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ESTUDOS AVANÇADOS SOBRE A MORTE E O MORRER: Perspectivas contemporâneas em tanatologia

Authors:

Abstract

Os capítulos que compõem esta obra contemplam diversas pesquisas contemporâneas oriundas de campos distintos, a saber: Antropologia, Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Letras, Psicologia, Psicanálise, dentre outros. Assim, busca atualizar e ampliar o escopo de estudos acerca da tanatologia, envolvendo os processos de morte, morrer e luto. Espera-se que os textos presentes neste livro, escolhidos a partir de critérios éticos e de coesão com a temática, possam contribuir com novas estudos e debates nas diversas áreas que se debruçam nos estudos sobre a finitude humana.
ESTUDOS AVANÇADOS SOBRE
A MORTE E O MORRER
JOSE VALDECI GRIGOLETO NETTO
ORGANIZADOR
PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS EM TANATOLOGIA
ESTUDOS AVANÇADOS SOBRE
A MORTE E O MORRER
Perspectivas contemporâneas em tanatologia
Este livro foi composto pela Editora Bagai.
www.editorabagai.com.br /editorabagai
/editorabagai contato@editorabagai.com.br
AVALIAÇÃO, PARECER E REVISÃO POR PARES
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária responsável: Maria Alice Benevidez CRB-1/5889
E26 Estudos avançados sobre a morte e o morrer:
Perspectivas contemporâneas em tanatologia
[recurso eletrônico] / [org.] Jose Valdeci Grigoleto Netto. –
1.ed. – Curitiba-PR, Editora Bagai, 2023.
Recurso digital.
Formato: e-book
Acesso em www.editorabagai.com.br
ISBN: 978-65-5368-251-1
1. Tanatologia. 2. Luto. 3. Aspectos sociais.
I. Grigoleto Netto, Jose Valdeci.
CDD 150
10-2023/40
Índice para catálogo sistemático:
1. Psicologia: Tanatologia. 150
R
https://doi.org/10.37008/978-65-5368-251-1.05.07.23
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Lei dos Direitos Autorais).
Jose Valdeci Grigoleto Netto
Organizador
ESTUDOS AVANÇADOS SOBRE
A MORTE E O MORRER
Perspectivas contemporâneas em tanatologia
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
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APRESENTAÇÃO
Estudar sobre a tanatologia, englobando a morte, o morrer e os
processos de luto se faz a partir de diferentes olhares e espaços que se
ampliam para além da Psicologia. A partir disso, se faz necessário expandir
perspectivas de compreensão, interseccionando saberes, conhecimentos
e estudos. Desta forma, buscando agregar pesquisas oriundas de múlti-
plas áreas do saber, neste trabalho contamos com textos que nasceram
de estudos da Antropologia, Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Letras,
Psicologia, Psicanálise, dentre outros.
Para iniciar, o capítulo intitulado Mortos em migração: notas
sobre territorialidade e patrimônio fúnebre entre os Aruaque da
fronteira franco-brasileira propõe algumas reflexões e problematizações
acerca dos cuidados com os corpos e territórios, destacando a importância
dos rituais fúnebres para além dos costumes europeus e colonizadores.
Na sequência, o segundo capítulo A clínica de inspiração sartriana nas
veredas da morte, traz discussões filosóficas sobre dos estudos do filósofo
Jean Paul-Sartre que tangem para questões existenciais frente à finitude.
Ampliando as leituras ancoradas em compreensões teóricas distintas,
o terceiro capítulo intitulado A morte como um estado de não-ser, realiza
uma leitura psicanalítica acerca do fenômeno do adoecimento, da hospi-
talização e da morte. Logo depois, no quarto capítulo que leva o nome de
Covid-19, a morte e o manejo de corpos: impactos para vivos e mori-
bundos no Brasil pandêmico, a autora realiza reflexões a respeito da situa-
ção pandêmica vivida pelo mundo, dando destaque ao cenário brasileiro.
Em continuidade, no quinto capítulo intitulado de Educação
para a morte: um compromisso ético-político com a vida, as autoras
apresentam uma pesquisa oriunda de um importante projeto de pesquisa
e extensão universitária vinculado à Universidade Federal do Rio Grande
do Sul - UFRGS. Também, no sexto capítulo Educação para a morte na
escola: acolhimento de professores diante do luto infantil na pandemia
de Covid-19, as autoras voltam seus estudos para o cuidado e acolhimento
a professores/as enlutadas no contexto da pandemia.
O estudo apresentado no sétimo capítulo, Luto na infância:
compreensão teórica das manifestações clínicas e necessidades da
criança enlutada, traz pesquisas atualizadas e de referência na área para
elucidar um tema pouco reconhecido e debatido, mas que carece de espa-
ços e debates entre pesquisadores, sociedade e família. No mesmo eixo
temático da infância, o oitavo capítulo nomeado de O lugar da criança
enquanto familiar nos Cuidados Paliativos propõe reflexões sobre o
protagonismo da criança em seu luto, reconhecendo e afirmando seu
lugar enquanto sujeito de direitos.
Em continuidade, o nono capítulo batizado como Do lho ima-
ginado ao lho real: reexões sobre o luto parental, discute sobre as
idealizações, expectativas e o confronto com a realidade quando o filho
que nasce não corresponde ao idealizado e, a partir de então, o surgimento
de possíveis (e esperados) impactos no seio familiar. O décimo capítulo
convida os/as leitores/as a conhecerem uma alternativa rica para o traba-
lho com enlutados: o grupo terapêutico. Assim, o texto intitulado Grupo
terapêutico para enlutados: método educativo reexivo sobre morte
e luto apresenta o relato de uma prática de sucesso que, executada de
maneira ética e cuidadosa, tende a ser um excelente recurso de trabalho
junto aos pacientes enlutados.
Avançando para o fim da obra, o décimo primeiro capítulo, O
papel do Psicólogo e as vicissitudes do processo de morte e luto
apresenta algumas reflexões sobre a atuação e especificidades da Psicologia
no contexto de morte e luto, elencando alguns caminhos possíveis para
o efetivo acolhimento e manejo terapêutico.
Por fim, mas não menos importante, o último capítulo, De Antígona
ao século XXI: o lugar do luto nos escritos de Judith Butler, propõe
uma conexão com a tragédia grega e os reflexos da não importância atri-
buída a determinadas vidas e, por consequência, os impactos da ausência
de validação frente a lutos que são socialmente silenciados.
Assim, após uma breve apresentação dos capítulos, desejo que as
produções aqui presentes possam contribuir com novas estudos e debates
nos diversos campos. Os textos foram carinhosamente escolhidos, levan-
do-se em consideração a coerência e consistência dos materiais. Que este
não seja apenas um livro para ficar exposto nas estantes, mas sim um
manual de trabalho, consulta e pesquisas. Boa leitura!
Jose Valdeci Grigoleto Netto
Inverno de 2023
SUMÁRIO
MORTOS EM MIGRAÇÃO: NOTAS SOBRE TERRITORIALIDADE E
PATRIMÔNIO FÚNEBRE ENTRE OS ARUAQUE DA FRONTEIRA
FRANCO-BRASILEIRA ......................................................................................... 9
Ramiro Esdras Carneiro Batista
Ros’elles Magalhães Felício
Saulo Esdras de Matos Carneiro
A CLÍNICA DE INSPIRAÇÃO SARTRIANA NAS VEREDAS DA MORTE 19
Thiago Sitoni Gonçalves
A MORTE COMO UM ESTADO DE NÃO-SER ........................................... 35
Viviana Carola Velasco Martinez
Luisa Gumiero Dias Gomes
COVID-19, A MORTE E O MANEJO DE CORPOS: IMPACTOS PARA
VIVOS E MORIBUNDOS NO BRASIL PANDÊMICO ................................ 49
Anne Caroline Nava Lopes
EDUCAÇÃO PARA A MORTE: UM COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO
COM A VIDA ........................................................................................................... 63
Luíza Michelini Vilanova
Cláudia Bechara Fröhlich
Janniny Gautério Kierniew
EDUCAÇÃO PARA A MORTE NA ESCOLA: ACOLHIMENTO DE
PROFESSORES DIANTE DO LUTO INFANTIL NA PANDEMIA DE
COVID-19 ................................................................................................................. 73
Mariele Rodrigues Correa
Raissa Pinto Rodrigues
LUTO NA INFÂNCIA: COMPREENSÃO TEÓRICA DAS
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E NECESSIDADES DA CRIANÇA
ENLUTADA ........................................................................................................... 83
Raquel Pinheiro Niehues Antoniassi
O LUGAR DA CRIANÇA ENQUANTO FAMILIAR NOS CUIDADOS
PALIATIVOS ........................................................................................................... 99
Alice Maria Giacomelli
Aline Vaneli Pelizzoni
Caroline Fantini
João Eduardo Cordeiro Pereira
Marina Magnino Machado Mota
Regina Prudente
DO FILHO IMAGINADO AO FILHO REAL: REFLEXÕES SOBRE O
LUTO PARENTAL ............................................................................................... 113
Giovana Kreuz
Jose Valdeci Grigoleto Netto
GRUPO TERAPÊUTICO PARA ENLUTADOS: MÉTODO EDUCATIVO
REFLEXIVO SOBRE MORTE E LUTO ........................................................123
Keila Barros Moreira
Joyce Duailibe Laignier Barbosa Santos
Janete Monteiro Gomes
O PAPEL DO PSICÓLOGO E AS VICISSITUDES DO PROCESSO DE
MORTE E LUTO ..................................................................................................137
Patrícia Carlos dos Santos Leonardo
DE ANTÍGONA AO SÉCULO XXI: O LUGAR DO LUTO NOS
ESCRITOS DE JUDITH BUTLER ...................................................................147
Jose Valdeci Grigoleto Netto
Mariele Rodrigues Correa
SOBRE O ORGANIZADOR ............................................................................... 155
ÍNDICE REMISSIVO ............................................................................................... 156
9
MORTOS EM MIGRAÇÃO: NOTAS SOBRE
TERRITORIALIDADE E PATRIMÔNIO
FÚNEBRE ENTRE OS ARUAQUE DA
FRONTEIRA FRANCO-BRASILEIRA
Ramiro Esdras Carneiro Batista1
Ros’elles Magalhães Felício2
Saulo Esdras de Matos Carneiro3
INTRODUÇÃO: A MORTE ETNICAMENTE DIFERENCIADA
A morte, enquanto supressão do relacionamento com o outro – e
com o corpo do outro – não parece oferecer possibilidades de ser vivida
individualmente, quando se trata de sociedades e povos originários, em
sentido lato. O luto individual parece ser próprio de sociedades que separam
o sujeito de seu corpo social e também de seu próprio corpo, propondo o
dualismo ocidental corpo/alma, que é exatamente a antítese das sociedades
classificadas como tradicionais, lócus em que não se distingue o corpo da
pessoa de seu respectivo corpo social, não sendo, portanto, ali permitida
a “soberania do ego”. (LE BRETON, 2016, p. 08).
Nesse sentido, identificar e compreender elementos físicos e simbó-
licos relativos à constituição e organização do mundo dos mortos entre
diferentes povos, é tarefa política e científica necessária, o que pode municiar
o combate ao preconceito e ao racismo de cunho religioso que permeia as
práticas fúnebres de distintas populações, supostamente “minoritárias”, ao
redor do globo. Por se tratar de um tema eivado de interditos, vale iniciar
levando em conta uma percepção indígena de que a produção etnológica
contemporânea induz a pensar as práticas fúnebres e religiosas de povos
não europeus com pendores negativos e sombrios, conforme argumenta
o antropólogo indígena Almires Martins Machado (2021).4
1 Doutor em Antropologia (UFPA). Professor de Fundamentos da Educação (UNIFAP).
CV: http://lattes.cnpq.br/7005578248354611
2 Doutora em Letras e Linguística (PUC-MG). Professora de Sociolinguística (UNIMONTES).
CV: http://lattes.cnpq.br/6953066907270767
3 Bacharelando em Direito (UNIFIP-MOC). CV: http://lattes.cnpq.br/7005578248354611
4 Sobre o assunto, consultar: Almires Martins Machado (2021, p. 73-100).
10
Desta maneira, torna-se importante empreender estudos sobre a
morte e os mortos a partir de um olhar pretensamente descolonizante,
com o intuito de indicar a humanidade dos povos originários, conside-
rando que é atribuição do múnus antropológico “[e]xercita[r] o papel
de tradutor cultural no embate com as visões estereotipadas sobre [os]
povos tradicionais.” (BELTRÃO ET AL, 2015, p. 209).5 Empreender essa
modalidade de tanatologia considerando o olhar e a descrição de seus
protagonistas – no caso os intelectuais indígenas – pode, em alguma
medida, contrariar ícones da literatura pertinente ao tema, tendo em
vista o embate político e ideológico em curso que segue propondo a
descolonização do mundo e a desracialização da humanidade, processo
que também permeia a desvelamento do post mortem entre/de pessoas e
coletivos etnicamente diferenciados.
No caso do presente capítulo, pretende-se, por meio do método
etnográfico e em diálogo com a literatura produzida por pesquisadores
de pertença indígena, acessar parte da memória autóctone sobre os enter-
ramentos secundários, preteritamente praticados pelos Palikur Arukwa-
yene, povo de origem aruaque atualmente territorializado no município
de Oiapoque/Amapá/Brasil. A reflexão, ora empreendida por estudio-
sos de diferentes áreas do conhecimento, também perpassa notas do
caderno de campo do primeiro autor.
Dentre o povo Palikur Arukwayene
6
manifesta-se a premissa de que nos
utilizamos acima, qual seja, de que o corpo da pessoa enquanto construção
física e simbólica pertence ao grupo, e, portanto, sua dimensão atômica
não pode ser separada do corpo maior, a sociedade arukwayene. Dito de
outra forma, na descrição narrada em termos próprios sobre suas antigas
práticas fúnebres, fica explicitada a noção de que os despojos esqueletais são
responsabilidade (perene) do corpo social (MARTINS & MARTINS, 2019),
o que é corroborado pelo volume de vestígios e monumentos fúnebres
mapeados na costa do Amapá, em sua intercessão com o atual território
ultramarino europeu da Guyane.7 (SALDANHA e CABRAL, 2014).
5 Sobre o assunto, consultar: Jane Felipe Beltrão (2015, p. 206-238).
6 Referimo-nos na presente reflexão aos indígenas de filiação linguística aruaque, que entraram para a
literatura etnológica como o Povo Palikur, atualmente territorializado no interior da Terra Indígena
Uaçá, município de Oiapoque, ente federado do Amapá, Brasil.
7 Território correspondente á antiga Guiana Francesa.
11
OSSUÁRIOS E PLENIPOSSE TERRITORIAL
Sobre as práticas funerárias do povo em tela, existe um registro legado
pelo velho Marechal do exército brasileiro, Cândido Mariano da Silva
Rondon (2019), em relação a uma migração dos Palikur então realizada de
seu território na margem brasileira para à margem francesa das guianas,
documento que nos apresenta a alegação (supostamente indígena) de que
o intento teria fracassado pela imprevidência destes aruaque com respeito
à guarda e manutenção das ossadas de seus ancestrais, na oportunidade,
“abandonadas” na guiana brasileira. Segundo o registro:
No início do século XX, insuflados pelos franceses,
que sempre ambicionaram nossa população indígena
[os Palikur] transferiram-se em grande parte para a
Guiana francesa, sendo-lhes ali reservada pelo governo
francês uma área de terra dentro do rio Uanari, com-
preendendo parte da margem esquerda do Oiapoque
e sendo ainda estipulado um salário em dinheiro ao
tuxaua. Entretanto, uma epidemia manifestou-se
entre ditos índios dizimando grande parte deles, o
que foi tomado como castigo, pelo abandono dos
seus cemitérios, em terras brasileiras[.] (RONDON,
2019, p. 256, grifos nossos).8
No caso, presume-se que um provável interlocutor indígena teria
dito ou feito chegar a Comissão Rondon a informação de que o povo
retornava à margem brasileira pela necessidade de retomar o cuidado com
as ossadas dos parentes mortos – uma responsabilidade do coletivo –, além
de tentar reverter o mal que resultara de seu abandono, de acordo com o
relato, epidemias e incontáveis mortes. Esse retorno do povo Palikur, na
ocasião em fluxo migratório pelas bordas neo-fronteiriças da Guiana fran-
co-brasileira pode demonstrar que, da perspectiva efetivamente indígena,
uma migração e (re)territorilização em massa somente pode ser realizada
quando atenta ao cuidado com o respectivo patrimônio fúnebre, o que
nos leva a percepção de que dentre povos e grupos clãnicos da guiana
ameríndia, os mortos também migram e imigram, mediante percepções
fronteiriças e territoriais engendradas em seus próprios termos.
8 O excerto que utilizamos procede do Ensaio intitulado Pariukur-Iene, de autoria de Eurico Fernandes
– agente do SPI no Uaçá – trabalho inédito empreendido entre 1931-1945, reproduzido na memória
do Cândido Mariano da Silva Rondon (2019, p. 255).
12
A fim de alcançar algum entendimento sobre o suposto fracasso
da migração palikur em direção à berma francesa da guiana, ora invadida
pelas potências europeias, é preciso estabelecer algum entendimento sobre
o que é e, sobretudo, como se consolida uma territorialidade indígena. Para
isso, tomemos de empréstimo a noção de Território dos parentes Guarani:
[O] território para o Guarani tem a ver com seu espaço
existencial, onde assinala o meio ambiente criador da sua
identidade, das suas relações sociais, onde vive ou tenta
viver plenamente a sua cultura, desenvolvendo a sua
política, os seus meios econômicos, culturais e religiosos.
Não é apenas o lugar que serve para morar, plantar roças,
caçar e pescar. É também o espaço da construção de redes e
laços de parentesco. É o local onde pratica diuturnamente
os costumes, enfatizando aspectos importantes da sua
cultura. É também onde estão enterrados os antepas-
sados, representando o poder sociocultural. É o lugar
onde cada planta, animal e pedra tem signicado. É
o ambiente onde desenvolvem as formas de pensar,
agir e ver o mundo. O território engloba todo o con-
junto de seres, espíritos, bens, conhecimentos, usos e
tradições. É onde se articula define e mobiliza as pessoas
em torno de um bem comum e religioso, garantindo a
vida individual e coletiva. É sempre [o lugar] de referência
à ancestralidade, à cosmologia, à cosmogonia e à rede de
significações, onde passado e presente estão em constante
sintonia, vivos e mortos habitam o mesmo espaço, onde
estão os heróis que povoam as histórias, sejam eles vivos
ou mortos. Por meio dos rituais qualquer terra pode ser
guaranizada, ressignificada, reterritorializada, curada,
para proporcionar a vida boa almejada. (MACHADO,
2021, p. 78-80, grifos nossos).
Como se percebe na descrição Guarani, para além da dimensão
física, o território considerado apropriado à reprodução do modo de
vida indígena somente é assim proposto ou “guaranizado” quando con-
solida as redes de parentesco e aliança entre humanos e não humanos, aí
inclusa a necessária “vizinhança” equidistante dos/com os antepassados,
ancestralidade que, no caso dos aruaque palikur, também pode ser trans-
13
posta para diferentes territórios – em resposta a necessidade de sobre-
vivência a pressão colonial – sempre e quando houver a oportunidade
de transladar os mortos para as imediações da nova aldeia, garantindo
assim, não só o vínculo com os antigos, como também o cumprimento
das responsabilidades do coletivo de vivos com a substância perene dos
mortos, que estão contidas em suas urnas, potes funerários e resquícios
esqueletais. (MARTINS & MARTINS, 2019).
Na imagem a seguir, uma amostra do gigantesco patrimônio fúnebre
que demarca a antiga territorialidade da Costa Palikura, atual ente federado
do Amapá/Brasil, segundo o estado de arte da arqueologia na região:
Imagem 01 - Detalhe da profusão de sítios e monumentos fúnebres identificados no
norte do Amapá, segundo os arqueólogos Guapindaia, Meggers, Evans e Rostain.
Fonte: ROSTAIN (2011, p. 15).
14
PATRIMÔNIO FÚNEBRE E TERRITÓRIOS DA MORTE
Uma fabulada dimensão “primitiva” da ação de membros de cole-
tividades originárias em relação aos seus féretros, pensada sobretudo a
partir das práticas de enterramento secundário e consequente manipulação
de despojos esqueletais de seus entes queridos, pode ser desconstruída, se
lembrarmos que para boa parte da cristandade europeia atual os ossos
e/ou relicário de pessoas consideradas “santas” seguem sendo objeto de
veneração, além de supostamente estarem dotados de grande potência,
“[c]oncede[ndo] poderes favoráveis [de] curar os doentes, favorecer as
colheitas, premunir epidemias, [bem como] proteger os homens em seus
empreendimentos.” (LE BRETON, 2016, p. 44).
Nesse sentido, a reificação do que se pode chamar de uma potên-
cia magicamente eficaz, contida em ossos humanos, trata de um regime
simbólico que perpassa diferentes sociedades humanas no tempo e no
espaço, desde a cristandade europeia contemporânea, como referida na
antropologia do corpo de David Le Breton (2016), até os povos ameríndios
da Guyana, supostamente francesa, a exemplo do que delimitou Robert
Hertz, ao comentar os ritos inerentes a morte ameríndia:
[A] redução do cadáver a ossadas praticamente
imutáveis [...] aparece como [a] condição e o sinal
de libertação nal: agora o corpo do defunto é seme-
lhante aos dos seus antepassados [deixando] de haver
qualquer obstáculo para a [...] comunhão com eles.
(HERTZ, 2016, p. 91, grifos nossos).
Aqui caberia outra generalização possível para o cuidado com o
corpo dos mortos e respectivos ritos de inumação, que também perpassam
as sociedades ditas tradicionais, em diferentes tempos e espaços, visto que
a recomposição da estabilidade emocional dos vivos diante da morte é
alcançada mediante a observância de ritos atentos aos costumes, diante
da ausência e em respeito à vontade do ente querido. (Pires 2015). Nesse
sentido, Jane Felipe Beltrão et al. (2015), argumentam que:
A partir do momento em que ocorre a morte, o falecido
adquire um novo estatuto e entra em um novo estado,
marcado pela progressiva decomposição do cadáver. É
15
como uma forma de lidar com a disrupção ocorrida,
com os sentimentos gerados pela perda de alguém pró-
ximo e com esse processo de corrupção e decomposição
do corpo que podemos entender as diversas práticas
funerárias aplicadas por grupos humanos por todo o
mundo. E é também por isso que, por mais variadas
que sejam essas práticas de tratamento dos mortos, a
sua existência é também um fenômeno universal à
humanidade. (BELTRÃO ET AL, 2015, p. 207-208).
Em acordo com a autora, constata-se, portanto, que o cuidado
no corpo do parente morto – e em decomposição – é ato inerente a
todas as culturas humanas conhecidas, não se encontrando, portanto,
sentido em um alegado “primitivismo” dos povos originários na execu-
ção dos respectivos ritos de inumação, que não estejam embasados em
discurso racista e etnocêntrico.
Sobre os ritos de luto e inumação de cadáveres, tão distintos quanto
distintas são as práticas fúnebres praticadas ao redor do mundo não euro-
peu, trata-se de uma materialidade que João José Reis (1991, p. 89) considera
pertinente a diferentes sociedades humanas no tempo e no espaço, visto
o aparente consenso que “[d]e rituais funerários adequados [depende]
a segurança de mortos e vivos”. Além disso, podemos denotar o valor
coletivo, e também individual, da vivência adequada do luto para os que
continuam pertencendo à sociedade dos vivos, uma vez que, da América
indígena à África subsaariana, sobejam exemplos de como a materialidade
dos ritos funerários nos ajudam a lidar com o medo da morte e, sobretudo,
do pavor involuntário de que os mortos regressem para reclamar algo.
Como constata Mia Couto (2012), para diferentes comunidades negras do
interior moçambicano, o medo da substância pegajosa da morte costuma
torna-se maior do que a própria saudade do ente querido.9
A essa altura de análise de nossas notas vale a pena apontar que,
mesmo com o povo Palikur Arukwayene tendo experimentado mudanças
em suas práticas de enterramento secundário desde o advento da invasão
colonial, em que é possível constatar grande parte de seus ritos de morte,
pesar e manipulação dos restos fúnebres de seus entes queridos foram,
grosso modo, substituídos pelo rito fúnebre cristão que despacha rapida-
9 Sobre o assunto, consultar: Mia Couto (2012).
16
mente a materialidade da morte do parente em caixões de madeira, alguma
coisa da morte etnicamente diferenciada parece prevalecer, sobretudo no
que tange ao território dos mortos.
