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Rev. nuestramérica, 2023, n.o 21, edição contínua, e8066175
Artigo depositado em Zenodo. DOI https://doi.org/10.5281/zenodo.8066175
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Discursos coloniais e identidade nacional no
centenário da independência do Brasil
Discursos coloniales e identidad nacional en el centenario de la independencia de Brasil
Colonial discourses and national identity in the centenary of the independence of Brazil
Thalita Camargo Angelucci
Doctora en Humanidades y Artes con mención en Ciencias de la Educación
Docente en la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario
Instituto Rosario de Investigaciones en Ciencias de la Educación
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
Rosario, Argentina
angelucci@irice-conicet.gov.ar
https://orcid.org/0000-0002-0158-7953
Resumo: Frente à recente comemoração do bicentenário da independência do Brasil (2022), objetivou-se analisar o discurso da imprensa
carioca sobre as festividades do centenário da independência (1922) para identificar marcas coloniais relacionadas à construção da
identidade nacional daquele país. Teve-se como foco a relação entre Brasil e Portugal e o evento central das comemorações: a visita do
presidente português ao Rio de Janeiro, então capital federal. Metodologicamente, trabalhou-se com a análise documental de jornais da
época. Os textos que constituíram o corpus da pesquisa foram interpretados à luz da análise de discurso franco-brasileira. Pese às críticas
históricas em relação à colônia portuguesa, este trabalho evidencia a existência de discursos que bajulavam a antiga colônia e vice-versa, o
que explicita uma relação edípica entre ambos os países que deixa rastros na história recente.
Palavras-chave: discurso; identidade nacional; independência do Brasil; Portugal.
Resumen: Ante la reciente conmemoración del bicentenario de la independencia de Brasil (2022), el objetivo del trabajo fue analizar el discurso
de la prensa carioca sobre las festividades del centenario de la independencia (1922) para identificar marcas coloniales re lacionadas con la
construcción de la identidad nacional de ese país. La atención se centró en la relación entre Brasil y Portugal y el evento c entral de las
celebraciones: la visita del presidente portugués a Río de Janeiro, entonces capital federal. Metodológicamente se trabajó con análisis
documental de periódicos de la época. Los textos que constituyeron el corpus de la investigación fueron interpretados a la lu z del análisis del
discurso franco-brasileño. A pesar de las críticas históricas a la colonia portuguesa, este trabajo destaca la existencia de discursos que
halagaban a la excolonia y viceversa, lo que explica una relación edípica entre ambos países que deja huellas en la historia reciente.
Palabras clave: discurso; identidad nacional; independencia de Brasil; Portugal.
Abstract: In view of the recent commemoration of the bicentennial of the independence of Brazil (2022), the aim of this work was to analyze the
discourse of the Rio de Janeiro press on the festivities of the centenary of the independence (1922) to identify colonial marks related to the
construction of the national identity of that country. The focus was on the relationship between Brazil and Portugal and the central event of the
celebrations: the visit of the Portuguese president to Rio de Janeiro, then the federal capital. Methodologically, we worked with the documentary
analysis of newspapers of that time. The texts that constituted the corpus of the research were interpreted in the light of French-Brazilian discourse
analysis. Despite historical criticisms of the Portuguese colony, this work highlights the existence of discourses that flattered the former colony
and vice versa, which explains an oedipal relationship between both countries that leaves traces in recent history.
Keywords: speech; national identity; independence of Brazil; Portugal.
Recepção: 13 de abril de 2023
Aceitação: 16 de junho de 2023
Publicação: 21 de junho de 2023
--Rev. nuestramérica, 2023, n.o 21, edição contínua—
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Ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal!
Fernando Pessoa (1934)
Introdução
No dia sete de setembro de 2022 celebrou-se o bicentenário da proclamação de independência do
Brasil. Isto ocorreu em meio a disputas políticas entre governo e oposição acirradas pelas eleições
presidenciais no país em outubro do mesmo ano. Neste contexto, Jair Bolsonaro (presidente no
período de 2019 a 2022) encarnou o nacionalismo exacerbado e se apropriou de símbolos pátrios,
particularmente da bandeira nacional. Por sua vez, Luís Inácio Lula da Silva (presidente no período de
2003 a 2010 e recentemente eleito) se alinha à ideologia progressista no cenário regional. A situação
de crise econômica e política derivada da pandemia por Covid-19 somada às disputas discursivas e
culturais dirigidas pelos dois blocos adversários levam a revisar aspectos históricos e políticos da
formação da identidade nacional brasileira 100 anos atrás, ou seja, durante as comemorações do
centenário da independência. Neste contexto, esse trabalho contribui com a compreensão dos
rumos do país na atualidade, já que todo discurso, por meio da reprodução ou da ressignificação,
atualiza dizeres prévios que se refletem na vida cotidiana da sociedade.
Em termos sociolinguísticos e culturais, na América Latina, o Brasil se diferencia por ter como língua
oficial o português
1
derivado de sua relação com Portugal, enquanto a maioria dos outros países
latinos se vincula com a Espanha. Além disso, em comparação com a fragmentação da América
espanhola republicana, a unidade territorial brasileira – que se estende por quase 50 % do espaço
físico sulamericano – parece haver sido favorecida pela adoção de um sistema monárquico nos
primórdios de sua independência (Souza 2022). Estas particularidades singularizam a relação entre
colônia e metrópole, por um lado, e a constituição da identidade nacional, por outro, identidade
esta que no centenário da independência “seguia como uma obra inconclusa, sujeita a retrocessos”
(Vieira 2021, 17). Sendo assim, o presente trabalho teve como objetivo analisar os discursos sobre o
papel dos portugueses no contexto de formação da identidade nacional brasileira no início do século
XX, precisamente no ano de 1922. Este ano está marcado por pelo menos dois acontecimentos
históricos significativos no país: a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, e o centenário da
independência, cujas comemorações mais importantes aconteceram na então capital do país, o Rio
de Janeiro. Debruçamo-nos sobre este último evento com ênfase no ato simbólico plasmado na
presença do rei português. Se bem vários trabalhos abordam este período da história brasileira (Aires
da Costa 2022; Morettin 2006; Tenório 1994; Vicari e da Silva 2014), poucos indagam as visitas
diplomáticas desde fontes primárias com perspectiva discursiva. Por esta razão, decidimos buscar
pistas deste objeto em notícias jornalísticas da época. Portanto, a originalidade dos resultados e das
discussões propostas reside nos dados empíricos que constituíram o corpus da pesquisa interpretado
desde um enfoque discursivo. Continuamos esta introdução através de uma recapitulação de
momentos cruciais da história do Brasil prévio ao centenário da independência. No apartado
seguinte, abordamos os procedimentos metodológicos da pesquisa e os conceitos fundamentais do
trabalho analítico-discursivo realizado. Depois, apresentamos os resultados e discussões desprendidos
da análise das fontes. Encerramos o artigo com algumas considerações finais que vertem linhas de
fuga para futuras pesquisas.
