentes do crescente predomínio da
visão neoliberal e da funcionalização da educação no contexto da cultura digital
e suas implicações na concepção de formação universitária. O desenvolvimento
do texto envolve três tópicos: o primeiro analisa a funcionalização da educação no
contexto da cultura digital, o segundo apresenta alguns resultados do avanço da
mediação digital na formação universitária e reete sobre eles, e o terceiro avalia os
desaos éticos da formação diante do avanço do tecnopoder e da indústria cultural
digital. Concluiu-se que, perante a instrumentalização da razão e da formação,
é preciso prevalecer o princípio da responsabilidade, fazendo com que todo o
conhecimento produzido tenha como objetivos primeiros afastar os riscos à vida
e arrefecer as desigualdades entre as pessoas.
Palavras-chave: Formação. Cultura digital. Universidade. Ética da responsabilidade.
UNIVERSITY AND FORMATION IN THE AGE OF DIGITAL CULTURE
ABSTRACT: e article analyzes the challenges arising from the growing
predominance of the neoliberal vision and the functionalization of education in
the context of digital culture and its implications for the conception of university
education. e development of the text involves three topics: the rst one analyzes
the functionalization of education in the context of digital culture, the second
one presents some results arising from the advancement of digital mediation
in university formation and reects on them, and the third one evaluates the
ethical challenges of formation in the face of the advance of technopower and
the digital cultural industry. It was concluded that, given the instrumentalization
of reason and formation, the principle of responsibility must prevail, so that all
knowledge produced has the primary objective of avoiding life risks and reducing
inequalities between people.
Keywords: Formation. Digital culture. University. Ethics of responsibility.
UNIVERSIDADE E FORMAÇÃO NA ERA DA CULTURA DIGITAL
E H M
A Á S Z
P L G
https://doi.org/10.1590/ES.273812 DOSSIÊ | UNIVERSIDADE, PENSAMENTO CRÍTICO E FORMAÇÃO
1. Universidade de Passo Fundo – Passo Fundo (RS), Brasil. E-mail: eldon@upf.br
2. Universidade Federal de São Carlos – São Carlos (SP), Brasil. E-mail: dazu@ufscar.br
3. Universidade Estadual de Campinas – Campinas (SP), Brasil. E-mail: pedro.goergen@hotmail.com
Editora de seção: Ivany Pino
Universidade e formação na era da cultura digital
Educ. Soc., Campinas, v. 44, e273812, 2023
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Introdução
O
avanço da cultura digital, agregado ao crescente predomínio da visão neoliberal hoje presente em
todas as dimensões da ação humana, apresenta-se como um dos maiores desaos da formação,
especialmente da formação universitária. A universidade, em cuja origem há a concepção de
formação (Bildung) enquanto desenvolvimento da autonomia, da liberdade, do esclarecimento e da ética,
vê atualmente fenecer tal noção sob a imposição de uma formação reduzida, instrumentalizada, voltada ao
controle e à manipulação pelo uso dos diversos recursos fornecidos pela indústria cultural digital.
O tecnopoder, em desenvolvimento por meio da cultura digital, ao mesmo tempo que amplia as
informações e facilita a manipulação dos dados, intensica e torna cada vez mais complexos os processos e
os mecanismos de manipulação e controle sobre indivíduos, grupos e instituições. Isso não só limita a ação
autônoma e consciente dos indivíduos, como possibilita o seu controle mediante mecanismos cada vez mais
sosticados, que colocam em risco a integridade dos seres humanos, da natureza e do próprio universo.
Reetir acerca do processo em formação e avaliar a contribuição da universidade no desenvolvimento
da crítica diante dessa situação são os objetivos deste artigo. Para tanto, ele será desenvolvido em três tópicos.
No primeiro, analisa-se a funcionalização da educação no contexto da cultura digital em confronto com a ideia
de formação nascida na modernidade, expressa na ideia de Bildung. No segundo tópico, descrevem-se alguns
resultados e manifestações que a cultura digital está a promover em diferentes contextos, especialmente no
universitário, e reete-se sobre eles, destacando suas implicações formativas e deformativas, sobretudo quando
a formação (Bildung) é convertida em semiformação (Halbbildung) na sociedade cujos comportamentos
são instantaneamente metricados, uma vez que prevalece o processo de digitalização da vida humana em
praticamente todas as suas manifestações. No terceiro tópico, sustentado principalmente na crítica de Hans
Jonas, amplia-se a crítica diante do atual contexto na perspectiva de suas consequências éticas.
A análise conta com importantes contribuições da crítica atual sobre neoliberalismo e a cultura
digital, com destaque para as reexões de Adorno e Horkheimer (1986), Heidegger (1997), Habermas
(2000, 2004), Hans Jonas (2006, 2013), Sutherland (2008), Adorno (2010), Türcke (2010, 2019), Loh (2018),
Loveluck (2018), Van Dick, Poell e De Wall (2018), Mau (2019), Zubo (2019), Wulf (2022), entre outros.
Cabe ressaltar que, apesar de os autores seguirem orientações teóricas divergentes, eles se aproximam na
crítica ao reducionismo da formação promovida pela indústria cultural e pela cultura digital.
UNIVERSIDAD Y FORMACIÓN EN LA ERA DE LA CULTURA DIGITAL
RESUMEN: El artículo analiza los desafíos derivados del creciente predominio
de la visión neoliberal y la funcionalización de la educación en el contexto de la
cultura digital y sus implicaciones para la concepción de la educación universitaria.
Eldesarrollo del texto involucra tres temas: el primero, que analiza la funcionalización
de la educación en el contexto de la cultura digital, el segundo, que presenta y
reexiona sobre algunos resultados derivados del avance de la mediación digital en
la formación universitaria, y el tercero, que evalúa los desafíos éticos de la formación
ante el avance del tecnopoder y la industria cultural digital. Se concluye que, dada
la instrumentalización de la razón y la formación, debe prevalecer el principio de
responsabilidad, de modo que todo conocimiento producido tenga como objetivo
primordial evitar riesgos de la vida y reducir las desigualdades entre las personas.
Palabras clave: Formación. Cultura digital. Universidad. Ética de la responsabilidad.
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Como conclusão, aponta-se que, em vez do incentivo à produção e difusão da instrumentalização
da razão, é preciso fazer com que prevaleça o princípio da responsabilidade de que todo o conhecimento
produzido tenha como objetivos primevos afastar os riscos e arrefecer as desigualdades entre as pessoas, de
maneira especial na vida universitária. Sendo assim, a revitalização da formação no cenário da cultura digital
não se resume à sua dimensão cognitiva, pois se trata prioritariamente de fazer com que a sua dimensão ético-
moral se faça imanentemente presente em quaisquer formas de produção digital do conhecimento. Nessa
linha de raciocínio, a seguir são apresentadas as considerações críticas sobre o processo de funcionalização
da educação na sociedade na qual prevalece a denominada cultura digital.
A Funcionalização da Educação Diante do Sistema Maquínico Digital
Vivemos hoje mergulhados em profunda crise econômica, política e cultural que se reete na
educação, gerando incertezas relativas ao futuro que nos espera. Os regimes conservadores opõem-se aos
impulsos pedagógicos inovadores voltados para a conscientização crítica das novas gerações e aderem ao
modelo educacional posto a serviço do sistema econômico neoliberal. Disso resulta um importante conito
entre os espaços púbico e privado, representando o público a sociedade como um todo com base nos conceitos
de direito, justiça e igualdade. Em sentido oposto, a educação de natureza privada privilegia os interesses,
especialmente econômicos, de indivíduos e/ou grupos sociais. Em termos genéricos, essa tensão entre o
privado e o público representa um enorme desao para as prática e política pedagógicas na atualidade.
No sistema do chamado capitalismo de vigilância, magistralmente examinado por Shoshana Zubo,
na sua obra magna, A era do capitalismo de vigilância, o que mais importa na educação contemporânea
não são propriamente o ser humano nem a sociedade em si, mas os interesses sistêmicos/produtivistas que
moldam o ser humano na atualidade. Nos termos de Zubo (2019, p. 19):
Os capitalistas de vigilância descobriram que os dados comportamentais mais preditivos
provêm da intervenção no jogo de modo a incentivar, persuadir, sintonizar e arrebanhar
comportamentos em busca de resultados lucrativos. Pressões de natureza competitiva
provocaram a mudança, na qual processos de máquina automatizados não só conhecem
nosso comportamento, como também moldam nosso comportamento em escala. Com tal
reorientação transformando conhecimento em poder, não basta mais automatizar o uxo de
informação sobre nós; agora a meta é nos automatizar.