Não obstante as mudanças experimentadas ao longo do tempo, muito
em função da colonização religiosa (CAPIBERIBE, 2007), hodiernamente,
a ilha dos mortos ou o cemitério palikur que pudemos conhecer na ilha
Kwap
10
, segue sendo organizado segundo regras ancestrais de sepultamento
das pessoas, sempre de acordo com seu pertencimento clânico. Isto pode
apontar para a percepção de que a colonização da morte e do morrer indí-
gena, supostamente subjugada pela morte e o morrer cristão, guarda suas
idiossincracias que podem ser melhor compreendidas pela dinâmica da
fricção étnica que tanto caracteriza aquela zona fronteiriça. Na sequência,
a título de ilustração, apresentamos um esboço do cemitério indígena do
qual falamos, com a respectiva divisão espacial, onde jazem os féretros:
Imagem 02 - Esboço do cemitério palikur na ilha Kwap, com os espaços delimitados
para os defuntos, segundo seu pertencimento clãnico.
Fonte: BATISTA (2023, p. 177).
10 Situada no médio rio Urukauá, Terra Indígena Uaçá, município de Oiapoque/AP, Brasil.
17
À GUISA DE CONCLUSÃO
Se concordamos que os cuidados com o corpo dos mortos e seus res-
pectivos territórios de morte é fenômeno observável e inerente a toda huma-
nidade, também podemos concordar que o mal-estar advindo das descrições
pejorativas sobre as culturas fúnebres dos povos não europeus e/ou não cris-
tãos, é tão somente fruto de uma ciência racista/colonialista, historicamente
produzida com o intuito de negar a humanidade dos povos colonizados.
O tratamento dos restos mortais de povos e pessoas étnica e racial-
mente diferenciados são, obviamente, diferenciados, em atenção a percepções
próprias de como se organiza o mundo dos mortos e consequentemente,
o dos vivos, pois como tem sido renitentemente proposto pela literatura
antropológica mais recente, da morte moralmente adequada e atenta as
práticas religiosas do defunto dependeria a própria segurança psíquica dos
vivos, tendo em vista o pavor que uma morte mal resolvida pode difundir
entre estes, independentemente de seu pertencimento. (BATISTA, 2023).
Exemplo sintomático dessa premissa é a percepção de que o heca-
tombe que se abateu sobre o povo Palikur entre fins do século XIX e início
do século XX, é justificado em seus próprios termos como advindo do
abandono dos cuidados com o território e as ossadas dos ancestrais, o
que os teria impedido de “palikurizar” o novo território “ganho” em
domínio franceses, visto que a migração não foi devidamente acompa-
nhada por seu séquito de mortos.
Confirmadas as hipóteses e conclusões arukwayene nenhum ociden-
talismo é parte legítima para nelas interferir, visto que o ato de infantilizar
ou tornar “selvagens” as percepções de morte e ultravida de povos não
europeus não contribuíram, e não contribuem para o respeito a diversi-
dade epistêmica humana, seja na cotidianidade impermeável da vida, seja
no território pegajoso da morte.
REFERÊNCIAS
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bélica nas guerras guianenses. 2023. 346 f. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação
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18
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Saamaka Cristã. 2015.Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
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São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RONDON, C. M. da S. Índios do Brasil: das cabeceiras do rio Xingu, rios Araguaia e Oia-
poque. Brasília: Senado Federal, 2019.
SALDANHA, J. D. de M.; CABRAL, M. P. A longa história indígena na costa norte do Amapá
In: Anuário Antropológico, 2014, 2(39):99-114. Disponível em: http://journals.openedition.
org/aa/1261. Acesso em: 1 fev. 2021.
ROSTAIN, S. Que hay de nuevo al norte: Apuntes sobre el ariste. R. de Arqueologia, 2011,
24(1):10-31. Disponível em: https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%-
2C5&q=QUE+HAY+DE+NUEVO+AL+NORTE.+APUNTES+SOBRE+EL+ARISTE&btnG=
Acesso em: 18 fev. 2022.
Nota: como declinado na parte introdutória do capítulo, parte da discussão e algumas ima-
gens são fruto de notas constantes da tese de doutoramento do primeiro autor (BATISTA,
2023 – Inédita). Para detalhes, consultar referências bibliográficas.
19
A CLÍNICA DE INSPIRAÇÃO SARTRIANA NAS
VEREDAS DA MORTE
Thiago Sitoni Gonçalves11
INTRODUÇÃO
A RECENTE CIÊNCIA PSICOLÓGICA E OS INTERESSES
DE SARTRE
O interesse de Jean-Paul Sartre com a psicologia é, sem dúvidas, um
interesse crítico às teorias clássicas que imprimem uma cosmovisão causa-
lista, fisiológica e psicologista nascente na primeira metade do século XX.
Ora, trata-se de uma psicologia em recente estatuto de ciência. Em 1930,
fazia-se 51 anos desde a construção do primeiro laboratório internacional de
formação de psicólogos em Leipzig por Wilhelm Wundt (BORIS; COSTA,
2022). Seu surgimento é providencial à psicologia enquanto ciência, o que
implica, em outros termos, um verdadeiro grito de independência ao seu
berço epistemológico originário: a filosofia. Cabe destacar, entretanto,
que seu estatuto científico conquistado com distanciamento a esse saber
originário sofre consequências danosas.
Nos termos de Bocca e Silva (2022, p. 18), resultou em um: “empo-
brecimento/limitação à primeira” – o que gerou um novo paradoxo – “o
progresso científico contribuiu para que muitos estudiosos, à época,
acreditassem que a cientificidade naturalista experimental seria suficiente
para explicar os fenômenos psicológicos”.
Essas discussões aparecem em Esquise d’une théorie des émotions quando
Sartre evoca as teorias clássicas que se assentam ora na fisiologia: “todas
as críticas de James, examinam sucessivamente o ‘estado’ da consciência
‘emoção’ e as manifestações fisiológicas concomitantes não reconhe-
cem sem essa projeção, a sombra lançada por eles” (SARTRE, 1939, p.
20) ou, ora numa tentativa malograda de adensar o psíquico via uma
11 Doutorando em Filosofia (UNIOESTE). Psicólogo (CRP: 08/32686). Docente do curso de Psicologia
(UNIAlfa). CV: http://lattes.cnpq.br/8901362097917101
20
“conduta de fracasso” (SARTRE, 1939, p. 21). colocando as emoções
enquanto “uma conduta inferior, que necessita uma tensão psicológica
menor.” (SARTRE, 1939, p. 21).
Sass (2017) aponta, neste aspecto, o engajamento de Sartre para como
a produção de conhecimento de sua época pelas publicações do Journal de
Psychologie Normale et Pathologie editada por Janet e Dumas e da Recherches Philo
-
sophiques editado por Koyré, H-Ch, Puech e Spaier. Além do mais, Beauvoir
(2016) testemunha os primeiros contatos dela e de Sartre com a psicanálise
freudiana, as suas noções de inconsciente, de censura e de libido não tão
acolhidas por Sartre, bem como pela própria tradição fenomenológica.
No século XX, em solo francês, consta duas discussões acaloradas:
1) o caráter científico da psicologia, partindo de fontes biológicas e
positivistas originárias de Auguste Comte e 2) a efervescência das feno-
menologias e das filosofias existenciais. Os existencialismos insurgentes
como movimentos e, paralelamente, uma expressão de moda conforme a
mídia concebia. Vale notar que esse movimento gerou certa mácula nos
padrões conservadores e reacionários desse período entreguerras (SILVA,
2022). A isso, cabem as palavras de Penha (2001, p. 8):
Os existencialistas eram acusados de pregar idéias dis-
solventes. Sua reflexão filosófica, diria-se, era mórbida,
sombria, amarga, preocupada em explorar o lado sór-
dido da existência humana, fixando-se nas exceções da
vida. Corruptos, amorais, degradadores, perniciosos,
pregoeiros do desespero a se comprazerem no tédio e
na melancolia.
Essa discussão se alastra para comunidade filosófica. Vale relembrar
a explícita negação de Camus em 1945 ao título de existencialista, pre-
sente na Les Nouvelles Littéraires12; os destaques feitos por Gabriel Marcel13
apresentando convergências e divergências com Sartre e lançando uma
12
A esse intento, conferir o seguinte trabalho: BRAZ, A. La conscience de l’absurdité chez Camus:
l’héritage d’une autre existentialisme. Horizons philosophique. v. 16 n. 2. p. 1-8, 2006.
13 Conforme Marcel (1970, p. 5) afirma: “Uma terceira obra escrita em Fevereiro de 1946 busca definir a
doutrina “existencialista” qual eu pessoalmente apoio com a devida cautela em relação ao vocabulário,
a qual tem se tornado elegante mas que é, em vários sentidos, passível de crítica” (tradução nossa)
21
hermenêutica existencial que busca o mistério de uma existência encarnada
e, por fim, até o desdém de Merleau-Ponty.
Por outro lado, Sartre toma um partido radicalmente contrário a
de seus contemporâneos, contudo, não sem inquietação ou deflagração
do caos, como testemunha Levy (2001, p. 26): “suas conferências viram
motins. Em cada uma são empurrões, cadeiras quebradas, serviços de
segurança sobrecarregados, inícios de brigas, desmaios, gritos de histe-
ria”. A escandalosa concepção do existencialismo ateu com sua impiedosa
liberdade de “carne e osso” irrompe em um cenário belicoso. Afinal de
contas, para iniciar esse trabalho, o que Sartre quis referir-se com o mote
do existencialismo? Vejamos suas palavras:
O homem existe primeiramente, se reencontra, surge
ao mundo, ao qual se define depois. O homem, tal
como concebe o existencialismo, se ele não é definível,
é porque ele não é primeiramente nada. Ele apenas será
em seguida, e ele será tal como ele se faz. Assim, ele não
tem uma natureza humana, porque ele não tem um
Deus para o conceber. (SARTRE, 1970, p. 3)
Essa concepção costura a noção de realidade humana como ponto
de partida de um método heurístico e hermenêutico de compreensão:
a psicanálise existencial (SARTRE, 1945). Se, de fato, há de existir uma
compreensão do humano no mundo que não seja por vias causalistas;
que seja, portanto, via um acento ao indecifrável, ao mistério, à atitude
apurada de descrição, até a última potência, de um projeto de ser. Sartre
enxerga na psicanálise, o solo para redesenhar seu método a partir da
noção de liberdade e de finitude.
O surgimento da psicanálise existencial é a chave de compreensão
de uma clínica de inspiração sartriana, cujo duplo movimento (regres-
sivo e analítico sintético) reconhece essa realidade humana em situação,
ou melhor, enquanto “universal singular: totalizado e, por isso mesmo,
universalizado por sua época, ele a retotaliza em sua reprodução como
singularidade” (SARTRE, 2017, p. 3). Conforme observa-se, em primeiro
momento, essa psicanálise confronta paradigmas da psicanálise freudiana.
Posteriormente, Sartre propõe discussões a luz de uma razão dialética,
22
filiando-se via Henri Lefebrve, ao marxismo e organizando um método
progressivo-regressivo (Cf. SARTRE, 1960).
Com a pós-modernidade, porém, surgem novas demandas. Se em
meados do período entreguerras, o escândalo nauseante de uma existência
contingente, livre e de uma ética responsabilidade tirou a harmonia da
classe dirigente, hoje, a náusea acontece na liquefação das instituições
e nos outros modos de sofrer. Esse páthos ergue-se pelas 700.811 mortes
pela COVID-19, pelos/as desaparecidos/as da Ditadura Militar Brasileira,
pelos recentes atentados de atiradores nas escolas brasileiras, pelos movi-
mentos de extrema direta que defendem ideais neonazistas e tantas outras
expressões de uma crise da razão (e da subjetividade) (Cf. SILVA, 2023).
Este singelo trabalho se ergue, portanto, pela seguinte interrogação:
o que pode uma clínica de inspiração sartriana nas veredas da morte hoje?
Sem esgotar essa questão, aposta-se em uma chave de leitura introdutória
sobre Sartre como arcabouço para possíveis intervenções psicológicas.
O caminho metodológico é: a) descrever o que caracteriza a psicanálise
existencial de Sartre b) como o fenômeno da morte é descrito pelo filósofo
c) qual aporte clínico fundamental de um diálogo entre a metodologia e
a experiência da morte (ou o caráter de livre mortal).
A PSICANÁLISE EXISTENCIAL EM L’ÊTRE ET LE NÉANT
‘É esse meu objetivo: provar que todo homem é perfei-
tamente conhecível, contanto que se utilize o método
apropriado e que se disponha dos documentos necessá-
rios’. Dizia também: ‘Quando mostro como Flaubert não
se conhece e como, ao mesmo tempo, ele se compreende
admiravelmente, indico o que denomino o vivido, ou
seja, a vida em compreensão consigo mesmo, sem que
seja indicado um conhecimento, uma consciência tética’.
(A cerimônia do adeus, Beauvoir, 2016, p. 15
Na tradição fenomenológico-existencial, existe um profundo interesse
pela teoria psicológica em geral e, em particular, na psicanálise. Esse é o
ponto chave onde se encontra Sartre ao evocar que “essa psicanálise não
23
encontrou ainda seu Freud” (SARTRE, 1943, p. 620)
14
. Betty Cannon (1991)
é quem costura as diferenças e os possíveis diálogos na teoria sartriana
com as primeiras leituras de Freud, os seus comentadores ortodoxos, os
considerados Pós-Freud, Lacan e suas implicações na metapsicologia. Seu
primoroso e pioneiro ofício teórico surge em meio à crise dos modelos
psicoterapêuticos (BARATA, 2006).
Na psicanálise empírica, nota-se pelos comentários de Cannon
(1991, p. 8) um trato privilegiado com o passado: “apenas a psicanálise
pode fornecer a entrada no mundo da infância a qual é a pedra angu-
lar necessária para qualquer teoria das ciências sociais”. Trato esse que
encontra apoio em um determinismo psicológico, com ênfase no incons-
ciente e nos limites da compreensão do tempo
15
. Inicialmente, pode-se
mesmo tatear alguma síntese entre as teorias de Sartre e Freud. Cannon
(1991, p. 24) fornece esse diálogo:
Ambas as formas de psicanálise são do tipo herme-
nêuticas – que é, essa leitura do texto da vida em seu
contexto histórico na base de um subtexto no qual
explica o que está acontecendo. [...] Nenhuma das duas
admitem explicações ou realizações superficiais. Aqui,
contudo, as similaridades acabam.
Ambas recorrem a uma compreensão aprofundada dos sintomas
dos transtornos mentais; todo gesto para ambos é significante, muito
embora, é óbvio, que nem Sartre ou Freud apreendem o sujeito de maneira
privilegiada o contexto material em sobreposição a realidade humana.
Insiste-se, todavia, em uma existência de pontos divergentes que culminam
em uma clínica original, uma “clínica de inspiração sartriana” (CAMPOS;
BARATA, 2022, p. 142). ‘De inspiração’ para não se vincular a ecletismos
14 Vale destacar uma edição especial da revista Les Temps Modernes de 2013, chamado Sartre avec Freud, a
qual sua preocupação é explorar a relação ambígua entre a psicanálise empírica e uma psicanálise que
se ergue por um território ontofenomenológico após o ano de 1943.
15
Vale a pena conferir os desdobramentos da psicanálise em comparação com a fenomenologia, apresen-
tado por Sartre em Esquisse de 1939, no qual o surgimento de um inconsciente é, em síntese, um ponto
obscuro na consciência e indicativo de má-fé. (Cf. SARTRE, 1939). Em seguida em 1943, o capítulo
Mauvaise et Mensonge, no qual Sartre aprofunda essa discussão (Cf. SARTRE, 1943) e em entrevista (Cf.
SARTRE, 2006), no qual há a reafirmação de seu posicionamento mesmo após a escritura do roteiro
do filme Freud, Além da Alma.
24
e confundir com um conjunto de técnicas e habilidades terapêuticas
fundadas na transferência e resistência. Em outros termos, o locus dessa
práxis clínica centra-se em Sartre
Pela psicanálise empírica, o motor da vida psíquica é nomeado
pela libido; em Sartre, o motor da existência é sua pura indeterminação
ontológica, um nada originário: a liberdade (CANNON, 1991). A pedra
angular de sua psicanálise existencial é a própria liberdade que se encarna e
se anuncia na finitude humana. Conforme lê-se em Sartre (1943), anuncia-se
por não haver nada por detrás, tudo está em ato. Fazer-se finito implica
em marcar um mundo delineando o projeto existencial. Escolher, nesse
sentido, é afirmar algo e ao mesmo tempo negar; eleger tal ação e perder
outros possíveis (SARTRE, 1943).
A finitude assume aspectos relacionais com outrem beirando ideali-
zações (Em-si-Para-si) que mascaram a fragilidade da existência. Certamente,
a clínica sartriana não é de um niilismo passivo, pelo contrário, a fini-
tude revela-se na incerteza, no imprevisto, no rompimento intersubjetivo
que afeta a realidade humana e, que sem desculpas, vive tal facticidade e
está condenada a refazer-se diante de seu sofrimento existencial em um
recorte temporal (GONÇALVES, 2023).
Do começo ao fim, o esforço de Sartre (1943) consiste em descrever
apuradamente o humano em situação e fora de escopos deterministas,
então, há uma crise na acepção de um inconsciente. Barata (2006) retoma
essa discussão. O inconsciente e a censura freudiana não são frutos de uma
ausência da consciência, e sim uma estrutura da vida psíquica anterior a
ela ao qual não há propriamente nenhum controle. O inconsciente, em
outros termos, determina o consciente. Isto posto, o inconsciente revela
a opacidade da psique, o que, para Sartre, é concebido de outra maneira,
ou seja, por uma consciência brotada, translúcida (BARATA, 2006). Em
seu programa existencial de compreender a realidade humana, o incons-
ciente é sinônimo de má-fé (SARTRE, 1943), inviabilizando permitir
uma mentira delegada a si próprio, um Outro residente na consciência.
O modo de descrever a atividade da consciência é pela lógica
da intencionalidade:
O psicanalista não promoveria um processo de cons-
ciencialização de algo que permanece numa instância
inconsciente, mas tão-só uma tematização reflexiva do
vivido não-temático, ou seja, uma explicitação do que
25
permanecia implícito, mas vivido por uma consciência
transparente a si mesma (BARATA, 2006, p. 43).
A matéria bruta do psicoterapeuta, é sem dúvidas, o vivido (BOCCA,
2021). Trata-se de um contato singelo, constituidor de sentido, pelo modo
originário do ser-no-mundo. É por ele que acontece o círculo de ipseidade
da consciência: a partir do movimento irrefletido que desliza ao mundo, é
possível ter consciência de ser consciência de algo, isto é, um movimento
refletido. Esse movimento é flagrante de uma ação passada a luz de um
presente fugidiço. Alcançar uma outra consciência, a reflexiva, trata-se
de um árduo trabalho, uma vez que ela coloca a consciência refletida e
irrefletida no instante de um acontecimento (GONÇALVES, 2023).
De que modo ocorre essa investigação? por vias hermenêuticas,
ou seja, por uma descrição que compreende o sujeito enquanto vir a ser,
em uma temporalidade viva e por vias heurísticas, isto é, por aspectos da
concretude de sua existência (aspecto material, histórico, geográfico, social
etc.) (SARTRE, 1943). Tal esforço dirige-se ao encontro de um projeto –
que também não é último ou determinado.
Esse projeto é construído em tensão com a condição da realidade
humana em ser-para-outrem, ou seja, em conflito originário entre cons-
ciências se transfigura em uma intersubjetividade de ser a ser. De que
modo isso afeta uma clínica de inspiração sartriana? Em dois movimentos:
1) no apelo à liberdade do cliente em refazer-se das imagens transpostas
de outrem a ele ao modo de uma essência e 2) em uma horizontalidade
entre cliente-psicoterapeuta. Eis o modo como ressoam as diferenças no
próprio ofício da clínica de inspiração sartriana:
A prática terapêutica construída na metateoria de Sartre,
embora possa incluir insights úteis da psicanálise freu-
diana, se diferirá significativamente em sua abordagem
com os clientes como seres conscientes na experiência
na qual eles irão reflexivamente precisar confrontar a
fim de revisar seu projeto de ser fundamental (CAN-
NON, 1991, p. 19)
Por basear-se em um confronto reflexivo, essa clínica parte de uma
teoria da ação (CAMPOS, BARATA, 2022) ou de uma ética do porvir
26
(SILVA, 2017). Ambas essas designações encontram sua base em um duplo
movimento anteriormente mencionado:
E a compreensão se faz em dois sentidos inversos: por
uma psicanálise regressiva, remontando o ato consi-
derado até a minha possibilidade última – por uma
progressão sintética dessa possibilidade última em des-
cer até o ato considerado e agarrar sua integração de
sua forma total. Essa forma, que nós nomeamos nossa
possibilidade última, não é um possível entre outros –
quanto seja, como quer Heidegger, a possibilidade de
morrer ou de não mais realizar a presença do mundo.
Toda possibilidade singular, contudo, se articula em
uma totalidade (SARTRE, 1943, p. 504).
Posteriormente, ganha outros termos em Questions de méthode:
Ele (o humano) tem que conceber a possibilidade como
duplamente determinada: de uma parte, está no coração
mesmo da ação singular, a presença do futuro como
falta e que revela a realidade por essa ausência. De
outra parte, é uma revelação real e permanente que se
mantém e se transforma constantemente na coletividade
(SARTRE, 1960, p. 65).
Verifica-se um alargamento metodológico em relação à realidade
humana. Nele, o método da psicanálise existencial abarca este movimento
regressivo, e por conseguinte, o progressivo. Movimento já antevisto na
discussão sobre a temporalidade em L’être et le néant, a qual os três ek-stases
temporais se expressam na clínica sem uma prevalência nem ao passado,
presente ou futuro. Ao evocar a síntese, o psicoterapeuta eleva o cliente
enquanto devir. Esse posicionamento não é meramente elucidativo, mas,
é a chave da práxis. Não se trata de predizer o futuro de alguém; trata-se
de abrir o horizonte de seus possíveis, de movimentação da falta origi-
nária em direção ao desejo. Esse desejo, evidentemente, não está atrelado
à uma força psicobiológica; mas sobretudo a reverberação da liberdade
em fazer-se liberdade. De que modo observamos essa temporalidade no
relato do cliente? Em três momentos:
27
(1) Um momento de descrição fenomenológica, ou
observação informada pela experiência ou teoria em geral
(2) um momento regressivo-analítico – uma regressão
à história pregressa do indivíduo ou grupo em seus
estágios anteriores (3) um momento progressivo-sinté-
tico o qual movimenta-se do passado ao presente na
tentativa de redescobrir o presente em todos as suas
complexidades particulares (CANNON, 1991, p. 22).
Castro (2022) encorpa nossa acepção de clínica aliado à ética, des-
tacada na conclusão da obra de 1943 e até então, um projeto inconcluso
de Sartre. Essa ética encontra apoio em obras póstumas como Cahiers pour
une morale de 1983, em Morale et Histoire de 2005 e em Les racines de l’éthique
de 2015. Magistralmente, Castro (2022) escreve a ética sartriana enquanto
corolário da crise da metafísica. Em outras palavras, o existencialismo se
instala no interior de uma ética enquanto expressão radical da liberdade.
Portanto, é uma ética desvencilhada de tábua de valores e aberta para um
caminho para a invenção da existência, ou conforme aponta Luciano Silva
(2017) uma ética do porvir que impera uma libertação entre a tensão com
o que está de fora (as fases do desenvolvimento, a psicologia, a medicina,
a pedagogia, a linguagem) com aquilo que está dentro (a experiência),
ou, ainda, “[...] num agora que se projeta até os confins do futuro e que
considera todas as sombras do passado” (SILVA, 2017, p. 129).