A pesar de que Abya Yala
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e seus habitantes existam muito antes das primeiras invasões estrangeiras,
a história do Brasil enquanto país com delimitações geopolíticas é recente e está oficialmente
submetida à chegada dos portugueses. Na história moderna já é frequente a crítica respeito ao
discurso hegemônico sobre o Descobrimento do Brasil. Com efeito, o relato desse “descobrimento”
obviou sobremaneira o genocídio indígena, o silenciamento de muitas línguas autóctones (sobretudo
1
Além da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
2
Este termo vem sendo utilizado para resgatar a ancestralidade das terras hoje designadas majoritariamente pelo significante “América”. Abya Yala foi usada
pela primeira vez com este cunho político na II Cumbre Continental de los Pueblos y Nacionalidades Indígenas de Abya Yala (Quito 2004) (Porto-Gonçalves
2011).
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em meados do século XVIII com as Reformas Pombalinas que proibiram a língua geral nheengatu) e
o agudo processo de escravização de africanos e afrodescendentes que tem raízes profundas no
seio da constituição social desse país.
Neste macro contexto, é no início do Século XIX que os laços entre Portugal-Metrópole e Brasil-Colônia
se estreitam de uma forma sem precedentes, quando da chegada da Coroa Portuguesa às terras
tupiniquins nos anos de 1808: a corte real portuguesa atraca no “Novo Mundo” em meio a seu
processo de fuga das invasões napoleônicas em terras natais. Desse modo, a sede política de
Portugal passa a localizar-se no Brasil.
Em menos de uma década e meia estavam dadas as condições para a independência do país,
curiosamente pré-anunciada pelo caçula da família real no episódio conhecido como “O Dia do
Fico”. Em março de 1822, D. Pedro II decide ficar no Brasil enquanto o restante do alto escalão
português volta à península. Meses mais tarde, às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, o mesmo
profere o famigerado brado “Independência ou Morte!”. Ora, inaugura-se uma ruptura política entre
os dois territórios e a promessa de nascimento de uma nova nação, o Brasil, com o nome axial com
o que se reconhece hoje.
O Reinado de D. Pedro II foi turbulento (Fausto 1994) já que, entre outros fatores, o descendente do
rei português não havia sido preparado para exercer tão prontamente um cargo de gestão. Estes
fatos subsidiam a análise de alguns discursos que aparecem nos jornais do Rio de Janeiro na ocasião
da celebração do centenário da independência. É significativo que o filho do rei português decida
manter-se no Brasil e, desse modo, inaugurar uma nova pátria: isto guarda um simbolismo complexo.
Desde o ponto de vista que forjamos neste trabalho, um dos elementos que compõe esse simbolismo
evoca os mecanismos de herança dinamizados pelo desenvolvimento capitalista. Em sua raiz
etimológica, o termo “herança” provém do latim haerentia e se usa para definir o legado que um
sujeito deixa para seus descendentes. Poder-se-ia interpretar que o Brasil é deixado sob
responsabilidade de D. Pedro II a modo de herança. Outro elemento simbólico proeminente e que se
vincula com o que foi dito é a relação edípica entre pai e filho. O termo “pátria” guarda suas origens
no adjetivo latino patrius derivado de pater que remete a “pai” (Benveniste 1983,143). D. Pedro II
declara ante o povo brasileiro a ruptura com Portugal e, além disso, abdica do trono português
quando da morte de seu pai. Apesar deste ato aparentemente heroico e desertor, há no Brasil da
época um movimento forte de liberais que questiona a fidelidade de um soberano não nascido em
terras brasileiras. No que concerne a este trabalho, a contraposição entre Portugal-pai e Brasil-filho
funciona como fio condutor dos discursos analisados no corpus selecionado.
Quase sessenta anos depois do ato de independência do dia sete de setembro de 1822, o espetáculo
tupiniquim culmina com a Proclamação da República, em novembro de 1889. Pelas formas
organizativas de governo, reconhece-se neste evento uma ruptura definitiva com Portugal, já que
põe fim à etapa monárquica em solo brasileiro, ao passo que o “filho pródigo” português se lança a
novos horizontes. Neste acontecimento emerge o nome do país como Estados Unidos do Brasil.
Adverte-se aí uma evidente relação com os Estados Unidos da América que, para a época, já tinha
afiançado seu sistema republicano reconhecido como modelo a ser seguido por outros países do
cone sul.
O primeiro presidente brasileiro, Manoel Deodoro da Fonseca, era nascido em terras brasileiras.
Segundo Triches (2007), havia na época uma atmosfera peixotista conformada pelos jacobinos que
defendiam o avanço do Brasil rumo à democracia e ao nacionalismo em detrimento da constituição
monárquica, entendida como um atraso frente ao avanço das “novas civilizações”. Desse modo,
percebem-se três aspectos que fazem da proclamação da república um marco político crucial: a) o
fim da monarquia no Brasil, b) a primeira vez que um líder nacional oficialmente reconhecido é
nascido no país, e c) a mudança do nome do país alinhada com uma emergente identidade
americana e, portanto, distanciada do horizonte europeu.
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No caso de Portugal, o sistema republicano teve início somente com a Revolução de 5 de outubro
de 1910, já adentrado o novo século. Além disso, deu-se em um momento de turbulências na ex-
metrópole desencadeadas pelo assassinato do rei Carlos I de Portugal e do príncipe herdeiro Luís
Felipe de Braganza, ambos em 1908.
