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A composição de cúpulas imaginárias na capitania de
Minas Gerais: a constituição de uma prática artística no
ambiente das pinturas de quadratura e sua conexão com o
ilusionismo pictórico da Itália setentrional (1760-1787)
The composition of imaginary domes in the Capitany of Minas Gerais: the
constitution of an artistic practice in the environment of quadratura paintings
and its connection to the pictorial illusionism in Northern Italy (1760-1787)
DOI: 10.20396/rhac.v4i1.17658
LUCIANA BRAGA GIOVANNINI
Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
0000-0002-3440-1799
Resumo
O artigo apresenta o estudo da concepção estrutural de um grupo de pinturas de teto que simulam
arquiteturas circulares em perspectiva centralizada, as quais intitulamos cúpulas imaginárias. A
composição dessas obras é consequência da prática artística instituída por meio da circulação de
saberes que foram transmitidos de geração em geração: fruto da experiência compartilhada entre
mestres, pintores, aprendizes e os demais artífices que frequentavam os canteiros de obras da
capitania de Minas Gerais na segunda metade do Setecentos.
Palavras-chave: Quadratura. Pintura de Perspectiva. Pintura de Teto. Pintura Colonial Mineira.
Tratados de Arte.
Abstract
This paper presents the study of the structural conception of a set of ceiling paintings which
simulate circular architectures in centralized perspective, nominated by us imaginary domes. The
composition of these works is a result of the artistic practice instituted by the circulation of
knowledge, transmitted throughout generations: fruit of the experience shared among masters,
painters, apprentices and other craftsmen who attended the construction sites of the Capitany of
Minas Gerais in the second half of the 18th century.
Keywords: Quadratura. Perspective painting. Ceiling painting. Colonial painting in Minas Gerais.
Art treatises.
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O artigo apresenta parte dos resultados alcançados com a pesquisa de doutorado que procurou
estudar um grupo de pinturas de teto que simulam arquiteturas circulares em perspectiva centralizada,
as quais intitulamos cúpulas imaginárias
1
. O conjunto pictórico decora as capelas-mores de cinco templos
localizados em três comarcas da capitania de Minas Gerais: Vila Rica, Serro Frio e Rio das Mortes. Tais
obras correspondem às ornamentações das capelas-mores da Sé catedral de Mariana (1760), da igreja de
Santa Efigênia de Ouro Preto (c.1765), ambas contratadas pelo pintor português Manoel Rebelo de Souza;
da matriz de Santana de Inhaí (antes de 1787), atribuída ao artífice bracarense José Soares de Araújo; da
matriz de Santo Antônio de Ouro Branco (1760-1775), de autoria desconhecida; e da igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Tiradentes (1760-1775), cujo autor denominamos Mestre do
Rosário.
O principal aspecto que conecta essas pinturas é a composição: a concepção de uma arquitetura
circular e centralizada a partir da disposição dos círculos em perspectiva. No decorrer da investigação,
constatamos que o método empregado pelos pintores na constituição das arquiteturas imaginárias
sugere a existência de uma prática artística desenvolvida a partir da circulação dos tratados de arte e do
intercâmbio cultural estabelecido entre artífices de diversas áreas do conhecimento. Partindo desse
raciocínio, consideramos que a origem para a conformação dessas cúpulas pode estar no procedimento
adotado pelo pintor italiano Andrea Mantegna (1431-1506), com a decoração do teto da Camera degli Sposi
(1465-1474), em Mântua. Tal processo foi absorvido, interpretado e propagado pelos artistas italianos
ativos principalmente na Itália setentrional, na Europa Central e em Portugal, como pretendemos
demonstrar.
Para compreender o processo de circulação, assimilação e interpretação do método de
representação das referidas arquiteturas circulares, precisamos entender como se deu o florescimento
das pinturas de teto concebidas em perspectiva ilusionista na capitania de Minas Gerais. Dito em poucas
palavras, o gênero denominado quadratura
2
se desenvolveu, no decorrer do século XVIII e início do XIX,
1
GIOVANNINI, Luciana Braga. A construção de cúpulas imaginárias na capitania de Minas Gerais: a pintura de perspectiva e a
expressão de uma concepção religiosa (1725-1800). 2022. Tese (Doutorado em História) – FAFICH, Universidade Federal de
Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, 2022.
2
Em 1681, o teórico da arte, político e pintor italiano Filippo Baldinucci (1624-1697) escreveu o Vocabolario Toscano dell’ Arte del
Disegno, publicado em Florença, no qual definiu a quadratura como a arte de pintar perspectivas, de pintar em quadratura. Nessa
obra, Baldinucci indica que a quadratura é um gênero pictórico que cria arquiteturas ilusórias por meio das normas da
perspectiva. No século XVII, a definição é ainda um pouco vaga, mas, de todo modo, relaciona-se diretamente com a prática da
pintura de perspectiva ilusionista e os pintores de quadraturas atuantes na Itália. Desse modo, a quadratura pode ser definida
como um gênero de pintura que representa estruturas arquitetônicas em uma superfície plana, bidimensional, a partir do
emprego da perspectiva, possibilitando a continuidade da arquitetura real do edifício nas paredes ou tetos pintados. (Consulte-
se: BALDINUCCI, Filippo. Vocabolario toscano dell’arte del disegno, Florence, 1681.). Nesse cenário, é importante destacar que
Andrea Pozzo (1642-1709) não utilizou a palavra quadratura para definir esse gênero de pintura, mas o termo di stto in sù, que
significa a representação figurativa de baixo para cima. Na América portuguesa, essas formas decorativas aparecem nos
documentos do século XVIII como Pintura de Perspectiva.
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a partir da atuação dos mestres portugueses, da difusão dos impressos europeus e dos tratados de arte
que propagaram a iconografia e contribuíram para a veiculação dos princípios fundamentais da
geometria e da perspectiva. Pesquisas em curso referem-se à presença constante de artistas vindos da
antiga província de Entre-Douro-e-Minho nas comarcas do Rio das Mortes, da Vila Rica e do Serro Frio. No
entanto, não há um modelo exclusivo da pintura de perspectiva que tenha sido transferido pelos pintores
minhotos e seguido rigorosamente pelos artífices mineiros formados na região mineradora. Nesse
universo, percebemos a existência de uma diversidade imensa de decorações de teto presente nas duas
localidades, fruto da circulação de saberes que foram transmitidos de geração em geração e acabou se
constituindo um hábito, um conhecimento tácito que foi apreendido e adaptado ao ambiente cultural e
religioso do Norte de Portugal e da capitania de Minas Gerais.
Como dissemos, independentemente das distintas soluções encontradas pelos mestres pintores,
o conjunto pictórico selecionado possui características semelhantes no tocante à concepção estrutural da
falsa cúpula. Para conhecer o método empregado pelos artífices, realizamos o estudo comparativo das
obras de arte, pois, quando se compara, surgem informações que não seriam alcançadas sem esse
procedimento: acreditamos que a análise de uma pintura sempre ilumina a outra. Partindo dessa
perspectiva, apresentamos os estudos relativos à composição das arquiteturas imaginárias
3
e sua relação
com o conhecimento veiculado por meio dos tratados de perspectiva no espaço luso-brasileiro.
A capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Tiradentes guarda um dos poucos
exemplares da pintura de perspectiva ilusionista do século XVIII remanescente na antiga comarca do Rio
das Mortes
4
. A ornamentação do forro da capela-mor simula uma cúpula imaginária com inúmeros
espaços abertos para o céu. O pintor inseriu, no centro da quadratura, a Sacra conversazione: a
representação de Nossa Senhora do Rosário com o menino Jesus e os Santos Domingos de Gusmão e
Francisco de Assis [Figura 1]
5
.
3
As arquiteturas imaginárias foram concebidas em forros de abóbada de barrete de clérigo, de berço e de aresta, de formatos
quadrangular e retangular. Para organizar o espaço a ser construído, os artistas pintaram elementos arquitetônicos e
ornamentais nos quatro ângulos do teto, talvez com a intenção de diluir as extremidades, dinamizar o ambiente e possibilitar a
transição da superfície quadrada (retangular) da cobertura para o circular (elíptico) e côncavo da falsa arquitetura.
4
Pesquisamos todas as pinturas de teto em perspectiva ilusionista subsistentes na comarca do Rio das Mortes e, até onde
pudemos investigar, supomos que existam apenas duas obras produzidas no século XVIII: a pintura de forro da capela-mor da
igreja do Rosário dos Homens Pretos de Tiradentes, MG, e a pintura de forro da nave da igreja da Glória de Ressaca. Infelizmente,
esta ornamentação encontra-se em péssimo estado de conservação, dificultando sua investigação.
5
Sobre a Sacra conversazione pintada neste forro, veja-se: GIOVANNINI, op cit., p. 255-273.
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Figura 1:
Oficina do Mestre do Rosário. Pintura de forro da capela-mor da Igreja de N.S. do Rosário dos
Homens Pretos, 1760-1775. Pintura à têmpera sobre madeira, forro de tabuado corrido.
Tiradentes, MG.
Fotografia da autora.
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Quando analisamos a pintura da capela do Rosário, notamos que o pintor desenhou uma cornija
formando semicírculos nos ângulos da abóbada [Figura 2]. Essa composição sugere a criação de uma
grande circunferência que extrapola os limites do suporte (sinalizada em verde) e desperta nossa atenção
para a existência de outra forma circular (sinalizada em amarelo), que delimita as bases das colunas e o
espaço destinado à construção da falsa cúpula, reiterando seu formato orbicular e côncavo. Desse modo,
pressupomos que o artista tenha projetado a arquitetura por meio de um conjunto de círculos
concêntricos que definem a disposição dos elementos estruturais do domo pintado, como as mísulas, os
pedestais, as colunas, o entablamento e o óculo. Traçando um quadrado (sinalizado em vermelho)
circunscrito ao círculo que toca as extremidades do forro, percebemos que suas linhas diagonais e seus
eixos de simetria determinam o local reservado às aberturas celestiais, os arcos e as janelas descerrados
para o céu, ainda que alguns desvios sejam notados por um olhar mais atento.