Na perspectiva dessa leitura sistêmica, o que mais importa hoje é otimizar a produtividade e a
competitividade no contexto de um regime economicista que é tanto melhor quanto mais se ajusta aos
interesses do capitalismo sistêmico. Em outros termos, boa educação é aquela que assume, como seu principal
eixo de atuação, o ideal da competitividade intrinsecamente relacionado à exclusão do outro, visto que no
sistema maquínico contemporâneo não há, por denição, lugar para todos. Assim sendo, não é mais o sistema
econômico que serve ao ser humano, mas, inversamente, o ser humano serve ao sistema.
Essa inversão, ocorrida na chamada segunda modernidade e que dene novas condições humanas
de existência focadas na individualização, levou-nos a vagar em busca de recursos para assegurar uma
vida efetiva num contexto econômico no qual as pessoas aparentam ser enaltecidas em sua importância e
centralidade quando são reduzidas à condição de meros números num sistema econômico frio e calculista que
tem em conta apenas a rentabilidade e o lucro. De todos os lados nos é incutida a ideia de nossa importância,
quando não passamos de meros agentes produtivos. Gera-se, assim, um cenário de perplexidade, no qual
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um número cada vez maior de pessoas não acredita mais na ideia da necessidade do sacrifício pessoal como
condição de um mundo melhor no futuro1.
Do ponto de vista acadêmico, esse cenário torna incontornável e urgente que a universidade
promova uma reexão crítica relativa a essa condição da educação na atualidade, visando fundamentar,
com base em argumentos de natureza histórica/antropológica, a necessidade e urgência da revalorização e
reatualização do sentido humanista/clássico da educação e, portanto, afeito à formação (Bildung). Trata-sede
evitar que a educação se transforme em agente maquínico do sistema econômico, que inverte a relação
homem e máquina, conferindo a esta última uma proeminência nunca antes vista na história. Numa palavra,
trata-se de argumentar criticamente sobre o sentido da maquinização, hoje tão em voga, contrapondo-lhe a
autonomia social/subjetiva como sentido estruturante de uma antropologia renovada.
Janina Loh (2018) inicia seu livro Trans- und Posthumanismus (ainda sem tradução) indicando
que esses termos se fundamentam não numa transformação, mas na superação do humanismo tradicional
por uma inteligência articial no pós-modernismo tecnológico. A autora concentra-se em três recortes do
humanismo: imagem humana e formação; interpretação do humanismo como correntes individualistas ou
coletivistas; e espírito e corpo no pensamento humanista.
Quanto ao primeiro ponto, relativo à imagem e à formação humana, o humanismo fundamenta
certa ideia de formação associada a uma imagem do ser humano radicalmente distinta do animal, na medida
em que está disposta a cultivar as relações com os demais seres humanos após determinada formação.
Diferentemente do animal, o ser humano é capaz, mediante a educação, de transformar-se num ser lantrópico
e civilizado, a ponto de sensibilizar-se em relação aos outros. A lantropia humana preserva o potencial de
desenvolvimento mediante a educação para não retornar ao nível do animal selvagem.
Assim sendo, a imagem lantrópica do ser humano está posta, porém, em termos de um ideal
ainda carente de um desenvolvimento mediado pela educação ao longo da vida para evitar a regressão
à crueza selvagem, própria dos animais. Foi na Grécia Antiga que se rmou o espaço do homem como
intermediário entre o divino, de um lado, e o animalesco, de outro. Desde então, o esforço do ser humano
consiste basicamente na luta pelo distanciamento do animalesco e, em sentido oposto, à aproximação do
divino. Nesses termos, entende-se que o relacionamento intra-humano não é apenas um destino que nos é
legado por nascimento, mas algo que resulta do processo formativo fundamentado na responsabilidade, na
liberdade e na razão, como elementos estruturantes de um abrangente autocultivo.
O humanismo antigo, baseado no conceito latino de humanitas, era de natureza coletivista, ao
passo que, no século 19 tal denominação assumiu uma conotação mais individualista. Em outros termos,
os dois elementos centrais dessa tradição cultural são, de um lado, o humanismo antigo, coletivista,
ainda carente do viés social/crítico, e o humanismo surgido o século 19, que assumiu, pelo menos
tendencialmente, uma antropologia de natureza mais individualista, compreendendo o ser humano como
autônomo, responsável por si mesmo.
Nesse sentido, em resposta à pergunta se o humanismo é historicamente de natureza individualista
ou coletivista, pode-se dizer que, em termos gerais, hoje prevalece a postura individualista, muito embora
sejam consideráveis as tentativas históricas de socialização sistêmica da formação humana, ou seja, do uso
político/ideológico da formação. Parece bastante evidente que o humanismo abriga, na sua essência, uma
concepção individualista, e não coletivista de natureza humana, ainda que a maioria dos sistemas políticos
autoritários defenda a natureza coletivista da essência humana. Assim sendo, é plausível argumentar
que toda a antropologia privilegia, tendencialmente, uma postura coletivista pelo simples fato de estar
fundamentada, de um lado, na ideia de uma essência humana universal e, de outro, ser condição inexcusável
da convivência social.
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Do ponto de vista pedagógico, o individualismo e o coletivismo são princípios contrapostos,
autoritários e coercitivos, inadequados para a regência das redes relacionais intraescolares, entre alunos,
professores, dirigentes escolares e funcionários, e extraescolares, que envolvem os familiares. Em outros
termos, é preciso preservar o espaço adequado para o exercício da liberdade individual, sem prejuízo para
a coletividade escolar. Os diversos atores (alunos, professores, pais e funcionários) devem fazer parte de um
projeto pedagógico que visa formar os/as jovens de modo equilibrado para a prossionalidade e a cidadania.
Seja como for, diferentemente de outros seres vivos condicionados por seus instintos, o ser humano
tem consciência e capacidade de reetir, com os outros, sobre sua existência e seu entorno na busca de
constantes antropológicas comuns a todos que, embora em diferentes níveis de realização, buscam conferir
sentido à sua vida. Mesmo assim e apesar desse esforço, persiste até hoje a fundamental dicotomia entre o
direito natural à liberdade individual e a pretensão das ideologias dogmáticas ou das religiões que exigem
obediência e submissão às respectivas doutrinas. Segundo Habermas (2000, p. 105):
As ciências modernas renunciaram à pretensão da razão da tradição losóca. Com elas
inverte-se a relação clássica entre teoria e práxis. As ciências naturais, produtoras de um saber
tecnicamente útil, transformaram-se em uma forma de reexão da práxis e na primeira força
produtiva. Pertencem ao contexto funcional da sociedade moderna.
Com o surgimento das máquinas eletrônicas, sobretudo o computador, gerou-se um novo espaço
público de comunicação intersubjetiva com ambientes inéditos de circulação de conteúdos verdadeiros e
falsos, cujos efeitos dependem da capacidade de avaliação das pessoas às quais chegam sem controle nem
parâmetros consistentes de veracidade. Essas formas inéditas de sociabilidade que circulam pelos ambientes
virtuais na internet se fundamentam em comunidades virtuais de vínculos ad hoc de solidariedade, com base
em representações sociológicas e culturais de cooperação que, na forma de escolhas individuais, interferem
nos conceitos tradicionais de comunidade e de sociedade, num processo designado por Loveluck (2018, p. 80)
de hibridismo ser humano-máquina que, no m das contas, resulta num profundo e ambíguo questionamento
antropológico pela fetichização da técnica e da perda da solidariedade.
Nesse contexto, a educação, via de regra, ensina aos jovens os meandros e as fórmulas do
apoderamento técnico do mundo, mas não lhes ensina a capacidade do fruir dionisíaco e orgiástico da vida
e do mundo desprendido das cadeias da utilidade. A escola, embora deva manter estreita relação com a
realidade, não pode cair na fatal cilada da pura aderência ao real. Se preferir essa opção, não se tornará apenas
reprodutiva, como diziam Bourdieu e Passeron (2012), mas será positivamente produtiva de uma realidade
opressora, excludente e injusta.