De modo geral, é intuitivo pensar que o Brasil, como ex-colônia, poderia cultivar aversão aos
portugueses. No entanto, uma grande parcela da população interpretava que a chegada desses
europeus representava o início de uma autêntica civilização. Neste sentido, é reconhecida a reflexão
que se dava em torno à civilização ou barbárie no contexto latinoamericano de meados do Século
XIX, imortalizada na obra Facundo, do argentino Domingos Sarmiento (1845). Portanto, pode-se
afirmar que havia, sobretudo entre os membros da elite, uma ideia exortativa com relação à Portugal,
exemplar da Europa civilizada.
Feitas estas considerações iniciais, apresenta-se a metodologia empregada no trabalho e,
posteriormente, os resultados e discussões do mesmo.
Metodologia
Este artigo se desprende de uma pesquisa qualitativa exploratória de corte interpretativo (Vasilachis
de Gialdino 2006) com enfoque discursivo proveniente dos aportes da análise de discurso francesa e
brasileira (Authier-Revuz 1998; Foucault 2018; Pêcheux 2016, 2010; Orlandi 2017; 2014; 1995). Desde esta
perspectiva teórica, entende-se que os acontecimentos históricos reclamam sentidos que são
construídos através de palavras já ditas em um outro tempo e lugar que, no momento da enunciação,
sempre atualizam memorias discursivas que dizem mais do que é efetivamente dito. Nestes termos, o
discurso é interpretado tanto em sua materialidade empírica (intradiscurso), quanto em sua relação
com ecos discursivos originados em momentos anteriores ao da enunciação (interdiscurso). Assim, o
funcionamento discursivo se apreende a partir do enfrentamento do jogo intra e interdiscursivo. Os
textos entendidos como discurso tangível são compreendidos em sua materialidade linguística que
produz sentidos diferentes em função de suas condições de produção e circulação. Por isso, analisar
discursos desde esta perspectiva implica advertir os eventos contingentes, que são de ordem histórica
e ideológica e que fazem com que se fixem certos sentidos e não outros. Desse modo, busca-se
advertir no lapso da língua o sentido que quer irromper na superfície do discurso e só pode fazê-lo
através de subterfúgios enunciativos. Então, a análise do funcionamento discursivo confronta quem
diz o quê em qual contexto histórico e ideológico e buscando produzir quais efeitos de sentido nos
seus interlocutores (leitores tanto quanto ouvintes). Assim, as metáforas, particularmente, funcionam
como indício privilegiado do funcionamento discursivo, que demanda de uma escuta atenta e
flutuante.
A pesquisa documental para construir o corpus do trabalho iniciou-se com uma primeira aproximação
aos periódicos brasileiros datados do início do século XX visando encontrar indícios sobre como os
portugueses eram vistos pela sociedade brasileira naquele momento, em que se vinha esboçando a
formação de uma identidade nacional, sobretudo desde a Proclamação da República (1889).
Inicialmente, partiu-se da hipótese de que se encontrariam apreciações negativas em torno à ex-
metrópole e seus imigrantes, tendo em vista as inumeráveis piadas menosprezando os portugueses
disseminadas ao longo do século XX no Brasil, que são de público conhecimento
3
. No entanto,
encontraram-se diversos conteúdos favoráveis aos portugueses e não apenas isto, senão também
estratégias de reafirmação de uma incipiente identidade nacional construída a partir de uma
comparação positiva com o país europeu e seus habitantes. Assim, no ano de 1922, por um lado,
emergia em São Paulo a reconhecida Semana da Arte Moderna que forjava a antropofagia como
bandeira de deglutição de tudo o que é estrangeiro em prol da construção de uma identidade
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Omitimos exemplos por seu caráter intrinsecamente xenófobo.
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própria autêntica. Por outro lado, no Rio de Janeiro, organizavam-se festividades em torno à visita do
presidente português cuja participação nas comemorações do centenário da independência era
aguardada com ânsia.
Na página oficial da Biblioteca Nacional Digital do Brasil
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, utilizou-se os seguintes critérios para realizar
a busca: período 1920-1929, Estado do Rio de Janeiro, palavra-chave “Antonio Jose de Almeida”
(com aspas e sem acentos). Sendo assim, a partir da exploração de diversas notícias publicadas em
diferentes jornais, definimos um corpus de arquivo finalmente composto por oito documentos. O
critério de inclusão na mostra circunscreveu-se às repercussões midiáticas da chegada do então
presidente português Antônio José de Almeida, convidado a participar das comemorações do
centenário da independência na capital brasileira.
A escolha de jornais do Rio de Janeiro foi fruto de uma intenção deliberada de obter os melhores
documentos para compreender a relação entre “portugas” e “brazucas” no seio da formação da
identidade nacional brasileira. Se bem São Paulo também se apresentava, já nesta época, como
importante potência a nível nacional, ou seja, com um fluxo alto de habitantes, diversidade industrial
e comercial, e formidável urbanização, é predominantemente no Rio de Janeiros que a presença
dos portugueses se consolidou. Além de funcionar como capital do país até 1960, foi esta cidade que
albergou a corte real portuguesa no início do século XIX. Na década de 1920, contexto do presente
trabalho, era no Rio que se concentrava a maior parte dos imigrantes portugueses e, portanto, onde
se apresentava um desenvolvimento cultural peculiar na arquitetura, na culinária doméstica e social,
nas festas e em aspectos fonológicos da língua (Oliveira 2009).
O trabalho apresenta os documentos do corpus a modo de figuras que subsidiam o texto
interpretativo-argumentativo. Cada figura está acompanhada por um número que identifica o
documento e por uma descrição que contempla dados que permitem localizar os arquivos originais
disponíveis na referida hemeroteca e que são de acesso livre.
Observou-se que, em diferentes jornais, mantinha-se, de modo geral, uma mesma pauta editorial
positiva em relação ao fato analisado. Portanto, o foco da análise se centra na monossemia
encontrada nas diferentes fontes.
Brasil e Portugal: duas caras da mesma moeda ou cara e coroa?