Na capela do Rosário, a iluminação da quadratura flui das aberturas celestiais e evoca a luz
natural, que entra pelos arcos e janelas, reflete a estrutura e projeta as sombras das peças constituintes
da falsa arquitetura. O artífice utilizou o castanho escuro para produzir os sombreamentos e, em
contraste, empregou o branco para a claridade, que se desdobra em pontos distintos do teto, fazendo
vibrar a estrutura. “A presença de fontes de luz, reais ou ilusionísticas, e o correto cálculo das sombras
projetadas pelas arquiteturas pintadas reforçam a tridimensionalidade, tornando ‘habitável’ o espaço
criado”
6
. O Mestre do Rosário não se contentou em simular a luz do céu imaginário. O olhar mais acurado
logo perceberá que o pintor procurou coincidir a luz artificial com a natural, reforçando a ilusão e
integrando os dois espaços, o real e o virtual. Vejamos como isso foi possível. Na capela-mor da igreja do
Rosário de Tiradentes não existem aberturas para o exterior, a claridade tem origem pela porta de
entrada do templo, pelas quatro janelas da nave e por outras duas localizadas na frente da igreja, bem
como pelo óculo posicionado na fachada do edifício. Essa iluminação coincide com a luz representada,
porque sua direção é compatível com a que foi reproduzida na cúpula imaginária. Quer dizer, a luz real
que entra pela nave rumo à capela-mor correlaciona-se com a orientação da luz da pintura, a saber: do
arco-cruzeiro em direção ao retábulo-mor, criando dois caminhos em curva, para a direita e para a
esquerda [Figura 3]. Conforme Giuseppina Raggi e David García, “a entrada de luz pintada coordenada
com a das aberturas reais é um elemento fundamental para a construção coerente da ilusão espacial”
7
.
6
CUETO, Davi García; RAGGI, Giuseppina. A quadratura no mundo ibérico: afinidades e diferenças entre Madrid e Lisboa. In:
ILUSIONISMOS: Os Tetos Pintados do Palácio Alvor. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2013, p. 43-44.
7
Ibid., p. 43.
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Figura 2:
Oficina do Mestre do Rosário. Estudo
geométrico da pintura de forro da
capela-mor da Igreja de N.S. do
Rosário dos Homens Pretos, 1760-1775.
Pintura à têmpera sobre madeira, forro
de tabuado corrido. Tiradentes, MG.
Fotografia e desenho da autora.
Figura 3:
Oficina do Mestre do Rosário. Estudo da
luz representada na pintura de forro da
capela-mor da Igreja de N.S. do Rosário
dos Homens Pretos, 1760-1775. Pintura à
têmpera sobre madeira, forro de
tabuado corrido. Tiradentes, MG.
Fotografia e desenho da autora.
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Comparando a representação visual da igreja do Rosário de Tiradentes com as demais arquiteturas
pintadas, percebemos que todas elas foram estruturadas a partir de um conjunto de círculos concêntricos,
denotando a circulação de um conhecimento comum entre os oficiais, oriundo provavelmente da difusão
do conteúdo dos tratados, da relação estabelecida entre os mestres, seus discípulos e escravos, e da possível
troca de saberes realizada entre os diversos artífices que frequentavam os canteiros de obras. A princípio,
não se pode afirmar que os pintores tenham de fato utilizado a geometria para projetar suas cúpulas
imaginárias, trata-se de uma hipótese que se levanta a partir do estudo das imagens. Infelizmente, os
poucos documentos existentes não nos informam como os artistas produziam os desenhos preparatórios.
O que o historiador da arte tem de concreto é a pintura e é dela que partimos para pensar como teria sido o
traçado subjacente que estruturou a composição dessas arquiteturas virtuais. Nesse contexto, enfatizamos,
o grupo de figuras geométricas – visuais e ocultas – foi encontrado a partir da análise da configuração das
falsas cúpulas e será confrontado com o conhecimento que circulou por meio dos tratados de arte, em
Portugal e Minas Gerais, no decorrer do século XVIII.
Na Sé catedral de Mariana, Manoel Rebelo de Souza pintou duas arquiteturas idênticas com oito
arcos abertos para um espaço interno, onde se encontram os cônegos, de Espanha e Portugal, representados
com seus respectivos atributos e seus nomes e cargos inscritos numa placa fictícia pregada na falsa parede
[Figura. 4]. São eles: São Torcato, arcipreste em Toledo; São Martinho, cônego em Coimbra; São Félix,
arcediago em Braga; São Lourenço, arcediago em Saragoça; São Evancio, arcediago em Toledo; São Félix,
arcediago em Toledo; São Pedro de Arbues, cônego em Saragoça; São Gudilho, arcediago em Toledo. Na
cúpula que se localiza acima do retábulo, o artista reproduziu o retrato de São Julião, bispo de Cuenca, com
as vestes e atributos pertinentes ao cargo.
Na pintura de Mariana, o movimento circular do par de cúpulas pintadas
8
inicia-se, provavelmente,
na concepção dos pedestais que servem de apoio para as colunas, formando um anel em torno da cobertura
(sinalizado em azul) [Figura 5]. Perceba-se a relação entre o círculo e o quadrado (sinalizado em vermelho)
e a correspondência deste com o desenho poligonal da parede fictícia que sustenta a arquitetura. As
diagonais do quadrilátero determinam a posição dos santos cônegos, enquanto os eixos de simetria
definem o lugar em que se colocam os vasos de flores. Uma vez identificada essa forma geométrica
orbicular, percebemos que o artista se serviu de um conjunto de círculos concêntricos para simular o domo,
os quais coincidem com alguns elementos estruturais: a disposição das mísulas, das colunas, dos arcos, do
entablamento e do zimbório pintado, de formato circular e com quatro janelas envidraçadas. É importante
destacar que a composição é totalmente simétrica e espelhada: um lado corresponde exatamente ao outro.
8
A ornamentação do forro da capela-mor da Sé catedral de Mariana corresponde à pintura de duas cúpulas idênticas.
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Se dividirmos o referido quadro (sinalizado em vermelho) em quatro partes iguais, perceberemos que a
representação visual de uma porção corresponde às demais. Somente os personagens diferem, conforme a
iconografia. Esse modo de compor o espaço é característico das quadraturas. Nessa pintura, Manoel Rebelo
de Souza empregou a luz para modelar os elementos arquitetônicos, mas não criou projeções de sombras,
o modelado acontece no interior das figuras e dos objetos.
Figura 4:
Oficina de Manoel Rebelo de Souza. Pintura de forro da capela-mor da Sé catedral, 1760.
Pintura à têmpera sobre madeira, forro de tabuado corrido. Mariana, MG. Fotografia da autora.
Figura 5:
Oficina de Manoel Rebelo de Souza. Estudo
geométrico da pintura de forro da capela-mor da
Sé catedral, 1760. Pintura à têmpera sobre
madeira, forro de tabuado corrido. Mariana, MG.
Fotografia e desenho da autora.
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Na capela de Santa Efigênia de Ouro Preto, a pintura simula uma estrutura arquitetônica com
arcos abertos para um ambiente interno, semelhante a uma galeria com tribunas. Por trás dos púlpitos, o
artífice pintou quatro eclesiásticos que se dirigem ao observador, os doutores da Igreja: Santo Agostinho,
Santo Ambrósio, São Jerônimo e o Papa Gregório Magno [Figura 6]. Nesta ornamentação, a forma circular
e côncava da falsa arquitetura é anunciada pela balaustrada elíptica representada ao redor do forro da
capela-mor [Figura 7]. Para cobrir um espaço retangular, o artista projetou uma cúpula ovalada composta
por meio de elipses concêntricas (sinalizadas em vermelho e amarelo) que definem a posição de alguns
elementos estruturais da abóbada pintada, como os plintos e os balcões onde se encontram os oradores.
Observe-se que o pintor reproduziu os atlantes, os pedestais e as pilastras exatamente sobre as linhas
diagonais do retângulo e, para complementar o equilíbrio da composição, dispôs os personagens
pontualmente nos eixos de simetria horizontal e vertical. No tocante à iluminação, as projeções de
sombras são praticamente ausentes e a luz difusa ilumina igualmente toda a cúpula imaginária, inclusive,
seus personagens.
Na matriz de Santo Antônio de Ouro Branco, o artista anônimo representou a arquitetura com
um óculo aberto para o céu, através do qual se pode ver um ostensório flutuando entre as nuvens,
símbolo do Santíssimo Sacramento. Os nichos, pintados nos ângulos da estrutura arquitetônica,
guardam os quatro evangelistas e seus animais simbólicos – o tetramorfo [Figura 8]. Neste forro, a
composição da cúpula foi concebida de forma equivalente às pinturas apresentadas, por meio de
circunferências concêntricas que tangenciam alguns elementos estruturais da falsa arquitetura [Figura
9]. Só para exemplificar: os pedestais que apoiam as colunas, os arranques dos arcos, a parte externa e
interna do entablamento que define o óculo aberto para o céu e o espaço destinado ao ostensório
reproduzido no centro do suporte (sinalizado em vermelho). Como nas outras representações, as
diagonais delimitam a disposição dos tronos e os eixos de simetria indicam a colocação dos balcões
circulares e dos vasos de flores. No que se refere à iluminação, percebe-se uma projeção de sombra,
marcada pela ausência de nuances na passagem de luz e subordinada à força da linha. O traçado do
desenho define as fronteiras entre luzes e sombras. Veja-se a precisão na demarcação do
sombreamento produzido pela disposição dos balcões curvilíneos que se projetam para a frente das
paredes imaginárias [Figura 10]. Como na capela-mor da igreja do Rosário de Tiradentes, a luz artificial
flui das aberturas celestiais, evocando a claridade natural.
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Figura 6:
Oficina de Manoel Rebelo de Souza.
Pintura de forro da capela-mor da Igreja de
Santa Efigênia, c. 1765. Pintura à têmpera
sobre madeira, forro de tabuado corrido. Ouro
Preto, MG. Fotografia da autora.
Figura 7:
Oficina de Manoel Rebelo de Souza.
Estudo geométrico da pintura de forro da capela-
mor da Igreja de Santa Efigênia, c. 1765. Pintura à
têmpera sobre madeira, forro de tabuado corrido.
Ouro Preto, MG. Fotografia e desenho da autora.
Figura 8:
Oficina desconhecida. Pintura de forro da capela-mor da
Matriz de Santo Antônio, 1760-1775. Pintura à têmpera
sobre madeira, forro de tabuado corrido. Ouro Branco,
MG.
Fotografia da autora.
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Figura 9:
Oficina desconhecida. Estudo geométrico da
pintura de forro da capela-mor da Matriz de
Santo Antônio, 1760-1775. Pintura à têmpera sobre
madeira, forro de tabuado corrido. Ouro Branco,
MG.
Fotografia e desenho da autora.
Figura 10:
Oficina desconhecida. Estudo da luz
representada na pintura de forro da capela-mor
da Matriz de Santo Antônio, 1760-1775. Pintura à
têmpera sobre madeira, forro de tabuado corrido.
Ouro Branco, MG.
Fotografia e desenho da autora.