Por essa razão, a escola não pode imitar a realidade, porém deve conhecê-la e transcendê-la
criticamente com base num ideal de ser humano congurado após cuidadosa e profunda reexão pedagógico-
losóca propensa à revitalização do conceito de formação (Bildung), cuja origem concerne à expectativa
vigente, já no m do século 18 e início do 19, de que o desenvolvimento da individualidade esclarecida,
letrada, autônoma e ética comporia o lastro da subjetividade afeita ao movimento gradativo de universalização
da cidadania. Caso ocorra o contrário, todo o pensamento se canaliza para o curso da razão instrumental,
subserviente aos interesses do sistema econômico.
Na contramão da hegemonia da razão instrumental, nota-se a ênfase posta na relação entre
pedagogia e antropologia. Efetivamente, há interdependência entre a pedagogia e a antropologia histórica
e cultural com base na qual é possível combinar e recombinar imagens do processo de criação e recriação
da realidade. Nesse sentido, a imaginação pode ser performativa, permitindo que sua dinâmica contribua
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para a organização e reorganização performática do tempo histórico com suas especicidades culturais e
econômicas. No dizer de Wulf (2022, p. 35):
Elementos utópicos voltados para a “melhoria” dos seres humanos estão no centro dos
conceitos e teorias da educação. Eles estão relacionados com imagens e ideias de pessoas
que tornam visível algo que ainda não se tornou realidade. Ao longo da história, muitos
desses projetos e utopias revelam seu poder de criar realidade. A m de poder educar, foram
concebidas imagensde seres humanos e desenvolvidos sonhos e concepções com a ajuda dos
quais essasimagens de seres humanos deveriam ser realizadas.
Nesses termos, é mister nunca esquecer que os elementos utópicos desempenham um papel relevante
no que diz respeito à melhoria da educação. Em razão disso, é acertada a tese de Wulf (2022, p. 51-52), segundo
a qual “o sonho da educação humana é tão necessário quanto a própria educação”. Efetivamente, os professores
não devem apenas trabalhar a realidade como ela é, ou seja, ostentar dados cientícos/históricos como
fatos, mas entendê-los como construtos históricos de mundo aos quais é inerente uma intenção pedagógica
portadora de uma visão histórica de mundo e dos seres humanos. De fato, esse é um aspecto crucial para
que se possa fomentar a renovação da formação, na medida em que essa conscientização sócio-histórica se
consolida como lastro formativo de reengajamento ético-moral com o outro.
Assim sendo, é de crucial relevância no processo pedagógico reconhecer que já não dispomos de
referências seguras, ancoradas em certos pressupostos sociais, culturais, antropológicos ou mesmo religiosos
que nos sirvam de orientação e fundamentam a autoridade pedagógica; ao contrário, todas as referências
precisam ser debatidas e fundamentadas social/antropologicamente com os estudantes para que estes possam,
em termos dialógicos, construir sua própria visão de mundo e, portanto, serem formados. Nesse processo está
subentendido que a visão de mundo é um produto de cada época com suas certezas e dúvidas, emergentes da
evolução social/histórica e humanista em crise. Ou seja, o futuro da espécie humana deixa de ser considerado
um cenário xo para o qual habilitamos a juventude, seja em função de argumentos utilitaristas, seja de
fundamentos antropológicos.
Nesse contexto, um dos mais relevantes desaos pedagógicos da atualidade é o da economização,
ou seja, a funcionalização da educação, tanto em relação às diferentes disciplinas quanto à educação de modo
geral ao sentido prossionalizante. Assim sendo, os/as jovens e também a população em termos mais amplos
precisam aprender a lidar com a realidade social/econômica, visando preparar as novas gerações para essa
insurgente e desaadora realidade. Um breve olhar histórico nos permite constatar que a vertente losóca
desse cenário se fundamenta no cogito, ergo sum cartesiano, que poderia ser traduzido, em termos atuais, por
me submeto ao sistema, portanto sou alguém, como a raiz de uma realidade racional que atualmente assume
sua mais forte radicalidade resumida na seguinte pergunta: o que prevalece hoje é o sujeito, a sociedade ou
o sistema econômico?
Contraditoriamente, a desaadora luta do ser humano por sua emancipação, autonomia e liberdade,
tão caras ao conceito clássico de formação (Bildung), resulta na sua submissão aos interesses economicistas,
aceita com crescente naturalidade a cada dia que passa. Em termos pedagógicos, o desao hoje posto é o
da promoção da consciência, segundo a qual é preciso recuperar o sentido humano do desenvolvimento do
indivíduo enquanto sujeito integral e autônomo, numa espécie de revitalização dos princípios da Bildung no
cenário da cultura digital.
Nesse contexto, marcado pela utilidade e previsibilidade, ressurgem, como ponta de luz, a poesia e
a arte como as novas possibilidades de reconciliação do ser humano consigo mesmo e com as circunstâncias
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não mensuráveis pela ciência. O desao atual é, portanto, criar quadros de referência e visões de mundo que
devem ser debatidos com base num discurso focado no sentido humano dos rumos sociais e epistêmicos do
discurso pedagógico na atualidade.
Uma das questões centrais da educação atual é a mediação do digital, que vem ocupando um espaço
cada vez maior, sobretudo entre as jovens gerações, muitas vezes designadas como fabricantes ou produtores
digitais. Hoje ainda é difícil avaliar os efeitos desse processo mimético, cada vez mais generalizado, sobre os
processos pedagógicos, que estão, por assim dizer, reconstituindo as relações das pessoas entre si e com o
mundo de forma muito radical. Logo, os professores, em sala de aula, têm entre 20 e 30 alunos à sua frente,
sujeitos diferentes entre si na estrutura profunda de sua subjetividade e singularidade. A educação representa um
processo mimético de aprendizagem e apropriação em que, apesar de um grupo de alunos receber ensinamentos
iguais e coetâneos, cada processo de aprendizagem é sempre individual e único em cada momento.
Hoje a mediação do digital ocupa lugar cada vez mais relevante em todos os contextos sociais, tais
como política, economia, técnica, cultura, educação e outras mais. Especialmente na educação, a digitalização
está assumindo crescente destaque com as mais diferentes intenções, desde as mais nobres até as mais banais.
Na avaliação de Christoph Wulf (2022, p. 172):
Dado o papel central desempenhado pela digitalização e inteligência articial em nossas
sociedades, a educação das gerações futuras nesta área é de considerável importância. Osjovens
precisam aprender uma abordagem consciente, reexiva e crítica das práticas da cultura e da
inteligência articial. Em vista dos muitos resultados da inteligência articial ou do aprendizado
de máquina, é necessário um amplo conhecimento para lidar de maneira independente e
reexiva com sua complexidade.
Sem a digitalização e a inteligência articial, não parece mais possível uma vida criativa e satisfatória
na sociedade atual, na medida em que ambas vêm se tornando parte integrante tanto de nossa imaginação
quanto dos pensamentos e também de nossos corpos. Desde os primeiros anos de vida, o digital enfronha-se
na tessitura de nosso ser de tal sorte que já não podemos imaginar a vida sem ele. De certa maneira, os
recursos digitais já não são externos a nós, uma vez que vêm se tornando, de forma cada vez mais efetiva,
instituintes de nossa identidade. Nesse sentido, esses recursos já não são externos, tendo em vista que hoje
fazem parte do corpo e do espírito humano, de tal modo que dicilmente é possível uma demarcação de
fronteiras entre eles e os sujeitos humanos. Se o mundo se torna cada vez mais imagem e as mídias produtoras
de imagens e comentários digitalizados moldam as crianças e os jovens desde os primeiros anos de vida, então
se pode dizer que essa é uma das condições instituintes vitais de nossas vidas na sociedade atual.
Diante desse cenário, para o objetivo deste artigo, torna-se cada vez mais relevante a reexão
sobre o modo como a mediação do digital se faz presente no tecido social da universidade, o que acarreta
transformações decisivas no processo formativo.
Universidade, Formação e Mediação do Digital
As transformações no processo formativo, decorrentes do modo como a Bildung se revitaliza
na era da cultura digital, assim como a denominada semiformação (Halbbildung), também podem ser
observadas no âmbito universitário, quer seja na maneira pela qual a produção e a disseminação do
conhecimento se realizam pela mediação do digital, quer seja por como as relações entre professores e
alunos são digitalmente ressignicadas.