A complicada relação entre Brasil e Portugal é mencionada em diferentes trabalhos e, somando-se
a isto, episódios vinculados a um exercício xenofóbico contra os portugueses é flagrante nos jornais
de época (Chagalj 2020; Ribeiro 1994; Triches 2007; entre outros). Neste artigo, analisamos uma
perspectiva que valoriza os cidadãos de além-mar, visão esta muitas vezes silenciada, o que motiva
a dar-lhe voz, apesar de que se navegue um pouco contra a corrente. Qualquer gesto de escritura
é um gesto de interpretação e, no limite, é sempre um recorte, ou seja, apenas uma parte do todo.
Desse modo, adentrar pontos de vista diversos permite compreender de forma mais holística e,
portanto, crítica a complexidade dos processos históricos. É com este espírito que se efetua a análise.
A Figura 1 representa a primeira página do jornal “O Imparcial” publicado no dia 16 de setembro de
1922, que anuncia a eminente chegada do Presidente Dr. Antonio José d’Almeida ao porto do Rio
de Janeiro.
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Para ver os resultados encontrados na hemeroteca digital, basta entrar na sua página web (https://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx) e definir os mesmos
critérios de busca na seção “Período”.
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Figura 1. O Imparcial (RJ), 16 de setembro de 1922, Edição 01394 (2): 1.
Interessa-nos observar a manchete e o subtítulo da capa do jornal, respectivamente: “Chega hoje
ao Rio o presidente da Republica Portugueza” e “A viagem do Dr. Antonio José d’Almeida tem, para
o Brasil, a expressão de uma visita paterna”. Destaca-se o fato de anunciar-se a chegada do
presidente “da Republica Portugueza” (grifo nosso) e não “de Portugal”. Esta decisão linguística
plasmada na capa do jornal põe em relevo o fato de que o referido país havia adotado o sistema
republicano há pouco mais de uma década, o que justifica a necessidade de revigorar a
nomenclatura.
No subtítulo desse mesmo documento (Figura 1), adverte-se a relação comparativa que se
estabelece entre o presidente português e a figura de um pai, já que sua chegada ao Brasil
representava “a expressão de uma visita paterna” (grifo nosso). A relação assimétrica entre pai e filho
se exacerba quando o primeiro é apresentado discursivamente como “Dr.”, categoria acadêmica
considerada de grande prestígio, especialmente a princípios do século passado. Embora não se
mencione explicitamente no texto, se o presidente português representa um pai, entende-se que a
figura do filho compete ao Brasil. Como propõe Orlandi (1995), o discurso produz sentidos não
somente pelo que diz, senão também pelo que omite. Assim, a metáfora pai-filho no contexto do
centenário da independência evoca memórias discursivas do acontecimento conhecido como o
“Dia do Fico”. Observe-se que o fato histórico se inscreve no discurso a partir do verbo intransitivo
“ficar”. Em 1808 a sede do Império Português passou a estar no Brasil com a mudança forçada de
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toda a comitiva real de Lisboa para o Rio de Janeiro. Em 1815 o Brasil é elevado a reino e em 1821
eclode a Revolução do Porto, quando as elites da metrópole buscam formular uma constituição. O
rei de Portugal, Dom João VI, foge de volta ao país natal deixando em território brasileiro seu filho,
Pedro de Alcântara como príncipe-regente do reino português. O jovem Dom Pedro I, com então 22
anos, vinha sendo pressionado para voltar à Lisboa quando finalmente formalizou o desacato à
ordem paterna no dia 9 de janeiro de 1922, pronunciando “Se é para o bem de todos e felicidade
geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico.” Dito isto, celebrar a visita de um presidente
português em termos de “visita paterna” justamente no centenário da independência atualiza
memorias de um reencontro ansiado e inclusive reconciliatório. Dessa forma, constroem-se novas
memórias discursivas que respaldam o fortalecimento de uma identidade nacional espelhada no
colonizador.
Ainda na Figura 1 os dêiticos temporais “hoje” e “amanhã”, respectivamente na manchete e no
subtítulo da notícia da capa, permitem reconstruir a chegada presidencial em suas minúcias. “Hoje”
remete ao dia de publicação da matéria, 16 de setembro, e celebra a chegada ao Rio, ou melhor
dito, às águas pertencentes a território brasileiro. “Amanhã” remete ao dia seguinte, 17 de setembro,
que anuncia o desembarque formal nas terras do país. Esse desdobramento enunciativo duplica a
chegada. Em outras palavras, os recursos discursivos amplificam o acontecimento que singulariza um
evento duplo, o que o torna mais durativo, fato que constrói maior visibilidade e transcendência ao
mesmo. Este primeiro documento abarca a perspectiva identificada como predominante na maioria
dos jornais consultados: uma visão receptiva e festiva da chegada do eminente português.
Quanto à chegada propriamente dita, desde as águas da Baía da Guanabara, antes mesmo de
pisar terra firme, o presidente Antonio Jose de Almeida
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telegrafou suas palavras explicitando uma
clara intenção amistosa com o “antigo filho”. O conteúdo desta mensagem foi reproduzido em
diferentes periódicos da época, como se pode observar na margem direita da página 7 do Jornal
do Brasil, publicado em 17 de setembro de 1922 (Figura 2):
Figura 2. Jornal do Brasil (RJ), 17 de setembro de 1922, Edição 00223: 7.
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Como se adverte nas Figuras 1 e 2, para grafar o apelido do presidente usava-se tanto “d’Almeida” como “de Almeida”.
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Observa-se que o nome do presidente português aparece em tipografia desproporcionalmente
maior com relação ao conteúdo do texto. Além disso, a imagem do presidente estampa o centro da
página tal como no caso da Figura 1. O processo de adjetivação no título da matéria remete a ideias
positivas: “O Brasil recebe hoje carinhosamente a visita do chefe da gloriosa Nação portuguesa”
(grifos nossos). O adjunto adverbial “carinhosamente” modifica o modo com que os brasileiros
recebem a autoridade. Não se trata somente de respeito, senão de um modo passional, “carinhoso”.