A ética sartriana, que compõe corpus de uma clínica, evoca uma
libertação em diversos níveis como a artística, a social e a metafísica
(CASTRO, 2022), processo este perpetuamente inacabado. O esforço da
ética sartriana afeta a clínica ao trazer os aspectos da experiência vivida
(irrefletido) para o plano reflexivo (CANNON, 1991), uma vez que não
há o conceito de censura a ser superado e sim, de certa alienação, de um
ter-de-ser (SARTRE, 1943). Em termos de Cannon (1991, p. 52):
[...] ela [a filosofia sartriana] permite a compreensão
dos distúrbios psicológicos como variações do próprio
dilema humana - que é, como manifestações de várias
formas nas quais a consciência encontra o mundo mate-
rial, outrem e a si de uma análise reflexiva e também
28
lida com ou tenta lidar com o escapar da angústia da
responsabilidade livre.
Ora, a clínica de inspiração sartriana é o éthos para situar a fragili-
dade humana e, valorizar uma “virgindade prévia” (CHATEAU, 2021, p.
71), permitindo uma reinvenção de si próprio em situação. Certamente,
um nada que é abertura de possibilidades e ao mesmo tempo, de respon-
sabilidades. Schneider (2017) encorpa essa discussão, adensando o modo
como a pós-modernidade afeta o vivido, ou seja, o acirramento das desi-
gualdades sociais, a aproximação do tempo-espaço via as mídias sociais e,
paradoxalmente, o distanciamento de uma comunhão psicológica. Ora,
tal noção de pós-modernidade alinha novos modos de produção, novos
modos de desejo e, sem dúvidas, novos modos de sofrimento.
Se por um lado, diluiu-se as distâncias geográficas pelo avanço
tecnológico, vive-se uma crise da razão imperante nos princípios neoli-
berais, fascistas e neonazistas que escancaradamente presentificam-se em
todos os espaços. Não se trata de um mal secreto, para parodiar Waly
Salomão e Jads Silva; trata-se um mal intrinsecamente humano e, sobre-
tudo, de uma responsabilidade ética (SARTRE, 1970). É pela revolta, via
o apelo reflexivo à liberdade de outrem e de si próprio que podemos
promover uma ética da liberdade.
Mesmo que os pilares modernos se tenham implodido e o sujeito
“de carne e osso” sejam ecos de um outro recorte da história, o estatuto
da psicanálise existencial encontram-se vibrantes. Em tempos de caos,
nunca esteve tão latente o “acento ao indecifrável” (SARTRE, 1943, p.
604). Veja-se, a seguir, como a finitude e a morte aparecem em Sartre.
A MORTE, UMA VEREDA?
Quem poderá fazer aquele amor morrer.
Se o amor é como um grão.
Morre, nasce, trigo.
Vive, morre, pão.
(Gilberto Gil – Drão)
29
Descrever a morte em Sartre é desatar alguns nós da incompreen-
são. Diferente de Gabriel Marcel (a morte do ser amado), de Heidegger
(ser-para-a-morte), da tradição realista ou idealista (Rilke), Sartre concebe
a morte enquanto facticidade. Isso implica em dois sentidos: 1) a morte
é um acontecimento que liga o nada ao ser por encerrar a existência e
2) é o aglutinado a uma série de acontecimentos. Se a noção de projeto
eleva a realidade humana a um devir, à uma espera de si própria, a morte
coloca um ponto final nessa espera. Ao modo de uma lâmina afiada, ela
corta o vínculo entre o ser e o vir a ser (SARTRE, 1943).
Nesse horizonte, a morte é o acontecimento que instaura uma crise
na noção de responsabilidade, pois na medida em que toda ação realizada
no mundo depende de um futuro, essa ação se torna um prelúdio da incer-
teza do porvir. A ação anterior à morte é a finitude. A morte, a rigor, não
é uma condição fáctica: ela é um evento inelutável, inexplicável e por sua
vez, absurdo. Em visto disso, cabe desenvolver sobre esses três adjetivos:
1. É inelutável em razão do humano não conseguir barganhar a
morte com Deus ou com um elixir da eternidade. Esse primeiro
aspecto garante à realidade humana aquilo que Sartre evoca de
angústia: mesmo que a morte exista em qualquer instante da
existência, o humano ainda é livre para inventariar-se apesar de
seu acontecimento. Como se nota nas Les structures immédiates du
pour-soi, não há um espaço para a morte na estrutura da consciên-
cia do mesmo que o Dasein em Heidegger, que assume a morte
enquanto abertura de sentido.
2. É inexplicável da morte pela sua ocorrência tanto na mais tenra
infância até a idade mais longeva. Tentar exprimir em palavras
(ou em diagnósticos) sobre o seu surgimento é a marca do nosso
fracasso, afinal, trata-se de uma experiência última. Quem morre
não retorna para descrever esse vivido. Quem está ao lado de
quem morreu não sabe na carne o que implica morrer concre-
tamente. Mesmo quem está com a morte sob decreto de uma
doença que ameaça progressivamente o curso da vida, sob con-
denação à morte, não se sabe como será morrer. Trata-se de uma
experiência deslizante, escorregadia e – porque não – viscosa.
30
3. O absurdo é decifrado conjuntamente com Camus em Le mythe
de Sysiphe (1942). Trata-se do desabamento de uma existência que
segue um papel a ser desempenhado, atualizada todos os dias,
sempre igual, no mesmo lugar, nas mesmas relações, nos mesmos
afetos. O mundo, e por sua vez a morte, retorna a sua qualidade
de ser aquilo que escapa, isto é, denso, irredutível ao humano já
que suas relações deixam de ter a qualidade de serem conhecidas.
A morte, nesse ínterim, é um acontecimento absurdo: ela não
baliza a existência nos trilhos da autenticidade, tampouco na
da inautenticidade. A morte não é limite para a liberdade; ela
é um fim ao qual deve-se considerar, sem esperar, no próprio
movimento da existência.
O luto aparece pela face do ser-para-outrem enquanto realidade
humana, ainda existente, que pode – ou não – contemplar a ausência-pre-
sença de outrem em seu projeto. Trata-se de uma implicação ética: não há
parâmetros que balizam características normais ou patológicas, bem como
uma duração ao que é irrefletido, emocional ou mágico, para usar um
termo caro ao Esboço (1939). Nesse horizonte, a psicologia sim, tem por
dever, analisar; mas o que a clínica de inspiração sartriana propõe é outro
movimento, o de permitir a liberdade de outrem a sofrer do modo que sua
carne permite, não a luz de modelos, de etapas ou de períodos de adaptação.
Ao prezar que o sofrimento seja vivido livremente na carne da
existência, ultrapassa-se o lema da necessidade de ressignificar a morte,
processo esse tão vinculado às psicoterapias fenomenológico-existenciais.
Ora, a ressignificação aqui é uma brecha para doar essência a outrem,
amortecendo sua liberdade infernal. Em outras palavras, é uma convin-
cente fantasia de psicólogo empático, escondendo uma radical atitude de
má-fé. Como é sedutor a figura do psicoterapeuta que costura as feridas
da finitude com seu ofício quase milagroso de curar! Ou melhor, de
interceder, de ser o detentor de um saber! Evidentemente, não se trata de
curar, nem tampouco de explicar.
Se o humano se faz liberdade, a clínica de inspiração sartriana tem
como por desafiante objetivo, provocar, acolher e impulsionar sua ação
e sua responsabilidade. Conforme defende Silva (2017, p. 129-130):
31
Não há um modelo, e tudo aquilo que um homem
afirmar em seu ser (não se trata do mero discurso, mas
de sua existência) será o modelo de homem que ele traz
ao mundo, será fruto de sua liberdade; e se ele encontra
modelos prontos e diz sim (com sua existência) a tais
modelos, ele estará livremente assumindo um modo
de ser que lhe vem de fora, em seu ser-para-outro. Seu
ser será sua responsabilidade, e recorrer a qualquer
força determinante (interna ou externa) será má-fé: o
existencialismo é austero.
O mote da ressignificação esbarra o da anulação de outros modos
de enlutar-se que se inscrevem no texto invisível da sociedade, na cegueira
promovida pelas bolhas. Mortes que são catalogadas enquanto transcendên-
cias-transcendidas pelas estatísticas
16
. Em outros termos, ressignificar pode
implicar no silenciamento da perda e não, elevá-la a uma perda política, no
centro da pólis. De que modo, então, fazer-se psicoterapeuta? Por uma relação
dialética da generosidade. Avista-se, portanto, algumas considerações finais.
CONCLUSÃO
ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES E PISTAS SOBRE A
DIALÉTICA DA GENEROSIDADE
Como beber dessa bebida amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito,
Silêncio na cidade não se escuta.
De que me vale ser lho da santa?
Melhor seria ser lho da outra,
Outra realidade menos morta,
Tanta mentira, tanta força bruta.
(Gilberto Gil e Chico Buarque - Cálice)
Força bruta, labuta, peito e boca calada, realidade opressora. Todas
essas vivências encontram sentido quando o psicoterapeuta enquanto
16 Para essa discussão, conferir o trabalho de: MATTUELLA, L. Psicopatologia, cinismo e necropolítica.
In: CASTRO, F. C. L.; ROSA, B. J. (Org.). Filosoa e Psicanálise: psicopolítica e as patologias con-
temporâneas. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020, p. 29-38.
32
liberdade, apela a liberdade de outrem a revoltar-se, a agir, a acolher sua
fragilidade. Até porque, a clínica de inspiração sartriana instaura-se ao modo
de um éthos para os modos de sofrer hoje; não para apaziguar a dor, mas
para palavreá-la, gerar curto-circuito, inquietar a ação. Em outras palavras,
o psicoterapeuta não é quem afasta o vinho tinto de sangue; mas quem
questiona como, para quê, de onde, qual é o sentido desse cálice (cale-se).
A liberdade é o ponto de apoio que se redesenha na condição
humana de sermos finitos. Em termos de relação psicoterapêutica diante
da morte, a liberdade se mostra pela generosidade. Aos olhos de Castro
(2022), deve ser pela generosidade o primeiro passo a ser dado para romper
com o círculo vicioso da má-fé ou do nó górdio das relações sadoma-
soquistas. Sartre (1948) lança mão da generosidade enquanto fulcro da
díade prosador-leitor. Ora, ninguém força o leitor a confiar no autor,
a não ser a sua própria exigência e sua própria decisão livre. O escritor
apela via o signo (real, a palavra) a apreender o que é escrito e ir além
do significado (imaginante); o leitor, por sua vez, desvenda um mundo
ao mesmo tempo em que desvenda a si próprio. Eis, por excelência, as
entranhas da relação terapêutica.
Já indo para as últimas palavras deste trabalho introdutório: para
indagar sobre aquilo que se viveu, é urgente permitir afetar-se, em outros
termos, padecer até a última potência de sua experiência vivida. Não se
apela uma dor do mundo das ideias, mas uma dor encarnada que per-
turba o corpo, o outro, o lugar, sob o crivo de uma temporalidade viva.
Por fim, como se não fosse desafiador o suficiente, todo esse processo
desemboca na responsabilidade. A psicanálise existencial se dirige a uma
ética da liberdade. O psicoterapeuta é responsável pelas intervenções que
inventa para outrem no instante em que está na relação; mas, sobretudo,
o paciente é responsável pelo modo que reflete sobre suas dores e o modo
que se refaz delas. A dor, vale lembrar, é vivida enquanto ser-no-mundo.
Não há outra realidade, senão essa. Se essa realidade concreta lhe é insu-
portável, cabe, portanto, decidir o que inventar dela. Claro, nem sempre
a sintaxe acompanha esse processo de libertação. A clínica de inspiração
sartriana, para além de um éthos da generosidade, é um éthos das ações que
ainda estão porvir, ou melhor, dos silêncios, ainda, imaculados.
33
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35
A MORTE COMO UM ESTADO DE NÃO-SER
Viviana Carola Velasco Martinez17
Luisa Gumiero Dias Gomes18
INTRODUÇÃO
A partir da experiência de anos atendendo pacientes em fase final
de vida em hospital, percebemos que, de alguma forma, o anúncio da
morte próxima levará a um processo de luto pelo próprio fim da vida
e luto pelas perdas ocasionadas pela doença. Os pacientes, ao saberem
de seu prognóstico buscavam dar novos significados para suas vidas, e,
quando conseguiam realizar o proposto, parece que justamente se findava
o seu ciclo de vida, com a morte de fato, um projeto transferencial se
concretizando como última vontade.
Assim, supomos que o diagnóstico de uma doença oncológica sem
cura, funcionaria como um assistente de tradução para a realização de um
Projeto Transferencial do paciente. Para tanto, baseamos nossa pesquisa
nos fundamentos pressupostos pela Teoria da Sedução Generalizada
(TSG), de Jean Laplanche (1992a) e no conceito de Projeto Transferencial
proposto por Mello Neto (2012; 2016) e Martinez (2016).
Pensamos que esse contexto da terminalidade reedita a condição
da SAF - Situação Antropológica Fundamental, ou situação originária,
proposta por Laplanche (1992). Essa se refere ao desamparo da criança
diante da sexualidade recalcada do adulto que impregna todas as suas
ações de cuidado dirigida a ela. Isso é enigmático, tanto para a criança
que é a receptora de tais mensagens e não tem condições de fazer uma
metabolização de tal excesso, quanto para o próprio adulto, pois se trata
do seu inconsciente, a sedução para Laplanche.
Fazemos um paralelo para a relação do paciente com seu cuidador,
considerando que o paciente se encontra numa posição de passividade
– igual à da criança na SAF – dependendo totalmente dos cuidados do
17 Doutorado em Psicologia (PUC - SP). Docente (UEM). CV: http://lattes.cnpq.br/3141306816608544
18 Mestrado em Psicologia (UEM). Psicóloga hospitalar no Hospital Paraná (Maringá - PR).
CV: http://lattes.cnpq.br/4227461960578375
36
outro, o que instala uma relação assimétrica. E isto terá importantes
consequências para o desenrolar do projeto transferencial do paciente.
O conceito de Projeto Transferencial surgiu de inquietações de
Mello Neto (2012; 2016), advindas de sua experiência clínica e da pesquisa
sistemática em psicanálise. Segundo o autor, muitos pacientes chegavam
até a psicoterapia com um projeto previamente elaborado como, se casar,
ter filhos, resolver a relação com os pais, etc., mas também com um pro-
jeto inconsciente que, aos poucos, tomaria forma dentro da transferência
apontando os rumos da análise. É nesse contexto que o analista/psicote-
rapeuta é convidado a participar desse projeto, assumindo o papel que o
paciente lhe atribui dentro da fantasmática transferencial. Ocupar esses
papéis seria uma condição para que fosse possível prosseguir com a aná-
lise, podendo o analista/psicoterapeuta ser ator ou testemunha dentro do
projeto transferencial, que vai se definindo (MELLO NETO, 2012; 2016).
O Projeto Transferencial do paciente estaria em torno daquilo
definido por ele para sua morte, todos os envolvidos com os cuidados no
ambiente hospitalar, incluindo os familiares, são convocados a participar
transferencialmente de alguma forma
UM RETORNO AO ESTADO DE NÃO SER
Jose tinha 25 anos e estava tratando há cerca de 2 meses um câncer
de mediastino, quando internou pela primeira vez. Ele havia começado
o tratamento de quimioterapia de forma ambulatorial, e o motivo de
sua hospitalização foram os efeitos colaterais do tratamento. Quando
já estava mais debilitado fisicamente, suas quimioterapias passam a ser
hospitalizado. Ao receber o diagnóstico de câncer, sua doença estava no
começo e ele tinha perspectiva de sucesso no tratamento e permanecer
anos em remissão. Porém, a doença foi progredindo levando-o à morte.
Os atendimentos psicológicos hospitalares a José se deram nas inter-
nações hospitalares. Foram quatro hospitalizações durante cinco meses,
sendo realizado um total de 21 atendimentos. O pedido de avaliação
psicológica foi da equipe de enfermagem por uma preocupação com o
fato do paciente ser jovem e permanecer quase o tempo todo dormindo.
37
Desde o primeiro atendimento tanto o paciente como a mãe foram
receptivos à minha abordagem. O paciente pedia que a mãe participasse
dos atendimentos, e por algumas vezes eu pedi que ficássemos sozinhos,
porém, quando a mãe saia do quarto em pouco tempo ela retornava. A
mãe, era sempre muito comunicativa e mesmo quando eu me dirigia ao
paciente era ela quem respondia, bem como quando ele começava a falar
alguma coisa, ela completava. Algumas vezes sinalizei que eu precisava
ouvir de José o que ele pensava e sentia, mas a mãe no primeiro momento
respeitava e no atendimento seguinte não, o paciente não a repreendia.
HISTÓRIA PESSOAL E DA DOENÇA
José era filho único e seus pais haviam se separado quando ele
era criança. Ele relatou que desde a separação de seus pais a sua mãe
passou a lhe atribuir o lugar do homem da casa, ela não teve outros
relacionamentos amorosos após a separação. O motivo da separação foi
uma traição de seu pai, que sua mãe descobriu quando muitas pessoas
da cidade já sabiam e comentavam. Nos atendimentos com o paciente,
quando eu perguntava sobre o seu pai e a relação entre eles, e a relação
entre seu pai e sua mãe, era notável como José mudava o tom de voz,
falando mais baixo, se limitando a responder o que lhe era perguntado,
demonstrava muita dificuldade em desenvolver sobre esse assunto. Em um
dos atendimentos, quando eu perguntei como ele se sentia em relação ao
pai, principalmente pelo fato do pai não lhe visitar nas internações, ele
respondeu que sentia mágoa do pai por ter traído a mãe, que não aceitava
a traição e preferia mantê-lo distante.
Ele era contador de um escritório de contabilidade na sua cidade.
Quando iniciou no escritório precisou organizar toda a empresa, o que,
segundo ele, lhe deu muito trabalho, porque se considerava uma pessoa
muito empenhada e perfeccionista e achava que o escritório estava muito
bagunçado. Algumas vezes, nos atendimentos, sua mãe associou o estresse
ocasionado pelo trabalho como desencadeador do câncer, alegando que
o trabalho exigia muito do paciente, muitas horas por dia e o estressava
demais, contudo, José dizia não concordar com essa hipótese.
38
O diagnóstico oncológico foi recebido em um momento muito
peculiar de sua vida, na ocasião, fazia cinco meses que tinha pedido a
namorada em casamento, e ela aceitou, noivando-se. Quando começaram a
organizar os preparativos para o casamento, três meses depois do noivado,
o paciente começou a apresentar os primeiros sintomas da doença: tosse
e emagrecimento, que o levaram a procurar os médicos. E, por fim a essa
sequência, na semana em que o paciente estava realizando os exames de
investigação diagnóstica, a mãe dele foi demitida, sem motivo aparente,
de um emprego que ela tinha há mais de 10 anos.
Com o início dos sintomas, José começou a investigar, porém,
demorou quase dois meses até ter um diagnóstico definitivo. Essa demora
foi porque, a princípio, os médicos acreditavam ser câncer de testículo,
contudo o diagnóstico que ele recebeu foi de câncer de mediastino cha-
mado Tumor de Células Germinativas Primário de Mediastino
19
. Segundo
Lucas, Rodrigues, Dominguez, Lino, Ramos, Martins, & Abreu (2001)
esse tipo de tumor, das Células Germinativas Primário de Mediastino,
é um tipo raro e corresponde de 10 a 20% das neoplasias de medias-
tino. Por ser pouco frequente e raro é de difícil diagnóstico tanto da
parte clínica como por exames de imagem, ressonâncias magnéticas e
tomografias (LUCAS et al, 2001).
Os principais sintomas dos Tumores de Células Germinativas
Primário de Mediastino deste tipo de tumor em específico são queixas
gerais como febre, perda de peso, anorexia, sudorese e presença de massa
no mediastino, (LUCAS et al, 2001), e ainda, segundo os autores, é um
tipo de câncer potencialmente curável quando descoberto em baixo grau
de estadiamento e tratado, como no caso de José.
Com relação ao tratamento quimioterápico, o paciente mostrava-
-se sempre otimista e esperançoso, porém apresentava dificuldades em
aceitar a alopecia - queda de cabelo - e por isso usava sempre um chapéu.
Ainda sobre o impacto do tratamento, durante um dos atendimentos
exploramos a relação dele com a noiva e, José disse que o que mais o
19 Um tumor presente no mediastino, que é uma das cavidades da região torácica, localizada entre os
pulmões, abaixo do diafragma.
39
deixava preocupado era a sua infertilidade, pois as medicações quimiote-
rápicas o tinha deixado estéril.
Em todas as internações, o paciente não se queixava de algum
mal-estar que estivesse sentindo ou percebido, e não demonstrava revolta
frente ao seu diagnóstico. Parecia estar passivo frente à situação, como se
de alguma forma a aceitasse sem questioná-la. Esse fato foi confirmado
em seus últimos dias de vida, quando José ficou apático e catatônico,
também em decorrência das metástases cerebrais.
A mãe de José descrevia o filho como uma pessoa carinhosa,
paciente e muito religiosa. Contou que ele estudou na mesma escola
onde ela trabalhou como secretária. Ela atribuía um significado bom
ao desemprego, dizia que assim tinha tempo disponível para se dedicar
exclusivamente aos cuidados do filho.
José namorou por 5 anos uma moça da mesma igreja e de família
conhecida na cidade, e os dois estavam noivos quando ele recebeu o
diagnóstico oncológico. No início do namoro a mãe não era favorável a
união e acreditava que o namoro deles não daria certo. Ela contava nos
atendimentos que, depois do início da quimioterapia do filho, a noiva
deixou de frequentar a sua casa e que os dois namoravam pela janela.
Justificava dizendo que ao fazer as quimioterapias a imunidade de José
diminuía – fato esperado em um tratamento oncológico quimioterápico
- e com isso tinha recomendação médica para evitar contato com outras
pessoas. José não recebia visitas, tudo era controlado pela mãe a fim de
evitar que o filho contraísse um vírus ou uma bactéria. Também, segundo a
mãe, a noiva não demonstrava carinho por seu filho e nem se aproximava
fisicamente quando o visitava.
Em todas as internações a mãe relutava em ir para casa, e a revezar
com outros familiares ou com a noiva do paciente. Ela acreditava que
José não estava recebendo os cuidados adequados e que a médica não
tinha proposto o melhor tratamento para ele. Inclusive houve uma troca
de oncologista no meio do tratamento.
Até a evolução e piora do paciente com internação na UTI, a
mãe parecia relutar em aceitar e acreditar na hipótese de morte e na
irreversibilidade do quadro de terminalidade. Por mais que os médicos
40
lhe falassem que a situação clínica de José era irreversível e que a cada
dia ele estava pior, ela continuava a falar que ele estava bem, que logo
retornaria a quimioterapia e que sairia do hospital. Parecia que a mãe
realmente não conseguia assimilar que o filho estava morrendo mesmo
vendo isso com seus próprios olhos, vendo sua respiração piorar e ele
precisar de aparelhos para ajudá-lo, vendo suas extremidades ficarem
frias e de coloração arroxeada, vendo sua pele perder a viscosidade pela
diminuição da circulação sanguínea e vendo a disfunção dos órgãos vitais
(cérebro, coração, pulmões e rins).
Quando José estava muito mal, há sete dias internado na Unidade
de Tratamento Intensivo (UTI), sendo utilizados nele recursos invasivos
e que buscavam o prolongamento da vida como drogas vasodilatado-
ras, respirador artificial, nutrição por sonda, e já com aspecto mori-
bundo, edemaciado e cianótico, foi o único dia em que sua mãe faltou
a visita diária da UTI, pois ela não saia do hospital. Curiosamente foi
neste dia que o paciente morreu.
O CAMINHO PERCORRIDO PARA O NÃO SER
Em uma das internações, durante um atendimento, a mãe do paciente
saiu do quarto para ir à missa deixando-nos sozinhos. Naquele momento
José me falou da noiva e das restrições que a mãe havia imposto diante
das orientações médicas, de não poder tocá-la e apenas vê-la de longe, pela
janela de seu quarto e dela não conseguir revezar com a mãe no hospital.
Ele dizia sentir falta da noiva, mas que também entendia os cuidados que
a mãe tinha com ele e a importância das restrições naquele momento de
tratamento quimioterápico. José parecia dividido entre seus sentimentos
pela noiva e pela mãe, porém quando eu pontuei a importância de ele
conversar com a mãe sobre suas angústias ele recuou dizendo que não
precisava conversar com a mãe pois entendia as preocupações dela.