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É interessante notar como as produções acadêmicas, já no momento de sua concepção, são
elaboradas com o escopo de que seus objetos sejam aptos a se tornar visíveis e, portanto, acessados em
escala mundial. Não por acaso, atualmente proliferam os rankings e ratings de professores e professoras
universitários, cujos resultados de pesquisas são visibilizados nas redes sociais em plataformas tais como o
Google Scholar, o Academia.edu e o ResearchGate.
Todavia, não apenas as redes sociais e plataformas se adaptam ao processo de codicação do
mundo da vida, por meio da visibilidade algoritmicamente calculada e quanticada. Também as agências
de fomento à pesquisa passam a valorizar a quantidade do número de citações das produções acadêmicas
daqueles que pleiteiam recursos nanceiros para a concretização de seus planos de pesquisa. Em todas as
ocasiões queos pesquisadores e pesquisadoras preenchem os dados de suas súmulas curriculares, seja na
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, seja no Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientíco e Tecnológico, são-lhes questionadas as quantidades de vezes que tiveram seus trabalhos citados
em outros artigos, de tal modo que seja possível calcular seus respectivos índices h. Ao se transformar numa
espécie de commodity cultural, esses índices tornam-se elementos relevantes de avaliação, de tal maneira que,
da comparação resultante, seja possível identicar quais pesquisadores e pesquisadores receberão, ou não, os
aportes nanceiros para a viabilização suas pesquisas.
No caso dos rankings acadêmicos, são elencados em listas classicatórias tanto os professores e
professoras quanto as universidades que mundialmente mais se destacam quando são comparados itens tais
como as quantidades de publicações nacionais e internacionais, a qualicação do corpo docente, intercâmbios
entre grupos de pesquisa nacionais e internacionais, entre outros. Já em relação aos ratings, os professores
e professores são avaliados por meio de suas performances principalmente nas salas de aula. Um dos sites
mais conhecidos de avaliação é o RateMyProfessors.com, originariamente produzido por John Swapceinski,
em 1999. Desde então, os e as estudantes têm acesso a um espaço online para que possam realizar avaliações
dos desempenhos dos seus professores, numa escala de 1 a 5, em países tais como Estados Unidos, Canadá
e Reino Unido.
São mensurados elementos tais como a presteza do professor e da professora em imediatamente
dirimir quaisquer dúvidas que lhes sejam apresentadas; a leveza dos e das docentes em relação às respostas das
questões feitas pelo corpo discente, de modo que não seja exposto nenhum tipo de discriminação ou mesmo
desdém quanto às perguntas que lhes são feitas; e a clareza presente no raciocínio dos professores e professoras
que não tergiversam sobre o que lhes foi questionado, de tal maneira que as respostas são cartesianamente
elaboradas de forma clara e objetiva. Nesse mesmo site, é proporcionada também a possibilidade de os e as
estudantes expressarem o que pensam de seus professores e professoras num espaço de 350 caracteres.
Diante desse quadro, consolidam-se os alicerces que sustentam as bases da chamada sociedade
métrica, cujas forças produtivas, notadamente as de caráter tecnológico, possibilitam fazer com que sejam
quanticados todos os comportamentos humanos propalados via online. De acordo com Steen Mau (2019,
p. 6, grifos do original):
Primeiramente, a linguagem dos números modica nossa percepção cotidiana de valor e status
social. A disseminação do meio numérico está também se dirigindo em direção à “colonização
do mundo da vida” por meio dos conceitos de predicabilidade, mensurabilidade e eciência.
Em segundo lugar, a mensuração quantitativa dos fenômenos sociais fomenta a expansão, senão
a universalização, da competição, de modo que a disponibilidade da informação quantitativa
reforça a tendência em direção à comparação social e, consequentemente à rivalidade [...].
Em terceiro lugar, emerge uma tendência, cada vez mais presente, da hierarquização social, de
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modo que representações tais como tabelas, grácos, lista ou pontuações fundamentalmente
transformam diferenças qualitativas em desigualdades quantitativas.
Dessa forma, os professores e professoras que obtiverem as melhores avaliações tenderão a ser
mais, por assim dizer, acessados, seja por meio de seus pers virtuais, seja pelas recomendações dos e das
estudantes que são cotidianamente visualizadas nas redes sociais e nos sites de avaliação acadêmica, tal como
o RateMyProfessors.com. Em decorrência dessa espetacularização da imagem docente, aqueles e aquelas
que mais se destacarem também se transformam em commodities atraentes para as universidades, que
propagandeiam nas redes sociais seus respectivos quadros docentes.
No atual contexto da visibilidade acadêmica algoritmicamente calculada, quanto mais os pers sociais
dos professores e professoras mais bem avaliados pelos estudantes forem acessados, mais reconhecimento
social será obtido, de tal forma que também no meio universitário se conrma a ontologia da sociedade
do espetáculo corrente, a de que ser signica ser midiática e eletronicamente percebido (TÜRCKE, 2010).
Ouseja, se a pessoa não for percebida nem se fazer perceber, sobretudo por meio das redes sociais, é como
se ela fosse uma não existência viva. A luta titânica que é cotidianamente travada com o objetivo de capturar
a atenção também se espraia no mundo acadêmico, haja vista o modo como os chamados fatores de impacto
não mais se delimitam ao ranqueamento de periódicos de todas as áreas de conhecimento, pois chamar a
atenção se congura como exigência de sobrevivência também na vida universitária.
Impactar visualmente se transforma no imperativo categórico da sociedade como um todo. O meio
universitário, e o da própria produção das pesquisas, não poderia ser excluído de tal demanda, a ponto de os
próprios objetos das pesquisas serem previamente concebidos com o desígnio de se notabilizar na comparação
com os que não são, por assim dizer, tão atraentes. Assim, caso determinado objeto de pesquisa se rera a
uma questão absolutamente pontual e local, a tendência é a de que o pesquisador ou a pesquisadora desista
de estudá-lo em virtude do seu pequeno potencial de visibilidade acadêmica.
Na chamada sociedade plataforma (VAN DICK; POELL; DE WALL, 2018), se um objeto de
pesquisa não for potencialmente apto a ser visualizado nas redes sociais e plataformas, então dicilmente será
acessado por outros pesquisadores e pesquisadoras, fazendo-se com que as produções cientícas decorrentes
sejam pouquíssimo citadas. Sendo assim, quanto mais citações, quanto mais os produtos acadêmicos forem
visualmente impactantes, maior será o índice h dos pesquisadores e pesquisadoras, de tal forma que maiores
serão as possibilidades de angariar bolsas de estudo e subsídios para suas pesquisas. Na sociedade do
espetáculo hodierna, não basta apenas publicar para não perecer; é preciso cada vez mais aparecer midiática
e eletronicamente, caso se deseje permanecer atuante e competitivo no meio acadêmico (BIANCHETTI;
ZUIN; FERRAZ, 2018).
Por consequência, a atual universalização da competição acadêmica ocorre na conjuntura da
sociedade métrica anteriormente citada (MAU, 2019), na qual a tecnologia digital permite fazer com que
todos os comportamentos sejam algoritmicamente mensurados e imediatamente disponibilizados por meio
dos gadgets digitais. É nessa sociedade que as avaliações são ininterruptamente realizadas em quase todas
as esferas do mundo da vida. Em qualquer estabelecimento comercial, seja físico, seja virtual, por exemplo,
solicita-se aos clientes que avaliem, de forma online, se o serviço foi feito de maneira adequada e satisfatória.
A própria identicação de ser cidadão também se torna ressignicada, haja vista a intenção do
governo chinês, por exemplo, de metricar digitalmente os comportamentos humanos, a ponto de, por meio
do cruzamento de dados algoritmicamente obtidos, atribuir uma pontuação à determinada pessoa. Ouseja, por
meio das informações digitalmente obtidas sobre multas de trânsito, danos ao patrimônio público, participações
em manifestações públicas contra o governo, entre outros itens, cada cidadão chinês obterá um escore que
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denirá que tipo de punição lhe será imputado (MAU, 2019). É por isso que não é fortuita a utilização de câmeras
nas salas de aula com sensores capazes de ler o uxo sanguíneo das faces dos alunos e alunas, a ponto de os seus
sowares deliberarem que tipo de comportamento pode ser imputado ao corpo discente. Ou seja, caso as faces
do aluno e da aluna sejam algoritmicamente caracterizadas como desatentas, imediatamente os celulares dos
professores e dos pais receberão em seus visores tal veredito (SUTHERLAND, 2008).