A nação portuguesa, por sua vez, é ressaltada em maiúscula e antecedida pelo qualificativo
“gloriosa”. Evidencia-se, explicitamente, o sentimento de admiração por Portugal que, ao tratar-se
de discurso, e assumindo que as formações discursivas de cada época regulam o que pode e deve
ser dito neste momento e lugar (Foucault 2018), entendemos que o sentido de admiração formulado
nos jornais da época é um reflexo de condições sociais concretas de uma parcela da sociedade
tanto quanto uma tentativa de promover experiências sociais alinhadas com este discurso.
Com relação à mensagem literalmente enquadrada na margem esquerda do periódico
(reproduzida na íntegra no Anexo 5 deste artigo), desprende-se uma forte relação de reciprocidade
entre as duas nações. Neste sentido, é pertinente recuperar o seguinte fragmento:
Collaboradores da mesma obra de civilização, tão juntos temos trabalhado, brasileiros e
portugueses, que para sempre ficamos irmãos; irmãos, mas nos approximamos ainda, no
momento do Centenário da vossa Independência, em que as duas pátrias como que
suspendem o véo na sequencia de um destino eterno, para se unirem sobre a asa da sua
tradição ancestral, como duas águias oriundas dos cerros da Lusitânia que quisessem sentir,
por um instante, o calor do agasalho commum. (Fragmento A da mensagem, Anexo 5)
Alguns elementos destacáveis deste fragmento remetem diretamente ao lugar dado à cada nação.
Primeiro, ambas são tratadas como colaboradoras do projeto civilizatório, o que contradiz a ideia de
que Portugal foi o vetor que direcionou o Brasil nesse projeto. Logo em seguida, coloca-se os países
lado a lado, como irmãos. A relação de irmandade, assim como a de colaboração, fortalece um
espírito de igualdade entre as duas pátrias. Ora, se Portugal é visto e anunciado como “expressão
paterna”, onde há uma clara relação assimétrica no que se supõe ser pai e ser filho, como poderia,
ao mesmo tempo, pretender-se uma relação fraterna, entre irmãos, entre iguais? Esta contradição se
esfumaça na continuidade do relato, quando o presidente compara as duas nações como “duas
águias oriundas dos cerros da Lusitânia que quisessem sentir (...) o calor do agasalho commum”. Há
modos de dizer característicos da época que podem obstaculizar a percepção de outros sentidos.
No entanto, neste último enunciado do fragmento selecionado, não há dúvidas de que as duas
águias vêm de uma mesma Lusitânia, colocando em cheque todo o espírito fraterno, de
colaboração e igualdade, que se vinha tecendo no discurso. A procedência geográfica comum das
duas águias funciona como um lapso no fio do discurso que faz funcionar, novamente, sentidos de
assimetria onde Portugal ocupa o lugar privilegiado.
Ao declarar admiração e carinho a mensagem evoca uma efusão amorosa plasmada em uma
cadeia sintagmática (“mesma obra”, “tão juntos”, “para sempre”, “destino eterno”, “sentir”, “calor”,
“agasalho comum”) cuja insistência semântica faz perguntar se tanto excesso esconde alguma falta.
Somando-se a estas discussões, outro fragmento da mensagem avalia positivamente a imigração
portuguesa no Brasil:
Mas no meu coração conduzo até vos um sentimento imorredouro, que é o amor dos
portugueses a vossa patria, acolhedora e resplandecente, patria fecunda e generosa,
onde, como se fôra a sua, devotados á terra e respeitando as leis, trabalham
honradamente tantos filhos queridos de Portugal. (Fragmento B da mensagem, Anexo 5,
grifos nossos)
Neste recorte discursivo, o presidente reconhece que o Brasil acolhia na época um formidável
contingente de portugueses que “trabalhava honradamente”. O fato de ter escolhido aclarar que
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estes trabalhadores “respeitavam as leis” em um discurso oficial que sabia que seria reproduzido pelos
jornais de grande circulação na cidade e no país faz emergir a pergunta sobre o porquê da
aclaração. Esta informação poderia estar subentendida em tudo o que foi dito anteriormente na
mensagem; porém, a necessidade de fazer a ressalva, destacando a boa conduta dos portugueses
imigrantes permite advertir que poderiam haver rumores em contrário. O que se discute é que esta
mensagem representa as primeiras palavras de um ilustre visitante português e cada palavra ocupa
um lugar imprescindível por razões diversas. É mister relembrar que havia cem anos que um
representante português não pisava oficialmente o solo brasileiro (ver primeiro parágrafo do Anexo
6). É chamativo o fato de que em um discurso tão importante a nível sócio-histórico e político,
reproduzido nas páginas de inúmeros jornais e breve, tenha-se escolhido reservar um número de
palavras para afirmar que tantos filhos queridos de Portugal devotam a nova terra “respeitando as
leis”.
Este aspecto nos ajuda a refletir sobre a participação dos portugueses na formação da identidade
nacional brasileira. No decorrer do século XIX, Portugal registrou um importante crescimento
demográfico que não foi acompanhado por um crescimento econômico acorde, o que contribuiu
com a elevação da taxa de emigração naquele país. O destino principal destes portugueses era o
Brasil. A porcentagem desses imigrantes em terras brasileiras superava os 80 % nas primeiras décadas
do século XXI (Klein 1993; Lesser 2015).
Ao mesmo tempo, no Brasil, a abolição da escravização em vésperas da Proclamação da República
significou um aumento substancial na oferta de trabalho assalariado derivada das vagas deixadas
compulsoriamente pelos escravizados (preteridos aos imigrantes), sobretudo no eixo Rio-São Paulo.
Muitos portugueses se insertavam no trabalho rural; no entanto, era nos centros urbanos que
conformavam o grupo mais numeroso de imigrantes. Na década de 1920, estima-se que um 15 % da
população urbana do Rio de Janeiro estava composta por portugueses (Klein 1993, 245; Lesser 2015,
148). Com respeito às características desta população, compunha-se majoritariamente por adultos
do sexo masculino, o que, ainda segundo Klein (1993), poderia explicar um alto índice de violência
envolvendo este segmento populacional. Este último fato se verificou a partir de uma análise dos
registros lavrados pelas forças policiais da época. Finalmente, também se registrava uma
participação importante de portugueses entre os anarcosindicalistas e socialistas no Brasil no contexto
da I Guerra Mundial. Estes últimos dados nos permitem caracterizar o contexto social de turbulência
para com os portugueses que dava lugar à necessidade de asseveração por parte do chefe de
estado português sobre o bom caráter de sua comunidade emigrante.