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Na matriz de Inhaí, o pintor inseriu, no centro da falsa arquitetura, a representação dos Esponsais
da Virgem: o casamento de Maria e José na presença de Santana e São Joaquim [Figura 11]. Semelhante à
composição das demais cúpulas, círculos concêntricos determinam a estrutura arquitetônica e o extenso
entablamento que envolve a narrativa religiosa [Figura 12]. Desta vez, a forma circular imediatamente
identificada é aquela que delimita os dois espaços, a quadratura e o quadro recolocado (sinalizada em
preto). Como verificamos nas outras pinturas, as figuras geométricas definem a disposição das pilastras,
das varandas e das cartelas. Nos eixos de simetria, o artista reproduziu quatro balcões curvilíneos que se
projetam para a frente das cornijas, pintadas acima do arco cruzeiro e do retábulo do altar-mor, bem
como das cimalhas reais localizadas nas laterais do forro
9
. Nas diagonais, o pintor inseriu os consoles e os
quatro pilares que sustentam a arquitetura.
Figura 11:
Oficina de José Soares de Araújo. Pintura de forro
da capela-mor da Matriz de Santana, antes de
1787. Pintura à têmpera sobre madeira, forro de
tabuado corrido. Inhaí, distrito de Diamantina,
MG. Fotografia da autora.
Figura 12:
Oficina de José Soares de Araújo. Estudo
geométrico da pintura de forro da capela-mor da
Matriz de Santana, antes de 1787. Pintura à
têmpera sobre madeira, forro de tabuado corrido.
Inhaí, distrito de Diamantina, MG.
Fotografia e desenho da autora.
9
Infelizmente, a fotografia não mostra os balcões laterais por completo, só conseguimos ver uma pequena parte deles. As
fotografias de pinturas de teto são difíceis de realizar e esta imagem foi a melhor que conseguimos, devido aos limitados
recursos técnicos.
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Na obra de José Soares de Araújo, a composição é cerrada, com pouquíssimas áreas vazias e
composta por objetos sobrepostos, concebidos em linhas das mais variadas formas: contínuas, retas,
sinuosas e cruzadas, configurando o predomínio da decoração. Percebemos que o excesso e a
superposição das peças ornamentais chegam a encobrir a arquitetura. Por outro lado, o tratamento dado
às formas é mais natural, tanto os elementos arquitetônicos como os decorativos são modelados pelo
suave jogo de luz e sombra, fazendo-os precipitar e retrair no espaço, o que confere um aspecto de
movimento à cúpula imaginária.
No tocante às cores das cúpulas pintadas, percebe-se um cromatismo dominante e recorrente nas
paletas dos artistas: as diversas tonalidades existentes entre o ocre e o vermelho
10
. O laranja aparece
simulando a cantaria, a madeira e a talha dourada. No Rosário de Tiradentes, sob o efeito da luz,
conquista o metálico – o bronze dourado –, conferindo nobreza ao lugar do sagrado e conduzindo o fiel
ao encantamento e à adoração [Figura 1]. Nobre é também o amarelo em sua versão ouro. Representa a
ideia de riqueza e faz brilhar a superfície pictórica. É a cor dos capitéis, da talha dourada, dos bordados
em fios de ouro que ornamentam as vestes dos clérigos, da decoração das mitras, dos báculos, da cruz
processional e do entablamento da catedral da Sé, em Mariana [Figura 4]
11
. Misturado com o branco,
alcança um tom claro e suave (o bege), pacificando o ambiente interno em Ouro Preto, um convite à
oração e à meditação [Figura 6].
O amarelo é a cor mais iluminada e expansiva de todas. Representa a luz que irradia do céu e
conforta o coração dos fiéis. Ela surge por trás dos raios que fluem da Virgem com o Menino, no Rosário
de Tiradentes; e do Espírito Santo, em Santana de Inhaí, aproximando o observador da narrativa religiosa
e da revelação do mistério, o ponto mais importante da composição [Figuras 1 e 11]. É a cor que ilumina o
pequenino céu da capela-mor de Ouro Branco, caracterizando a radiação divina proveniente do
ostensório: o receptáculo de ouro que guarda o corpo simbólico de Cristo [Figura 8]. Nas visões celestiais,
a luz que emana dessa cor não é terrena, mas divina
12
, portanto emblemática: corresponde ao poder
sobrenatural, miraculoso e eterno. É bem verdade que a pintura, a qual intitulamos de ilusionista, não
10
É preciso deixar claro as dificuldades enfrentadas pelo historiador da arte quanto ao estudo das cores de pinturas do passado.
Elas não se encontram mais em seu estado original, devido às alterações provenientes do tempo e às possíveis intervenções dos
restauradores. Além disso, as condições de iluminação quase nada têm a ver com o seu contexto de origem. Essa realidade nos
orienta a trabalhar sempre no âmbito das conjecturas. Quanto à técnica de pintura, acredita-se que estas obras tenham sido
pintadas em têmpera: técnica em que os pigmentos, a cor dissolvida na água, são misturados com um aglutinante, o ovo, que
era usado inteiro ou, em alguns casos, somente a gema. Normalmente, a cor pura é utilizada para as sombras e o branco é
utilizado para se obter os tons mais claros. Dessa forma, o artista modela as figuras a partir do jogo de luz e sombra. A tinta seca
rapidamente e deve ser aplicada em camadas finas, pois tende a encolher e rachar.
11
PASTOUREAU, Michel. Dicionário das cores do nosso tempo: simbólica e sociedade. Lisboa: Estampa, 1997, p. 19.
12
GOMBRICH, Ernst. Os usos das imagens: estudos sobre a função social da arte e da comunicação visual. Porto Alegre: Bookman,
2012, p. 43.
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cria exatamente a ilusão do mundo real, mas evoca uma existência imaginada utilizando recursos
persuasivos que possam tornar crível o universo celestial. “Olhar para o paraíso é, em qualquer caso, uma
experiência visionária, na qual metáforas ganham realidade, não como representações tangíveis, mas
como a incorporação da mensagem divina”
13
. Note-se como as cores contribuem para o arrebatamento
do devoto que, ao dirigir seu olhar para o topo da abóbada, é transformado em testemunha ocular do
mistério, a mensagem que a Igreja deseja comunicar e propagar.
O vermelho, em suas diversas tonalidades e em suas versões rosadas, mais frias e calmas, alegra
a arquitetura com os vasos e guirlandas de flores. Os negros e os castanhos são os tons predominantes dos
traços que definem os objetos reproduzidos nos forros da Sé de Mariana, Ouro Preto e Ouro Branco
[Figuras 4, 6 e 8]. Os castanhos, quentes ou frios, são empregados nas estruturas arquitetônicas para
representar as paredes, os pedestais e as floreiras. Apesar das distintas tonalidades de amarelo e algumas
notas em vermelho, o cinza e o azul predominam na matriz de Ouro Branco. Este último surge em uma
versão esverdeada nas varandas e nas paredes representadas em segundo plano [Figura 8].
O verde, um tanto raro nas pinturas da capitania mineira, é a cor das colunas marmorizadas da
cúpula imaginária reproduzida na igreja do Rosário de Tiradentes. O seu tom de terra, misturado com o
ocre, configura os campos verdejantes onde se encontram os santos Domingos e Francisco [Figura 1]. Em
Santana de Inhaí, a cor dominante é o azul acinzentado e seus sutis jogos de luz e sombra que modelam
os inúmeros objetos sobrepostos. O pintor contrapôs a frieza do cinza da estrutura arquitetônica com os
tons quentes da ornamentação e da narrativa religiosa: vermelhos, amarelos e laranjas. As cores dispostas
em pontos estratégicos do forro aquecem o ambiente e criam uma movimentação ondulante
proporcionando uma atmosfera de grande festividade [Figura 11].
No que tange ao azul celestial percebe-se sua ausência completa nas ornamentações contratadas
pela oficina de Manoel Rebelo de Souza. Na Sé de Mariana, a contraposição entre o preto e o branco
produz um esquema cromático duro, uma paleta reduzida que elimina o azul [Figura 4]. Em Diamantina,
ele aparece muito discretamente através das janelas envidraçadas, misturado com o cinza, em repouso
absoluto [Figura 11]. Na matriz de Ouro Branco [Figura 8], o azul brilha com mais intensidade, mas é em
Tiradentes, no forro da capela da igreja do Rosário, que ele transborda, inunda o ambiente de uma
luminosidade serena e reveladora [Figura 1]. Ele transmite uma leveza e um frescor que contribuem
profundamente para a sedução do observador que, atraído por ele, é arrebatado para o universo sagrado.
Esta atração corrobora o poder de persuasão da luz e das cores nas pinturas em perspectiva ilusionista.
13
GOMBRICH, op. cit., p. 42-43.
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Retomando a análise da estrutura compositiva, verificamos que os círculos concêntricos (elipses)
visualizados nas representações das cúpulas imaginárias prenunciam um conhecimento que circulou
entre os pintores: a relação entre formas perfeitas que permitem aos artistas a construção de um espaço
simétrico e harmônico. Tal conteúdo está presente nos tratados de arquitetura dos italianos Ferdinando
Galli Bibiena (1657-1743), Andrea Pozzo (1642-1709), Jean Dubreuil (1602-1670) e Pe. Ignacio da Piedade
Vasconcellos (1676-1747), de ampla circulação em Portugal, no século XVIII, e nos territórios sob o seu
domínio. O círculo e o quadrado correspondem às duas figuras fundamentais do universo geométrico e a
simetria, a harmonia e o equilíbrio permaneceram nas composições de obras de arte do Barroco.
O Barroco respeita sempre afinal a lei geral da simetria relativamente ao eixo de
conjunto de suas composições. Todo seu sistema, Arquitetura, e Escultura, repousa
sobre um equilíbrio de compensação. Raras são as obras verdadeiramente
dissimétricas e elas se justificam elas mesmas em relação a sistemas em que a balança
final se restabelece
14
(grifo nosso).
No que diz respeito aos referidos tratados, o artista bolonhês Ferdinando Galli Bibiena, arquiteto,
preparador de cenas e especialista em quadratura, escreveu um ensaio de arquitetura e geometria
prática, L’Architettura Civile preparata sú la geometria, e ridotta alle prospettive, Considerazioni Pratiche
15
, que
foi publicado por Paolo Monti, em Parma, em 1711. Por volta de 1731, o livro foi amplamente utilizado por
estudantes da Academia Clementina de Bolonha, o que conduziu Bibiena a produzir outro exemplar,
publicado em 1734 e intitulado Direzioni A’ Giovani Studenti nel Disegno dell’Architettura Civile
16
. O primeiro
foi organizado em cinco partes e a primeira delas foi dedicada exclusivamente à geometria euclidiana,
conteúdo substancial para os outros assuntos que seriam abordados posteriormente: a arquitetura, a
perspectiva, a pintura e a cenografia. No segundo, o autor retomou as principais questões discutidas na
obra precedente, como os Elementos de Euclides e os problemas teóricos referentes à geometria, com o
intuito de propor atividades práticas e demonstrar como o conhecimento pode ser utilizado pelos
arquitetos
17
.
No início do primeiro tratado – Della geometria prattica –, o autor discorre sobre as configurações
elementares da geometria, combinando textos e imagens que ilustram a prática de cada tópico descrito.