Os ratings virtuais de professores e professoras, que são avaliados pelos(as) estudantes universitários,
inserem-se nesse contexto de metricação onipresente, sendo uma tendência que parece se consolidar
como algo absolutamente afeito ao zeitgeist contemporâneo. Se essa suposição for correta, compreende-se
o modo como o emprego da tecnologia digital permite fazer com que não somente a competição seja
universalizada,como também recrudesçam o desengajamento moral e a dessensibilização em relação ao
outro, na medida em que as ações passam a ser instrumentalmente regidas com o propósito de que punições
sejam evitadas e recompensas sejam amealhadas.
A instrumentalização das ações de receber recompensas e evitar punições não surge somente
na sociedade cujas relações humanas são portentosamente digitalizadas, mas é nessa sociedade que o, por
assim dizer, ethos maquinal encontra um modo de se espraiar inaudito: o do tempo e do espaço virtual
algoritmicamente produzido e reproduzido. O grande júri virtual do Facebook, para usar uma expressão de
Christoph Türcke (2019), sentencia quem deverá ser cancelado ou não, de tal modo que nenhuma pessoa
que participe, a princípio, dessa avaliação possa ser responsabilizada pelos seus likes ou dislikes. Sendo assim,
a performance virtual, que engendra resultados reais, gradativamente vai se sobrepondo como determinante
em detrimento da capacidade de se exercer empatia ou mesmo se sensibilizar quanto às consequências dos
comportamentos em relação aos outros.
Quando a performance adquire tamanha visibilidade no meio universitário, também a relação
entre professor(a) e estudantes se modica, de tal maneira que os ns justiquem os meios no que concerne
à mediação do digital no cotidiano universitário. Se nas escolas de ensinos fundamental e médio já é
controverso o uso de aparelhos celulares para os denominados ns pedagógicos nas salas de aula, por sua
vez na universidade não há sequer um debate sobre o modo como a utilização de tais aparelhos impacta o
processo de ensino e aprendizagem como um todo.
Com efeito, notam-se as mais variadas reações, pois há os que simplesmente proíbem o uso de
celulares, assim como os que encontram outras alternativas. Ou seja, já há casos de professores que, nos 15
encontros com os estudantes, aplicam 15 provas, de tal modo que, se os estudantes usarem seus celulares
para, por assim dizer, surfar nas redes sociais no transcorrer de tais aulas, não serão capazes de responder
às questões da prova aplicada na parte nal de cada uma das 15 aulas. Logo, o problema da ausência da
concentração dos estudantes que manuseiam seus celulares durante as aulas é resolvido mediante a ameaça
da punição decorrente da má performance na prova. Novamente, os ns (garantir a concentração nas aulas)
justicam os meios (ameaça contínua de punição).
Os(as) estudantes não se aquietam diante de tais ameaças e, em muitos casos, revidam por meio
de práticas de cyberbullying contra professores também no meio acadêmico, na medida em que, com seus
celulares, registram imagens humilhantes dos e das docentes e as postam nas redes sociais, como no YouTube.
Situações como essas denotam a diculdade do estabelecimento de práticas dialógicas, as quais poderiam
ser o esteio de contratos pedagógicos entre os corpos docente e discente sobre formas e tempos de utilização
dos celulares nas aulas.
Talvez a observância dessas mesmas diculdades possa impulsionar a reexão sobre a forma como
a chamada revitalização da Bildung poderia ser decisiva para a efetivação do potencial emancipatório que o
digital porta consigo, como força produtiva tecnológica historicamente produzida que é, e tal revitalização
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será analisada com maior ênfase no próximo tópico deste artigo. No momento, torna-se relevante reetir sobre
o modo como Adorno (2010) deniu a semiformação (Halbbildung) como a inimiga mortal da formação, por
ser uma “fraqueza em relação ao tempo, à memória, única mediação capaz de fazer na consciência aquela
síntese da experiência que caracterizou a formação cultural em outros tempos” (ADORNO, 2010, p. 33).
Nos tempos atuais da memória digital, as informações podem ser recuperadas de forma inédita
também nas relações entre docentes e discentes estabelecidas nas salas de aula. Se em vez da partilha da
atenção – que ocorre todas as vezes que estudantes e/ou professores(as) usam seus celulares para consulta
de suas redes sociais particulares – prevalecer o compartilhamento da atenção num mesmo objeto de estudo,
então há uma chance real de que quaisquer informações obtidas por meio do uso dos celulares possam ser
conjuntamente articuladas a ponto de se metamorfosear em conceitos. Se esse processo sobressair, avulta-se
a possibilidade de que as mediações históricas, relacionadas às condições humanas que engendraram tais
conceitos, revigorem também o engajamento moral afeito à gênese da formação, por meio da qual foi
acalentado o sonho de que o indivíduo fosse “livre e radicado em sua própria consciência, ainda que não
tivesse deixado de atuar na sociedade e sublimasse seus impulsos” (ADORNO, 2010, p. 13).
Se, na sociedade da cultura digital, na qual a memória digitalmente produzida pode fazer com que
tudo seja lembrado, novas formas de esquecimento sejam geradas no formato das fake news, essa mesma
memória digital também pode proporcionar a resistência à produção do pensamento fragmentado e dos
preconceitos delirantes, na medida em que professores(as) e estudantes se reengajam moralmente quando
resgatam a historicidade das contradições humanas imanentemente presentes em todos os conceitos.
Se o poder das atuais notícias falsas se nutre, entre outros fatores, da mera recepção da informação
disseminada por meio das redes sociais, então cada vez mais se torna premente o alerta de Hegel (1991)
de que, se o ato de aprender se restringir a uma atitude meramente receptiva, então “o resultado não seria
muito melhor do que se escrevêssemos frases sobre a água; pois não é o receber, mas sim a autoatividade
compreensiva e a capacidade de utilizá-la novamente que convertem um conhecimento numa propriedade
nossa” (HEGEL, 1991, p. 91).
Em tempos de hegemonia do digital e da sociedade métrica, para que as relações entre os
corpos docente e discente não se liquefaçam, torna-se decisivo o movimento de que tanto a autoatividade
compreensiva quanto a capacidade de utilizá-la sejam coletivamente praticadas por meio de um engajamento
ético-moral coletivo que prevaleça no ambiente universitário. Nessa linha de raciocínio, são apresentadas a
seguir considerações sobre o modo como a atualização do conceito de formação se torna um elemento fulcral
para que se possa fomentar o engajamento ético-moral também no ambiente universitário da sociedade da
cultura digital.
Universidade, Formação e Ética na Era Digital
A questão ética acompanha a tarefa formativa da universidade desde a sua origem. Na atualidade,
no entanto, ela assume novas dimensões, à medida que cresce o poder de intervenção das ciências e das novas
tecnologias em decorrência do desenvolvimento de mecanismos de manipulação e de controle sobre o ser
humano, a natureza e o sistema social. A preocupação do presente tópico é reetir sobre a necessária cautela
intelectual e prudência ética que devemos ter diante dos riscos das novas tecnologias para não inviabilizar a
existência das futuras gerações nem a da própria vida na Terra. Trata-se de avaliar as limitações e as ameaças
que o avanço das novas tecnologias pode produzir sobre os indivíduos, o meio social e o meio natural.
Auniversidade tem um envolvimento umbilical com essa questão.
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Tal como foi destacado no início deste artigo, vivemos um momento em que se intensica a visão de
mundo em que tudo se torna recurso de exploração capitalista e a própria vida das pessoas se faz disponível
ao controle e à exploração do mercado e da indústria da informação. Pressionadas crescentemente pela lógica
do capital, as universidades perdem sua condição de instituições relativamente autônomas, com liberdadede
produção e de socialização dos conhecimentos cientícos e das tecnologias. Soma-se a isso a compulsão
dedominação que a civilização tecnológica vem proporcionando em diferentes setores, colocando em risco
as diferentes formas de vida e a própria natureza.