Após realizar uma das quimioterapias, internado, José passou muito
mal, ficou desmaiado no quarto e precisou ser transferido para a UTI
pela primeira vez, permanecendo lá por 3 dias. Em sua chegada o novo
setor parecia calmo e se emocionou falando das pessoas que estavam
torcendo por ele, mãe, noiva, amigos, pessoas da igreja. Nesse momento
41
ele demonstrou mais ainda sua fé e esperança em ficar bem e durante a
visita da UTI recebeu sua mãe e sua noiva.
Uma ressalva é importante, na alta da UTI, na ocasião a médica que
o acompanhava, uma nova oncologista, cogitou mantê-lo na UTI porque lá
não ficava acompanhante (uma restrição do próprio hospital) e com isso,
José poderia ficar longe da mãe que o sufocava, porém, o paciente insistiu
em voltar para a enfermaria. Esse adendo nos faz pensar que, de alguma,
forma a médica percebeu algo na relação entre eles, talvez até o projeto
transferencial dele, e isso a incomoda de tal maneira que pensa em deixá-lo
em um setor crítico como uma forma de ajudá-lo a se livrar da mãe, mas
talvez ela demorou a perceber que o paciente não conseguia fazer isso.
Na última internação, José voltou ao hospital sonolento e pros-
trado. Em uma oportunidade, consegui conversar com a mãe sozinha e
perceber a dificuldade dela em compreender que o quadro de filho estava
se agravando, negava que a prostração e a sonolência estivessem relacio-
nadas com a metástase cerebral, e ainda mantinha muita esperança de
que uma quimioterapia poderia curar o filho. Dois dias depois da última
quimioterapia ele começou a apresentar confusão mental piorando de tal
forma que já não respondia a estímulos. Sendo assim, Jose foi transferido
para a UTI novamente. Acompanhei a transferência e fiquei com a mãe
até que ela pudesse entrar para ver o filho, ela chorava muito e não acre-
ditava que ele estava tão mal e que pudesse morrer logo, mesmo já não
conseguindo respirar sozinho.
José permaneceu na UTI até a sua morte, a sua mãe permanecia o
dia todo na recepção, esperando os dois horários de visita diários. Foi
justamente no dia que ela não foi ao hospital que José morreu. O contato
foi feito por telefone para que a família comparecesse no hospital e a
notícia dada pessoalmente, foram ao hospital a noiva e o pai.
CONSIDERAÇÕES
A RELAÇÃO ENTRE PACIENTE E MÃE E A CONSTRUÇÃO
DO PROJETO TRANSFERENCIAL FAMILIAR
A partir do caso exposto a ideia é discutir a construção de um
Projeto Transferencial, que, nos parece, não me envolver diretamente mas
acontecer entre o par mãe e filho, na relação de cuidados que se intensifica
42
com o adoecimento do paciente e que reatualiza a SAF. Compreendemos
a possibilidade de um Projeto Transferencial familiar ao considerarmos a
alteridade, a transferência não analítica, que existe nas relações, além da
sedução que perpassa as relações humanas. Segundo Melo Neto (2012/2016),
para a realização desse projeto, o projeto transferencial, é necessária uma
relação marcada pelo reconhecimento da alteridade.
Consideramos a situação peculiar do diagnóstico de um câncer
tratável, que se torna muito grave à medida que os medicamentos não
apresentam os resultados esperados para o tratamento, e que, finalmente
levam José à morte. A nossa suposição sobre a realização do Projeto
Transferencial se apresenta, e passa a fazer sentido a partir da análise dos
últimos dias de vida de José, de sua apatia, quiçá indiferença e uma morte
longe de todos, dentro de um setor fechado como é a UTI.
Assim, suspeitamos que o Projeto Transferencial é de José, ainda
que familiar, direcionado à sua mãe, mas que se completaria com o desli-
gamento da pulsão, num movimento contrário à tradução, diante de uma
situação sem saída, e não simplesmente passiva. Desta forma, referenciamos
a nossa análise, destacando três pontos decorrentes dos atendimentos: a
relação edípica entre mãe e filho; a própria doença e o desfecho do caso/
Projeto Transferencial/da vida, a morte do paciente.
No primeiro ponto percebemos indícios de um Complexo de
Édipos bem freudiano na relação de José com a sua mãe. Podemos citar
a separação dos pais quando José tinha nove anos; um pai ausente; uma
mãe que diz para o filho criança que ele será o homem da casa; a mágoa
de José com relação a traição, que também é a mágoa da mãe, como situa-
ções que nos fazem supor algo do edípico e também nos fazem pensar em
uma identificação de José com a mãe, compartilhando a mágoa pelo pai.
A relação entre o paciente e sua mãe também nos faz pensar na falta
da figura paterna, do terceiro. Parece, pelos relatos dos atendimentos, que
ela não quis mais saber do pai de José e nem se aproximou mesmo tendo
um filho em comum. Esse distanciamento pode ser entendido como uma
forma de castigo para esse marido traidor. Ao impedir o contato do pai
com o filho, a mãe estaria se vingando e também se apresentando como
única para José, que também se sentia traído pelo pai.
43
Podemos pensar que o olhar dessa mãe é endereçado unicamente a
esse filho raptando-o, isolando-o, e ele, por sua vez, realiza algumas tentati-
vas de sair do lugar do homem da casa, ousando ser o homem do trabalho
e o homem que namora. Aparentemente a vida de José era bastante comum,
talvez bastante saudável em relação a uma mãe que parecia demandar
dele fidelidade total. Contudo, o diagnóstico de câncer e o agravamento
do quadro clínico com a piora da doença potencialmente controlável,
algo inesperado, seriam precisamente os que levam José à escolha pela
passividade, ou seja, o disparador parece ter sido a aproximação da morte.
Diante de uma possível demanda, da mãe para José, de fidelidade
total, pensamos que esta também é uma demanda simbiótica, nem sem-
pre correspondida, pois, o filho estuda, namora e fica noivo e tem um
emprego. Mas a mãe, por vezes, também se apresenta de forma tóxica,
oferecendo-se o tempo todo como um tudo para seu filho, ocupando
todos os espaços possíveis (mãe, pai, amante - quando ela proíbe o contato
com a noiva- e acompanhante). Entretanto, a simbiose que propomos
aqui não diz respeito à psicose, mas sim à sedução na SAF, ao enigmá-
tico que envolve o nascimento de José, a vida e os cuidados do casal, a
relação e separação dos pais e a mãe dizendo que ele era o homem da
casa, de uma forma muito sedutora.
Ainda pensando na evolução clínica de sua doença, que no início
dos sintomas e diagnóstico era um câncer tratável e favorável, mas que
progride levando José a um estado de saúde cada vez pior, nos parece
que a medida que ele piora, ele decide se entregar à mãe, talvez por
estar mergulhado na SAF e não conseguir outra possibilidade tradutiva,
levando-o a passividade e a morte.
Também podemos pensar que, para suportar a separação dos pais e
o peso de ser designado pela mãe como o homem da casa, José encontrou
alguma solução na base de recalcamentos, soluções de compromissos e
sublimações, mecanismos de defesa sofisticados que se justificariam pela
presença do pai durante sua primeira infância, ocupando seu lugar junto
à mãe, na posição de terceiro na relação entre mãe e bebê. Na saída de
cena do pai, quando ele troca a mãe por outra mulher, configurando a
44
traição, é que supomos que a mãe, no desespero por perder o objeto de
amor e o amor do objeto, busca como reparação tomar o filho como tal.
Ainda podemos pensar que os investimentos libidinais do paciente
em sua vida pessoal (trabalho, namoro e até religião) serviram para driblar
as demandas incessantes dessa mãe. Voltando novamente para a fala de
ser o homem da casa, temos aqui uma mensagem enigmática comuni-
cada de mãe para filho, dotada do sexual, porém, junto a essa mensagem
são transmitidos assistente de tradução para proteger o filho da sedução
materna, no sentido laplancheano. São organizadoras as mensagens para
o filho ser companheiro e não trair a mãe e a respeitar, levando ele a se
comportar como o menino da mamãe e uma mamãe também maravilhosa.
E, assim, com a doença José põe em andamento o seu projeto trans-
ferencial, que conta com a participação da sua mãe, talvez um encontro
de projetos, mas esse não é o foco da pesquisa, e sim o paciente. Conta
também com a participação hospital em mudar a médica que estava cui-
dando do paciente, com a minha participação, em ouvir mais a mãe que
o próprio paciente e deixar a mãe presente nos atendimentos e com a da
noiva em assumir o papel de ser distante no adoecimento do paciente.
Outro elemento que nos remete às questões edípicas é a relação da
mãe com a noiva, e a própria relação dele com a noiva após o diagnóstico
de câncer. Há uma rivalidade implícita entre a mãe do paciente e a noiva,
que se apresenta, por exemplo quando a mãe disse que a noiva não era
muito carinhosa com o paciente e nem presente na vida dele, ou seja, era
menos importante que ela, ao passo que a mãe também não dava espaço
para a outra (noiva) ser presente na vida de José, e ele, por sua vez não
demonstrava que esse espaço lhe era importante.
A DOENÇA COMO CAMINHO: A REALIZAÇÃO DO
PROJETO TRANSFERENCIAL
Nos chama a atenção que quando Jose dá mais um passo em direção
a vida adulta, o noivado, e aqui considero como o primeiro passo trabalhar,
na sequência vem o diagnóstico de um câncer com rápida progressão.
O fato de estar doente e da piora progressiva de sua saúde, aproximan-
45
do-o da morte e reatualizando a SAF, o leva a uma relação dependente
e regredida pelos cuidados demandados, fazendo com que assistentes de
tradução colaborem para dar novos significados a esse momento. Faço
ressalva que a própria condição de doença já impossibilita e limita o
sujeito em vários sentidos, e estar doente coloca o sujeito em uma posição
de passividade, dependência e cuidado, podendo levar a comportamentos
de regressão e infantilização.
Pensando sobre o casamento, além da mudança de objeto de inves-
timento libidinal, ele evidencia a passagem de uma vida dependente
para uma vida independente, especialmente dos pais. Como já dizia
o conhecido e velho ditado popular: quem casa, quer casa, ou seja, no
casamento busca-se fundar uma nova família, com seus próprios costu-
mes, seu lugar, sua privacidade.
Com relação à regressão e os cuidados dispensados pela mãe de
José durante o tratamento é possível falarmos que ao estar doente e ins-
pirar tantos cuidados, metaforicamente o paciente volta a ser o bebê de
sua mãe, e em vários momentos das internações ela o chamava de bebê.
Um bebê em total dependência dos cuidados do adulto é também objeto
da sedução de quem cuida, objeto da sedução materna, que no caso do
paciente se traduz pela apatia e silêncio, com recalque. Esta situação, por
natureza assimétrica, afirma Laplanche (1998) se inspirando na teoria
de Ferenczi (Laplanche, 1992), é traumática por excelência, por ser a
sexualidade do adulto um excesso enigmático, porém quando tratamos
de uma reedição da SAF, o sujeito que é cuidado tem inconsciente e por
isso a possibilidade de realizar recalcamentos ou traduções, e de poder
escolher ser novamente o bebê.
José faz esse trabalho de tradução e recalcamento, de tal maneira
que se torna um bom menino: trabalha, vai para igreja, etc., contudo, a
doença, que é uma situação de profundo desamparo, reativa a situação
traumática onde a sedução materna ressurge sob pretexto do cuidado.
Diante disso, o paciente tem recursos e vai utilizá-los como adulto que
é, com um inconsciente, recalcando parte desta sedução e traduzindo,
junto a assistentes de tradução como as hospitalizações, por exemplo, os
cuidados recebidos pela mãe aceitando-os e incentivando-os.
46
Talvez o ápice da realização do projeto transferencial seria voltar
a ser o bebê, fantasiosamente protegido no útero materno, perto de um
estado de não existir, buscando uma satisfação compensatória diante
do desamparo de estar perto da morte real. Mas, como não se sentir
desamparado, dependente e triste se tudo indica que está se perdendo a
vida? Nos últimos dias, vimos ele se entregar a um estado catatônico e de
apatia, quase não se movia, não abria os olhos, não comia e nem falava
mais, o que nos leva a pensar num desligamento da pulsão. Provável
que, com isso, ele retirou-se do conflito e se recolheu narcisicamente
para morrer no dia em que a mãe não o visitou, talvez numa pena de
morte ou tentativa de libertação.
Interessante destacar a confusão com relação ao diagnóstico, pri-
meiro os médicos pensaram que seria um câncer de testículo, e também
temos a tristeza de José diante da esterilidade provocada pela medicação
quimioterápica. Os testículos são afetados na fantasia e na realidade de
José, que como os de um bebê, tornam-se imaturos, interrompendo a
produção hormonal masculina e a produção de esperma. O tempo todo
algo, que é do seu Projeto Transferencial, o leva a ser e estar no lugar do
bebê, nos levando a pensar que esse seria o seu projeto. Sendo um bebê,
e não mais um homem, os perigos fantasmáticos de sedução materna se
atenuam, pois, um bebê não pode namorar, noivar, casar e muito menos
gerar outro ser, nem ter sua libido dirigida a outro que não à mãe. Tamanha
transgressão só pode receber, como condenação, a pena máxima: a morte.
A FANTASIA DE RETORNO AO VENTRE MATERNO: O
PROJETO TRANSFERENCIAL EM SI
Pensando no evento da morte do paciente, temos que essa nos revela
e esclarece o Projeto Transferencial do paciente direcionado para sua mãe, a
quem ele deixa um legado. Segundo Melo Neto (2012, 2016a) é no a posteriori
que fica claro qual era o projeto, ainda que partes dele se revele aos poucos.
Considerando a morte de José, propriamente dita, nos parece que
de alguma forma inconsciente ele foi se matando aos poucos, não res-
pondendo ao tratamento quimioterápico e cada vez mais piorando com a
47
progressão de seu câncer. Interessante ressaltar que o médico que cuidava
do tratamento do paciente estava otimista a princípio, e não conseguia
explicar o porquê de as medicações não apresentarem o efeito esperado
sobre a doença e nem a rápida piora.
A morte que se mostra para José como o fim, é uma possibilidade de
romper, como sendo a única saída possível. Mas, essa ruptura só é possível
de se realizar na ausência da mãe, sozinho, em coma em decorrência das
lesões cerebrais, e assim o paciente morreu, dormindo. Podemos pensar
que a morte de José seria uma forma de se concretizar o projeto.
Percebemos que José foi atuando cada vez mais num lugar regre-
dido, ocupando os lugares que lhe foram exigidos, como: menino da
mamãe, bom menino, aquele que não reclama, que em sua boa relação
com a mãe, nunca se queixou dela ou de sua participação em seus cuida-
dos. Percebemos como o paciente passa a ser tratado enquanto bebê da
mãe, para além dos cuidados físicos que necessitava, assumindo de fato
esse lugar na reedição da SAF.
Nesse lugar de bebê, pretendido pela mãe, José só teria a ela e ela
somente poderia ter a ele, o que de alguma forma faria com que ele não
existisse como sujeito, apenas enquanto objeto. Pensando na gestação, o
bebê gerado por mais que é físico, real e visível no ultrassom e sentindo
no toque e nos chutes, é ao mesmo tempo uma construção de um ideal,
de uma ideia que começa na fantasia e no desejo. Portanto, fazendo uma
analogia, o morrer estaria como o nascer, voltar a ser lembranças, fantasias
e pertencer, de uma forma ideal – de ideias - unicamente à mãe, ou, de
ter pertencido exclusivamente a ela, e mais ninguém.
Como se em um grito José pudesse apresentar um desfecho de dei-
xar de ser objeto e poder ser ideia, supomos, portanto, o desligamento da
pulsão enquanto uma solução de não tradução, uma solução de recalque
como um único desfecho que o paciente encontrou enquanto possibilidade.
REFERÊNCIAS
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completas - Psicanálise IV São Paulo: Martins Fontes, 1992. pp. 97-106.
48
FREUD, S. (1915). O inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006b, vol. 14, p. 163-222.
GOMES, L. G. D. Doença oncológica terminal: a morte anunciada como assistente de tra-
dução e consecução do projeto transferencial do paciente. Dissertação publicada (Mestrado)
– Programa de Pós-Graduação em Psicologia –linha psicanálise e civilização, Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, 2020.
LAPLANCHE, J. O Inconsciente e o Id. São Paulo: Martins Fontes, 1992b.
LAPLANCHE, J. Três acepções da palavra ‘inconsciente’ no quadro da Teoria da Sedução
Generalizada. Revista de Psicanálise, 10(3), 403-418, 2003. Disponível em: https://pt.scribd.
com/document/156607887/Laplanche-Tres-acepcoes-da-palavra-inconsciente.
LUCAS, H. M; RODRIGUES, M de F.; DOMINGUEZ, L.; Lino, J. A. S.; RAMOS, S.; MAR-
TINS, A.P.; ABREU, M. C. de; Tumores de células germinativas primário do mediastino: a
propósito de um caso clínico. Revista Portuguesa de Pneumonologia, V. II (N. 2), 145-
151. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S087321591530831X
MARTÍNEZ, V. C. V. Projeto de Pesquisa: O projeto transferencial. Inédito, Leipsic, Depar-
tamento de Psicologia, UEM, Maringá, 2016.
MELLO NETO. G. A. R. Psicanálise: a clínica e o projeto transferencial. Psicologia em
Estudo, Maringá, 17(3), 499-505, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/
wfbRfCfkVqDhTfYNp3DnqpP/?format=pdf&lang=pt
MELLO NETO, G. A. R. Projeto transferencial ainda. Inédito. Leppsic, UEM, Departamento
de Psicologia, Maringá, 2016.
Nota: este capítulo é um recorte de um caso analisado e discutido na dissertação de mestrado
intitulada Doença oncológica terminal: a morte anunciada como assistente de tradução e
consecução do projeto transferencial do paciente, defendida em 2020.
49
COVID-19, A MORTE E O MANEJO DE CORPOS:
IMPACTOS PARA VIVOS E MORIBUNDOS NO
BRASIL PANDÊMICO
Anne Caroline Nava Lopes20
INTRODUÇÃO
Este capítulo é fruto da pesquisa desenvolvida pelo projeto intitu-
lado AS INTERFACES DA MORTE ENTRELAÇADAS COM A VIDA,
O LUTO E OS RITUAIS FÚNEBRES: os usos das imagens para a com-
preensão das conexões entre vivos e mortos nos Campo-santos da baixada
maranhense desenvolvido na UFMA. Os dados aqui apresentados são
recortes da pesquisa levantados no ápice da pandemia da Covid-19 no
Brasil e o tema do projeto foi reformulado e adaptado para investigações
mais específicas sobre a morte em tempos pandêmicos dado o relevo e
importância das transformações sobre a finitude em decorrência da doença.
De acordo com o Ministério da Saúde (MS), o Coronavírus é trans-
mitido de uma pessoa doente para outra, por contato próximo, por meio
do toque ou aperto de mão, além de gotículas de saliva, espirro, tosse e
contato com objetos ou superfícies contaminadas como celulares, mesas,
maçanetas, entre outras. O tempo médio entre o período de incubação e
a manifestação da doença é de 02 a 14 dias (BRASIL, 2020a).
Em março de 2020, com a disseminação deste vírus em diferentes
países, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o Coronavírus
como uma pandemia (BRASIL, 2020b). Desde o registro do primeiro caso
confirmado na cidade de Wuhan (China) no final de 2019, até o dia 24
de maio de 2020, já foram contabilizados um total de 5.367.675 casos
confirmados e 343.513 óbitos por COVID-19 no mundo.
Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (Minis-
tério da Saúde, 2020) o primeiro óbito por COVID-19 no Brasil ocorreu
em 12 de março de 2020, na cidade de São Paulo.
20
Doutora em Ciências Sociais (UFMA). Professora do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas
(UFMA). CV: http://lattes.cnpq.br/1255051441064378
50
Atualizando os números para o dia 31/12/2021, enquanto iniciava
a escrita desse artigo o Brasil registrou 85 mortes de COVID-19 nas suas
últimas 24 horas, chegando a um total de 619.109 óbitos – enquanto esse
artigo foi revisado, pela primeira vez para o envio – no dia de 03/01/2022
o número foi de 619.245 mortes desde o início da pandemia21. No men-
cionado período a média móvel de mortes chegou a 97.
Reitera-se a partir dos dados publicados pelo Consórcio de Veículos
da Imprensa Brasileira que no referido dia 03/01/2022 a média móvel
de mortes, que calcula a média diária a partir dos óbitos registrados nos
últimos sete dias, foi menor quando comparada com a média de 14 dias
antes, a variação então foi de -26% (GRIFO MEU), indicando tendência
de queda. Todavia, no contexto geral que se remete a meados de 2022
todos os sinais de alerta estavam acesos no país, pois a média móvel de
diagnósticos estava ainda em 8.38622 por dia e apontava crescimento
de 153%. Reitera-se que no pior momento da pandemia, a média ficou
acima de 77 mil casos diários.
É oportuno mencionar que nesta última revisão dos dados, preci-
samente, em 16 de maio de 2023 o número de mortos pela Covid-19 no
Brasil passou de 700 mil. Nesse aspecto, até o presente momento, são 702.
421
23
óbitos causados pela doença com a taxa de letalidade marcando
1,9% em percurso de notória trajetória de queda, mas não menos permeada
de estragos nas vidas dos brasileiros mesmo no contexto em que a OMS
decretou o fim da pandemia, mas não fim da doença e de sua transmissão.
Assim, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou no dia
05 de maio de 2023 o fim da emergência de saúde pública da pandemia
do coronavírus no planeta. Conforme conhecimento público, o alerta
havia sido decretado pela entidade em janeiro de 2020, quando o número
21 Os dados foram obtidos pelo consórcio de veículos de imprensa divulgadores diários das informações
sobre os números da COVID-19 no Brasil, do qual o UOL faz parte, coletados junto às secretarias
estaduais de saúde. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/08/01/
covid-19-coronavirus-casos-mortes-01-de-agosto.htm (Acesso em: 02 ago. 2021).
22 Os dados foram obtidos pelo consórcio de veículos de imprensa divulgadores diários das informações
sobre os números da COVID-19 no Brasil, do qual o UOL faz parte, coletados junto às secretarias
estaduais de saúde. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/08/01/
covid-19-coronavirus-casos-mortes-01-de-agosto.htm (Acesso em: 03 jan. 2022).
23 Os dados foram obtidos pelo consórcio de veículos de imprensa divulgadores diários das informações
sobre os números da COVID-19 no Brasil, do qual o UOL faz parte, coletados junto às secretarias
estaduais de saúde. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/08/01/
covid-19-coronavirus-casos-mortes-01-de-agosto.htm (Acesso em: 16 maio 2023).
51
de casos e mortes começou a explodir na China. “É com grande esperança
que declaramos que a covid-19 não é mais uma emergência global”, disse
o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom24.
Com efeito, a questão da pandemia no Brasil desde seu início
expos os limites de controle sobre suas implicações no tratamento
da doença, de seus agravamentos, da insuficiência de profissionais de
saúde e equipamentos e da administração da morte, incluindo o manejo
dos corpos e rituais fúnebres.
No âmbito mais recente da história da pandemia no Brasil, espe-
cificamente, durantes os dois anos intensos de atuação da Covid-19, os
dilemas existentes sobre a doença no país versavam sobre a morosidade
da aplicação da vacina nas pessoas adultas, idosos e crianças brasileiras,
a questão da variante Ômicron que se espalhou velozmente no país, o
problema da visão do negacionismo que reverberou no desprezo ao pas-
saporte vacinal, a proliferação das fakes news de que “quem toma vacina
vira jacaré” entre outros absurdos, além do surto da doença em cruzeiros
que se encontravam no país com um número expressivo de infectados.
No passado recente, reconhecendo a importância dos cuidados para
saúde dos profissionais que atuavam nas atividades post-mortem, no con-
texto da COVID-19, o Ministério da Saúde do Brasil publicou o manual
de orientação intitulado “Manejo de corpos no contexto da COVID-19”.
Nesse aspecto, o objetivo do presente estudo foi o de discutir os des-
dobramentos do Novo Coronavírus a partir da publicização de protocolos
para o manejo adequado de corpos e sepultamentos, visando a redução
dos riscos de contaminação entre a equipe multiprofissional de saúde,
familiares das vítimas fatais e profissionais lotados em cemitérios e serviços
funerários além de visibilizar a repercussão dos efeitos das mudanças de
sociabilidades, do luto e dos entraves aos rituais de despedidas.