Na Figura 3 apresenta-se a capa do jornal Correio da Manhã daquele domingo 17 de setembro de
1922. Mais uma vez se observa a localização central da foto do presidente português. Neste caso não
se fala de “República Portuguesa” senão diretamente de “Portugal” no subtítulo da matéria e
também no título do quadro que demarca a reprodução das primeiras palavras do presidente desde
as águas brasileiras (centralizado na parte inferior da folha).
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Figura 3. Correio da Manhã (RJ), 17 de setembro de 1922, Edição 08596(3): 1.
--Rev. nuestramérica, 2023, n.o 21, edição contínua—
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Nesta capa, observamos que aparece no topo do texto, em letras maiúsculas, o breve título: “Um
hospede illustre”. Advertimos que, apesar de que se focalize o presidente, o fato de estar apresentado
como “hóspede” termina focalizando pela tangente o hospedeiro, portanto, o Brasil. O país ganha
assim protagonismo na cena, já que para hospedar alguém, deve-se preparar a casa e abrir as
portas. Em outras palavras, semanticamente, “hospedar” implica uma ação deliberada e não uma
presença passiva e desinteressada. No subtítulo que vem logo abaixo, este lugar ativo dado ao país
se fortalece quando se coloca o presidente em lugar de passividade, já que se utiliza o verbo
“receber” para referir-se às “ações” do presidente ao chegar. Vejamos: “O dr. Antonio Jose de
Almeida, presidente de Portugal, receberá hoje as primeiras homenagens dos brasileiros e dos seus
compatriotas” (grifo nosso).
O longo texto que se apresenta nesta capa evoca diferentes aspectos relacionados à visita do chefe
de estado. Aborda, por exemplo, alguns traços da vida do visitante, como lugar de nascimento,
formação acadêmica e experiências políticas. Publica-se, também, a agenda oficial da visita, com
dias, horários e lugares dos encontros diplomáticos. Observam-se, ainda, vários textos pouco extensos
com homenagens provenientes de associações civis e comerciais. Algumas estão relacionadas aos
portugueses, já que “o forte sentido de identidade comunitária assegurou que estas instituições de
voluntários fossem não só das primeiras a serem criadas, como as mais duradouras da história
moderna do Brasil.” (Klein 1993, 255). Entre estas, destacamos o “Centro Beneficente Gago Coutinho
e Sacadura Cabral”, cujo texto se vê no topo e à direita da imagem presidencial. Gago e Sacadura
foram dois aviadores portugueses que realizaram o primeiro voo que cruzou o Atlântico Sul de Lisboa
a Rio de Janeiro, fato realizado também no ano de 1922. Há muitas menções nos jornais da época
sobre esta travessia aérea.
Para ilustrar a efetiva chegada do presidente, apresenta-se a Figura 4 com o registro fotográfico do
momento, publicado pela Revista Fon-Fon (RJ), onde observa-se, mais uma vez, uma apreciação
positiva do feito. Neste caso, os dois países são equiparados no título com o sintagma nominal “duas
patrias” (tamanho completo em anexos):
Figura 4. Fon-Fon: Revista Semanal Illustrada (RJ), 1922, Edição 00038(3): 48.
--Rev. nuestramérica, 2023, n.o 21, edição contínua—
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Na descrição da imagem publicada (Figura 4), observamos a abundância de adjetivos de valoração
positiva: “triunphal”, “vibrante de enthusiasmo e ardor” e “illustre”. Em consonância com a
equiparação das pátrias no título, a epígrafe recupera o sentido fraterno, utilizando o adjetivo “irmã”
para caracterizar a pátria portuguesa. Estas descrições são acordes ao que se obtém da imagem:
uma multidão que acompanha o cortejo presidencial.
No próximo documento (Figura 5), observamos como se mimetiza a figura do maior representante
político português com a metáfora de uma raça superior e precursora. A configuração do povo
brasileiro é motivo de intensos debates. No entanto, na Figura 5, adverte-se a latência de um enfoque
clássico sobre o racismo extensamente difundido em meados do século XIX (Aguerre 2022). Von
Martius (1845, 382) abordou a miscigenação de três etnias no Brasil: povos originários do continente
(“cor de cobre ou americana”), europeus (“branca ou Caucasiana”) e africanos (“preta ou
ethiopica”). Essa miscigenação tem profundos desdobramentos em todos os aspectos culturais
brasileiros, como a religiosidade, a organização política e militar, a culinária, a língua, a arquitetura e
inclusive o racismo. O referido autor argumenta que a mistura de raças no país favoreceu o
surgimento de “um produto final melhorado” porque, em relação à presença portuguesa
propriamente dita, o autor aponta que se tratou de uma colonização distinta de outras pelo fato de
que viajaram à colônia brasileira não somente particulares, senão também nobres e príncipes. Isto a
caracteriza, desde o ponto de vista do autor, como uma grandiosa empresa estatal portuguesa.
Este último aspecto, enquanto memória discursiva, se atualiza na caracterização jornalística do chefe
de estado português como “embaixador da raça”. O substantivo “embaixador” remete ao grau mais
elevado do representante de um estado perante outro. Assim, entendemos que há, nesta titulação,
a ideia de que entre as três raças que teriam formado o Brasil a portuguesa seria a mais importante.
Nessa construção discursiva também desliza o emparelhamento entre certas raças e a condição de
civilidade ou barbaridade. Vejamos a Figura 5 (tamanho completo em anexos):
Figura 5. A Exposição de 1922: Órgão da Comissão Organizadora (RJ), ano de 1922, Edição 00005, p. 18.
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Destaca-se que as considerações de Von Martius (1845) conformam o primeiro esboço sobre a
formação identitária do Brasil a partir de uma mistura de raças (Rowland 2001), o que antecipa como
a história desse país foi construída discursivamente e reproduzida desde a perspectiva dos
estrangeiros e colonizadores.