De modo sequencial, ensina como construir as figuras em um plano e projetá-las no espaço. Dentre as
14
FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 187.
15
BIBIENA, Ferdinando Galli. La Architettura Civile Preparata sú la Geometria, e Ridotta alle Prospettive Considerazione Pratiche.
Parma: Per Paolo Monti, MCDCCXI [1711].
16
Idem. Direzioni A’ Giovani Studenti nel Disegno dell’ Architetuura Civile. Nell Accademia Clementina. Bologna, 1764.
17
MENDES, Iran Abreu. A Geometria Prática de Ferdinando Galli Bibiena em seus Tratados de Arquitetura. I n: Seminário
Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, n. 15, 2016. Florianópolis. Atas do ... Florianópolis, Santa Catarina, 2016, p. 3-5.
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orientações expressas no livro, o bolonhês explica como criar desenhos a partir do círculo, dentro e fora
dele, como o triângulo, o quadrado, o pentágono, o hexágono e o octógono. Só para exemplificar:
Istruzionne Decimaottava: Per formare il triangolo nel circolo; Istruzionne Decimanona: Per formare il quadro nel
circolo; Istruzionne Vigesima: Per formare il quadro fuori del circolo; Istruzionne XXIX: Per formar l’ottagono nel
circolo, etc
18
. Ora, não é exatamente esse conteúdo, a relação entre formas geométricas perfeitas, que
verificamos na concepção estrutural das cúpulas imaginárias? É bem provável que os artistas tenham
empregado os conhecimentos da geometria euclidiana para projetar suas arquiteturas, com destaque
absoluto para a disposição dos círculos, os quais reforçam a centralidade da composição.
É preciso ressaltar que esse conteúdo – as noções elementares da geometria – está presente em
outros ensaios de arquitetura, como o livro La Perspective Pratique do Pe. jesuíta Jean Dubreuil, publicado
em Paris em 1651
19
. No Tratado I – Traite I. Principes nécessaires a la Perspective –, o autor ensina os princípios
essenciais da perspectiva. Entre eles, como conceber o quadrado, o paralelogramo, o triângulo equilátero,
o quadrado dentro do círculo, o pentágono, o hexágono, o septágono, o octógono e assim por diante.
Como Bibiena, Jean Dubreuil propõe mais de um modo de construir a forma oval. Praticamente todas as
figuras são criadas a partir do círculo e com o auxílio do compasso. Andrea Pozzo (1642-1709), em seu
tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum, editado em 1693, apresenta as duas configurações
fundamentais da geometria – o quadrado e o círculo –, consideradas cruciais à construção dos elementos
arquitetônicos. Essas figuras aparecem frequentemente nas plantas dos objetos que constituem as
ordens arquitetônicas, como as bases das colunas e dos capitéis, e a relação entre as duas formas perfeitas
está presente nas plantas arquitetônicas dos edifícios
20
quadrados e circulares, como se verá.
Em virtude do que foi dito a respeito da geometria propagada pelo tratadista bolonhês, pode-se
dizer que os autores das obras estudadas tiveram em mãos o tratado de Bibiena? Não se pode afirmar,
mas é possível levantar essa hipótese devido à presença do seu conteúdo nas arquiteturas pintadas. Em
um ambiente marcado pela circulação de artistas e de tratados de arte, acreditamos que esta ciência pode
ter sido adquirida pelos pintores no convívio com outros artífices, nas trocas advindas desses encontros e
18
BIBIENA, op. cit., MCDCCXI [1711], p. 9 -11.
19
DUBREUIL, Jean. La Perspective Pratique Necessaire a Tous Peintres, Graveurs, Sculpteurs, Architectes, Orfevres, Brodeurs,
Tapissiers Et autres qui se menflent de dessigner / Par un Religieux de la Compagnie de IESUS / Première Partie … Paris: 1651.
20
O Dicionário de Termos de Arte e Arquitetura define planta da seguinte forma: “Planta: Desenho arquitetônico que representa um
edifício, ou parte dele, em seção horizontal. Projeção em superfície horizontal de um edifício, tirada ao nível do solo: é o que os
antigos, como Vitrúvio, exprimiam pelo termo iconografia (que designa literalmente marca deixada no solo pela p. do pé). A p.
de um edifício era por ele assimilada à marca do pé humano” (Veja -se: CALADO, Margarida; SILVA, Jorge Henrique Pais da.
Dicionário de Termos de Arte e Arquitetura. Lisboa: Presença, 2005, p. 292). No Dicionário Visual de Arquitetura, planta
corresponde à representação gráfica de um sistema de projeção – o esboço de um edifício. Quer dizer, “a representação gráfica
de uma ideia geral do espaço de um edifício em relação com o espaço em que assenta. Por extensão, aplica -se igualmente à
projeção horizontal de um detalhe arquitetônico” (Consulte-se: ESCUDERO, Lorenzo de la Plaza (Coordenador). Dicionário
Visual de Arquitetura: Fundamental para Estudantes e Profissionais. Lisboa: Quimera, 2014, p. 469-474).
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na transmissão do conhecimento por meio da prática de aprendizado estabelecida entre mestres e
discípulos, bem como entre os diversos oficiais que conviviam nos canteiros de obras: pintores,
entalhadores, carpinteiros, carapinas, mestres de obras, entre outros. Nesse universo, é importante
recordar que Nicolau Nasoni (1691-1773) aprendeu a quadratura em Bolonha e é considerado um dos
precursores desse gênero de pintura no Norte de Portugal com a decoração da Sé catedral do Porto, em
1725, onde adotou o modo “bibienesco” de representação – Visione ad angolo
21
. Teria ele contribuído para a
difusão dos livros de Ferdinando Galli Bibiena no Minho, possibilitando sua propagação, para a capitania
de Minas Gerais, pelos oficiais portugueses que aportaram na região mineradora? Não podemos afirmar,
contudo, é importante relembrar que os artistas bracarenses Manoel Rebelo de Souza e José Soares de
Araújo, responsáveis pelas ornamentações da Sé catedral de Mariana e da matriz de Santana de Inhaí,
muito possivelmente, formaram-se na antiga província de Entre-Douro-e-Minho antes de partirem para
Minas Gerais.
Sabe-se que os Bibiena inauguraram uma nova fase na decoração quadraturista e cenográfica em
Bolonha
22
e, no século XVIII, a família tornou-se uma das grandes referências para as representações em
perspectiva na Europa
23
. É interessante assinalar ainda que Nicolau Nasoni chegou em Bolonha, em 1718,
para trabalhar na bottega do mestre emiliano Stefano Orlandi (1681-1760), que se formou na mesma
escola de Ferdinando Galli Bibiena – a escola de Pompeo Adrovandini
24
. Dessa forma, parece-nos haver
uma correlação entre a escola bolonhesa de quadratura com uma das formas de concepção estrutural do
espaço que se desenvolveu no Norte de Portugal durante o Setecentos, a qual pode ter sido transmitida,
assimilada e reinterpretada pelos artistas que trabalharam na capitania de Minas Gerais.
Nesse âmbito, consideramos fundamental mencionar as reflexões empreendidas por Giuseppina
Raggi ao estudar as quadraturas produzidas na primeira metade do século XVIII em Salvador. Raggi
percebeu a interlocução existente entre as pinturas baianas com a prática e o repertório formal idealizado
pelos mestres italianos, com destaque absoluto para os artistas bolonheses. Diz a autora:
Embora a quadratura se fundamentasse em conhecimentos teóricos apurados, a
leitura dos manuais sobre a perspectiva não permitia a realização concreta desse
gênero de pintura a quem não tivesse tido uma aprendizagem junto com um mestre
desta arte. A idealização e a execução da quadratura enraizavam-se na prática e no
repertório formal elaborado pelos mestres italianos, nomeadamente bolonheses, no
século XVII. Em Portugal, António Simões Ribeiro aprendeu com a lição deixada por
21
TEDESCO, Giovanni Battista. Nicolau Nasoni: formação de um pintor e de um artista da arte efémera em Itália (1691-1723).
2011.Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2011, p. 188.
22
Ibid., p. 188.
23
MELLO, Magno Moraes. A pintura de tectos em perspectiva no Portugal de D. João V. Lisboa: Estampa, 1998, p. 243.
24
TEDESCO, op. cit., p. 194.
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Vincenzo Bacherelli (ativo, em Lisboa, entre 1701-1721) e adquirida pelo seu mestre
António Lobo. Chegado ao Brasil, ele próprio veiculou em Salvador e na Bahia a
realização prática de obras de quadratura, moldando-a para responder às exigências
e às especificidades do novo contexto cultural, político e social
25
.
Retomando os tratados, é difícil afirmar com certeza a fonte de referência utilizada pelos pintores
para a projeção das cúpulas em perspectiva centralizada. No entanto, além do conhecimento presente
nos livros de geometria do cenógrafo bolonhês, a obra de Andrea Pozzo também pode ter servido de
modelo referencial para a construção desses espaços. No primeiro volume do Perspectiva Pictorum et
Architectorum
26
, publicado em 1693, o irmão jesuíta apresenta-nos a Figura 63: Planta de um edifício
quadrado
27
, constituída pelo quadrilátero e vários círculos concêntricos [Figura 13]. Observe-se, nos quatro
ângulos da planta, a base dos pedestais que sustentam os pilares e vejam-se as linhas visuais das
diagonais confluindo para o centro, de forma equivalente à composição de duas obras que pertencem ao
conjunto estudado, cujas arquiteturas foram estruturadas por meio de quatro pilastras: as pinturas da
igreja de Santa Efigênia de Ouro Preto e da matriz de Santana de Inhaí, distrito de Diamantina [Figuras 14
e 15].
As ornamentações da Sé catedral de Mariana, da matriz de Santo Antônio, em Ouro Branco, e da
igreja do Rosário de Tiradentes distinguem-se das outras duas por conceberem a cúpula a partir de oito
colunas [Figuras 16, 17 e 18]. Ao traçar um octógono, inscrito no quadrado presente na concepção dessas
arquiteturas imaginárias, percebemos que ele coincide com a projeção das suas colunas. Para essas
pinturas, é bem possível que os autores tenham tido como fonte de referência a Figura 65 do tratado de
Andrea Pozzo publicada em 1693: Planta de uma construção circular em perspectiva
28
[Figura 19]. O desenho
constitui-se de formas geométricas elementares e planas, o círculo e as configurações dele derivadas –
25
RAGGI, Giuseppina. A forma dos poderes: a pintura de quadratura e as dinâmicas político-culturais em Salvador da Bahia na
primeira metade do século XVIII. In: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo R. ( orgs.). Salvador da Bahia:
retratos de uma cidade atlântica. Salvador: EDUFBA; Lisboa: CHAM, 2016, p. 227-228.
26
POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Andreae Putei e Societate Jesu. Pars Prima. In: quâ docetur modus
expeditissimus delineandi opticè omnia que pertinent ad Architecturam. Roma: Typis Joannis Jacobi Komarek Bohemi apud S.