No que diz respeito aos aspectos metodológicos, realizou-se uma
revisão bibliográfica, de base qualitativa. A coleta de dados abarcou todo
o período crítico da pandemia, Reitera-se que o foco principal eram os
protocolos da doença. Após a coleta de dados, foi realizada uma análise
do conteúdo, observando e analisando os múltiplos aspectos que envol-
vem o desdobramento do tema Nesse seguimento, elaboramos algumas
reflexões, que serão apresentadas a seguir.
24 Informações do Jornal Estadão. Disponível em: https://www.estadao.com.br/saude/oms-decreta-fim-
-da-pandemia-de-covid-19/ (Acesso em: 16 maio 2023).
52
A COVID-19 NO BRASIL: DIRETRIZES E PROTOCOLOS
DE MANEJO DE CORPOS E SEPULTAMENTOS E AS
SIGNIFICATIVAS MUDANÇAS DE SOCIABILIDADES
NA MORTE
No Brasil, desde 2020 o processo de terminalidade e morte têm sido
afetados durante a disseminação da Covid-19 que, apenas recentemente
deixou de estar em curso no país enquanto pandemia.
Considerando a rápida e alta transmissibilidade do coronavírus em
todo o território brasileiro no período abordado, a importância do contínuo
monitoramento epidemiológico para conter a epidemia, a necessidade de
planejamento do atendimento à saúde da população e as peculiaridades
econômicas, ambientais e sociais no Brasil ensejaram várias medidas dos
governos em âmbito federal, estadual e municipal no sentido de orientar
todos os vieses das múltiplas crises que se instalaram durante a pandemia.
Nesse aspecto é importante assinalar, ainda que de forma subsidiária,
para não comprometer o objetivo principal desse trabalho, que a gestão
da crise pelo governo anterior (2018-2022) foi alvo de inúmeras críticas
dentro e fora do país pela inabilidade e ineficiência na condução correta
do combate a pandemia da COVID-19. Nesses termos, infere Sodré:
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” foi a declara-
ção proferida pelo presidente da república que marcou o
período do crescimento ascendente do número de óbitos
pela epidemia de Covid-19 no Brasil. A frase foi colo-
cada como descaso, ou desdém, diante de um momento
de incertezas frente ao aumento de casos confirmados
e óbitos por Covid-19 em todo o território brasileiro.
(SODRÉ, 2020, p. 2).
Assim, continua o referido autor ao apontar que a perplexidade foi a
reação imediata vivenciada pela população diante da declaração do dirigente
máximo do poder executivo. No entanto, o que não havia ainda sido com-
preendido é que o ‘E daí?’ seria o método de gestão adotado pelo Ministério
da Saúde como forma de enfrentamento da epidemia. (SODRÉ, 2020).
As perdas pelo coronavírus no Brasil tiveram como pano de fundo,
um cenário de acentuada polarização político-ideológica. Rapidamente
a pandemia foi apropriada por discursos que se opuseram e em pouco
tempo produziram narrativas conflitantes sobre praticamente tudo que
53
se relaciona à COVID-19: gravidade da pandemia, necessidade de medi-
das de isolamento social, utilidade do uso de máscaras, possibilidade de
tratamento e prevenção pelo uso de medicações específicas, número de
fatalidades etc. Como era de se esperar, tal conflito de narrativas também
foram atravessadas pelos reflexos nas vivências de luto em meio à pan-
demia. (DANTAS &CASSORLA, 2020).
Ressalta-se que com a efetiva força que o vírus se instalou e se dis-
seminou pelo Brasil causando absurdos estragos no campo da saúde e da
vida houve a necessidade de adoção de medidas de controle.
Nesse sentido, as ações de diretrizes de contenção da pandemia e
a efetiva implementação de protocolos se tornaram essenciais para mini-
mizar os efeitos da doença e das mortes. Assim, cumpre salientar que,
por exemplo, a criação e publicização dos protocolos também conhecidos
como Normativas de Manejo de Corpos ocorreram nos meses de março
e abril de 2020, de forma gradual. A primeira etapa foi à descrição dos
protocolos, após avaliação de referências bibliográficas acerca da temática
proposta no estudo, posteriormente a listagem dos insumos necessários
como produtos de limpeza e assistenciais, EPIs e, depois definidas as ações
e regras para o trato com as consequências da morte por COVID-19 tanto
em hospitais como por funerárias e cemitérios.
Diante do exposto até aqui, abrindo uma correlação teó-
rica, Norbert Elias (2001) já demonstrava que a morte esteve e
estará sempre nas relações humanas.
Com efeito, levando isso ao mote pandêmico trata-se de um tema
nada convencional, que retrata sobre como as pessoas prestes a morrer e
seus entes mais próximos passam por estes momentos não apenas assola-
dos pela agonia da doença e da morte iminente, mas também por serem
atravessados por regulamentações estatais que incidem diretamente sobre
a necessidade da assepsia própria do contexto e do consequente desmonte
dos rituais, das despedidas, do luto e das mazelas psicológicas intrínsecas.
Assevera-se, que muitas dessas consequências apontadas acima além
de outras como a questão dos sequelados, do socorro financeiro à popu-
lação mais vulnerável e mesmo a vacinação andando em passos morosos,
tudo isso ainda circulou no vazio de ações e políticas públicas, muitas
vezes quando existentes ou eram lentas e ou infrutíferas dada a situação
frágil em que o país se encontrava.
Destarte, sobre outra perspectiva na constância da pandemia, o pro-
cesso de perceber os moribundos a partir da organização dos viventes e a
necessidade de se proteger o coletivo social dos contágios ensejaram iguais
54
modificações na esfera prática tanto em perspectivas públicas quanto no
âmbito da vida privada. Dito isto, importa notar que se fizeram patentes
as mudanças nas redes de solidariedade entre as pessoas e muitos rituais
da morte foram atropelados por tais mudanças.
Desse modo, a retomada da abordagem clássica de Elias (2001) supra-
citada tem o objetivo claro neste texto de colocar como destaque em tempos
de pandemia da COVID- 19 o debate das discussões significativas sobre a
mudança de hábitos e costumes no processo do morrer e de seus rituais.
Num outro aspecto, a COVID-19 ratificou a questão de que a
identificação com os moribundos não é algo fácil porque os que ficam
se deparam com a sua transitoriedade e condição mortal ao assistirem de
perto, de longe ou ao ligar a TV ou entrar nas redes sociais e se deparar
com um número massivo de mortes no Brasil até os dias de hoje e, com
mais intensidade no período crítico de mortes no qual inúmeras valas
coletivas eram abertas nos cemitérios e transmitidas pelos noticiários.
Nesse contexto, a morte que rodeava os acometidos pela COVID-
19 foi experenciada na mais absoluta solidão e vazio comparados ao
momento anterior à pandemia. A questão fundamental é que toda a
sociedade enlutada e todos os vivos são afetados em múltiplos aspectos.
A afirmação central de Elias (2001) é que a morte se torna um problema
para os vivos. A COVID-19 também ratifica essa máxima.
Nesse interim, o processo de luto subjacente também se faz pre-
sente e, tem início, portanto, a partir do momento em que é recebido
o diagnóstico de uma doença fatal ou potencialmente fatal, seguido das
perdas, concretas ou simbólicas para os familiares (KOURY, 2003). Assim,
diante de um contexto excepcional, que é o da COVID-19, do contágio
e das mortes em grande escala no Brasil exigiu-se que novos protocolos
sobre o manejo com a morte fossem oficialmente publicizados, o que
repercutiu na mudança coercitiva de hábitos e mesmo na suspensão de
traços culturais de despedidas dos mortos.
Sabe-se que pandemias costumam acarretar mortes em massa em
um curto espaço de tempo, o que traz implicações em várias dimensões da
sociedade. Nesse sentido, no Brasil, o Ministério da Saúde publicou em 25
de março de 2020 a normativa intitulada “Manejo de Corpos no Contexto
do Novo Coronavírus” que instituiu uma série de regramentos relacionados
aos casos de pessoas mortas pela doença, o que atingiu o manejo dos corpos
em instituições de saúde, domicílios e funerárias, além de determinar as
condicionalidades acerca dos velórios e sepultamentos (BRASIL, 2020b).
55
Dentre algumas das mudanças propostas pelo manual “Manejo de
Corpos no Contexto do Novo Coronavírus” em relação aos cemitérios
destacam-se: Reservar local específico para sepultamento de pessoas com
suspeita ou confirmação de COVID-19; limitação do acesso de pessoas
considerando o espaço do local e a necessidade de manter, o distancia-
mento de, ao menos, 1 metro entre os indivíduos; suspensão dos velórios
por tempo indeterminado, limitando a presença de familiares e amigos ao
mínimo possível; se o velório for realizado manter a urna funerária fechada
durante todo o velório e funeral, evitando qualquer contato com o corpo
do falecido em qualquer momento post-mortem; evitar a realização de
velório em domicílio; manter o uso das máscaras de proteção facial e o dis-
tanciamento entre as pessoas; proibir aglomeração, considerando o número
máximo de pessoas para que haja o distanciamento mínimo recomendado.
Assevera-se que nos cemitérios, outras regras se fizeram operantes
e trouxeram mudanças significativas na rotina dos profissionais que
atuavam nestes locais. A vestimenta dos coveiros, que antes da pandemia
se limitavam as luvas e uniformes comuns, deram lugar a trajes especiais,
completamente vedados, com máscaras para o rosto e luvas duplas (por
baixo das antigas), para evitar contaminação.
Salienta-se que a adoção do referido protocolo e de suas reco-
mendações representou, como informam nas próprias orientações ini-
ciais do documento o reconhecimento da importância dos cuidados
para saúde dos profissionais que atuavam nas atividades post-mortem
e de toda a sociedade no contexto da COVID-19 e, que essa adoção de
medidas justificava a própria existência do Protocolo do Manejo de
corpos no contexto da COVID-19.
Entre as novas regras do Ministério da Saúde (2020b) expressas no
manual “Manejo de Corpos no Contexto do Novo Coronavírus” citadas
acima, destacam-se a regulação de que os velórios de pacientes confirma-
dos ou suspeitos da COVID-19 não sejam recomendados durante os
períodos de isolamento social ou quarentena (GRIFO MEU). Além
disso, caso os mesmos sejam realizados, recomendava-se manter a urna
funerária lacrada durante todo o funeral, evitando qualquer tipo de
contato com o corpo do falecido.
Como consequência imediata dezenas de famílias se viram obrigadas
a passar pelo processo de morte de um parente à distância. No ápice da
56
pandemia no Brasil, os velórios foram proibidos ou quando permitidos
realizados com um número reduzido de pessoas e de tempo. Os enterros
em tempos de COVID-19 exigiram mudanças significativas como partici-
pação de parentes via chamada de vídeo, rituais religiosos pela internet ou
mesmo cerimônias solitárias com a ressalva de que no Brasil a cobertura
de internet é precária para a população mais pobre.
Cumpre mencionar que a excepcionalidade da pandemia exigiu a
adoção de medidas mais restritivas que afetaram inclusive os rituais de
despedida acolhendo as orientações gerais da Organização Mundial da
Saúde entidade internacional que já havia informado que: “exceto nos
casos de febre hemorrágica (Ebola ou febre hemorrágica de Marburg) e
cólera, os cadáveres geralmente não são infecciosos. Quando o foco é a
covid-19, há o risco de contaminação em situações de post mortem, por isso
a atenção deve ser redobrada no manuseio do corpo”. (OMS).
Todavia, embora as entidades internacionais sinalizassem no sen-
tido de adoção de cautelas nas medidas de flexibilização justamente para
a devida contenção da COVID-19, no Brasil o modo de gerir baseado
na negação da epidemia e na ausência de proposições pelo Ministério
da Saúde caracterizou-se pelo abandono às medidas de proteção à saúde
por um longo período de tempo.
Assim, se é difícil pensar nos efeitos mais imediatos causados pelo
vírus, o que pensar sobre todas as outras consequências de fundo emocional
e psicológico de uma população inteira devastada por perdas de familiares
e amigos mortos pela doença sem que os entes queridos pudessem vivenciar
o seu luto com uma rede acolhedora impossibilitada pelo distanciamento
social e pelas medidas de contenção na sociedade, hospitais e cemitérios? A
morte foi se esvaziando de sociabilidades e reduziu-se a uma ida solitária
a cova. Senão vejamos na figura abaixo:
57
Figura 1: Imagem de funcionários do serviço funerário enterrando corpo de uma
vítima da Covid-19 em cemitério, na cidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Fonte: https://revistacariri.com.br/regionais/mpce-recomenda-agilidade-em-sepulta-
mento-de-corpos-de-indigentes-positivos-ou-suspeitos-para-covid-19-em-juazeiro-do-
-norte/ (Acesso em: 18 maio 2020).
É importante destacar que ainda durante os cuidados com corpos
de casos suspeitos ou confirmados de COVID-19 em ambiente hospitalar,
o Protocolo assevera que deveriam estar presentes no recinto apenas os
trabalhadores do estabelecimento de saúde estritamente necessários. Todos
deveriam utilizar os equipamentos de proteção individual descritos no
item 10 do Documento. Além disso, precisavam realizar a higiene das
mãos com água e sabonete líquido ou álcool a 70%. Os familiares não
poderiam visitar seus parentes moribundos ou falecidos no hospital.
Com efeito, retomando a ideia de Koury “um pacto de silêncio
parece ser realizado” (2003, p. 160). Trata-se, de uma dimensão em que o
luto deixou momentaneamente de ser social e socialmente satisfeito, tendo
que ser expropriado de sua íntima rede de solidariedade e sociabilidade
tão frequentemente presente em tempos não epidêmicos, inclusive em
ambientes hospitalares aos quais eram comuns.
Somam-se a isso, no caso da COVID-19 no Brasil, em particular,
algumas outras medidas adotadas concomitantemente para conter a rápida
escalada do número de infectados, incluindo restrições a viagens e distancia-
mento social, bem como, a proibição de visitas em leitos e UTIS de hospitais
e leitos isolados de postos de saúde que em seu conjunto dificultaram em
interações face a face entre enfermos e membros da sua rede socioafetiva.
58
Dentro desse novo padrão, permitindo-nos o trocadilho pertinente
para a discussão maior, qual seja, o manejo da morte, ainda se destacavam
novas recomendações assépticas que contribuíram para as mudanças
não sutis nos rituais de despedida e de como o Estado determinava
como agora eles deveriam ser. Nesse aspecto, de acordo com a normativa
do Ministério da Saúde (2020b), deveria ser evitado, no velório e/ou
sepultamento, a presença de pessoas que pertenciam ao grupo de risco
para COVID-19, especificamente: idade igual ou superior a 60 anos, ges-
tantes, lactantes, portadores de doenças crônicas e imunodeprimidos e
pessoas com sintomas respiratórios.
Entretanto, o protocolo “Manejo de Corpos no Contexto do Novo
Coronavírus” estabeleceu ainda que caso fosse imprescindível, as pessoas
pertencentes aos grupos de risco deveriam respeitar as medidas de etiqueta
respiratória, como o uso de máscaras cirúrgicas e deveriam permanecer
o mínimo possível no local, evitando o contato físico com os demais.
Se considerarmos que tanto os rituais tradicionais de despedida
como a comunicação verbal e não verbal e a comunhão dos sentimentos
pelos laços sociais tendem a ser organizadores, vindo a favorecer a reso-
lução do luto, podemos perceber que pela adoção das medidas restritivas
adotas pelo protocolo em contexto da pandemia da COVID-19 temos
como efeito uma sucessão de restrições físicas e sociais que acarreta-
ram o comprometimento do luto e dos sentimentos atravessados pela
necessidade de combater o vírus.
Tanto a comunicação verbal quanto a não verbal se mostram essen-
ciais nos rituais de despedida; a comunicação não verbal, especificamente,
parece importante em situações em que as palavras são insuficientes para
externalizar o que se deseja ou, ainda, não podem ser ditas (Lisbôa &
Crepaldi, 2003). A pandemia de COVID-19, portanto, impôs desafios adi-
cionais aos rituais de despedida nos casos de terminalidade experenciadas
sem proximidade física, apertos de mãos ou abraços fraternos.
Com efeito, diante da morte causada pela COVID-19 as família e
amigos não disseram mais adeus da mesma forma que antes. Não pude-
ram mais oferecer o amparo presencialmente. Não se teve mais o olho
no olho que acolhe e diz que, independentemente do que acontecer,
tudo vai ficar bem. O momento crítico da pandemia também foi um
momento crítico de dor e de luto.
59
Sobre esses desafios, no que concerne aos sepultamentos e aos
ambientes cemiteriais propriamente ditos, o manual “Manejo de Corpos
no Contexto do Novo Coronavírus” estabeleceu ainda como regra impor-
tante a ser seguida a de que os enterros deveriam ocorrer na presença de,
no máximo 10 pessoas, respeitando a distância mínima de, pelo menos,
dois metros entre elas. Estas recomendações não se limitaram ao risco
biológico do corpo, como também pela contraindicação da formação de
aglomerações. Importante mencionar que o Ministério da Saúde autorizou
que os corpos poderiam ser enterrados ou cremados (BRASIL, 2020b).
Destaca-se ainda que os procedimentos de tanatopraxia (limpeza e
preparação do corpo para homenagens fúnebres, o que tem um significado
importante para muitas culturas) não foram recomendáveis, devido ao
alto risco de transmissão póstuma da COVID-19 (SSHAP, 2020). Como
já mencionado, O cadáver deveria ser acomodado em caixão a ser lacrado
antes da entrega à família (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).
Trabalhos recentes, Bitencourt et al (2020), apontam que a pandemia
veio de uma forma avassaladora, atropelando a organização e realização
dos rituais funerários e de despedidas das famílias e seus desdobramentos:
funeral, cremação, sepultamento, luto. Exemplo disso, explicitam os autores,
observa-se na abertura de valas comuns nas cidades mais impactadas pela
pandemia devido à incapacidade dos serviços funerários de atenderem o
alto número de óbitos em curto tempo causados pela COVID-19, gerando
assim um cenário de enterros coletivos a céu aberto. Além de que, comple-
mentam os autores, que nas cidades onde o serviço funerário ainda tem
capacidade de atender às demandas de enterros e velórios, a facilidade do
contágio pelo vírus impossibilitou que esses eventos ocorressem com mais
de dez pessoas presentes, durando apenas uma hora ou menos.
Assim, foram surgindo novos modos de se despedir dos entes queri-
dos; em alguns lugares, estavam sendo organizados os chamados ‘velórios
virtuais’, orações por aplicativo e grupos de apoio online: o ‘novo’ luto
durante a pandemia como um modo de aproximar afetivamente as pessoas
e permitir a despedida. (BITENCOURT et al, 2020, p. 18),
Em nossa cultura, os rituais funerários estão centrados na presença e
no simbolismo invocados pelo corpo, que pode ser tocado, lavado, vestido
e contemplado uma última vez. Ver o corpo traz concretude à morte e nos
prova que enterramos a pessoa certa. Aqui já se demarca uma das especi-
60
ficidades do processo de luto dos que perderam um ente querido para a
COVID-19: a imposição de limitações drásticas aos rituais de despedida,
sendo a mais significativa a obrigatoriedade de caixões lacrados. Os corpos
não podiam mais ser vestidos, tocados, contemplados. A necessidade de
que fosse mantido o distanciamento social, reduz a um mínimo o número
de pessoas permitidas e a duração de velórios. Assim, os familiares das
vítimas de coronavírus executaram um ritual incompleto, sem nunca voltar
a ver o corpo que conheceram e amaram. (DANTAS &CASSORLA, 2020).
Na prática, estas mortes no contexto pandêmico crítico, em seu ápice,
foram experiências silenciosas, sem a participação habitual de familiares
e amigos, sem aviso e, sem homenagens nos funerais, mesmo porque, o
ritual em si foi drasticamente afetado. Como consequência direta a perda
e o luto desamparado de suas imbricações sociais se transformavam em
esvaziamento de sociabilidades. Segundo Elias:
[...] as emoções e os movimentos a elas relacionados tem
uma função dentro do contexto de relacionamento entre
pessoas e, num sentido mais vasto, entre uma pessoa
e a natureza. As emoções e os referidos movimentos
ou expressão são, em resumo, uma das indicações que
os seres humanos são por natureza constituídos para
viver na companhia de outros, para a vida em sociedade
(ELIAS, 2009, p. 46).
Diante de tantas mudanças num curto espaço de tempo, retomamos
mais uma vez as ideias de Elias (2001) as endossando para indicar que na
presença da COVID-19 nunca se morreu tão higienicamente e silencio-
samente como nos dias intensos da pandemia, condições essas, advindas
das sociedades industriais em que morrer ficou destinado a momentos
que devem ser ofuscados. Não nos parece menos intenso na pandemia,
ao contrário, chegou-se ao seu extremo.
Estudos têm revelado que tanto a pandemia propriamente dita
quanto as medidas adotadas para contê-la parecem impactar a saúde mental,
aumentando o risco para surgimento de sintomas de estresse, ansiedade e
depressão, o que vem sendo identificado na população geral (C. WANG
et al., 2020) e em profissionais da saúde (ZHANG et al., 2020).
A pandemia de COVID-19 lançou-nos a todos, em menor ou maior
intensidade, a um processo de luto (ou lutos). Foram muitas as perdas e
a morte e seus rituais foram drasticamente afetados.
61
Diante do exposto, como vimos, a pandemia de COVID-19 no Brasil
teve e ainda tem o potencial para afetar as experiências de terminalidade,
morte e luto. É factível a necessidade de fortalecimento das redes socioafe-
tivas, do compromisso e da solidariedade entre as pessoas, o que parece
essencial para enfrentar desafios tanto durante quanto após a existência
da pandemia. O ponto crucial nesse desafio é um direcionamento, uma
coordenação de suporte e elaboração de políticas de saúde que possam
proteger e cuidar dos brasileiros eficazmente. Isso é importante de frisar,
sobretudo, porque em tempos nebulosos e críticos da pandemia, nas mais
altas instâncias políticas do país, esses aspectos todos foram de negacio-
nismos de altíssimos impactos tanto na vida quanto na morte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os rituais fúnebres desempenham um papel importantíssimo na vida
em coletivo, ainda que se destaquem todas as suas variabilidades sociais,
históricas e culturais, eles são essenciais aos viventes quando deparados
com a perda, a morte e o luto. Com a pandemia da COVID-19, bem como
com todas as diretrizes mundiais e locais para evitar a contaminação somos
mais uma vez desafiados a nos reinventar.
A COVID-19 estabeleceu uma grave crise sanitária, política, eco-
nômica, social, e de sociabilidades no luto repercutindo consequências
que ainda não cessaram no país e que acometeram e acometem direta ou
indiretamente toda a população brasileira. Destacamos nesse capítulo, de
maneira inicial, pois todos os efeitos da COVID-19 ainda estão em curso
no país, aqueles impactos observados nos rituais fúnebres e de despedida
que modificaram hábitos, sentimentos e toda rede de solidariedade no
extremo do processo da morte enfaticamente correlacionados a outro
extremo que é o contexto pandêmico que nos assolou.
Por fim, importa mencionar que em qualquer situação, cultura
histórica, grupo social ou sociedade, é imprescindível assegurar os rituais
fúnebres e proporcionar aos cidadãos políticas públicas em contexto de
crise que possam minimizar os seus efeitos. O não cumprimento das pres-
crições de cada cultura pode ocasionar múltiplas anomias e situações não
desejadas e prejudiciais ao equilíbrio da sociedade sobretudo relacionados
aos aspectos psicoemocionais. Esse estudo buscou dar visibilidade a esse
tema e repercutir a necessidade de se falar mais amplamente sobre ele no
contexto da sociedade enlutada que se tornou o Brasil hoje com o total de
702.421 mil mortes pela COVID-19. Esse trabalho é dedicado a todas as
62
vítimas e a toda a sociedade brasileira que sofreu os horrores, devastações
familiares e estragos emocionais causados pelo vírus e por uma gestão
problemática de enfrentamento a crise sanitária no país.