Para culminar o trabalho analítico sobre as fontes consultadas, apresenta-se um último documento já
posterior ao evento do Centenário, que elabora uma produção desenfreada de metáforas para
cultivar o “pai” que Portugal representava no início do século XX para o Brasil (tamanho completo em
anexos).
Figura 6. A Exposição de 1922: Órgão da Comissão Organizadora (RJ), ano de 1923, Edição 00017-00018(3): 6 e 7.
O documento da Figura 6 é um texto literário selecionado de uma revista cultural, que como o próprio
nome diz, remetia à organização de uma exposição sobre o Centenário da Independência. Neste
texto, observa-se a existência de um mesmo enunciado exclamativo que opera de título e de
encerramento do texto: “Emquanto o mundo for mundo ha de viver Portugal!”, atribuído ao poeta
António Correia de Oliveira. Portanto, em uma primeira inspeção, já podemos advertir a presença de
um conteúdo pró português. Interessa-nos, particularmente, as imagens evocadas nos dois primeiros
parágrafos. O autor do texto resume com precisão uma lenda de um grupo de indígenas do Rio
Grande do Sul que explica porque a região tem tantas lagoas e um mar mais turbulento que o
restante da costa. Como síntese do princípio do texto, conta a lenda que, antigamente, a região era
formada por apenas um conjunto muito grande de águas. Logo depois de uma feroz guerra entre
Mar e Terra, ficaram porções de água presas na terra e, por isso, a água do oceano bate mais forte
aí, clamando por suas filhas presas no continente. Após apresentar este mito criacionista, o escritor
tece um paralelo com a história do Brasil com Portugal: ambos eram, em determinado momento,
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uma só “raça”, uma só água, regida por um só rei; depois, por obra do destino, pai e filho se
separaram, como o oceano e as lagoas. A comparação culmina com o Oceano Atlântico que
separa os dois países “chamando-se eternamente um ao outro, nos gritos do sonho e do sangue.”
(Figura 6, p. 6). É curioso o fato de que, nessa releitura da lenda, não há uma “grande guerra”, senão
umas certas “contingências e necessidades” que separam o antigo “todo”. Trata-se de uma
comparação aparentemente forçada porque, além disso, na lenda, é só o oceano-pai que clama
por suas filhas-lagoa. Ou seja, estritamente falando, seria apenas o Portugal-pai quem estaria
clamando por seu Brasil-filho. Em outras palavras, na construção parafrástica a via de duplo sentido
é obra da recriação interpretativa do escritor que faz a língua falhar na comparação.
Finalmente, o texto da Figura 6 continua metaforizando os dois países como pai e filho, em que o “pai
fatigado deixou o filho crescer livre” para se tornar, com o tempo, “seu companheiro, seu amigo, seu
irmão”. O texto, ainda, sinaliza a existência de um lugar comum físico, ademais do lugar comum
simbólico, quando sinaliza que ambos os países formam um só coração. A análise permite dizer que
esse lugar concreto comum é a língua: já não formam o Reino Unido de Portugal e Brasil, mas sim
formam a “República Unida das Letras Portuguesas”.
A partir das análises do material empírico que constituiu o corpus da pesquisa, advertimos que a
relação Portugal-Brasil transparece em diferentes jornais e revistas da capital brasileira à época do
centenário da independência e, a partir de gêneros textuais diversos, produz discursos ancorados na
metáfora do pai-filho que se converte em irmão-irmão através de operações discursivas que deslizam
os sentidos.
Nesta linha, em concordância com outros autores, entende-se que a presença portuguesa nas
comemorações da independência brasileira busca demonstrar o fortalecimento dos vínculos entre
as antigas metrópole e colônia. Na comemoração dos 150 anos da independência, em 1972, os restos
mortais de D. Pedro I retornaram de Portugal ao Brasil, momento em que os dois territórios eram
governados por militares (o general Emilio Garrastazu Médici no Brasil e o almirante Américo Tomás
em Portugal). A cerimônia de recebida foi nomeada no jornal O Cruzeiro como a “volta do
Emancipador” (Silva de Almeida 2008). O gesto de visita ao Brasil na data patriótica é inaugurado
pelo caso que tomamos neste artigo, ou seja, a presença de Antônio José de Almeida nas
comemorações do centenário, ano em que, ademais, levou-se a cabo a primeira travessia em avião
do atlântico sul no eixo Lisboa-Rio de Janeiro, como se mencionou anteriormente. Ambos os eventos
foram recordados pelo presidente português Marcelo Rebelo de Souza, eleito em 2016 e reeleito em
2021, quando de seu discurso em sessão solene do Congresso Nacional brasileiro em comemoração
ao bicentenário da independência no ano de 2022. Em suas palavras, retomou fragmentos do
discurso presidencial do centenário e também anunciou:
Excelências, cem anos mais passaram sobre eloquente confissão do presidente Antonio José
de Almeida, confissão que é a um tempo gratidão plena ao Brasil por ter sido incansável,
porfiado, corajoso na sua pugna pela independência. Um século volvido, o que vos venho
dizer, em nome de Portugal e de todos os portugueses, é que vos agradeço mais ainda do que
em 1922 por um longo e rico caminho de que ficamos e ficaremos sempre devedores”.
(Congresso Nacional, 8 de setembro de 2022)
6
Os gestos recentes consolidam o ensejo inicial de irmandade entre as pátrias desde o ponto de vista
da política externa. Apesar dessa evidência, é preciso indagar em profundidade os fatos da história
recente para aprofundar a interpretação destes últimos acontecimentos.
6
Sessão legislativa ordinária da 56ª legislatura, 26ª sessão (não deliberativa solene semipresencial), Câmara dos Deputados - Palácio do Congresso Nacional -
Praça dos Três Poderes, Brasília. https://www.camara.leg.br/internet/escriba/escriba.asp?codSileg=66408
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Considerações finais
Nestas considerações finais damos lugar à provocação incitada no segundo subtítulo do artigo. Brasil
e Portugal: duas caras da mesma moeda ou cara e coroa? Ora, o desenvolvimento do trabalho nos
permite formular uma resposta objetiva. Tanto o discurso de irmandade (relação simétrica, duas
caras), quanto o discurso de paternidade (relação assimétrica, cara e coroa) conviviam, com maior
ou menor grau de contradição, entre os membros da sociedade brasileira, e entre os pesquisadores
e literatos que estudaram a fundo estas questões. Há uma relação de amor e ódio com Portugal que
poderia ser pensada como recíproca.