Nesse contexto, os ideais da Bildung, como autoformação, autodesenvolvimento, autoconsciência,
maioridade, aperfeiçoamento, fazer uso da própria razão, autonomia, singularidade, universalidade e ética,
tornam-se problemáticos, perdendo seus vieses positivos e revelando inúmeros riscos. Com efeito, muitas
são as críticas que têm sobrelevado a queda do predomínio das questões éticas na perspectiva positivista,
denunciando os ideais culturais e tecnológicos decorrentes da racionalidade moderna. Em nenhum momento
da história da humanidade, o agir humano foi tão dependente de fatores externos e dos artefatos que o próprio
ser humano produz. O que se tem percebido, conforme analisam Lastória, Guimarães e Pucci (2001), é o
crescimento da racionalidade técnica e da cultura digital que tem promovido um ethos social atroador da
capacidade do agir moral dos indivíduos. O saber técnico está se sobrepondo aos demais saberes humanos,
implementando uma forma de ser e de agir que limita o sentido da existência cotidiana dos indivíduos e
coloca o futuro da vida em perigo.
O que podemos constatar, especialmente, é o crescimento intenso no uso de tecnologias nas
tomadas de decisão que envolvem situações complexas e que vão substituindo prerrogativas consideradas,
até recentemente, de natureza subjetiva. Os computadores estão deixando de ser considerados dispositivos
destinados a fazer cálculos, sistematizar ou classicar dados e informações, transformando-se em recursos que
passam a realizar tarefas próximas a ações humanas autônomas. Assim, além de previsões sobre economia,
natureza e política, as novas tecnologias podem ser utilizadas para prever e até programar o comportamento
individual. No campo das ciências naturais, constatamos os avanços do poder de interferências sobre
diferentes formas de vida e sobre a própria ordem natural das espécies vivas. A biotecnologia já possui o
poder de programar a vida, seja ela a humana, seja de diferentes espécies, o que pode colocar em risco a
própria existência da vida. Apesar dos benefícios que a biotecnologia pode trazer, é preciso atentar para os
riscos que a possibilidade da manipulação da vida representa.
A pergunta que cabe ser feita é se a possibilidade de um progresso sem m da ciência e da
técnica pode ser acompanhada do desenvolvimento da humanidade do ponto de vista ético. Ou seja, o
progresso cientíco e tecnológico pode contribuir para o desenvolvimento ético da coletividade e de cada
individualidade? Que implicações decorrem dessa preocupação ética no desenvolvimento da ciência e da
tecnologia? Quais são as implicações éticas que as novas tecnologias trazem para a universidade e para a
formação que lhe cabe desenvolver? Em que termos as novas tecnologias impactam a formação do sujeito
racional e do homem virtuoso, considerando as crescentes inuências externas que estão sendo promovidas
pelas novas tecnologias digitais?
As respostas a essas questões não são de fácil solução, pois envolvem muitos aspectos que ainda
não foram analisados em profundidade, no entanto a universidade, de modo especial, não pode se furtar de
enfrentar esses desaos. Inicialmente, é preciso compreender que os atuais processos de desenvolvimento
cientíco e tecnológico se inscrevem no interior das práticas que vêm sendo promovidas desde o surgimento
da modernidade, intensicadas, porém, graças aos novos recursos e artefatos produzidos pela indústria
contemporânea. São inúmeras as análises que tratam das implicações que tal desenvolvimento tem promovido,
mormente em suas consequências éticas e socioambientais.
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Hans Jonas é uma dessas importantes referências. Retomando reexões de Nietzsche e Heidegger
sobre racionalidade, ciência e técnica, propõe repensar a ética no contexto dos avanços do poder das novas
tecnologias (JONAS, 2006). Com base na crítica de Heidegger (1997) sobre técnica e a metafísica tradicional
enquanto a história do esquecimento do ser, Jonas (2006) acolhe a concepção do pensador alemão de que
a técnica é a conguração mais acabada dessa metafísica, decorrendo daí sua redução a uma atividade
meramente instrumental e manipulativa. O reducionismo técnico é consequência do esquecimento do ser que
se intensica na modernidade, produzindo uma visão distorcida sobre a própria técnica. Para superar essa
visão que se desenvolveu no pensamento ocidental, Heidegger (1997) procura esclarecer a essência da técnica,
apontando o seu poder de produção e de desvelamento do ser. Para tanto, alerta acerca do problema que o
esquecimento do ser produziu, apontando para a necessidade de se avaliar os riscos que uma compreensão
distorcida da técnica pode produzir.
Jonas (2006) esclarece que existe uma associação entre o diagnóstico da decadência da civilização
ocidental e o processo de desenvolvimento cientíco e tecnológico, que culmina com a ruptura da relação
entre homem e o mundo. Constata que progressivamente se faz presente uma concepção de realidade que
concebe o mundo como um lugar inóspito e a natureza como um corpo morto, o que o levou a armar que
a ciência moderna se apoia em uma “ontologia da morte”. Nela o próprio ser humano se dene enquanto ser
em si, negando seu pertencimento ao âmbito da vida. Estabelece-se, assim, um dualismo entre vida e morte,
entre natureza e ser humano. A proposição do lósofo é o desenvolvimento de uma ontologia da vida, em
que a preservação de todas as formas de vida se torna um princípio universal.
Jonas (2006) arma que a ética precisa ser repensada na perspectiva das consequências que a técnica
pode trazer para a sobrevivência da Terra. Concebe que a técnica atual apresenta algo de novo e de especial, à
medida que tem aumentado seu poder de intervenção em relação ao que ocorria no passado, sobrepondo-se
à capacidade de controle e de decisão do próprio ser humano.
Justicando seu princípio da responsabilidade, Jonas (2013) aponta cinco razões que vêm
tornando a questão da tecnologia um desao universal: a ambivalência dos efeitos, o seu uso automático
e quase compulsório, a extensão global no espaço e no tempo, o rompimento com o antropocentrismo e
a provocação da questão metafísica que pergunta se deve haver humanidade e se a vida deve ser mantida
na forma como a evolução natural a produziu. Cada um desses fundamentos implica em um conjunto de
questões que historicamente não estavam presentes nas tecnologias do passado. O fato mais preocupante
é que tal processo está criando uma situação de irreversibilidade, o que torna cada vez mais efetiva
a possibilidade de uma catástrofe universal. Nos termos de Jonas (2006, p. 253), “o poder se tornou
autossuciente (selbstmächtig), enquanto sua promessa se converteu em ameaça, sua perspectiva de
salvação em apocalipse”.
Ao comentar a argumentação desenvolvida pelo lósofo alemão, Giacoia Jr. (1999) ressalta a
necessidade de se levar em consideração seu alerta sobre os riscos do desenvolvimento tecnológico conforme
o único critério da ecácia no controle e na manipulação da natureza e da vida humana, sem um concomitante
desenvolvimento ético:
Estamos em face do aspecto paradoxal da técnica moderna, que, segundo Jonas, pode levar à
ameaça de uma catástrofe pelo excesso de sucesso, onerando de modo irreversível o ideário
programático da ciência moderna, formulado por Bacon, segundo o qual essa comportaria a
apropriação tecnológica da natureza como meio para realização do universal domínio humano.
[...] O perigo emergente desse superdimensionamento da civilização tecnológica em escala
planetária é o apocalipse de uma catástrofe universal, como consequência do curso e do
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rumo atual da própria realização do ideal baconiano de dominação tecnológica da natureza.
Esse perigo é uma resultante direta não do fracasso, mas da exorbitância do sucesso daquele
programa ideal (GIACOIA JR., 1999, p. 417-418).
A proposição de Jonas (2006) é a de sobrepor à tradicional ética da imputabilidade, baseada na
liberdade subjetiva, uma ética da responsabilidade, em que o critério de validação é a preservação das
condições de sobrevivência da vida humana e da própria natureza em condições de dignidade. Para ele, trata-se
de uma nova ética, uma vez que a ética tradicional não ultrapassa o âmbito das relações antropológicas, ou
seja, as relações restritas dos homens entre si. Escreve o autor:
Todas as éticas até hoje conhecidas – quer as que formulam inequivocamente injunções de fazer
certas coisas e não fazer outras, quer as que denem princípios para tais injunções, ou ainda as
que estabelecem o fundamento da obrigação que leva à obediência àqueles princípios – tinham
em comum as seguintes premissas independentes: que a condição humana, determinada pela
natureza do homem e pela natureza das coisas, era um dado intemporal; que, nessa base, o bem
humano era imediatamente determinável; e que o âmbito da ação e, logo, da responsabilidade
humanas, se encontrava cuidadosamente delimitado (JONAS, 2013, p. 27).