REFERÊNCIAS
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63
EDUCAÇÃO PARA A MORTE: UM COMPROMISSO
ÉTICO-POLÍTICO COM A VIDA
Luíza Michelini Vilanova25
Cláudia Bechara Fröhlich26
Janniny Gautério Kierniew27
INTRODUÇÃO
O projeto de pesquisa e extensão universitária Narrativas Ficcionais
e o Cuidado à dor Crônica
28
foi desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa em
Psicanálise, Educação e Cultura, (NUPPEC-eixo2) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre os anos de 2017 e 2019, no Setor
de Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Nossa Senhora da Conceição
(HNSC), um dos maiores hospital públicos do sul do país. A aproxima-
ção ao Setor do hospital, por meio de uma pesquisa-ação, permitiu que
a equipe da pesquisa/extensão (pesquisadores do campo da psicologia,
da arte e licenciandos de diversas áreas) conhecesse, in lócus, a rotina de
trabalho e a lógica de cuidado envolvida na educação para a morte em
Cuidados Paliativos. Alinhados a este contexto de educação e saúde, o
projeto elaborou, implementou e discutiu os efeitos de dois dispositivos
de trabalho junto a pacientes, familiares e trabalhadores do Setor: o Ateliê
Jardim de Histórias e o No Coração da Agulha, que promoveram conversas sobre
dor, vida e morte - por meio do bordado inventado. Nos dispositivos,
desenvolvidos nos leitos do hospital ou em salas maiores, reiterava-se o
convite para que os participantes contassem histórias sobre si e fizessem
um registro, com linha e agulha, de experiências singulares numa toa-
lha de tecido cru. Pela via da escuta sensível da equipe, buscou-se ativar
encontros no tecido comum no sentido de construir condições (linhas de
cuidado) de possibilidade para que o trabalho do bordado inventado29,
25 Especialista em Psicologia Hospitalar (HCPA). CV: http://lattes.cnpq.br/4463060612859857
26 Doutorado em Educação (UFRGS). Professora na área de Psicologia da Educação (UFRGS).
CV: http://lattes.cnpq.br/8600278678323848
27
Doutorado em Educação (UFRGS). Integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e
Cultura (NUPPEC_eixo2/UFRGS). CV: https://lattes.cnpq.br/2860764723488078
28 Comitê de Ética nº 72198017.3.0000.5530
29
O bordado inventado é uma prática de bordado livre, que não tem a ver necessariamente com a técnica
do bordado tradicional, de maneira que qualquer pessoa pode participar. São rodas de conversa e escuta
que têm inspiração metodológica nos projetos Arte na Espera (Hospital de Clínicas de Minas Gerais) e
64
de forma livre e espontânea, no jogo com a linguagem, produzisse efeitos
subjetivantes nos envolvidos. Com este trabalho, as equipes do hospital
e da pesquisa puderam verificar a pertinência, no âmbito hospitalar, de
dispositivos que incentivam outras formas de se narrar, de fazer laço com
a vida, de inscrever a singularidade de uma vida e, nesse trajeto, mesmo
que breve, reescrever sua relação com a dor e a finitude, quando esta
se aproxima (KIERNIEW, 2022).
Ainda que a pandemia ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV2),
no início de 2020, tenha levado à suspensão das atividades presenciais dos
dispositivos no hospital, a equipe de pesquisa se manteve atenta ao modo
como as mortes foram acontecendo e sendo encaminhadas em meio ao
caos sanitário brasileiro. No período pandêmico, observamos que as inu-
meráveis vidas que foram atravessadas pelas perdas abruptas geradas pela
pandemia foram acompanhadas por discursos e atos do governo brasileiro
à época e de parte da população que banalizaram as mortes ocorridas,
minimizando a necessidade de políticas preventivas efetivas e dispensando
a elaboração de luto e ritos de despedida (MOTA & GINACH, 2021). Tal
posição diante da morte e da vida é muito diferente ao que a pesquisa
encontrou quando se aproximou dos Cuidados Paliativos
Diante destas diferentes posições, partimos da seguinte questão
norteadora: como situar a morte como um processo natural, de modo
semelhante aos princípios que norteiam os Cuidados Paliativos, quando
há um discurso que naturaliza a morte e se utiliza do pensamento de
deixar morrer para fazer morrer? Deste modo, iniciamos um estudo teórico
sobre as implicações para a educação para a morte na diferenciação entre
a significação da morte como um processo natural, um dos fundamentos
dos Cuidados Paliativos, e a naturalização de certas mortes, produzida
por uma posição de descaso com a vida.
Diante do que aprendemos ao realizar a pesquisa no hospital, de que
uma educação para a morte precisa incluir um pensamento sobre a morte
como parte inexorável da vida, este capítulo visa a uma problematização
sobre as diferentes significações da morte e do morrer em nosso tempo e
sobre como pensar essa realidade tendo um compromisso ético-político
com a vida. Neste sentido, partimos da hipótese de que a lógica do cuidado
Armazém de Histórias Ambulantes (ruas da cidade de Porto Alegre). O bordado inventado é baseado
nas teorias da arte contemporânea, participativa e colaborativa, que buscam promover a autonomia,
a implicação e o protagonismo dos participantes.
65
e de uma educação sobre o processo de morrer, que vem sendo construída
por equipes multiprofissionais em Cuidados Paliativos no país, teria muito
a contribuir sobre a crise sanitária instaurada pelo tempo pandêmico e o
respeito à vida de milhares de pessoas.
DESENVOLVIMENTO
O Setor de Dor e Cuidados Paliativos não corresponde a um lugar
que possa ser encontrado por coordenadas cartesianas na geometria do
Hospital Conceição, mas, antes, diz respeito a estratégias de uma equipe
multidisciplinar que pensa a saúde como um complexo de tramas que
visa a acolher, em diferentes níveis da atenção (ambulatorial, hospitalar
e emergencial), pacientes para quem a lógica binária “cura/não cura” não
se aplica. Neste Setor, as ações da equipe voltam-se para o acolhimento
daquilo que é cuidável. Recebe-se e acolhe-se pacientes e familiares que se
encontram diante de uma dor crônica ou de uma doença incurável, que
pode ou não estar relacionada ao término da vida, e o trabalho é reali-
zado a partir da leitura em conjunto sobre os princípios que orientam os
Cuidados Paliativos no Brasil (RESOLUÇÃO nº 41, 2018).
No cotiano de trabalho do hospital, percebe-se que a relação que
cada pessoa estabelece com a morte é muito singular e adquire diferentes
nuances de acordo com o contexto familiar, sócio-histórico, cultural e
espiritual que circunda cada um. Ariès (2012) explora algumas diferen-
tes variações que a atitude diante da morte foi adquirindo ao longo da
história ocidental, revelando que até a metade do século XIX houveram
lentas e importantes modificações na forma como a sociedade a concebe.
Para o autor, o advento dos hospitais contribuiu para a modificação do
entendimento da ideia de morte na cultura, uma vez que aconteceu em
consonância com o desenvolvimento da racionalidade técnico-cientí-
fica, que proporcionou a retirada das pessoas doentes do seu cotidiano
habitual para serem levadas a organizações especializadas de tratamento,
prolongamento da vida e impedimento da morte (ARIÈS, 2012). Nesse
período, as sociedades ocidentais buscaram, a todo custo, tentar retirar
a morte da realidade cotidiana das pessoas. É quando se entende que “o
doente não deve saber nunca (salvo em casos excepcionais) que seu fim se
aproxima” (ARIÈS, 2012, p. 42). Assim, “a morte, tão presente no passado,
66
de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto
de interdição” (ARIÈS, 2012, p. 84).
A partir do século XIX, há um deslocamento no lugar da morte.
A morte, de si e dos outros, torna-se interdita (ARIÈS, 2012). Há um
esforço para que as pessoas não precisem se deparar com a finitude.
Com o desenvolvimento de políticas liberais e do próprio capitalismo, o
adoecimento passa a ser relacionado a deixar de produzir, significando a
vergonha pela inatividade e implicando uma ameaça à subsistência para
as classes trabalhadoras (COMBINATO & QUEIROZ, 2006). A coexis-
tência entre mortos e vivos passa a ser vista como fonte de contaminação
e doença, e as práticas higienistas afastam os mortos dos centros urbanos
e do convívio com os vivos. A morte, que antes costumava ocorrer em
casa, cercada por familiares e conhecidos, agora ocorre nos hospitais, em
um ambiente fechado e controlado, quando as possibilidades de cura já
se esgotaram (ARIÉS, 2012). Assim, não se vê mais a morte, não se fala
dela nas instituições, não se fala sobre ela nas escolas: a morte passa a
ser algo silencioso que acontece somente com as outras pessoas, como
algo apartado da vida. O mundo ocidental passou, assim, a se subjetivar
de modo que não deixa espaço para que a linha do tempo de cada um
seja tecida com os fios da vida e da morte; passamos a ser educados - e a
educar - para apenas os acontecimentos da vida e a morte ficou de fora.
Desde a segunda metade do século XVIII, a saúde da população
foi tomada como objeto da biopolítica, pois o poder do Estado passou a
incidir sobre os processos de natalidade, de mortalidade e de longevidade
(FOUCAULT, 1976/1999). Técnicas científicas foram sendo elaboradas
com fins de controle social e individual, e a medicina assumiu posição de
destaque, como disciplina que intervém na regulação da vida (BIRMAN,
2007). Foucault (1976/1999) relaciona a interdição da morte na sociedade
com essas transformações das tecnologias de poder, já que este passa a
ser exercido com a intenção de fazer viver e regular as maneiras de como
viver. A morte, ao contrário, “é o momento em que o indivíduo escapa
a qualquer poder” (FOUCAULT, 1976/1999, p. 296).
Desse modo, podemos pensar que a medicina tradicional, enquanto
elemento de saber-poder que intervém na regulação da vida, passa a ter
como imperativo fazer viver. Nesse caminho, os avanços científicos e tecno-
lógicos que foram alcançados, principalmente a partir da segunda metade
do século XX, acompanhados dos progressos das terapêuticas, fizeram
67
com que muitas doenças que antes eram letais pudessem ser transforma-
das em doenças crônicas. As ciências da saúde conseguiram um maior
domínio da mortalidade, e a longevidade das pessoas com doenças que
antes seriam mortais teve um aumento expressivo. Isso se desdobrou no
aumento de pacientes consideradas/os como “fora da possibilidade de
cura” nos hospitais (MATSUMOTO, 2012).
Nesse contexto, as formações no campo da saúde muitas vezes acabam
por priorizar uma lógica pautada no ideal de cura e preservação da vida
(MATSUMOTO, 2012). Os profissionais tendem a ser ensinados apenas
para reproduzir um modelo curativo, de maneira que a morte é encarada
como fracasso e se apresenta como ameaça a esses ideais. O tratamento se
direciona para a preservação da vida a qualquer custo, e a tecnologia tem
um papel central para tanto. Todavia, o resultado que as tentativas de cura
trazem quando aplicadas a doenças crônicas em fase aguda é praticamente
nulo. Ocorre, por vezes, de serem adotados processos terapêuticos que
possuem um maior efeito nocivo do que a doença em si ou que não têm
nenhum efeito benéfico para a/o paciente, o que pode ser chamado pelos
termos “futilidades diagnósticas e terapêuticas” (RESOLUÇÃO nº 41,
2018) e “obstinação terapêutica ou distanásia” (SILVA, QUINTANA &
NIETSCHE, 2012). Assim, o aumento da expectativa de vida da população
pode não implicar uma melhora de sua qualidade de vida.
Sobre o educar para a morte, os Cuidados Paliativos têm operado
uma virada do mapa da cura para o cuidado ao propor a oferta de cuidado
para pacientes e familiares mesmo quando a cura não é uma possibilidade
(D’ALESSANDRO, PIRES & FORTE, 2020). Na abordagem paliativa, a
morte é percebida como um processo natural que faz parte da vida humana
e os cuidados destinam-se a pacientes e familiares que se encontram diante
de uma doença crônica, progressiva e com risco de ameaça à continuidade
da vida, podendo ser ofertados desde o seu diagnóstico, ao longo de todo
o curso do adoecimento até o processo do luto (PEREIRA & REYS, 2021).
Nessa abordagem, os cuidados devem se dar de forma integral,
contemplando as necessidades físicas, sociais, emocionais e espirituais
dos indivíduos. Como o foco do tratamento não é a doença, mas sim o
ser humano enquanto um ser biográfico (OLIVEIRA & SILVA, 2010), os
Cuidados Paliativos investem em estratégias de cuidado para a pessoa que
está adoecida e seus familiares. O acolhimento ao sujeito nos Cuidados
Paliativos acontece por meio do trabalho de uma equipe multiprofissional
68
em ambiente institucional ou domiciliar, em todos os níveis da atenção
(PEREIRA & REYS, 2021). A sua prática está alicerçada nos conheci-
mentos científicos de diversas especialidades para melhor preconizar
os procedimentos, medicamentos e abordagens que serão capazes de
proporcionar um maior conforto.
Nos Cuidados Paliativos, há um esforço da equipe multiprofissional
em conduzir o tratamento respeitando a busca pela dignidade no processo
de morrer, de modo a não acelerar (eutanásia) ou retardar (distanásia) o
ato de morrer (COVOLAN, CORRÊA, HOFFMANN-HOROCHOVSKI
& MURATA, 2010). A concepção da morte como um processo natural
da vida não significa que as vidas que puderem ser salvas mediante medi-
calização não serão salvas e que nada será feito com a/o paciente que se
encontra próximo ao fim da vida (KÜVLER-ROSS, 2017). Pelo contrário,
os Cuidados Paliativos visam ofertar o alívio da dor e do sofrimento para
que a/o paciente possa viver até o fim com dignidade (ARANTES, 2020),
reconhecendo a finitude como um processo natural relativo ao tempo
biológico da vida (PEREIRA & REYS, 2021).
Desse modo, percebemos os Cuidados Paliativos no avesso do que
ocorre na morte sociopolítica (mistanásia), em que a reprodução sistê-
mica de desigualdades e exclusões produz formas de exposição à morte,
subtraindo a dignidade tanto da vida quanto da morte (RICCI, 2017).
Nesse ponto, recorremos a outra faceta da formulação de Michel Foucault
(1976/1999), que se contrapõe ao fazer viver: deixar morrer. Para o autor, há
uma divisão na sociedade moderna entre as pessoas que devem viver e as
que devem morrer, e, nesse sentido, ele nos lança uma importante questão:
como é possível que um sistema político direcionado ao biopoder, que
tem como objetivo fazer viver, possa deixar morrer?
Foucault (1976/1999) afirma que o racismo é o que faz o corte
entre o que deve viver e o que deve morrer. A morte como imperativo se
ampara na noção de que matar visa à eliminação “do perigo biológico
e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria
espécie ou da raça” (FOUCAULT, 1976/1999, p. 306). Cabe ressaltar que
por morte se entende não só o assassinato direto, mas também “o fato
de expor a morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e
simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc.” (p. 306).
69
Ao tomar algumas questões levantadas por Foucault, Achille Mbembe
(2018) refere que na contemporaneidade o conceito de biopoder é, de
alguma forma, insuficiente, propondo as noções de necropoder e necropo-
lítica para pensar sobre como a vida de determinadas pessoas é subjugada
ao poder da morte. Achille Mbembe se detém nas formas de soberania
cujo projeto central consiste na “instrumentalização generalizada da exis-
tência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”
(MBEMBE, 2018, pp. 10-11). Destacamos a compreensão de Mbembe de
que na necropolítica a soberania aparece como a “vontade e capacidade
de matar a fim de viver” e “a capacidade de definir quem importa e
quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (p. 20). Mbembe
pensa o necropoder, que não necessariamente é o poder estatal, como
uma concatenação entre o biopoder, o estado de exceção e o estado de
sítio. E essa forma de poder produz uma emergência, uma exceção e um
inimigo ficcional, e continuamente se refere a essas produções e as invoca.
O racismo aparece novamente como ponto central: “a raça é, mais uma
vez, crucial para esse encadeamento” (p. 29).
As noções de necropolítica e de necropoder tratam das formas nas
quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes con-
ferem o status de “mortos-vivos” (p. 71). Mbembe aponta que a privação
das fontes de renda da população e a destruição de instituições civis locais
configuram-se como matanças invisíveis, somando-se às execuções a céu
aberto. Nos dizeres de Bensusan (2020, p. 2): “a sociedade que controla
como se vive passa, sistematicamente, a controlar também quem pode ser
abandonado/a ‘à própria (m-s)orte’”. Achille Mbembe (2018) demonstra,
em seu ensaio intitulado “Necropolítica”, que na contemporaneidade a
vida é subjugada ao poder da morte.
CONSIDERAÇÕES
Diante da dor e da morte, a lógica da educação para a morte nos
Cuidados Paliativos coloca ênfase no tempo da vida que ainda pode ser
vivido (MATSUMOTO, 2012) e o que ainda pode ser feito nesse tempo;
confere importância para as palavras que precisam ser ditas, para os afetos
adormecidos. Nesta prespectiva, abre-se espaço e tempo para a enunciação
dos sonhos que ainda são possíveis e para uma revisitação da linha da vida.
Neste sentido, o Ateliê Jardim de Histórias e o No Coração da Agulha foram
70
dispositivos que contribuiram para alargar este tempo e espaço – tenso e
delicado na travessia da vida - no Setor de Dor e Cuidados Paliativos e,
assim, retroalimentaram a importância da oferta desse fazer no âmbito
do hospital. Neste sentido, a equipe da universidade também muito
aprendeu com a equipe do hospital, especialmente sobre a importância
de sublinhar a vida diante de sua finitude. Nesta lógica de cuidado, o fazer
viver não aparece enquanto imperativo, sendo justamente tensionado por
uma reflexão acerca das condições sobre o viver. A compreensão da morte
como natural faz um agenciamento do deixar morrer para que se possa viver
com dignidade por meio do cuidado com a vida que ainda pode ser vivida.
No atual cenário brasileiro ainda há dificuldades para a imple-
mentação dos Cuidados Paliativos, principalmente de forma precoce.
Existem poucos desses serviços no Brasil e os existentes distribuem-se de
forma desigual nas diferentes regiões do país. No país, há insuficiência
de profissionais que realizam um trabalho que contemple os princípios
da paliatividade, o que aponta para a necessidade de uma educação em
saúde, desde a graduação, que possa abordar os Cuidados Paliativos e
dialogar sobre a morte e o morrer.
Ademais, tanto na sociedade quanto na própria área da saúde os
Cuidados Paliativos seguem sendo, ainda, associados apenas à terminali-
dade, ao fim da linha, e pensa-se que essa abordagem é acionada somente
quando “não há mais o que ser feito” (FIGUEIREDO, 2021). Os Cuidados
Paliativos não se resume a um Setor ou local onde o fim da linha acon-
tece. Constitui-se por um conjunto de estratégias de cuidado que podem
ser acionadas nos diversos momentos em que a possibilidade de morte
se apresenta à vida, e que pode ser colocado em prática inclusive na casa
da pessoa doente, fora do âmbito hospitalar. É, na verdade, uma lógica
que tenta reintroduzir a morte no cotidiano da vida.
No tempo da pandemia, percebemos o quanto a morte esteve e está
intensamente presente no nosso cotidiano e, concomitantemente, é um
assunto sobre o qual evita-se falar. As escolas sempre mantiveram de fora
o assunto sobre a morte, muito provavelmente como forma de poupar
assuntos que evocasse sofrimento às crianças e adolescentes, evidenciando
que o processo de socialização muito pouco vinha dando sustentação
para este acontecimento de nossas vidas. Como herdeiras do seu tempo,
com o irromper da pandemia, as escolas brasileiras ficaram constrangidas
em abordar a morte com seus alunos. Reconheciam a sua importância,
71
mas não sabiam por onde iniciar a retomar um fio de conversa sobre o
tema, fio que foi rompido conforme acompanhamos com Ariés (2012).
A educação para a morte deveria ocorrer não somente nas instuições de
saúde, como também em outros espaços educativos (KOVÁCS, 2021).
Vamos morrer um dia, é certo. Porém há diferentes posições a se
situar diante da morte, e de como transmitir para as novas gerações o
lugar da morte na vida. Assim, é de extrema importância no campo da
educação para a morte ressaltar uma diferença ético-política entre situar
a morte como um processo natural da vida, tal como se propõem os
Cuidados Paliativos, ou situar o processo de morrer como uma naturali-
zação, ou mesmo banalização, da morte. A naturalização de mortes opera
uma posição de desumanização, uma posição discursiva que realiza, em
ato, um agenciamento necropolítico, do deixar morrer para fazer morrer;
enquanto a significação da morte como natural dos Cuidados Paliativos
é enunciada a partir de um lugar de humanização e promoção de vida,
narrativa que agencia o deixar morrer como forma de ética de cuidado à
vida para possibilitar viver com dignidade.
Diante das inumeráveis perdas vividas no tempo pandêmico e da
banalização dessas mortes expressas por governos, como dos Estados Unidos
e de Brasil, resta-nos sublinhar o que a ética dos Cuidados Paliativos pode
nos ensinar sobre a dignidade do morrer: sobre encontrar vida diante da
finitude e sobre a importância de alargar as condições narrativas diante
da morte e do processo de luto.
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Nota: parte do texto publicado em: https://revistasbph.emnuvens.com.br/revista/article/view/482
73
EDUCAÇÃO PARA A MORTE NA ESCOLA:
ACOLHIMENTO DE PROFESSORES DIANTE DO
LUTO INFANTIL NA PANDEMIA DE COVID-19
Mariele Rodrigues Correa30
Raissa Pinto Rodrigues31
INTRODUÇÃO
Ao final do ano de 2019, a manifestação de uma nova doença
com alta taxa de propagação deu início a uma pandemia em nível mun-
dial, lançando um alerta de saúde pública e a necessidade de adoção de
medidas sanitárias para contenção da propagação do vírus, tais como
distanciamento social, higienização das mãos, uso de máscara, dentre
outros. O coronavírus (COVID-19) é uma doença infecciosa causada pelo
vírus Sars-Cov-2 e uma parte das pessoas infectadas apresentam sintomas
moderados com rápida recuperação, ao passo que outras desenvolvem
quadros graves necessitando de atendimento hospitalar para evitar seque-
las e outras consequências. Ainda assim, o coronavírus age de maneiras
diferentes em cada organismo, se agravando ou não a partir de outras
comorbidades e necessidades de saúde prévias que possam existir, podendo
levar à morte de fato (WHO, 2020).
Além da própria pandemia e do medo da doença, a necessidade de
distanciamento social impactou a saúde mental das pessoas, gerando uma
crise do ponto de vista psicológico diante do estresse, imprevisibilidade,
perdas acarretadas e instabilidade financeira (CASELLATO, 2020). Por
um longo período de tempo, diversas atividades tiveram de ser realiza-
das de forma remota, como as aulas nos mais diversos níveis de ensino.
Muitas trabalhadoras e trabalhadores tiveram de reajustar as atividades
laborais, seja no formato virtual ou na utilização de máscaras e outros
equipamentos de proteção individual (EPI).
30 Doutora e Mestra em Psicologia (UNESP). Professora dos cursos de Graduação e Pós-graduação em
Psicologia (UNESP). Psicóloga. CV: http://lattes.cnpq.br/7034542530075753
31 Mestranda em Psicologia (UNESP). Psicóloga. CV: http://lattes.cnpq.br/3585168296586206
74
A suspensão da rotina como era conhecida provocou uma ruptura
e a descontinuidade radical das práticas sociais e dos vínculos, afetando
o cenário internacional e constituindo uma verdadeira catástrofe (CRE-
PALDI et al., 2020; BIRMAN, 2020). A pandemia de Covid-19 causou
inúmeras perdas, concretas e simbólicas, atingindo o número de mais de
700 mil mortos pela doença no Brasil e milhões de pessoas enlutadas.
O luto pode ser definido como o conjunto de reações diante de uma
perda - de algo ou alguém com que ou quem se mantinha um vínculo
significativo, sendo um processo em que há sucessão de estados clínicos
que se mesclam e se substituem por tempo indeterminado, variando de
acordo com diversos fatores como cultura, tipo de vínculo, circunstâncias
da morte, dentre outros. (FRANCO, 2021; PARKES, 1998). Por ser um
processo particular e multidimensional, o enfrentamento diante da crise que
o luto causa varia conforme aspectos culturais e históricos de cada pessoa e
sociedade, não existindo, portanto, processos idênticos (FRANCO, 2008).