Este trabalho apresentou uma visão positiva que endossava o cultivo de boas práticas discursivas em
relação ao país de além-mar. Em diferentes tipos de jornais e de textos, pudemos perceber,
explicitamente, referências a ambos como pátrias irmãs que se amavam e respeitavam.
Há visões menos positivas em jornais anarquistas da época, como por exemplo o Gil Blas (Anexo 7),
que apresenta críticas sobre alguns tratados assinados com o Presidente Almeida no contexto de sua
visita. Ainda assim, observa-se no mesmo jornal um reconhecimento positivo em relação ao lugar de
Portugal na história do Brasil.
Neste trabalho, optou-se deliberadamente por mostrar a perspectiva receptiva direcionada aos
portugueses como co-representantes de uma impregnada identidade luso-brasileira. Essa visão
positiva era reproduzida no âmbito escolar, especialmente no ensino primário contemporâneo ao
centenário (Costa e Soares 2020). No entanto, a presença portuguesa nos conteúdos escolares
parece haver minguado no decorrer dos anos. Ainda assim, na comemoração dos 500 anos do mal
nominado “Descobrimento do Brasil”, as festividades foram marcantes em todo o país, momento em
que o nome das famigeradas três caravelas portuguesas ganhou popularidade nas manchetes dos
jornais. As datas pátrias simbolizam sobremaneira nossas histórias na medida em que diferentes grupos
disputam a seleção de discursos que se pretende reproduzir e solidificar como memória discursiva
hegemônica. Por isso, é interessante aprofundar estudos discursivos sobre fenômenos desta índole.
Se nas primeiras décadas do século XX estava em disputa o discurso sobre a identidade nacional
incorporando os portugueses em maior ou menor medida, nestas primeiras décadas do século XXI
podemos dizer que o assunto da identidade brasileira se reorganizou fazendo mais jus à diversidade
de povos e culturas que contribuíram com o desenvolvimento deste estado nação. Apesar deste
pequeno avanço, desde o ponto de vista da justiça histórica e social, todavia há muito o que
percorrer. Assim, estamos ante uma identidade “à guisa de conclusão”. São questões para continuar
refletindo além e aquém mar.
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Biodata
Thalita Camargo Angelucci: Doutora em Humanidades y Artes com menção em Ciências da
Educação pela Universidade Nacional de Rosario (UNR, Argentina). Psicóloga pela Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar, Brasil). Docente no curso de graduação em Ciências da Educação
da UNR. Bolsista doutoral do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET,
Argentina) com lugar de trabalho no Instituto Rosario de Investigações em Ciências da Educação
(IRICE), onde é membro do Grupo de Pesquisa “Línguas, culturas e educação” dirigido pela Dra.
María Isabel Pozzo. Também é membro do Grupo de Estudos em Integração e Cooperação na
América Latina (GEICRAL-UNR) dirigido pela Dra. Olga Saavedra. Autora de trabalhos sobre discursos,
migrações e educação linguística.
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Anexo 1
Figura 4. Fon-Fon: Revista Semanal Illustrada (RJ), 1922, Edição 00038(3): 48.
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Anexo 2
Figura 5. A Exposição de 1922: Órgão da Comissão Organizadora (RJ), ano de 1922, Edição 00005, p. 18.
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Anexo 3
Figura 6. A Exposição de 1922: Órgão da Comissão Organizadora (RJ), ano de 1923, Edição 00017-00018(3): 6.
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Anexo 4
Figura 6. A Exposição de 1922: Órgão da Comissão Organizadora (RJ), ano de 1923, Edição 00017-00018(3): 7.
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Anexo 5
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA PORTUGUEZA AO POVO BRASILEIRO
O Brasil, patria acolhedora e resplandecente, patria fecunda e generosa, diz o eminente estadista
lusitano, no meu coração conduzo até vós um sentimento immorredouro
Por intermedio da Agencia Havas, o Dr. José Antonio de Almeida, enviou ao povo brasileiro a
seguinte mensagem:
“Aos brasileiros. - Ao entrar na Baía de Guanabara, a melhor Bahia do mundo, tenho a honra de
saudar o Brasil, uma das mais possantes e formosas patrias que tem existido sobre a terra.
Venho visitar este paiz de maravilha com a tremula emoção de quem pratica um acto religioso em
que o espírito se sente arrebatado para além do espaço e do tempo, contemplando, absorto, o
esforço sobrehumano das gerações predestinadas.
Collaboradores da mesma obra de civilização, tão juntos temos trabalhado, brasileiros e
portugueses, que para sempre ficamos irmãos; irmãos, mas nos approximamos ainda, no momento
do centenário da vossa independência, em que as duas pátrias como que suspendem o véo na
sequencia de um destino eterno, para se unirem sobre a asa da sua tradição ancestral, como duas
águias oriundas dos cerros da Lusitania que quisessem sentir, por um instante, o calor do agasalho
commum. Homem simples e modesto, figura transitoria da vida pública do meu paiz, por mim,
brasileiros, nada vos posso fazer que tenha valor. Mas no meu coração conduzo até vos um
sentimento imorredouro, que é o amor dos portugueses a vossa patria, acolhedora e
resplandecente, patria fecunda e generosa, onde, como se fôra a sua, devotados á terra e
respeitando as leis, trabalham honradamente tantos filhos queridos de Portugal.
Mais, se é possível, do que o próprio orgulho de ser Chefe do grande povo que outr’ora fez uma
pathetica criação de mundos, experimento a immerecida fortuna de ser o mensageiro da
fraternidade inviolada que a minha terra sente pela vossa terra admiravel.
Aguas brasileiras, aos 17 de setembro de 1922.
(Assignado) - Antonio José de Almeida.”