Angelum Custodem, MDCXCIII [1693].
27
“Figura sexagésima terceira. Planta de um edifício quadrado. A planta geométrica A deste edifício tem em B a sua perspectiva.
A diferença entre os pilares C e D nascem de terem sido feitas em C as plantas dos pedestais, enquanto em D foram feitas as
plantas dos entablamentos” (Traduzido e publicado por Mateus Alves Silva). Veja-se: SILVA, Mateus Alves. Perspectiva Pictorum
et Architectorum: a perspectiva dos pintores e dos arquitetos, de Andrea Pozzo, SJ. 2020. Tese (Doutorado em História da Arte) –
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020, p. 333.
28
“Figura sexagésima quinta. Planta de uma construção circular em perspectiva. Aquele que não tiver praticado muito em reduzir
os círculos em perspectiva e não conseguir desenhar com prática e pouca fadiga, em vão pretenderá traçar em perspectiva as
plantas das coisas redondas. Para fugir à confusão convém assinalar na planta em primeiro lugar as linhas ocultas dos membros
principais; e transpostas as elevações, acrescentar as demais, sucessivamente. De tal modo fiz na presente figura. Contudo, p or
ter tido alguma dificuldade nestas coisas redondas, comecei já há muito tempo a servir-me de outra regra, a qual, como já disse,
reservo para uma outra Obra” (Tradução de Mateus Alves Silva). Veja-se SILVA, op. cit., 2020, p. 337.
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um quadrado, um octógono e um conjunto de circunferências concêntricas –, cujo método consiste em
reduzir os círculos em perspectiva. Essa circularidade produz o efeito de profundidade e desperta, em
nossos olhos, a sensação de movimento. Constatamos ainda a existência de linhas visuais que partem das
arestas da figura octogonal e dirigem-se ao centro da representação. Essa proposta é muito semelhante à
composição das quadraturas pintadas nas capelas-mores dos templos supracitados, como já
mencionamos.
Ao comentar as figuras 65 e 66, Mateus Alves Silva nos diz que “para se construir o edifício circular
Pozzo se vale dos ensinamentos da disposição dos círculos em perspectiva, não sem propor que o método
que utiliza mais comumente seria mais eficaz para essa prática, remetendo o leitor ao segundo volume”
29
.
Pozzo finaliza a instrução da Figura 65 com as seguintes palavras: “[...] Contudo, por ter tido alguma
dificuldade nestas coisas redondas, comecei já há muito tempo a servir-me de outra regra, a qual, como
já disse, reservo para uma outra Obra” (Tradução de Mateus Alves Silva)
30
. Como sinalizado por Silva, a
“Obra” a que Pozzo se refere corresponde ao segundo volume do tratado Perspectiva Pictorum et
Architectorum
31
, editado em 1700. Nas primeiras páginas do livro, o autor se dirige ao leitor manifestando
a sua satisfação em cumprir com a promessa de publicar a segunda parte da perspectiva, destacando a
sua importância por conter “a mais fácil e simples regra de que se possa dar nesta Arte da Perspectiva”
(Tradução de Mateus Alves Silva)
32
. Neste tomo, Andrea Pozzo apresenta o desenho de seis cúpulas, entre
as quais localizamos a Figura 49: Instruções para se fazer a Cúpula de baixo para cima [Figura 20].
Se, de um lado, as Arquiteturas redondas em perspectiva e vistas de frente, são difíceis
de serem bem feitas por ser preciso fazer ponto a ponto para lhes traçar as linhas
curvas que são impossíveis de fazer com o compasso; de outro são fáceis as
Arquiteturas redondas vistas de baixo para cima, porque ainda que os círculos se
reduzam, serão sempre perfeitos quando feitos com o compasso. Só há dificuldade
em encontrar tantos centros para a redução quanto forem os círculos; e serão tantos
centros e círculos quanto forem os elementos da Arquitetura, sobretudo quando o
ponto do olho estiver fora do meio, como na cúpula A e D. [...] A cúpula H, por ter o
olho no meio, é muito mais fácil, pois uma ponta do compasso está sempre colocada
no meio, alargando-se a outra ponta até a seção das pilastras
33
(Tradução de Mateus
Alves Silva. Grifo nosso).
29
SILVA, op. cit., 2020, p. 680.
30
Ibid., p. 337.
31
POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Andreae Putei e Societate Jesu. Pars secunda. In: quâ docetur modus
expeditissimus delineandi opticè omnia que pertinent ad Architecturam. Roma: Typis Joannis Jacobi Komarek Bohemi apud S.
Angelum Custodem, MDCC [1700].
32
SILVA, op. cit, 2020, p. 429.
33
Ibid., p. 526.
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 108
Figura 13:
Andrea Pozzo. Figura 63: Planta de um edifício
quadrado, 1693. Gravura impressa no livro Perspectiva
Pictorum et Architectorum, Volume 1. Roma, 1693.
Arquivo da autora.
Figura 14:
Desenho simplificado da composição da
cúpula pintada no forro da capela-mor da
Igreja de Santa Efigênia, c. 1765.
Ouro Preto, MG. Desenho da autora.
Figura 15:
Desenho simplificado da composição da cúpula
pintada no forro da capela-mor da Matriz de
Santana, antes de 1787. Inhaí, distrito de
Diamantina, MG. Desenho da autora.
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Figura 16:
Desenho simplificado da composição das
cúpulas pintadas no forro da capela-mor da
Sé catedral, 1760. Mariana, MG.
Desenho da autora.
Figura 17:
Desenho simplificado da composição da cúpula
pintada no forro da capela-mor da Matriz de
Santo Antônio, 1760-1775. Ouro Branco, MG.
Desenho da autora.
Figura 18:
Desenho simplificado da composição da cúpula
pintada no forro da capela-mor da Igreja de N.S. do
Rosário dos Homens Pretos, 1760-1775. Tiradentes,
MG. Desenho da autora.
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 110
Figura 19:
Andrea Pozzo. Figura 65: Planta de uma
construção circular em perspectiva, 1693.
Gravura impressa no livro Perspectiva
Pictorum et Architectorum, Volume 1. Roma,
1693. Arquivo da autora.
Figura 20:
Andrea Pozzo. Figura 49: Instruções para se
fazer a Cúpula de baixo para cima, 1700. Gravura
impressa no livro Perspectiva Pictorum et
Architectorum. Volume 2. Roma, 1700.
Arquivo da autora.
Figura 21:
Andrea Pozzo. Figura 49: Instruções para se fazer a
Cúpula de baixo para cima (detalhe da cúpula H), 1700.
Gravura impressa no livro Perspectiva Pictorum et
Architectorum. Volume 2. Roma, 1700. Arquivo da autora
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Nessa figura, Pozzo apresenta duas propostas: a cúpula A, construída a partir de um ponto de fuga
descentralizado, e a cúpula H, concebida a partir de um ponto de fuga centralizado [Figura 21]. No texto
que acompanha o desenho, Pozzo traz informações preciosas para o nosso estudo. Primeiramente, o
autor diz que as arquiteturas redondas vistas de baixo para cima são fáceis de serem construídas “porque
ainda que os círculos se reduzam, serão sempre perfeitos quando feitos com o compasso”
34
. Pozzo ensina
ao leitor um modo prático de representar as cúpulas de baixo para cima (di sotto in sù): o método de reduzir
os círculos em perspectiva a partir de um ponto de fuga e com a ajuda do compasso, instrumento utilizado
para tomar medidas e traçar circunferências. Se observarmos a ilustração da cúpula H presente na Figura
Quadragésima nona do segundo volume do tratado de Pozzo [Figura 21], veremos que ela é composta por
oito pilastras (indicadas pela letra P) e um conjunto de círculos que se voltam para o centro, onde se
encontra o ponto do olho (ponto da perspectiva ou ponto de fuga), semelhante às concepções das cúpulas
pintadas.
Na sequência, Pozzo diz que “serão tantos centros e círculos quanto forem os elementos da
Arquitetura”
35
. Subentende-se que a quantidade de círculos que serão traçados com o compasso depende
dos elementos arquitetônicos que serão representados, ou seja, as circunferências delimitam a
disposição dos objetos da arquitetura, como verificamos nas cúpulas imaginárias. Essa correlação entre a
planta simplificada das pinturas pesquisadas [Figuras 14 a 18], a cúpula H da Figura 49 [Figura 21] e a
instrução que a acompanha sugere que os pintores responsáveis por essas ornamentações conheciam não
apenas as imagens impressas no livro, mas também o seu conteúdo: as instruções para se fazer uma
cúpula de baixo para cima por meio do método de reduzir os círculos em perspectiva, mesmo que estas
orientações tenham sido assimiladas por meio da prática e não da teoria, ou seja, pelo exame minucioso
das gravuras. Em síntese, acreditamos que a Figura Quadragésima nona publicada no segundo volume do
tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum não deixa dúvidas quanto à referência dominante da obra de
Andrea Pozzo para os autores do conjunto pictórico investigado.
Por fim, Pozzo sinaliza que a dificuldade se encontra nas arquiteturas em que o ponto do olho está
fora do meio e, logo em seguida, faz referência à cúpula H, afirmando que sua construção é mais fácil por
ser o ponto do olho bem no centro, de forma que uma das pontas do compasso estará sempre colocada
no meio [Figura 21]. Apesar de o autor privilegiar a concepção de cúpulas descentralizadas, apresenta,
com este exemplo, uma proposta de representação centralizada. Posto isto, acreditamos que os autores
das cinco pinturas de teto investigadas se serviram do método de dispor os círculos em perspectiva
34
SILVA, op.cit., 2020, p. 526.
35
Ibid.
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 112
associado à composição de uma estrutura arquitetônica cujas colunas e pilares confluem para o centro.
As instruções da Figura 50, presente no segundo livro de Andrea Pozzo, corroboram nossa hipótese. Diz
assim o autor:
A figura passada foi feita para esclarecer esta, pois sendo feita de Arquitetura, seria
difícil explicá-la e entendê-la. Porém, tentai fazê-la e, assim, entendereis melhor
com a prática do que com a teoria. Fazei um círculo, distribuído em torno da planta
de várias colunas com seus intervalos como exigem uma boa arquitetura. Colocai
também os relevos dos pedestais e entablamentos cujos ângulos, levados até o
ponto O, darão a vós a sua redução em perspectiva [...]
36
(Tradução de Mateus Alves
Silva. Grifo nosso).