Mesmo sendo um processo natural do ser humano, o luto provoca
um forte abalo e desequilíbrio na vida, desorganizando o indivíduo enlu-
tado, o qual pode precisar de cuidados de várias ordens. Segundo Parkes
(1998) e Casellato (2020), é denominado “mundo presumido” o mundo
que organizamos internamente, visando garantir um senso de segurança
e previsibilidade diante do futuro, algo necessário à nossa sobrevivência.
O estabelecimento de regras, rotina e planejamento, pautados na nossa
própria história, servem para antecipar o futuro e construir expectativas
que permitam uma organização e manutenção do mundo presumido. Se
deparar com uma ameaça ou situações de perdas, como aconteceu a partir
do início da pandemia, rompe com o esperado e conhecido, ocasionando
perturbações no que antes era rotineiro e comum, trazendo à tona um
estado de alerta, medo e insegurança que não existiam anteriormente.
As mudanças na vida cotidiana, a quebra do mundo presumido, o
distanciamento social e a perda do convívio em comunidade causaram
diversos sofrimentos psíquicos e as restrições impostas afetaram todos os
setores da sociedade, obrigando o fechamento de serviços não essenciais,
como comércios e escolas. No contexto educacional, as aulas presenciais
foram suspensas e substituídas pelo ensino remoto, encontros online e
75
outras inúmeras adaptações necessárias. Após mais de um ano de iso-
lamento total, em 2021, o retorno às escolas ocorreu gradualmente e a
volta do convívio em grupo destacou dificuldades dos professores e da
comunidade escolar em lidar com as perdas e lutos das crianças e de seus
próprios processos de enlutamento, sendo que além das mortes de entes
queridos, também ocorreram perdas em comum nos espaços escolares.
Na sociedade ocidental atual, as crianças, no geral, são distancia-
das da morte e do morrer, passando por um silenciamento acerca da
temática, sobretudo diante de experiências de perdas e lutos, o que pode
levar a sofrimento emocional e perturbações no desenvolvimento infantil
através de sintomas como comportamentos destrutivos, medos, culpa,
confusão e ansiedade, além de uma visão distorcida a respeito da morte
(LIMA, KOVÀCS, 2011; SILVA et al., 2020). A compreensão infantil
acerca da morte está ligada ao desenvolvimento cognitivo da criança
(KOVÁCS, 1992). Consideram-se as dificuldades cognitivas e emocionais
para a elaboração do luto, que é processado ao longo da estruturação
psíquica na medida em que a criança consegue significar o que viveu em
distintos momentos da vida. Elaborando a perda, ela pode estabelecer
novos vínculos afetivos e aceitar figuras substitutivas, tornando-se dispo-
nível para outras relações e transformando a sua relação com a pessoa
perdida (MAZORRA, TINOCO, 2005).
As perdas geradas pelo cenário pandêmico afetaram consideravelmente
a vida e a rotina das crianças, diante da necessidade do distanciamento social
e da modificação do ambiente escolar do presencial para o virtual, gerando
sofrimento e perda da segurança. Além disso, muitas delas foram afetadas
pelo adoecimento e morte de pessoas próximas ao mesmo tempo em que
se adaptavam e se reorganizavam diante de novas rotinas, impactando
a saúde mental infantil (MICHEL, SCHIMIT, BLANENHEIM, 2021).
Diante de uma experiência de perda, é importante que a famí-
lia se prepare para transmitir a informação acerca da morte de um
ente querido e proporcionar conforto e segurança para a criança em
situações de crise, uma vez que elas podem compartilhar sentimentos e
angústias e o adulto deverá atuar como facilitador no processo de luto
da criança (LIMA, KOVACS, 2011).
76
Considerando o contexto de retorno presencial às escolas após um
período longo de ensino remoto, crianças e adolescentes voltaram ao seu
espaço de socialização de uma forma diferente, muitas vezes enlutados por
diversas perdas e demandando outros tipos de cuidados ao expressarem
suas dores e sofrimentos aos professores. Segundo Figueiredo (2022), é
comum que professoras e professores se sintam despreparados para abordar
esses temas com crianças que levam suas inquietações para o ambiente
escolar, as quais precisam ser ouvidas e acolhidas pelo adulto. Porém, isso
nem sempre acontece, tanto pela lacuna na formação docente quanto pelo
afastamento com a temática da morte. Em pesquisa sobre o tema, Kovács
(2010) aponta que a maioria dos professores entrevistados reconhece a
importância de se falar de morte nas escolas e acreditam que podem con-
tribuir para o acolhimento das crianças através de espaços de reflexão.
Além do mais, de acordo com a autora, é necessário preparo e cuidado ao
abordar o tema da morte, sendo essencial levar em conta os sentimentos das
crianças, um aspecto apontado pelos professores entrevistados ao afirma-
rem que gostariam de receber amparo por meio de palestras, treinamentos
e leituras que possam auxiliar no manejo da temática (KOVÁCS, 2010).
DESENVOLVIMENTO
Diante do explanado acerca da pandemia de Covid-19, de seus
possíveis impactos e, ainda, considerando a importância do acolhimento
à comunidade escolar no contexto pandêmico, foram ofertados espaços
de suporte e apoio aos professores da rede pública de ensino de uma
cidade no interior de São Paulo. O objetivo dessa prática, realizada por
estagiárias do quinto ano do curso de graduação em Psicologia, supervi-
sionadas por uma docente e por uma psicóloga, era oferecer um espaço
de acolhimento aos professores e professoras, com troca de experiências e
escuta das demandas relacionadas ao retorno presencial das aulas. Como
objetivos secundários, procurou-se abordar aspectos psicossociais sobre
a morte e o morrer, além do desenvolvimento de uma sensibilização
em relação à educação para a morte e aos processos de luto. A partir do
contato com a Secretaria de Educação do município em que a atividade
foi desenvolvida para divulgação com os docentes e funcionários, foram
77
realizados três encontros quinzenais, em meados de 2021, com 2 horas
de duração cada, por meio da plataforma Google Meet, com a presença
de 40 participantes, todas mulheres cisgêneras.
No primeiro encontro, foram explanadas orientações teóricas sobre
o contexto cultural da morte, utilizando o autor Philippe Ariés e seu
livro “O homem diante da morte” (2014), como uma forma de abordar
as influências sociais e culturais em como lidamos com o luto e a morte.
Partimos do pressuposto da importância de mostrar que o tabu da morte
e o silenciamento do tema não são por acaso, mas sim um produto histó-
rico. Outro ponto teórico abordado inicialmente se referiu às perdas que
acontecem ao longo da vida. Tomamos como referência o livro “Morte
e Desenvolvimento Humano” da autora Maria Júlia Kovács (1992) para
dialogar sobre as perdas que são parte natural do processo de viver.
Apesar de o enfoque maior da atividade proposta estar relacionado
às perdas da infância e adolescência, também abordamos os processos de
luto vividos na vida adulta e velhice, considerando a faixa etária das pro-
fessoras e levando em conta a importância de eles perceberem e validarem
seus próprios lutos. Após a exposição dessas temáticas teóricas, partimos
para um aprofundamento sobre aspectos gerais do luto, apresentando
conceitos, dialogando sobre a singularidade do processo de enlutamento
e as reações comuns ao luto nas esferas cognitivas, emocionais, físicas e
espirituais (FRANCO, 2021; WORDEN, 2013).
As diversas perdas provocadas pela pandemia foram citadas como
exemplos para melhor compreensão do tema, sendo que:
a morte se faz presente na forma de luto concreto para
os indivíduos que perderam um familiar, amigo ou
ente querido [...] e existe o luto de dimensão simbólica
permeando o cotidiano, fruto da perda de liberdade,
dos projetos adiados e/ou cancelados, do emprego per-
dido e tantos outros prejuízos (PEREIRA, SOBRAL,
SILVA, 2021).
Percebeu-se, ao fim do primeiro encontro, que as professoras se
identificaram com inúmeros aspectos apresentados sobre o processo
de luto, relatando também sobre suas próprias experiências de perdas e
78
sentimentos relacionados a elas. Alguns comentários mencionaram a difi-
culdade de vivenciar o luto em uma sociedade que vive uma conspiração
do silêncio em torno da morte (KOVÁCS, 2005), não sendo possível ao
menos falar sobre a perda e a saudade do ente querido sem julgamentos
ou comentários insensíveis de terceiros. As participantes se apoiaram nos
relatos umas das outras, podendo falar livremente, a partir do acolhi-
mento e validação das mediadoras, sobre os sentimentos e pensamentos
despertados com o conteúdo trazido.
Para o segundo encontro, planejou-se abordar conteúdos específicos
acerca do luto infantil e possibilidades de atuação das educadoras dentro
da escola. Porém, ao iniciarmos, uma das participantes mencionou que
a comunidade escolar havia perdido, naquela semana, duas professoras
muito queridas de forma abrupta, uma delas em decorrência de câncer e
a outra por infarto, gerando uma comoção grupal perceptível. Decidiu-
-se, portanto, deixar os conteúdos planejados para o último encontro e
proporcionar um espaço de acolhimento e validação para as participantes
poderem falar sobre a morte das colegas.
Através do incentivo das mediadoras, as professoras puderam ter
seu espaço seguro para falar o que desejassem. Algumas participantes
compartilharam lembranças, outras contaram sobre a história do vínculo
com as colegas, sobre boas ações realizadas por elas e sobre a saudade que
deixaram. Também foi possível pensar em formas de homenageá-las no
ambiente escolar, considerando que as próprias participantes trouxeram
falas referentes à preocupação sobre como os alunos reagiriam às mortes
das professoras e como lidariam com a perda da educadora de referência.
Além disso, percebeu-se um movimento de confiança, por parte das parti-
cipantes, de se abrirem com as colegas e com as mediadoras, fazendo do
encontro em grupo um espaço propício para a expressão de sentimentos.
Algumas participantes, após falarem do luto vivido em decorrência
da morte das colegas, relacionaram a perda com outros lutos pessoais,
analisando maneiras de lidar com a morte. Tal assunto gerou, por fim,
reflexões sobre a própria morte, sobre funerais e outras preocupações
mencionadas. Entendeu-se, a partir do segundo encontro, o quanto falar
79
sobre o luto não é só essencial para o próprio processo, mas também gera
reflexões sobre a própria finitude.
Por fim, no terceiro e último encontro, retomamos aspectos teó-
ricos do luto infantil e possíveis intervenções na escola. Inicialmente,
abriu-se um espaço de questionamento para a interação das participan-
tes a partir da pergunta disparadora: “Como vocês enxergam o luto na
infância?”. As respostas foram diversas, partindo de comentários sobre
a importância de ser sincero com a criança sobre a morte, o olhar cui-
dadoso sobre os sentimentos da mesma e a sensibilidade necessária para
o suporte emocional na escola.
Entretanto, outras falas apontaram para a dificuldade das professo-
ras em compreender a relevância do tema ao citarem o uso de metáforas
sobre a morte para a criança (como, por exemplo, dizer que a pessoa
“virou estrela”), além de preferirem não contar sobre o falecimento de
um familiar e dizer que morte não é assunto para criança. Tal discurso
demonstra o quanto a sociedade, no geral, está despreparada para acolher
crianças enlutadas. Após a exposição de opiniões, as mediadoras apresen-
taram conteúdo teórico acerca de como a criança vive o luto, os fatores
de influência, o entendimento sobre a morte a partir da faixa etária e as
possíveis manifestações do luto infantil. Enfatizou-se a não patologização
do luto no ambiente escolar, as repercussões da pandemia na vida da
criança e algumas dificuldades na comunicação sobre a morte, tais como:
evitar o assunto como tentativa de proteger a criança, não ouvir o que
elas dizem e pensam, invalidar seus sentimentos e mentir sobre a morte.
Procuramos abordar esses aspectos de forma clara, mas também afetiva,
de modo a sensibilizar as docentes para um assunto tão importante.
No lugar das dificuldades apontadas, apresentamos algumas alter-
nativas: uso do verbo morrer, falar de forma objetiva e adequar a lin-
guagem para a faixa etária da criança, além de perguntar como a criança
está e demonstrar que o adulto também sente a dor do luto. Abriu-se
espaço para questionar o que fazer com o luto infantil na escola e as
participantes concordaram que é possível realizar ações no ambiente
educacional, apenas não sabiam como.
80
A partir da discussão sobre a importância dos rituais coletivos de
despedida, sugeriu-se cerimônias de homenagem, mural interativo, escrita
de cartas e espaços de reflexão para que as crianças pudessem expressar
seus sentimentos acerca da perda em comum. Como forma de abordar a
temática, o uso de filmes e livros (“Rei Leão”, “Viva- a vida é uma festa”,
“A caminho da Lua” e “O dia em que o passarinho não cantou” foram
sugeridos) podem ser disparadores de discussões em sala de aula. Ao
finalizar o projeto, o último encontro foi permeado de agradecimentos
acerca da proposta apresentada. As professoras se mostraram satisfeitas
com as dicas, sugestões e considerações teóricas, se mostrando um tanto
mais confiantes para lidar com os desafios do retorno às aulas presenciais.
Quando os professores abrem espaço para que a criança fale, per-
mitem um modelo saudável de aprendizagem e se mostram atentos para
o que está acontecendo em sala de aula, não ignorando o aluno enlutado
fingindo que nada está acontecendo (MARASCHIN, FREITAS, CAR-
VALHO, 2003; KOVÁCS, 2005). Um canal aberto para a comunicação
sincera, com sensibilidade e disponibilidade emocional para escutar
a criança é indispensável para os educadores manejarem o luto infan-
til que aparece em sala de aula.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A morte é um tabu na sociedade e continua sendo um assunto
interdito, não conversado livremente e escondido, principalmente por
causar dor e sofrimento, uma vez que temos dificuldade em compreender
que a perda é algo natural no desenvolvimento humano. A pandemia de
Covid-19 levou as pessoas a entrarem em contato com a morte e o luto
diariamente, tendo seu sofrimento intensificado por conta do isolamento
social e a falta de espaços de socialização. Nesse caso, as crianças, por serem
afastadas da temática podem sofrer ainda mais, não tendo direito à espaços
em que possa se expressar, questionar e refletir sobre seus sentimentos a
partir da morte de algum familiar, amigo ou professor.
Com a diminuição no risco de contágio pelo vírus, foi possível o
retorno às atividades presenciais e, consequentemente, às escolas. Dentro
do contexto apresentado, percebeu-se a importância de oferecer, como
81
profissionais da Psicologia, respaldo teórico-técnico e sensibilização sobre
o tema da morte, que facilmente adentraria nas salas de aula e ambiente
escolar. Os professores demonstraram a lacuna educacional presentes em
seus cursos de graduação sobre a temática da morte e luto, ao não con-
siderarem que essas reverberações são possíveis no contexto educacional.
Nos encontros, foram apresentadas orientações teóricas sobre o contexto
cultural da morte, o processo de luto, o luto infantil no ambiente escolar
e um espaço de acolhimento para os professores falarem sobre suas pró-
prias perdas, dificuldades e experiências, como uma forma de promover
educação para a morte aos educadores.
Notou-se como a morte e o morrer são tabus e temáticas interditas,
havendo dificuldade em discutir sobre as perdas, lutos e o papel da escola
como um importante espaço de conscientização, acolhimento, expressão de
sentimentos e, consequentemente, de validação das perdas e lutos. Discutir
sobre como ocorre o luto na infância e na adolescência possibilitou discus-
sões com os participantes dos encontros, havendo diálogos e sensibilização
sobre o tema, auxiliando-os com situações que ocorriam no dia a dia.
Dessa forma, conclui-se que é de grande relevância a criação de
espaços de acolhimento e reflexão com a comunidade escolar, da educação
para a morte e o luto, em especial após tantas perdas concretas e simbólicas
durante a pandemia de Covid-19. Também destaca-se a importância de
trabalhar o conhecimento sobre os processos de luto na infância, ado-
lescência e vida adulta, reconhecendo-as como ferramentas no auxílio da
prática profissional nas instituições escolares e como forma de promover
saúde mental para docentes, funcionários e discentes.
REFERÊNCIAS
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82
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#tab=tab_1
83
LUTO NA INFÂNCIA: COMPREENSÃO
TEÓRICA DAS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E
NECESSIDADES DA CRIANÇA ENLUTADA
Raquel Pinheiro Niehues Antoniassi32
INTRODUÇÃO
A construção deste capítulo é resultado das demandas vivenciadas
ao longo do meu processo de trabalho como psicóloga, no qual temáticas
relacionadas ao luto na infância tem se apresentado como uma demanda
frequente, principalmente nos últimos anos, como resultado das inúmeras
mortes ocorridas no período de pandemia da COVID-19.
De acordo com relatório publicado pela Grupo Global de Referên-
cia sobre Crianças Afetadas pela COVID-19 e Crise, no mundo, mais de
5,2 milhões de crianças perderam um dos pais ou cuidador pela doença.
No Brasil, cerca de 159.800 crianças estão enlutadas pela morte de um
ou ambos os pais ou cuidadores principais no período de maio/2020
a maio/2023
33
, sendo que este número aumenta para 268.500 quando
incluímos morte de outros familiares. (UNWIN, 2022). Este número já é
alarmante por si só, porém, se pensarmos que ainda há mortes por outras
causas que exponenciam os dados apresentados, torna-se evidente o quanto
endereçar a atenção e o cuidado à crianças enlutadas é demanda urgente
para profissionais da saúde, em especial da saúde mental, principalmente
se relacionarmos ainda a outros tipos de perdas simbólicas que usualmente
são vivenciadas após a morte.
Entendo que faz-se necessário, diante de quaisquer demandas de
atendimento clínico, buscar respaldo teórico e técnico que sustente de forma
coerente, adequada e responsável a prática do profissional de Psicologia.
32 Mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). Psicóloga. CV: http://lattes.cnpq.br/3308218955414111
33 Dados referentes a crianças cujos pais morreram por COVID-19 podem ser encontrados na “calcula-
dora de órfãos da COVID”, desenvolvido pela Faculdade Imperial de Londres, disponível em: https://
imperialcollegelondon.github.io/orphanhood_calculator/#/country/Brazil.
84
No entanto, no que se refere a temática do luto na infância, sempre me
deparo com a escassez de material científico qualificado, principalmente
escrito em língua portuguesa34.
Desta maneira, minha prática clínica tem sido acompanhada de
muitos estudos sobre luto na infância, de modo que o presente capítulo é
resultado deste processo de aprofundamento teórico-prático, o qual busco
aqui sistematizar, a fim de colaborar para uma compreensão, avaliação e
intervenção fundamentadas adequadamente sobre o tema.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DO LUTO NA INFÂNCIA
A vivência de perdas durante a infância constitui-se algo inevitável,
sendo que a grande maioria delas não estão relacionadas com a morte, como,
por exemplo, perdas de brinquedos favoritos que se quebram, mudanças de
cidade, escola e/ou amigos, divórcio dos pais, mudanças bruscas de rotinas
(como a ocasionada pelo distanciamento físico vivenciado ao longo da
pandemia de COVID-19), e outras. Contudo, experiências de perdas por
morte podem se fazer presente com muita frequência na infância, seja por
morte dos pais, irmãos, familiares próximos e/ou distantes, professores,
amigos e mesmo desconhecidos (através de noticiários e informações facil-
mente acessíveis hoje diante do uso da tecnologia). Sendo assim, trabalhar
com a temática do luto implica reconhecer e validar que experiências
de pesar e luto podem ser vivenciadas nessas mais diversas situações de
perdas simbólicas e/ou concretas pelas quais as crianças podem passar.
Conforme Presa (2014), a criança pode vivenciar o processo de luto
de diferentes formas, que variam de acordo com suas habilidades cognitivas
e emocionais adquiridas ao longo de seu processo de desenvolvimento35.
34
Para elucidação deste dado: em pesquisa realizada no PUBMED com as palavras chave “children”
(criança) e “grief” (luto), foram encontrados 3.658 artigos publicados de 1958 a maio de 2023, sendo
que apenas 894 deles nos últimos 5 anos e, destes, 5 em língua portuguesa. Entretanto, ao ler os títu-
los e resumos de tais artigos, identifica-se que muitos deles não tratam diretamente do tema luto na
infância, mas temas afins como: luto de pais, cuidados paliativos na infância, perdas neonatais, etc.
35 No Brasil, entendo que duas publicações foram marcos para a discussão dessa relação entre o desen-
volvimento infantil e luto, sendo elas os livros A criança diante da morte: desaos”, de Wilma da Costa
Torres, em 1999 e reeditado em 2002; e “Luto na infância: intervenções psicológicas em diferentes contextos”,
organizado por Luciana Mazorra e Valéria Tinoco, em 2005. Embora sejam publicações de cerca de
20 anos atrás, por constituírem-se importantes referências em português, sugiro fortemente a leitura e
aprofundamento do material e os utilizo como referência no presente capítulo.
85
Torres (2002) apresenta de forma detalhada uma relação entre o processo
de desenvolvimento da criança com a construção do conceito de morte,
enfatizando que este é um dos princípios organizadores mais importantes
na formação da personalidade humana. Mazorra (2005), reforçando como
a compreensão infantil da morte acontece em estreita relação com o desen-
volvimento cognitivo da criança, complementa ainda que a assimilação
deste conceito interfere diretamente sobre como ocorre o processo de
elaboração de luto na infância36. E a compreensão de como essa relação
acontece, portanto, é essencial para entender as diversas possibilidades de
expressão (ou ausência desta) nas diferentes fases do desenvolvimento em
que a criança se encontra durante seu processo de luto.
Luto é uma resposta subjetiva diante de uma perda, a qual mobiliza um
processo de construção de significado que se inicia a partir do rompimento
de um vínculo e, consequentemente, da “perda do mundo presumido”, em
que tudo aquilo que a pessoa conhecia deixa de existir, levando-a a experi-
mentar um mundo desconhecido e, portanto, inseguro e assustador. (PAR-
KES, 1996; BARBOSA, 2016; DOKA & CHOW, 2021; FRANCO, 2021).
Estudos têm demonstrado que a perda de uma pessoa querida pode
ser um dos eventos de vida mais estressantes pelo qual uma criança pode
passar, constituindo-se ainda em um importante fator de risco para o
desenvolvimento de diversos transtornos mentais, tanto na infância quanto
na adolescência e/ou vida adulta. (REVET et al., 2020).
Doka & Chow (2021) enfatizam que as reações ao luto podem
surgir de diferentes maneiras, que incluem manifestações físicas, cogni-
tivas, espirituais e comportamentais. No entanto, ressaltam que as abor-
dagens contemporâneas consideram que o processo de luto não segue
um caminho previsível, linear ou universal, destacando que segue, na
verdade, um padrão de altos e baixos, com variabilidade da intensidade
das possíveis reações vivenciadas37.
36 Tais especificidades de cada fase do desenvolvimento x possíveis reações ao luto na infância não serão
abordadas de forma aprofundada neste capítulo por dois motivos: 1. Entendo que este conteúdo é o
que encontramos com mais frequência na literatura em português disponível atualmente, de forma que
2. O objetivo principal deste capítulo consiste apresentar conteúdo que, de alguma forma, contemplem
o que percebo como as lacunas que identifico na literatura brasileira sobre o tema. Portanto, reforço
a sugestão de estudo dos materiais mencionados na nota anterior.
37 Sugiro aprofundamento no estudo sobre modelo dual do luto, proposto por Stroebe & Schut, 1999.
86
No que diz respeito a possível reações a serem manifestadas na
infância diante da perda por morte, Revet et al (2020) compreendem
que, partindo de uma perspectiva desenvolvimental, as principais rea-
ções encontradas nas crianças diante do luto podem ser as que são apre-
sentadas na tabela 1, que segue.
Tabela 1 – Estágios de Desenvolvimento para a Compreensão da Morte e Reações
ao Luto de Acordo com a Idade, segundo Revet et al (2020)38.
