Content uploaded by Rudesindo Soutelo
Author content
All content in this area was uploaded by Rudesindo Soutelo on Sep 13, 2023
Content may be subject to copyright.
Cafeomancia musical
A empregada que tira os cafés na canti-
na da universidade arma, no tom se-
guro de quem se considera especialista
na matéria, que “antigamente o café era
com borra”. Eu, que sou um bocado mais
‘antigo’ do que ela, embora não domine
essa parcela de conhecimento, assenti
com a cabeça e, numa simples associa-
ção de ideias, acrescentei “antigamente
era mais fácil adivinhar o futuro, bastava
ler na borra do café”. Antes de desligar a
conversa ainda olhou para mim com um
sorriso receoso e vericou se o meu café
tinha deixado borra.
As leituras do passado acontecem sem-
pre em presente, ltrando a memória e
moldando os factos. O passado, como a
música, é uma interpretação. Mesmo os
protagonistas são meros observadores
parciais duma realidade poliédrica. O
relato da minha formação musical é tão
parcial como o que possa fazer o musicó-
grafo; são óticas diferentes que nos aju-
dam a construir uma aparente ideia de
realidade.
Em 1956, o conceito de educação pré-es-
colar na Galiza era ilusório. A escolarida-
de começava aos seis anos mas eu fui ad-
mitido, com quatro anos, na escola da al-
deia porque regressara do Brasil e já sabia
ler e escrever. O problema é que eu falava,
lia e escrevia numa língua proibida pelo
colonialismo espanhol. Todo o empenho
daquele professor castelhano era reedu-
car-me na língua do seu decadente impé-
rio e, assim, apagar as minhas senhas de
identidade. G. d’Oliveira Martins arma
que “A língua é a nossa primeira marca de
identidade, é o primeiro valor que parti-
lhamos, distinguindo o que recebemos, o
que realizamos e o que acrescentamos”1.
Por mais castigos e tareias que apanhas-
se, nunca conseguiram aculturar-me,
pois a minha teimosia galega contornou
qualquer impedimento. Foi nessa altura
que a minha mãe, acompanhando a de-
cisão do meu pai, procurou um professor
que me iniciasse na música.
Na época já abundavam as bandas lar-
mónicas e, não longe da nossa casa, mo-
rava um barbeiro, trompetista na banda
da aldeia, que aceitou instruir-me nos ru-
dimentos musicais, mas era tão rudimen-
tar aquele tocador de aerofone de metal
que, após três meses já não tinha mais
que ensinar-me. Fiquei triste porque eu
gostava mesmo do seu burrinho farinhei-
ro a acompanhar as lições de música com
sonoros e descontraídos orneios. O zurrar
do burro do trompetista cou-me grava-
do como a primeira paisagem proposita-
damente musical que impactou a minha
vida, pois era de ritmo preciso, anação
perfeita e expressividade eloquente, enér-
gica e vivaz. De não ser pelo limitado co-
nhecimento musical do dono do burro,
eu teria entrado para a banda da aldeia
e talvez, com aquele repertório colonial e
‘lixeiro’ que impunha o minguante impé-
rio, conseguissem aculturar-me. Mas quis
a fortuna que a minha formação musical
continuasse numa ocina alegremente
fúnebre, onde se talhavam ataúdes lindos
de morrer. Foi a esposa daquele virtuoso
entalhador a encaminhar-me na senda da
música e, também ali, pela primeira vez,
experimentei a gravidade e um rasto de
transcendência na arte sonora. Alguns
meses depois mudamos para Tui e uma
nova professora, organista das freiras
enclausuradas, tomou conta da minha
formação musical. Paralelamente, fre-
quentei um colégio de Padres italianos
onde o organista também colaborava na
motivação. Avancei na linguagem musi-
cal, o que na altura os teóricos chamavam
de solfejo, e aquela ‘solfa’ construiu em
mim os primeiros estádios de estrutura
sonora. Comecei a lidar com a abstra-
ção da linguagem musical, imaginando
sucessões de sons que não estavam nas
pautas dos livros. O discurso não-verbal,
típico de criança, foi-se transmutando em
discurso musical.
Com sete anos, a família mudou para a
cidade de Vigo e uma má escolha de pro-
fessores provocou a minha quase desis-
tência. Primeiro foi um tamborileiro que
tocava caixa na banda municipal e, após
umas semanas, desistiu porque era eu a
ensinar-lhe. Depois um saxofonista da
banda militar que tinha por lema ‘a letra
com sangue entra’, pedagogia essa que
se baseava em estímulos de dor física. O
cinturão da farda militar e o vimeiro do
seu quintal eram os únicos reforços mo-
tivacionais que ele utilizava, orgulhan-
do-se das marcas que os maus-tratos dei-
xavam na minha apoucada gura. Com
aquele medo no corpo é compreensível
que reprovara no primeiro exame ao Con-
servatório. Finalmente os meus pais per-
ceberam a atrocidade daquele monstro e
passei a estudar com uma professora que,
no verão, me reconverteu psicológica e
tecnicamente para entrar no Conservató-
rio de Vigo.
O trauma psicológico que me causaram os
professores músicos de banda não foi su-
ciente para eu aborrecer a música, mas
marcou, de modo indelével, as minhas
opções prossionais e escolhas pedagó-
gicas futuras. Alguns anos depois percebi
que, muito pior do que o mau trato físico,
fora a mediocridade que me transmiti-
ram, o reducionismo musical e cultural
que incutiam nas crianças, a submissão
a uma borra social que não dava para a
cafeomancia adivinhar futuros melhores.
Obviamente que não culpo as bandas de
música, meros instrumentos, mas sim à
inércia de poder e cultura endogâmica
que tantas vezes geraram no seu contex-
to social e, talvez por ignorância, assu-
miram os propósitos de aculturação da
ditadura colonial. Nessa conjuntura, até
o espontâneo orneio de um burro podia
suscitar volúpias sonoras mais criativas.
13SET’23
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em
Educação Artística e Ensino de Música
1 Martins, G. d’O.:
Património, herança e me-
mória. A cultura como criação.
Lisboa: Gra-
diva, 2009, p. 117.
Cafeomancia ou a arte
de interpretar a borra do café