Como se disse, na Figura quinquagésima – Cúpula pequena, de baixo para cima – Andrea Pozzo ensina
o método da redução em perspectiva por meio do prolongamento das linhas visuais (os raios) que ligam
os ângulos dos pedestais e entablamentos ao centro (ponto de fuga). Em síntese, as composições das
pinturas analisadas foram elaboradas a partir da construção de uma planta que associa diversas figuras,
como o quadrado, o círculo e suas variantes: o retângulo, a elipse e o octógono. Para elevar a falsa
arquitetura, os pintores recorreram à disposição dos círculos em perspectiva e do desenho das colunas e
das pilastras traçados da superfície em direção ao ponto do olho. Reiteramos, é difícil afirmar quais foram
os modelos referenciais para a projeção das cúpulas centralizadas, entretanto, podemos deduzir que os
artistas assimilaram e interpretaram o conteúdo e as imagens presentes nos tratados artísticos em
circulação, com destaque absoluto para o livro de Andrea Pozzo. Ainda que não tenham conquistado a
verticalidade da representação arquitetônica, essas obras indicam um conhecimento primoroso –
adquirido com a prática – no tocante à geometria euclidiana e à perspectiva di sotto in sù.
Sabe-se que o tratado do arquiteto e cenógrafo italiano Andrea Pozzo, elaborado em seu atelier
no Colégio Romano, corresponde a um manual prático e didático sobre a perspectiva. Publicado em dois
volumes (Roma, 1693 e 1700), os livros conquistaram extraordinária circulação pela Europa e seus
domínios, contribuindo para a difusão dos métodos de representação e tornando-se referência
fundamental para os pintores de falsa arquitetura, sobretudo aqueles que não dispuseram de uma escola
oficial de Belas Artes, como foi o caso dos artífices luso-brasileiros. Produzido na fase madura do artista,
uma das razões para seu sucesso se deve, provavelmente, à sua abordagem prática, combinando texto e
36
SILVA, op. cit., 2020, p. 528.
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imagens de altíssima qualidade, entre as quais o autor apresenta suas próprias criações, configurando em
uma obra de arte per se, o resultado de uma longa jornada de trabalho
37
.
Há fortes indícios da circulação desse livro na capitania de Minas Gerais em virtude da presença
de elementos arquitetônicos propostos pelo irmão jesuíta nas ornamentações de teto da região. No
inventário post-mortem de Caetano Luiz de Miranda, colaborador de José Soares de Araújo na pintura da
matriz de Santana de Inhaí, em Diamantina, consta um tratado anotado como “Perspectiva dos pintores
in follio dois volumes (10$000)”
38
, que pode ser o Perspectiva Pictorum et Architectorum de Andrea Pozzo
39
.
No referido levantamento constam ainda 36 exemplares de desenhos para pintores, os quais podem ser
de sua própria autoria ou obras de outros artistas que o oficial colecionava, como um conjunto de
referências artísticas. Lamentavelmente, desconhecemos o tipo de imagem registrado nesses espécimes,
se correspondiam ou não aos estudos de perspectiva. No entanto, de acordo com a referida listagem de
bens, o artífice dispunha ainda de 62 estampas e 55 quadros, ou seja, era detentor de uma considerável
coleção de objetos de arte que, muito possivelmente, foram utilizados como modelos para suas
composições.
Apesar de ter instalado oficina no Rio de Janeiro, com loja e residência, Valentim da Fonseca e
Silva (c.1745-1813), conhecido como Mestre Valentim (entalhador, escultor, construtor e urbanista), é
natural da Freguesia de Santo Antônio do Arraial do Gouveia, fronteira da comarca do Serro Frio, Minas
Gerais. No inventário post-mortem de Valentim, encontram-se registrados 18 estampas e dois livros de
extrema importância para os historiadores da arte: “A Perspectiva de Pozzo No 1 e 2” e o “Livro de
Arquitetura de Vinhola”
40
. As listagens de bens dos referidos artífices corroboram o que temos percebido
no decorrer desta investigação: a análise formal das pinturas indica que os pintores de perspectiva, assim
como os diversos profissionais do período colonial, possivelmente, possuíam um conhecimento bastante
refinado quanto aos preceitos veiculados por meio dos tratados. Vale recordar que esses artistas
realizavam as empreitadas com a ajuda de uma equipe de trabalho e a existência de um único manual
nesse ambiente era o suficiente para a difusão do seu conteúdo entre os integrantes dessas oficinas
37
LÁZARO, Sara Fuentes. El perfil de Andrea Pozzo como maestro de perspectiva . Varia História. Belo Horizonte: v. 32, n. 60,
set/dez, p. 611-637, 2016, p. 615-616.
38
SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de Impressos Europeus na Configuração do Universo Pictórico
Mineiro (1777-1830). 2009. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2009, p. 129-131. ARAUJO JUNIOR, Delson Aguinaldo de. Análise da produção pictórica da
Capela do Senhor Bom Jesus de Matozinhos na cidade do Serro. 2015. Monografia (Especialista em Cultura e Arte Barroca) –
Instituto de Filosofia, Arte e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, 2015, p. 86.
39
MAGNANI, Maria Claudia Almeida Orlando. Cultura Pictórica e Percurso da Quadratura no Arraial do Tijuco no Século XVIII:
entre o decorativo e a persuasão. 2013. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2013, p. 118.
40
BONNET, Marcia. Entre o Artifício e a Arte: pintores e entalhadores no Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura: Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, 2009, p. 100-101.
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constituídas pelos mestres, os escravos, os aprendizes e outros oficiais eventualmente contratados para a
execução das obras de arte, como é o caso de Caetano Luiz de Miranda, discípulo e colaborador de José
Soares de Araújo na ornamentação da matriz de Santana de Inhaí.
De acordo com Aziz Pedrosa, a produção artística de José Coelho de Noronha sugere o uso do
tratado do irmão jesuíta como fonte de referência. Tal indício é reforçado pelo registro, em seu inventário,
de “Dois livros de Arquitetura primeira e segunda partes que ambos foram vistos e avaliados pelos ditos
avaliadores em mil e oitocentos reis”
41
. Pedrosa acredita na possibilidade de que esses manuscritos sejam
os dois exemplares de Andrea Pozzo
42
. Nesse cenário, é interessante assinalar que o entalhador lisboeta
liderou uma oficina na Sé catedral de Mariana entre os anos de 1747 a 1750 aproximadamente
43
. Além
disso, foi atribuída a Noronha a fatura das figuras antropomórficas do coroamento do retábulo-mor da
igreja de Santa Efigênia de Ouro Preto
44
. As pinturas de forro das capelas-mores desses templos foram
executadas pela equipe do mestre pintor Manoel Rebelo de Souza, entre 1760 e 1765. Mesmo que a
passagem de Noronha por esses locais não coincida com a data de execução das quadraturas pesquisadas,
é importante destacar a probabilidade de circulação da obra de Pozzo por esses espaços; e, por
conseguinte, a veiculação do seu conteúdo entre pintores e entalhadores que trabalharam para o
programa decorativo de uma mesma igreja e para os mesmos comitentes. Consideramos, inclusive, a
possibilidade de os membros das irmandades religiosas ou da diocese, que determinavam o programa
iconográfico das decorações dos templos, conhecerem as composições arquitetônicas publicadas no
manual de Pozzo, seja por cópias, anotações em cadernos ou estampas avulsas. Essa suposição vale
especialmente para o Bispo D. Frei Manuel da Cruz, o comitente das ornamentações da Sé catedral de
Mariana, devido à sua forte ligação com os membros da Companhia de Jesus.
Conforme sinalizamos, apesar das poucas referências à circulação física dos dois volumes do
Perspectiva Pictorum et Architectorum, é bem provável que o seu conhecimento tenha sido adquirido, em
grande medida, por meio da relação estabelecida entre os artífices de diversas áreas – pintores,
entalhadores e construtores –, assim como entre os mestres e seus discípulos
45
. Os oficiais de pintura que
não tiveram contato direto com os livros podem ter trocado experiências com artistas que os conheciam
e colocavam em prática o seu conteúdo, contribuindo para a transmissão e a assimilação das formas de
41
PEDROSA, Aziz José de Oliveira. José Coelho de Noronha: artes e ofício nas Minas Gerais do século XVIII. 2012. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura) – Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2012, p. 269.
42
Idem. A Produção da Talha Joanina na Capitania de Minas Gerais: retábulos, entalhadores e oficinas. 2016. Tese (Doutorado
em Arquitetura) – Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2016, p. 265.
43
Ibid., p. 232-236.
44
Ibid., p. 267-268.
45
SILVA, Mateus Alves. O Tratado de Andrea Pozzo e a Pintura de Perspectiva em Minas Gerais. 2012. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2012, p. 126.
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concepção dos espaços. Deve-se considerar ainda a probabilidade da sua difusão por meio das gravuras
avulsas, concebidas a partir de imagens coletadas do próprio manual, independentes do texto,
permitindo a apreensão das propostas presentes no ensaio por meio da manipulação dessas reproduções,
bem como sua interpretação e reinterpretação
46
.
Para ampliar a reflexão a respeito do
conteúdo dos tratados de arte como fonte de
referência para os pintores de quadratura que
atuaram na capitania de Minas Gerais,
destacamos o traçado de um domo proposto
por Jean Dubreuil que está registrado na
terceira e última parte De la Perspective
Pratique
47
[Figura 22]. Veja-se como a planta
baixa para a projeção do Dôme é composta:
um conjunto de círculos concêntricos e oito
raios visuais que partem da superfície para o
centro, representando as pilastras ou as
colunas sustentantes. Só para esclarecer:
note-se a imagem da elevação da arquitetura
e observem-se as linhas que demarcam os
discos, indicadas pelas letras A, B, C, D e assim
por diante. Cada fatia do domo corresponde a
uma das circunferências existentes na
ilustração abaixo da abóbada, corroborando
nossa percepção de que as cúpulas, reais ou
imaginárias, são compostas por um conjunto de círculos concêntricos
48
. A orientação de Dubreuil
aproxima-se tanto das sugestões apresentadas no primeiro e no segundo volumes do livro de Andrea
Pozzo [Figuras 19 e 21], como do desenho simplificado das pinturas investigadas [Figuras 14 a 18]. Entre as
46
MELLO, Magno Moraes. Perspectiva Pictorum: As arquiteturas ilusórias nos tetos pintados em Portugal no século XVIII. 2002.
Tese (Doutorado em História da Arte). Universidade de Lisboa, 2002, p. 398.
47
DUBREUIL, Jean. La Perspective Pratique ov se Voient les Beautes & Raretez de cette Science. Avec les Methodes Pour Les
pratiquer sur toutes fortes de plans. Et les Effets Admirables des Trois Rayons. Droit, Reflechy, Et Brise. Par un Religieux de la
Compagnie de IESUS. Paris: M. DC. XLIX [1649].
48
Na arquitetura real, a cúpula constitui uma abóbada gerada pela rotação de um arco que gira em torno de um eixo, de modo
que tenha sempre seção horizontal circular.
Figura 22:
Jean Dubreuil. Traite I. Pratique XL, 1649. Gravura
impressa no livro De la Perspective Pratique. 1649.