Essa visão ética já não é suciente, o que traz o desao de construção de uma nova compreensão
da ética diante dos riscos que a técnica contemporânea pode trazer. Como manifesta Jonas (2013, p. 27):
A minha discussão encarregar-se-á de mostrar que estas premissas já não são válidas e de reetir
sobre a repercussão desse facto na nossa condição moral. De maneira mais especíca caber-
me-á objetar que certos desenvolvimentos dos nossos poderes zeram com que mudasse a
natureza da ação humana e que, uma vez que a ética diz respeito à ação, deveria concluir-se que
a mudança de natureza da ação humana exige uma igual mudança na ética; e isto não apenas
no sentido de novos objetos de ação se terem acrescentado ao material empírico ao qual há que
aplicar regras de conduta tidas como válidas, mas no sentido mais profundo de que a natureza
qualitativamente nova de certas das nossas ações abriu uma dimensão inteiramente nova de
signicado ético, para a qual não existe precedente nos modelos ou cânones da ética tradicional.
Jonas (2013) entende que uma nova ética precisa defrontar-se com o poder tecnológico de criar
artefatos que apresentam uma capacidade de agir sobre a natureza e sobre a própria existência humana jamais
vistos. É preciso atentar para o fato de o progresso cientíco e tecnológico ter cobrado um preço muito alto
da humanidade, traduzido na crescente incapacidade de se poder compartilhar, com critérios éticos, tudo
aquilo que a humanidade vem produzindo. As explicações que se apresentam são apenas funcionais ou
decorrentes de uma visão fatalista que arma não ser possível fazer diferente diante dos recursos disponíveis e
da ordem instituída. Tal fato tem-se tornado comum nas explicações de cientistas e especialistas e é acolhido
sem maior questionamento pelo cidadão comum. Daí a predominância da visão fatalista e a crescente
presença de superstições e de explicações pseudocientícas. O homo faber está-se impondo ao homo sapiens.
Com o descompromisso ético que daí surge, ocorre uma redução da experiência humana individual que,
em decorrência da crescente exigência da especialização, acaba pagando o preço do crescimento cognitivo
coletivo de dominação, com um conhecimento individual cada vez mais fragmentário e parcial. Diantedisso,
para Jonas (2013) o desao maior é superar o descompromisso ético presente no conhecimento e na tecnologia
atualmente em desenvolvimento.
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Qual é o princípio que Jonas (2013) apresenta para o enfrentamento dos problemas causados
pela ciência e pela tecnologia? A resposta dele é categórica: o princípio da responsabilidade, ou seja, do
desenvolvimento de uma ética para a civilização tecnológica, que se traduz no seguinte imperativo: “Aja de
modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana
sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47). Pensar a atual pertinência do princípio da responsabilidade pode ser um
elemento importante tanto para a revitalização da dimensão ético-moral da Bildung quanto para a crítica de
uma sociedade cujas relações se digitalizam a ponto de se promover práticas contínuas de desengajamento
moral, uma vez que, diante da metricação absoluta dessas relações, se fomenta o comportamento de tratar
cada vez mais o outro como coisa, como objeto, com o escopo de se evitar punições e se obter recompensas.
Com efeito, a principal questão do lósofo é conciliar a liberdade de ação dos cientistas e dos
técnicos com as consequências de suas descobertas. Por isso, a responsabilidade em Jonas (2006, p. 39)
envolve dois aspectos: “Uma melhor seleção e condução social da direção do progresso técnico e, sobretudo,
uma melhor distribuição mais igualitária dos seus frutos”. Acima de tudo, é preciso enfrentar o potencial de
destruição da vida humana e da natureza e preservar a existência futura. Para tanto, conciliar a necessidade
da liberdade de criação das ciências e das tecnologias com a responsabilidade quanto a previsibilidade dos
resultados do uso das tecnologias é uma das tarefas principais da ética contemporânea.
Para que se possa desenvolver tal ética da responsabilidade, Jonas (2013) aponta outros dois aspectos
que precisam ser confrontados diante do modo de agir das tecnologias atuais: em primeiro lugar, a busca de
solução para a questão da dispersão temporal e causal das sequências de causa-efeito e a irreversibilidade
que a prática tecnológica põe em marcha, mesmo quando voltada a questões imediatas; em segundo, o
enfrentamento da cumulatividade que tal processo desencadeia, cujos efeitos vão se somando uns aos outros,
tornando cada momento diferente do anterior e exigindo, em cada passo, uma nova forma de agir.
A acumulação de experiências desconectadas da possibilidade da reversibilidade, além de
desconsiderar a importância da experiência de cada indivíduo e de cada grupo, pode mudar a sua origem
e destruir sua base, impedindo o poder de qualquer retorno ou reversão. A questão torna-se problemática
na medida em que tanto a irreversibilidade como a cumulatividade são processos que alimentam a prática
cientíca e tecnológica da atualidade, sendo aceitas como riscos a ela inerentes. Isso traz presente a concepção
de Benjamin (1987) de que nossa capacidade de pensar, o nosso poder de concentração, depende do objeto
ede sua coerência. Em tempos de dispersão da concentração, essa capacidade de compartilhar coletivamente
a atenção para o mesmo objeto se torna uma questão fundamental para que sejam estabelecidas relações
dialógicas entre os agentes educacionais também nas universidades.
Porém, diante do atual modo de produção cientíca e tecnológica, tal dialogicidade torna-se
dicultada, o que ameaça a continuidade e a coerência da própria formação e sua destinação ética.
Comorevelam, por exemplo, as diferentes análises sobre a questão do poder das mídias e de suas plataformas,
tal força baseia-se na capacidade de moldar os segmentos com que atua por meio de suas bases tecnológicas,
o que envolve, principalmente, a moldagem do modo de ser e agir dos próprios indivíduos, suprimindo ou
manipulando sua origem e sua história de constituição. Daí decorrem problemas éticos que, como vimos,
não podem ser desconsiderados e que afetam não somente as pesquisas dos professores universitários, cujos
temas passam ser previamente escolhidos com a intenção de impactar outros pesquisadores e obter mais
citações de seus trabalhos, como também as performances dos professores, para que possam ser mais bem
avaliados em plataformas tais como a RateMyProfessor.com.
Perante esse cenário, um papel central nesse processo de responsabilização cabe à universidade,
cuja vigilância intelectual e crítica é indispensável. A universidade não pode se tornar refém das plataformas
digitais nem dos sistemas de controle que elas tentam impor e manipular. As informações e os conhecimentos
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produzidos pela humanidade precisam ser avaliados de forma crítica e da perspectiva ética ao serem
apropriadose manipulados pela indústria digital. Para tanto, cabe à universidade manter a possibilidade do
acesso livre e do uso público dos conhecimentos e das tecnologias produzidas pela humanidade. Aretomada de
alguns princípios apontados por Humboldt (1997) e reforçados por Casper (1997) nos parece pertinente e atual:
autonomia cientíca e tecnológica dos pesquisadores e das instituições, liberdade de investigação, respeito à
lógica interna da ciência, interdisciplinaridade, direito ao uso público da razão e de suas consequências ético-
morais, autonomia, combate à dispersão, ao negacionismo e à produção das chamadas fake news.
Liberdade e autonomia, princípios caros à Bildung, continuam valendo como preceitos éticos que
não podem ser deixados de lado no enfrentamento da atual cultura dos monopólios digitais e da ampliação do
poder das biotecnologias. Soma-se a eles a necessidade de se levar em consideração a dignidade e os direitos
de todo o ser vivo na produção e na utilização dos artefatos humanos.
Habermas (2004) oferece-nos uma importante recomendação sobre o desao ético que as
universidades precisam enfrentar diante do atual processo cientíco e tecnológico. Trata-se da exigência de
se estabelecer um discurso público sobre a correta compreensão da forma de vida diante das possibilidades
de novos tipos de intervenção que as tecnologias apresentam:
O progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias ampliam não
apenas as possibilidades de ação já conhecidas, mas também possibilitam um novo tipo de
intervenção [...]. As novas tecnologias nos impingem um discurso público sobre a correta
compreensão da forma de vida cultural enquanto tal. E os lósofos não têm mais nenhum bom
motivo para abandonar esse objeto de discussão dos biólogos e dos engenheiros entusiasmados
pela cção cientíca (HABERMAS, 2004, p. 17).