Arquivo da autora.
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proposições verificadas no ensaio de Pozzo, gostaríamos de destacar a Fig. 49, presente no segundo
volume. Observe-se como os dois projetos são semelhantes: a cúpula H de Pozzo e o Dôme de Jean
Dubreuil [Figuras 21 e 22].
Diante das estampas publicadas nos tratados de perspectiva dos jesuítas Pozzo e Dubreuil, é
possível conjecturar que os artífices que atuaram na capitania de Minas Gerais basearam-se em plantas
baixas para compor suas cúpulas fictícias. Como já se disse, é improvável afirmar quais obras esses
pintores conheceram de fato e quais gravuras fizeram parte do repertório desses artistas. No entanto, o
estudo comparativo das imagens indica a grande viabilidade de circulação do conteúdo presente nesses
ensaios entre os diversos oficiais das artes que trabalharam em Minas e, especialmente, da difusão desse
conhecimento entre os mestres e seus discípulos; seja por meio dos manuscritos completos, seja pelas
reproduções isoladas. Portanto, consideramos a propagação dos saberes pela prática artística, pois o
confronto entre as pinturas e os referidos livros não deixa dúvidas quanto à aplicabilidade da geometria
euclidiana na construção das arquiteturas imaginárias, bem como à organização dos espaços destinados
à colocação dos objetos arquitetônicos, ornamentais e dos grupos figurativos por intermédio das formas
geométricas: o quadrado, o círculo e o octógono.
Nesse ambiente de circulação de saberes, é imprescindível mencionar o tratado de Pe. Ignacio da
Piedade Vasconcellos (1676-1747), Artefactos Symmetriacos e Geométricos (...)
49
, publicado em Lisboa, em
1733. Logo no princípio, na dedicatória, Vasconcellos nos diz que o exemplar é o primeiro livro sobre o
assunto a ser editado em língua portuguesa no Reino. Essa publicação nos importa especialmente pela
intenção expressa do escritor: possibilitar aos artistas o acesso ao conteúdo das obras dos grandes
mestres. O manuscrito de Pe. Ignacio da Piedade Vasconcellos é uma espécie de tradução e simplificação
de um tema erudito de difícil alcance que tinha como público-alvo os oficiais das artes. “O autor alegava
ter dedicado muito trabalho buscando e consultando livros estrangeiros nas universidades e procurava
transmitir este conhecimento para aqueles artífices que não compreendiam outras línguas, de modo
49
VASCONCELLOS, Padre Ignacio da Piedade. Artefactos Symmetriacos, e Geometricos, Advertidos, e Descobertos pela
industriosa perfeição das Artes, Esculturaria, Architectonica, e da Pintura. Com certos fundamentos, e regras infalíveis para a
Symmetria dos corpos humanos, Escultura, e Pintura dos Deoses fabulosos, e notícia de suas propriedades para as cinco ordens
de Architectura, e suas figuras Geometricas, e para alguns novos, e curiosíssimos Artefactos de grandes utilidades. Offerecidos
A’ Serenissima Senhora D. Marianna de Austria, Rainha de Portugal, Repartidos neste volume em quatro livros. Lisboa: Officina
de Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, MDCCXXXIII [1733].
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mais simples”
50
. Neste sentido, coloca-se como um intermediário entre os conhecimentos teórico e
prático, bem como um interlocutor entre os grandes tratadistas e os artesãos
51
.
A obra de Vasconcellos compõe-se de quatro tomos: o primeiro discorre sobre a simetria do corpo
humano, incluindo os métodos para a produção de figuras de barro e pasta, a fundição em metal e as
madeiras para entalhar; o segundo foi dedicado à iconografia, as representações das imagens dos deuses
fabulosos; o terceiro discorre sobre os métodos de construção das formas geométricas: triângulos,
quadrados, círculos, pentágonos, hexágonos, octógonos etc. O quarto e último livro aborda as cinco
ordens arquitetônicas: Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e Compósita; os templos e outros engenhos.
Como os tratadistas anteriormente mencionados, Vasconcellos enfatiza a importância da geometria e
sua relação com a arquitetura, a cenografia e a perspectiva. Conforme o autor, o principiante deve
respeitar a ordenação do aprendizado, estudando primeiramente os princípios básicos da geometria e da
arquitetura, para depois se dedicar ao conhecimento da cenografia e da perspectiva
52
.
Ignacio da Piedade Vasconcellos conquistou um papel importante na literatura artística
portuguesa, sobretudo quanto ao desenvolvimento da arquitetura. Ao compilar as lições dos grandes
mestres, selecionando as informações mais relevantes e, por vezes, acrescentando suas próprias
reflexões, Vasconcellos preenche uma lacuna na tratadística lusitana. Nesse âmbito, o tratado destaca-se
por sua aplicabilidade, tendo em vista o aprendizado e o emprego do seu conteúdo por parte dos artífices.
No princípio do Livro IV, o autor reforça a necessidade de suprir essa ausência, endossando a sua
relevância para o ambiente cultural e artístico de Portugal
53
. Em outro trecho deste mesmo Livro IV, ao
apresentar a Ordem Toscana, Pe. Ignacio da Piedade nos conta que os autores famosos costumam
abordar o assunto com diversidade, porém, não diferem uns dos outros com relação às medidas e às
regras de construção. De acordo com o autor, as informações descritas no manuscrito foram apreendidas
a partir do exame minucioso das estampas, pois a leitura das explicações dos mestres, muitas vezes, é
insuficiente, pelo fato de muitos conhecimentos serem omitidos, por economia de trabalho ou,
simplesmente, por descuido
54
.
50
BRANDÃO, Angela. Artefactos Symmetriacos e Geometricos de Ignacio da Piedade Vasconcellos (1733): uma leitura. In:
COLÓQUIO DO COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 40, 7-11 dez. 2020, virtual. Resumo expandido. Disponível em:
http://www.cbha.art.br/coloquios/2020/templates/angela_brandao.pdf. Acesso em: 12 jul. 2023.
51
Idem. Artefactos Symmetriacos e Geometricos de Ignacio da Piedade Vasconcellos (1733): uma leitura. In: COLÓQUIO DO
COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 40, 7-11 dez. 2020, virtual. Comunicação virtual. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=t8HO8mSBuJc. Acesso em: 6 out. 2021.
52
VASCONCELLOS, op. cit., M.DCC.XXXIII [1733], p. 306.
53
Ibid., p. 333-334.
54
Ibid., p. 346-347.
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Essa passagem do opúsculo deixa clara a intenção do autor de facilitar o entendimento, por parte
dos artífices, do conteúdo presente nos manuscritos, resumindo e traduzindo os temas que foram
abordados por mais de um escritor. Ao relatar a sua própria experiência no processo de compreensão das
informações disponíveis nos livros dos grandes mestres, Piedade de Vasconcellos compartilha com o
público-alvo uma lição fundamental: o exame minucioso dos desenhos como caminho para o
aprendizado das formas de construção dos elementos de arquitetura. Esse processo prático de
investigação das gravuras constitui uma grande contribuição do tratadista para os artistas luso-
brasileiros, pois é exatamente essa atividade artística que percebemos quando confrontamos a
composição das quadraturas com os tratados de arte: o estudo e a interpretação das estampas impressas.
Nesse contexto, é preciso recordar e destacar que Andrea Pozzo também instigou os leitores a observar
detalhadamente as imagens:
Antes de pegar o compasso e a régua para desenhar em perspectiva achei muito útil
demonstrar-vos o que é a perspectiva, não com definições abstratas que são mais
difíceis de entender, mas com um exemplo de quatro pilastras colocadas em
perspectiva: por isso, se não entenderdes alguma coisa na explicação, podereis
recorrer à figura, essa intérprete muito fiel das palavras (Traduzido e publicado por
Mateus Silva. Grifo nosso)
55
.
Desconhecemos, até o momento, o registro desse tratado nos inventários dos artífices que
atuaram na capitania de Minas Gerais, entretanto existe uma possibilidade de que ele tenha circulado em
território brasileiro. John Bury levantou a hipótese de que os construtores do Brasil setecentista tenham
conhecido o livro Artefactos symmetriacos e geométrico (...)
56
. Mateus Alves Silva sugere a sua presença na
região mineradora. Citando Le Gac, Silva diz o seguinte:
Já para as figuras em pasta (também conhecidas como “de tela encolada”), Le Gac
considera que foram apresentadas por Vasconcellos em dois métodos distintos e,
apesar da ausência de peças confeccionadas segundo esses métodos em Portugal,
puderam ser encontradas especificamente em Minas Gerais, o que demonstra uma
circulação dessa técnica para além do âmbito da metrópole, onde é possível
conjecturar o intermédio dos Artefatos
57
.
55
SILVA, op. cit., 2020, p. 436.
56
BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. Organização por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Brasília, DF:
IPHAN/Monumenta, 2006, p. 185.
57
SILVA, op. cit., 2020, p. 175.
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Para todos os efeitos, a simples existência dessa obra é indicativa da circulação cultural do saber
erudito entre os artífices, conhecimento fundamental para a construção de um templo, de um retábulo e,
por conseguinte, para a pintura de falsa arquitetura – a quadratura.
Desse modo, acreditamos que os pintores que trabalharam nessas empreitadas artísticas podem
ter tido contato com fontes diversas de conhecimento. Entretanto, para o conjunto de obras analisadas,
destacamos a grande possibilidade de apropriação e interpretação das plantas arquitetônicas e dos
desenhos dos domos registrados no tratado de Andrea Pozzo, com destaque absoluto para a Figura 63 e a
Figura 65 do primeiro volume e a Figura 49 do segundo volume. Consideramos esta última uma das mais
importantes com relação à assimilação das formas de construção de uma cúpula, por duas razões:
primeiro, porque o irmão jesuíta apresenta o método de produzir o desenho de arquiteturas circulares
vistas de baixo para cima e correlaciona o traçado dos círculos com a disposição dos elementos
arquitetônicos. Segundo, porque nesta figura ele apresenta a cúpula H, um projeto cujo ponto do olho
encontra-se no centro, sobre o qual o artista deve colocar uma das pontas do compasso para traçar todas
as circunferências que definirão a disposição dos componentes da edificação. Para complementar, a
imagem é composta por oito pilastras, semelhante aos planos simplificados das pinturas investigadas,
salvo os dois exemplares constituídos por quatro pilares, como já mencionamos.
No tocante à disposição dos círculos
em perspectiva centralizada, é possível pensar a
origem para essas composições: a obra prima de
Andrea Mantegna, em Mântua, a primeira
pintura ilusionista realizada após a Antiguidade
Clássica, responsável pela criação de uma
tradição decorativa que perdurou por pelo
menos três séculos [Figura 23]. Na decoração da
Camera degli Sposi (1465-1474), o pintor construiu
uma arquitetura circular aberta para o céu, cujas
linhas do desenho convergem para um ponto de
fuga central que corresponde ao centro de todos
os círculos. Conforme Oriol Trindade:
Figura 23:
Andrea Mantegna. Camera degli Sposi, 1471-1474.
Palácio Ducal, Mântua, Itália.
Fonte: https://www.wga.hu/
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O muro cilíndrico, com personagens vizinhas, apresenta todas as ortogonais à
superfície do teto, a convergirem para um ponto de fuga que, neste caso, constitui o
centro de todas as circunferências concêntricas, pelo que o espectador deverá
posicionar sobre o eixo óptico vertical ou o raio visual principal
58
(grifo nosso).
Andrea Pozzo teria conhecido a obra de Andrea Mantegna, em Mântua, e absorvido o seu método
de representar a arquitetura circular a partir de um conjunto de círculos concêntricos? Pozzo nasceu em
Trento, em 1642. O artista, cuja obra é considerada modelo para o desenvolvimento das pinturas de
perspectiva dos países europeus e suas respectivas colônias, foi certamente influenciado pela cultura
artística norte-italiana. Pouco se sabe sobre sua formação: quando garoto, estudou na escola da Companhia
de Jesus – o Colégio Tridentino dos Jesuítas –, que “estabelecia um modelo pedagógico-cultural oriundo da
Europa Central, por sua proximidade com as províncias do Império Austríaco e pela presença de um corpo
docente composto de professores alemães”
59
. Dos 10 aos 17 anos, Pozzo frequentou o colégio, onde, muito
possivelmente, teve contato com a geometria e a perspectiva linear, como parte do programa educacional
dos jesuítas
60
. Após a educação escolar, deu início à sua instrução artística, como aprendiz de mestres
diversos, os quais são ignorados pela historiografia. Conforme Mateus Alves Silva, a partir de 1664 e antes
de ingressar na Companhia de Jesus, em 1665, Pozzo passou a trabalhar sozinho e investiu em viagens para
aprofundar seu aprendizado, tudo com a ajuda de um mecenas, cujo nome é desconhecido pelas
biografias
61
. Sob este prisma, o mais provável é que o irmão jesuíta tenha acionado sua memória visual para
elaborar as estruturas arquitetônicas descritas em seu tratado, reunindo todo o conhecimento adquirido ao
longo de sua formação e, quem sabe, referenciando as obras que conhecera na Itália setentrional,
reinterpretando e propagando o método de representação aplicado por Andrea Mantegna através da
proposta de construção de uma cúpula vista de baixo para cima – di sotto in sù.
A representação de arquiteturas circulares, concebidas por meio de configurações geométricas e da
disposição dos círculos em perspectiva centralizada foi adotada por diversos artistas italianos, ativos
principalmente na Itália setentrional, nos países da Europa central e em Portugal. Só para citar algumas obras:
o domo criado por Giulio Romano (1499-1546) na Sala dos Gigantes, no Palácio Te, em Mântua, por volta de 1534;
as pinturas de Tomaso Giusti (1644-1729) no Palácio Herrenhausen, em Hannover, produzidas entre 1694 e
1698; o Sacrifício de Enéas pintado no Palácio de Liechtenstein, entre 1705 e 1708, em Viena, por Johann Michael
Rottmayr (1654-1730), pintor austríaco cujo aprendizado foi aperfeiçoado em Veneza. E, por fim, a pintura do
58
TRINDADE, António de Oriol Pena Vazão. Um Olhar sobre a Perspectiva Linear em Portugal nas Pinturas de Cavalete, Tectos e
Abóbadas: 1470-1816. 2008. Tese (Doutorado em Geometria Descritiva) – Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa,
Lisboa, 2008, p. 327-328.
59
SILVA, op. cit., 2020, p. 60.
60
Ibid., p. 61.
61
Ibid., p. 61.
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teto da sacristia da Sé Catedral do Porto, considerada uma das primeiras quadraturas constituídas no Norte
de Portugal, que foi executada por Nicolau Nasoni (1691-1773) em 1725 [Figuras 24 a 27]
62
.
Ao pesquisar um conjunto de desenhos preparatórios para a decoração de tetos em The Metropolitan
Museum of Art, verificamos o uso recorrente dessas figuras geométricas na concepção estrutural das
arquiteturas imaginadas
63
. Veja-se a proposta do desenhista bolonhês composta pelas formas elementares
da geometria: o quadrado, o octógono e o círculo [Figura 28]. Conforme as referências do museu, o esboço
foi executado com o auxílio de régua e compasso. De fato, é possível visualizar o traçado das linhas que
definem a organização dos elementos arquitetônicos e ornamentais, com destaque absoluto para aquelas
que delimitam os eixos de simetria horizontal e vertical visíveis no centro da quadratura, onde se encontra
o menino alado. Repare-se que o artista, muito possivelmente, colocou uma das pontas do compasso no
ponto central e traçou diversos círculos que determinam a disposição do óculo, do entablamento, das
paredes e do balcão oitavado.
Do conjunto de desenhos citados, apresentamos mais um exemplar: o projeto de um artista
piemontês que reproduz um dos ângulos de uma arquitetura circular, elevada a partir dos pendentes
situados entre os arcos de uma cobertura abobadada [Figura 29]. Este risco é de extrema importância
porque nos permite visualizar com clareza os círculos concêntricos tracejados com a ajuda de um compasso,
bem como os raios visuais da circunferência. A organização desses elementos é semelhante à composição
das cúpulas imaginárias investigadas: a disposição dos círculos em perspectiva traçados a partir de um
ponto localizado no centro do suporte. Essas figuras geométricas definem o lugar onde se devem
representar os objetos arquitetônicos, como as mísulas, as colunas e as cornijas. Percebe-se ainda que o
esboço do artista italiano sugere a existência de um óculo aberto para o céu.
Persistimos, as composições das quadraturas estudadas demonstram um conhecimento apurado
dos artífices com relação à tratadística que circulava no ambiente luso-brasileiro do século XVIII e deixam
transparecer a conexão existente com a tradição artística de decoração de tetos instituída por Andrea
Mantegna, que foi difundida especialmente pelos pintores norte-italianos no decurso do tempo. Os autores
das intituladas cúpulas imaginárias, muito possivelmente, empregaram os princípios fundamentais da
geometria euclidiana, examinaram minuciosamente as plantas baixas dos edifícios e aplicaram o método
de reduzir os círculos em perspectiva proposto por Andrea Pozzo, ainda que não tenham alcançado a
verticalidade da arquitetura pintada. Neste sentido, perguntamos: porque as quadraturas não
conquistaram a profundidade espacial? Ao analisarmos essas representações, percebemos que os únicos
62
Sobre o assunto, veja-se: GIOVANNINI, op. cit., p. 227-254.
63
Sobre os desenhos preparatórios pesquisados veja-se: Ibid., p. 146-178
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 122
componentes cujas linhas do desenho confluem para um ponto de fuga são as colunas e as pilastras. Nós
verificamos que os objetos pintados acompanham a redução dos círculos em perspectiva: eles diminuem
na medida em que se distanciam da superfície e caminham para o centro, porém, não chegam a ser
concebidos a partir de um único ponto, formando “um só corpo unido de arquitetura e figuras”
64
, como
recomenda Pozzo e como averiguamos na obra prima do pintor italiano Andrea Mantegna.
Portanto, acreditamos que os autores dessas obras não empregaram exatamente o método de
representação conhecido como perspectiva linear, mas conceberam o espaço por meio da disposição dos
círculos em perspectiva – a composição radial. O procedimento é prático e os instrumentos essenciais para
a realização do desenho preparatório, muito possivelmente, são o papel, a régua e o compasso. Por
conjectura, consideramos que os artistas procederam da seguinte forma: partindo dos conhecimentos
básicos da geometria euclidiana, os pintores construíram o círculo (elipse) e o quadrado (retângulo). Na
sequência, tendo o centro como o ponto de origem, riscaram outras circunferências que definiram a
distribuição dos elementos arquitetônicos e ornamentais. Dos ângulos do quadrilátero, traçaram as
diagonais que determinaram a posição das pilastras. Para as plantas octangulares, produziram um
octógono e, a partir de suas arestas, riscaram as oito colunas da arquitetura. Esses objetos estruturais, ao
que tudo indica, seguiram os raios visuais, e o traçado dos outros componentes constituintes da cúpula
imaginária acompanhou a redução dos círculos, configurando um ambiente centralizado.
Para completar, os personagens sacros foram reproduzidos de frente para o observador,
conforme a tradição artística portuguesa e a religiosidade do Norte de Portugal, marcada pela relação de
proximidade e intimidade entre o fiel e o santo de sua devoção. Nesse universo, pressupomos que a
concepção estrutural das cúpulas nos fornece os primeiros indícios relativos ao seu conteúdo, indicando
a possibilidade de pensar a iconografia do espaço imaginário
65
. Na simbologia do templo cristão, os forros
das capelas-mores e suas decorações correspondem ao lugar de passagem entre o mundo terreno e o
celestial. As duas formas da geometria consideradas perfeitas – o quadrado e o círculo –, que estão na
base da construção das arquiteturas pintadas, simbolizam a união entre as esferas terrena e celestial, e o
movimento circular promovido pelas circunferências concêntricas representa a elevação espiritual do
devoto que, orientado pelo exemplo de vida dos santos, encontra o caminho para a reconciliação com
Deus. Nessa trama, a concepção da pintura em perspectiva centralizada está a serviço do discurso cristão.
64
SILVA, op. cit., 2020, p. 409.
65
Para dar continuidade e complementar o tema das cúpulas imaginárias, pretendemos escrev er sobre a iconografia do espaço
imaginário num próximo artigo.
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 123
Figura 24:
Giulio Romano. Sala dos Gigantes,
1532-1534. Palácio Te, Mântua.
Fonte: https://www.wga.hu/
Figura 25:
Tomaso Giusti. Sala de Outono,
1694-1698. Palácio Herrenhausen,
Hannover.
Fonte: https://www.bildindex.de/
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 124
Figura 26:
Johann Michael Rottmayr. O sacríficio de
Eneias, 1705-1708. Museu de
Liechtenstein, Viena.
Fonte: https://www.wga.hu/
Figura 27:
Nicolau Nasoni. Pintura de teto
da sacristia da Sé catedral
(detalhe do óculo e balaustrada),
1725. Porto, Portugal.
Fotografia da autora.
Revista de História da Arte e da Cultura | Campinas SP, v.4, n.1, jan-jun 2023 | ISSN 2179-2305 125
Figura 28:
Anônimo. Projeto para teto quadrado com os quatro evangelistas, séc. XVIII. The
Metropolitan Museum of Art, New York.
Fonte: https://www.metmuseum.org.
Figura 29:
Anônimo. Projeto para um teto
abobadado, 1700-1780. The
Metropolitan Museum of Art,
New York. Fonte:
https://www.metmuseum.org.