Essa colocação de Habermas (2004) pode ser articulada com a prudente colocação de Jonas, que,
antevendo os riscos e desaos da racionalidade moderna, já em 1979 falava do princípio da responsabilidade,
alertando a respeito do desao da superação de nossa visão míope sobre o nosso poder e a importância de
promover uma compreensão mais abrangente acerca da natureza e da realidade externa que nos envolve.
A questão que a universidade precisa enfrentar é a de reetir quanto aos riscos que as ciências e
as novas tecnologias representam para a humanidade e para a própria natureza. Para Jonas, a ética que deve
orientar a ação cientíca e tecnológica é a do cuidado da natureza e da condição humana. Anal, ao suspender
a proteção à vida, estamos autorizando que esta se torne disponível, exposta a uma violência permanente.
Consequentemente, responsabilidade cientíca, defesa da democracia e preservação da vida em todas as suas
formas de manifestação são diretrizes imprescindíveis de uma ética universitária.
Conclusão
Diante do atual desenvolvimento das forças produtivas, notadamente as concernentes à tecnologia digital,
a revitalização da Bildung adquire uma relevância que não se circunscreve exclusivamente ao desenvolvimento
da dimensão cognitiva, haja vista a necessidade de que se fomente a reexão sobre a dimensão ético-moral que
esteia a própria produção do conhecimento nas suas mais variadas áreas, sobretudo no âmbito universitário.
Em tempos nos quais a vida é biotecnologicamente digitalizada nas suas manifestações mais
recônditas, além da possibilidade de qualquer manifestação do comportamento humano ser algoritmicamente
selecionada, mensurada, interpretada e visibilizada em quaisquer tempos e espaços, torna-se até mesmo
irônica a lembrança da constatação de Kant (1986), em seu texto “Ideia de uma história universal de um
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ponto de vista cosmopolita” de que “mediante a arte e a ciência somos cultivados em alto grau. Nós somos
civilizados até a saturação por toda espécie de boas maneiras e decoros sociais. Mas ainda falta muito para
nos consideramos moralizados” (KANT, 1986, p. 19, grifos do original).
Com efeito, para o lósofo prussiano, não era possível asseverar, nos estertores do século 18,
incondicionalmente a vigência hegemônica da moralidade entre os indivíduos, uma vez que vicejava a chamada
aparência de moralidade, alicerçada sobretudo em práticas de decoro consideradas civilizadas. Paraque a moralidade
deixasse de ser supercialmente vivida e passasse a ser substancialmente experimentada, o cultivo das artes e das ciências,
nas condições de produções humanas que portavam consigo promessas de felicidade, por assim dizer, representaria
uma condição fulcral para que ocorresse a experiência formativa, a mesma experiência que capacitaria ao indivíduo
a possibilidade de que deixasse de ser menor, de ser tutelado pelos imperativos normativos principalmente da Igreja.
É irônica essa armação de Kant (1986) se for considerada a forma como as relações entre as forças
produtivas e as relações de produção capitalista dinamizaram instrumentalmente o cultivo das artes e, sobretudo,
das ciências. Pois a dimensão ético-moral não só deixou de ser substancialmente cultivada, como também
prevaleceu a ideia de que os ns justicariam os usos dos meios, os mesmos meios que, ao se fetichizarem,
se apartaram da grande esperança de que a produção tecnológica contribuiria para a consolidação de uma
sociedade mais justa e menos desumana.
A maldição do progresso irrefreável só pode engendrar a regressão irrefreável, já asseveravam
Adorno e Horkheimer (1986) na Dialética do esclarecimento. É importante enfatizar que não é todo progresso
que faz com que, na trajetória de seu desenvolvimento, inevitavelmente ocorra o processo regressivo das
naturezas externa e interna, pois é o progresso adjetivado como irrefreável aquele que produz tais regressões,
na medida em que os meios tecnológicos são fetichizados quando as suas “nalidades – uma existência digna
do ser humano – são encobertas e arrancadas do consciente humano” (ADORNO, 1986, p. 42).
A advertência, elaborada por Adorno e Horkheimer (1986), sobre a dimensão histórica do progresso
do poder tecnológico porta consigo o anelo de que seja promovida outra materialização do conhecimento
cientíco que contribua efetivamente para o arrefecimento das atuais formas de produção e disseminação
da barbárie. Para tanto, a universidade precisa fazer com que o conhecimento digitalmente produzido e
disseminado, por meio da interface cada vez mais frequente entre as mais diversas áreas do conhecimento,
não revigore os princípios da chamada razão instrumental nos tempos da denominada cultura digital.
Mais do que nunca, é preciso armar categoricamente que não existe nenhum tipo de produção
de conhecimento cientíco esconjuntado de juízos de valor, de tal modo que é plenamente equivocada, para
não dizer ideológica, a denominada pretensão de neutralidade cientíca. Assim como também é muitas
vezes criminosa a postura das plataformas e suas redes sociais de tentar isentar-se da responsabilidade de
disseminação de fake news e de incentivos ao preconceito delirante, quando armam que devem permanecer
neutras diante dos conteúdos publicados, pois estes são totalmente imputados às escolhas feitas por seus
usuários. Dessa forma, torna-se premente a difusão, no meio universitário, da crítica à pretensa neutralidade
cientíca em suas mais variadas áreas, bem como espraiar a ênfase na dimensão ético-moral imanente a todo
tipo de conhecimento produzido. Propalar e reforçar tais aspectos resultam na possibilidade de reiterar a
formação tanto no ambiente universitário quanto para além de seus muros.
Por m, em vez do incentivo à produção e difusão da instrumentalização da razão, é preciso fazer
com que prevaleça o princípio da responsabilidade de que todo conhecimento produzido tem como objetivo
primevo arrefecer as desigualdades entre as pessoas, especialmente quando se faz justiça à maioria dos excluídos,
no caso do objeto deste artigo, da vida universitária. Se for desse modo, há uma chance de que prevaleça a
concepção de que a dimensão ética se faz imanentemente presente na forma e no conteúdo do conhecimento
digitalmente produzido, revivescendo assim a Bildung nos tempos da digitalização onipresente da vida humana.
Universidade e formação na era da cultura digital
Educ. Soc., Campinas, v. 44, e273812, 2023
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Notas
1. Estamos enfrentando um sistema diferente no capitalismo industrial que até agora conhecemos, com o crescente
domínio das plataformas nanceiras, de comunicação, de controle do conhecimento e da indústria da informação
pessoal. Sobre tais temas, apontamos as importantes análises de Mazzucato (2019) e Dowbor (2020), que esclarecem
como a nova ordem mundial se tornou dependente da plataformização de todas as instâncias sistêmicas, incluindo a
educação. Tal ordem não está interferindo somente nessas dimensões, mas promovendo uma nova concepção sobre
o ponto de vista antropológico e ético da existência humana.
Contribuição dos Autores
Problematização e Conceituação: Mühl EH, Zuin AAS, Goergen PL; Metodologia: Mühl EH, Zuin
AAS, Goergen PL; Análise: Mühl EH, Zuin AAS, Goergen PL; Escrita: Mühl EH, Zuin AAS, Goergen PL.
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Sobre os Autores
E H M é licenciado em Filosoa, doutor em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas e pós-doutor pela Universidade do Minho, Portugal. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade de Passo Fundo, membro da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo
e do Centro de Educação e Assessoramento Popular. Áreas de pesquisa: losoa e educação, fundamentos
da educação, teorias educacionais, teoria crítica, educação popular e educação em direitos humanos.
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A Á S Z é psicólogo pela Universidade de São Paulo e doutor em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas, com estágio sanduíche na Johann Wolfgang Goethe Universität.
Foiprofessor visitante do Departamento de Educação da Universidade de York, Inglaterra, e do da Johann
Wolfgang Goethe Universität, Alemanha. É também coordenador do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica e
Educação e bolsista produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico 1A.
Áreas e linhas de pesquisa: fundamentos da educação, com ênfase no estudo da relação professor-aluno na
cultura digital e cyberbullying de alunos contra professores.
P L G é lósofo e doutor em Filosoa pela Ludwig Maximilians Universität, Alemanha,
com pós-doutorados na Universidade de Bochum e no Instituto Max Planck. Professor titular aposentado da
Universidade Estadual de Campinas e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação na mesma
instituição. Participa de grupos e desenvolve pesquisas em losoa, teorias educacionais, teoria crítica e
formação de professores.
Recebido: 11 abr. 2023
Aceito: 17maio 2023