Estágios do
Desenvolvimento Habilidade para
Compreender a Morte Possíveis Manifestações do Luto
Lactentes
(0 – 2 anos) Sem compreensão da morte
Angústia em geral, irritabilidade
Regressão e mudanças na rotina (choro,
alimentação, sono)
Somatização
Abstinência infantil e depressão
Ansiedade de abandono
Crianças
(2 – 4 anos)
A morte é vista como
reversível, como ausência
física prolongada
Nenhuma diferença entre
morte e sono
Pensamentos mágicos sobre o
tema da morte
Confusão, pesadelos e agitação noturna
Comportamentos regressivos, mudanças de
alimentação e sono
Choro e angústia generalizada
Acessos de raiva e afastamento dos outros
Crianças no Jardim
de Infância
(4 – 6 anos)
Grande variabilidade na
percepção e compreensão da
morte e sua irreversibilidade
Persistência de pensamentos
mágicos sobre o tema da
morte
Culpa considerável
Questionamento incessante sobre a morte
Raiva, hiperatividade, irritabilidade
Tristeza e grande sensibilidade para
manifestações de tristeza entre pessoas
próximas
Regressão
Insônia e pesadelos
Possível negação protetiva que pode deixar os
adultos perplexos
Levar tudo para o sentido literal (cuidado com
as imagens usadas para falar sobre a pessoa
falecida)
Preocupação com as mudanças que perturbam
a rotina diária (perdas e ganhos)
Crianças na Escola
Primária
(6 – 8 anos)
Compreensão da
irreversibilidade da morte
Incapacidade de generalizar a
experiência da morte para si
ou para os outros
Negação do fato de que ele(a) também poderia
morrer
Medo de que algo possa acontecer com pessoas
próximas
Sentir-se anormal em comparação com seus
colegas
Questionamento repetido sobre a morte
Ansiedade e depressão
Somatização
Raiva
Retirada e isolamento
Sentimentos de perda de controle
38 Tradução livre realizada pela autora.
87
Estágios do
Desenvolvimento Habilidade para
Compreender a Morte Possíveis Manifestações do Luto
Crianças no
Período de
Latência
(8 – 12 anos)
A morte vista como um
fenômeno natural e universal
Aquisição progressiva da
capacidade de entender a
causa da morte
Coexistência de considerável curiosidade e
ansiedade em relação à morte
Questionamentos filosóficos ou religiosos
sobre a morte
Problemas de concentração
Sentir-se diferente das outras crianças
Adolescentes
(12 – 18 anos)
Percepções claras da morte e
suas implicações tanto pessoal
quanto geral
Questionamento existencial
sobre a morte
Raciocínio abstrato sobre a
morte
Antagonismo entre processos da adolescência
e processo de luto
Possível negação do luto, com luto adiado
para preservar os processos da adolescência
Tristeza, depressão, ansiedade
Raiva
Retirada e solidão
Importância da identificação (grupos de
adolescentes enlutados)
Problemas de concentração, dificuldades na
escola
Comportamentos propensos ao risco (vícios,
correr riscos, etc.)
Atitudes protetoras em relação à família
(atitudes parentais)
Barbosa & Coelho (2014) reforçam ainda o quanto “o processo
de luto é sempre um processo singular nas suas expressões qualitativas e
nas modalidades de desenvolvimento que se vão manifestando ao longo
do tempo” (p. 1), sendo que sua compreensão só é possível a partir da
identificação e avaliação dos mediadores de tal processo. Com base na
integração de revisões sistemáticas recentes, os autores sintetizam a clas-
sificação dos mediadores do processo de luto na tabela 2, abaixo.
Tabela 2 – Classificação dos Mediadores do Processo de Luto (Barbosa & Coelho (2014)
FATORES ESPECÍFICOS FATORES GERAIS
Objeto da Perda Situacionais Intrapessoais Interpessoais
Características
demográficas do
falecido
Circunstâncias de
morte
Características
demográficas do
enlutado
Funcionamento
familiar
Grau de parentesco Condições de
tratamento (satisfação
com cuidados)
Antecedentes
psiquiátricos
Personalidade Suporte social
Qualidade da relação
anterior com o falecido
Condições de cuidar
(sobrecarga do
cuidador) Estilo de vinculação Contexto cultural
Questões pendentes Estressores
concorrentes Estilo de coping Religiosidade
Espiritualidade
Lutos anteriores
88
Desse modo, as diferentes reações ao luto manifestadas pela criança
serão influenciadas pelos mediadores de luto que se apresentam em sua
vida. Considerando os aspectos mencionados pelos autores, entende-se,
portanto, que o entendimento dos mediadores do luto na infância deve
ser prática presente nos cuidados com a criança enlutada, uma vez que
possibilita uma ampla avaliação dos fatores que podem contribuir posi-
tiva e/ou negativamente para o processo de luto e, consequentemente,
para a elaboração e prática de intervenções que estejam de acordo com a
singularidade de cada caso que se apresenta no contexto clínico.
Além disso, considerando a forma como os mediadores se articu-
lam no contexto singular de cada criança enlutada, seus efeitos poderão
exercer influência direta e/ou indireta sobre o enlutamento, o qual pode
não ser resolvido de forma adaptativa, mobilizando processos de luto
prolongado e/ou complicado e, por sua vez, interferindo negativamente
no desenvolvimento da criança como um todo e, consequentemente, sobre
seu funcionamento biopsicossocial. Isto implica reconhecer o quanto o
processo de luto pode ter impactos significativos ao longo de toda a vida,
inclusive na vida adulta, uma vez que terá papel essencial na constituição
da personalidade da criança e desenvolvimento dos padrões relacionais
consigo mesma e com os outros.
Conforme indicado por Doka & Chow (2021), a criança pode
passar pelo processo de luto tanto de forma similar quanto diferente
dos adultos, porém um dos grandes diferenciais do processo de luto na
infância refere-se ao fato de que ao longo do processo de desenvolvimento,
a criança vai adquirindo novas habilidades cognitivas, que possibilitam
a ela a compreensão da morte em novas dimensões anteriormente inal-
cançáveis. Por este motivo, a criança pode reativar o luto de diferentes
maneiras em fases posteriores do desenvolvimento na medida em que
suas novas habilidades cognitivas vão lhe permitindo novas compreensões
acerca da morte e, portanto, exigindo dela novas construções de sentido
sobre a perda experienciada anteriormente. Revet et al (2020) reforçam
ainda que o processo de luto pode ser reativado a partir de vivências de
vulnerabilidade psíquica da vida adulta, como, por exemplo, gravidez,
puerpério, vivências traumáticas, etc.
89
Neste sentido, em minha prática clínica, percebo esse fator como um
dos que mais podem interferir negativamente sobre as habilidades, tanto
da rede de apoio da criança (família, escola, etc.) quanto dos profissionais
que a acompanham, de avaliação e manejo adequados do processo de luto
na infância. Isto porque as crianças podem parecer desenvolver estraté-
gias de enfrentamento adequadas e saudáveis em um momento inicial,
porém, posteriormente, em fases posteriores do desenvolvimento, podem
também apresentar reações que não se fizeram presentes imediatamente
após a morte. Esta manifestação tardia pode, muitas vezes, dificultar o
reconhecimento da relação entre as reações atuais e a perda vivenciada em
fase anterior, não possibilitando, assim, condições para que as famílias e
profissionais possam oferecer o devido acolhimento, validação e cuidado
das necessidades apresentadas pela criança.
Outro aspecto do luto na infância que se apresenta como fator de
dificuldade para os cuidadores é a compreensão de que, assim como afirma
Marshall & Davies (2022), as crianças não possuem a habilidade de identi-
ficar seus sentimentos e expressá-los da maneira como os adultos esperam,
pois expressam suas emoções principalmente através do comportamento.
Desse modo, as alterações de comportamento que podem aparecer como
reações ao luto na infância constantemente representam para as famílias
um elemento de difícil compreensão e manejo, o que, por sua vez, pode
tornar-se um mediador complicador do processo de luto na infância.
No contexto clínico, frequentemente tenho me deparado com as
dificuldades familiares no enfrentamento das reações comportamentais
expressas no luto na infância, principalmente quando os comportamen-
tos aparecem de forma negativa, porém, também, em situações em que a
família não consegue perceber o quanto a manutenção de um comporta-
mento percebido por ela como positivo é, na verdade, reação disfuncional
ao processo de luto. Reações como agressividade, impulsividade, medos,
diminuição do rendimento escolar, dificuldades relacionadas ao sono e
alimentação costumam ser percebidas pela família como reações negativas
ao luto e que precisam ser modificadas para o restabelecimento saudável
90
da dinâmica familiar. Por outro lado, reações como querer agradar os
adultos com frequência, perfeccionismo, estudar mais do que costumava
fazer, cuidar dos irmãos, assumir papéis que antes não assumia, podem
ser percebidos pela família como positivo e, no entanto, ser expressão,
por exemplo, da percepção da criança de que precisa atender as necessi-
dades do outro diante do medo não expresso de perda dos adultos que
permanecem em sua vida. E a não percepção desta relação direta entre a
morte e o desenvolvimento de tais comportamentos pode, quando não
endereçada de forma adequada, tornar-se um elemento estressor e fator
de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais futuros.
Kaplow et al (2013) desenvolveram a teoria do luto multidimensional,
com base em uma concepção de luto multidimensional informada pelo
desenvolvimento, a qual compreende que as reações ao luto na infância
e adolescência podem ser caracterizadas por três principais dimensões ou
desafios relacionados ao processo de elaboração do luto, que são:
Angústia de separação: envolve a falta de quem morreu, busca
por reencontrar a pessoa perdida, reações de protesto, raiva ou
desespero diante da continuidade da separação;
Angústia existencial/de identidade: envolve interrupção no senso
de self, planos de vida e senso de propósito e/ou sentido. Pode
incluir sentir-se diferente das outras pessoas, necessidade de
evitar a construção de planos para o futuro e perda de interesse
em atividades que costumava gostar; e
Angústia relacionada às circunstâncias da morte: Pensamentos preo-
cupantes e sofrimento emocional acerca da maneira como a
pessoa morreu, principalmente quando a morte ocorreu em
circunstâncias traumáticas. Pode incluir imagens e cognições
negativas sobre os fatos relacionados a morte, assim como culpa,
raiva, vergonha e desejos de vingança.
91
Lytje e Dyregrov (2021) apresentam estudos cujos resultados têm
demonstrado que o luto pela morte de um dos pais pode, nas crianças
menores, resultar em: aumento da probabilidade do desenvolvimento
de depressão, redução do desenvolvimento escolar e ampliar o risco de
comportamentos de alto risco. Por outro lado, estudos sugerem ainda que
tais riscos podem ser minimizados quando são oferecidas intervenções de
suporte adequadas, principalmente quando estas são praticadas por um dos
pais, uma vez que estes são os que mais têm conhecimento e convivência
com a criança. Neste sentido, os autores afirmam que o cuidado parental
pode ser o fator mediador mais importante para a redução de fatores de
risco físicos e mentais da criança enlutada.
No entanto, precisamos considerar que, diante de uma criança
enlutada, temos adultos cuidadores que também estão vivenciando seu
próprio processo de luto após a morte de quem se foi e, além disso, a
família pode estar afetada de diferentes maneiras, tais como alterações
nas questões financeiras e práticas da rotina familiar, que passam a ser
assumidas integralmente por aqueles que ficam. Neste contexto, entende-se,
portanto, que esses cuidadores podem ter temporariamente sua habilidade
de cuidados alterada diante de suas próprias reações subjetivas e demandas
objetivas diante da perda vivenciada.
Desta maneira, para que seja possível oferecer o devido cuidado
a criança enlutada no contexto clínico, faz-se necessário construir e
potencializar vínculos com todo o contexto familiar e, por vezes, social
(escola, comunidade) do qual a criança faz parte, possibilitando também
a eles a expressão e o cuidado de seu processo de luto. Intervenções de
acolhimento, psicoeducação e, quando necessário, encaminhamentos
profissionais, tornam possível o fortalecimento da instrumentalização
da família para atender às necessidades identificadas na criança sem que
os fatores familiares exerçam papel de fatores de risco que interfiram
no manejo do luto na infância.
92
NECESSIDADES DA CRIANÇA ENLUTADA
De acordo com Moura (2013), é comum que as pessoas tenham
dificuldade de tratar o tema da morte, muitas vezes recorrendo a fuga e
ao silêncio como forma de lidar com a morte junto às crianças, o que,
entretanto, pode ser fonte de ainda mais sofrimento, dificuldade de
enfrentamento da situação e de comunicação de suas vivências para as
pessoas que estão em seu entorno.
Considerando que o processo de adaptação à perda por morte leva à
necessidade de resolução de algumas tarefas específicas a serem realizadas
ao longo do processo de luto, Worden (1996) defende que, no caso do
luto na infância, tais tarefas envolvem singularidades importantes quando
comparadas ao luto em outras fases do desenvolvimento.
A partir da compreensão de que o luto é um processo de adaptação
à perda, Worden (1996) entende que é necessária a realização de tarefas do
luto, que são: aceitar a realidade da perda; experienciar a dor ou aspectos
emocionais da perda; ajustar-se a um ambiente no qual a pessoa que morreu
não faz parte; e criar rituais de memorialização, possibilitando encontrar
uma nova forma de conexão com a pessoa que morreu.
Desta forma, o autor entende que cumprir as tarefas do luto também
é uma necessidade da criança enlutada, que devem ser acolhidas e facilitadas
pelos cuidadores, respeitando, entretanto, os aspectos relacionados ao seu
desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Por exemplo, uma criança
que ainda não é capaz de compreender a abstração da irreversibilidade
da morte, apresentará dificuldades para a resolução da tarefa inicial de
aceitar a realidade da perda, assim como uma criança de 5 anos de idade
que possui o pensamento mágico de acreditar que foi ela quem causou
a morte, possivelmente apresentará sintomas ao realizar a tarefa de expe-
rienciar a dor ou aspectos emocionais da perda permeadas por culpa.
No que diz respeito a tarefa “aceitar a realidade da perda”, entende-se
que, para isso, é preciso que a criança tenha compreensão de abstrações
como finitude e irreversibilidade da morte, o que, no entanto, ocorre
93
apenas quando a criança é capaz de pensamento operacional. Enfatiza-se,
portanto, a necessidade de a criança receber informações corretas e em
linguagem apropriadas a sua faixa etária sem eufemismos que relacionem
a morte a viagem, partida, descanso ou sono profundo, por exemplo.
Moura (2013) reforça a importância de as informações fornecidas à
criança estarem relacionadas aos aspectos biológicos, tais como “morreu
o coração; o coração não bate mais; já não respira; como uma planta,
morreu.” (p. 131). Além disso, enquanto a criança não possui a habilidade
de pensamento operacional, ela precisa que as informações sejam passadas
de forma repetitiva ao longo do tempo, uma vez que essa repetição lhes
possibilita testar a realidade da morte assim como certificar-se de que não
houve mudança na história, motivo pelo qual ela pode perguntar de forma
constante sobre a morte de quem se foi. A este respeito, Worden (1996)
indica que a ausência dessas respostas e informações pode levar as crianças
a preencher as lacunas por conta própria, muitas vezes com dados que
podem ser ainda mais assustadores do que a história real, favorecendo a
presença de mediadores negativos do processo de luto.
A tarefa de “experienciar a dor e aspectos emocionais da perda” constitui-se
tarefa que observo, na prática clínica, ser de difícil manejo para os adultos,
que, muitas vezes, sentem-se na responsabilidade de ‘resolver’ a dor da
criança e demonstram dificuldade para acolher e validar expressões afetivas
negativas de forma organizada e saudável. Neste sentido, Worden (1996)
enfatiza que tal dificuldade pode ser um fator de risco para o processo
de luto na infância, uma vez que a atitude dos adultos serve de modelo
para a criança a respeito de como lidar com suas emoções negativas. Por
exemplo, se a criança visualiza o adulto tentando a distrair de sua dor,
ou demonstrando reações negativas a sua expressão, tende a assumir o
silêncio como estratégia, o que, no entanto, inibe a partilha e expressão
emocional da dor da criança por sentir que não tem espaço para tal.
Assim, precisamos ser facilitadores do processo gradual de expressão e
desenvolvimento de estratégias de enfrentamento para aquilo que está
sendo manifestado pela criança, pois:
94
se a criança vê o adulto expressar a perda sem ser de
modo exagerado, esta observação pode servir como
exemplo salutar. As crianças que vêem adultos com uma
expressão emocional desajustada e exacerbada podem
ficar assustadas com os outros e com os seus próprios
sentimentos (MOURA, 2013, p.132).
O “ajustamento a um ambiente do qual a pessoa que morreu não faz parte”
estará diretamente relacionado aos papéis e relações que o falecido man-
tinha com a criança, assim como com todo o contexto familiar. Isto
porque, de acordo com Worden (1996), a realização desta tarefa depende
da adaptação construída em torno dos papéis e relações perdidos. Daí a
importância da manutenção da rotina da criança a partir da morte de um
ente querido, pois grande parte da preocupação dela estará relacionada
com as disrupções ocorridas em sua rotina, ou com quem exercerá os
papéis que antes eram assumidos por quem se foi, por exemplo, quem
a levará para a escola, quem fará seu bolo preferido, quem vai ajudar a
fazer a tarefa de casa, quem vai brincar com ela, etc.
Na prática clínica, observo ser comum que, além da morte propria
-
mente dita e, consequentemente, a ausência da pessoa que morreu e seus
efeitos, muitas outras alterações podem acontecer na vida das crianças,
principalmente quando as famílias sentem a necessidade de outras mudanças
associadas, como mudança de cidade, de escola, situação financeira, etc.
Considerando tais aspectos, faz-se de suma importância para a
realização dessa tarefa do luto que as crianças tenham a possibilidade de
passar por tais mudanças da forma mais organizada e gradual possível,
tendo ainda a oportunidade de expressar suas opiniões e desejos, além de
participar, dentro do compatível com suas habilidades desenvolvimentais,
do processo de tomadas das decisões que envolvem as novas rotinas a
serem construídas a partir da perda.
Para que seja possível “encontrar uma nova forma de conexão com a pessoa
que morreu”, é preciso que a criança possa ser validada e encorajada em sua
necessidade de manutenção da relação com a pessoa perdida, porém não
mais na dimensão física e presencial, mas sim na esfera emocional, tendo
a possibilidade de manutenção de suas memórias e construção de sentido
95
em torno da relação que perdeu. Para tanto, a criança pode ser incentivada
a percepção de que, embora a pessoa tenha morrido fisicamente, ela não
morreu em seu coração e em suas lembranças de tudo que viveram juntas,
pois, desse modo, é possível a construção de uma representação interior
que lhe permite a manutenção da relação perdida com uma nova confi-
guração, a qual, por sua vez, será transformada à medida em que a criança
vai se desenvolvendo e amadurecendo. (WORDEN, 1996; MOURA, 2013).
Considerando tais aspectos, associados à compreensão das possíveis
reações das crianças ao seu processo de luto, Moura (2013) entende que
as necessidades da criança enlutada podem ser as que seguem:
1.
Informação adequada, clara e compreensível acerca das questões
relacionadas a morte.
2.
Reconhecimento, validação e segurança em torno de seus medos
e ansiedades, promovendo a certeza de que os adultos vão tomar
conta delas, pois podem apresentar receios acerca da morte do
parente sobrevivente.
3. Tranquilização de que a culpa não é delas, compreendendo que
seus possíveis sentimentos negativos não exerceram influência
sobre a morte de quem se foi.
4. Escuta adequada e atenta, não fornecendo respostas superficiais
ou apressadas.
5. Validação dos seus sentimentos, que precisam ser reconhecidos
e respeitados, permitindo à criança expressar-se à sua própria
maneira, o que é dinâmico e singular para cada uma.
6. Ajuda para a compreensão e expressão de suas emoções muito
intensas e assustadoras.
7.
Envolvimento e inclusão em todo o processo relacionado a
morte, desde a participação no velório e enterro até a construção
96
das novas rotinas, de acordo com suas habilidades em cada fase
do desenvolvimento.
8.
Ter modelos saudáveis de expressão e enfrentamento da dor, pois
modelam seus comportamentos e expressões a partir daquilo
que observam nos adultos a sua volta.
9. Oportunidades para recordar a pessoa que morreu, não apenas
após a morte mas ao longo de toda sua vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que seja possível compreender o processo de luto na infância,
faz-se de suma importância entender que as crianças são diferentes uma
da outra de diversas maneiras: estágios do desenvolvimento, sexo, raça,
cultura, religião, situação sócio-econômica, dinâmicas familiares, experiên-
cias vivenciadas ao longo da vida e, deste modo, podem apresentar uma
multiplicidade de manifestações emocionais e comportamentais diante de
suas perdas. E, nesta diversidade, encontraremos sempre necessidades que
precisam ser reconhecidas em sua relação com as perdas vivenciadas, para
que seja possível construir possibilidades de fatores de proteção durante
o processo de luto na infância.
Sendo assim, embora apresente algumas similaridades com as reações
de luto do adulto, o luto na infância difere em: respostas, intensidade e
duração, trazendo, portanto, especificidades em seu processo que precisam
ser consideradas para que seja possível avaliar e manejar essa demanda de
forma adequada. Tais especificidades são, principalmente: psiquismo ainda
em processo de desenvolvimento, dificultando a compreensão cognitiva e
emocional acerca da questão da permanência e irreversibilidade da morte;
dependência em relação ao adulto para seus cuidados e, portanto, para
abertura, percepção, expressão e acolhimento de suas reações; e manifestação
de possíveis reações tardias ao luto em virtude do processo de desenvolvi-
mento humano. E reconhece-las é o que possibilita a compreensão de que
o processo de luto na infância consiste em uma tarefa mais complexa do
97
que na vida adulta e que, por conseguinte, demanda ações e intervenções
que abranjam tal complexidade.
Reforço ainda a importância de perceber que, ao longo de todo o
capítulo, utilizei o termo “luto na infância” e não “luto infantil”, pois
entendo, a partir dos meus estudos, supervisão e prática clínica, além de
trocas interprofissionais muito significativas, que “não há nada de infantil
no luto”. O luto é um processo que rompe de forma intensa, por vezes
brutal, e única, o universo infantil, de modo que se faz urgente atribuir
a devida importância a essa temática para que seja possível oferecer às
crianças enlutadas condições adequadas, éticas e responsáveis, de aten-
ção e cuidados que possibilitem à elas a (re)significação de sua infância
e, consequentemente, de todo o seu processo de desenvolvimento na
ausência dos vínculos rompidos diante da morte. Para tanto, é necessária
instrumentalização teórico-técnica coerente e consistente para que seja
possível oferecer avaliação, acolhimento e cuidado compatíveis com as
necessidades singulares de cada criança.
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99
O LUGAR DA CRIANÇA ENQUANTO FAMILIAR
NOS CUIDADOS PALIATIVOS
Alice Maria Giacomelli39
Aline Vaneli Pelizzoni40
Caroline Fantini41
João Eduardo Cordeiro Pereira42
Marina Magnino Machado Mota43
Regina Prudente44
Ser criança é tropeço, é avesso, é marca, é registro.
É sobretudo, acreditar que há alguém ali que regozija
pela presença, aliás que existe por ela.
Existe na presença e pela presença cuidadosa,
amável e honesta de quem a convoca a existir.
Ser criança-sujeito (PELIZZONI, 2023).
INTRODUÇÃO
A discussão que se propõe não é apenas sobre a presença da criança
no contexto de cuidados paliativos (CP), mas também sobre o lugar
que é a ela permitido e que consideramos honesto de lhe ser atribuído.
Conhecer e reconhecer o lugar da criança como sujeito que habita um
determinado cenário social, familiar e psíquico é considerar o seu saber
sobre as circunstâncias e afetos.
Desse ponto inicial, discutiremos o momento da equipe multidis-
ciplinar e seus impasses, o momento da família com o seu despertar para
39 Especialista em Psicanálise Clínica de Freud a Lacan (PUC - PR). Psicóloga hospitalar e clínica.
CV: http://lattes.cnpq.br/8333280529440414
40 Mestre em Biociências e Saúde (UNIOESTE). Docente de Psicologia (PUC - PR). Psicóloga hospitalar
e clínica. CV: http://lattes.cnpq.br/2243108280378929
41
Especialista em Teoria Psicanalítica (Faculdade Pitágoras de Londrina - PR). Psicóloga hospitalar e
clínica. CV: https://lattes.cnpq.br/3571896414451835
42 Especialista em Cuidados Intensivos (Irmandade Santa Casa de Londrina – PR). Psicólogo clínico e
hospitalar. CV: http://lattes.cnpq.br/5894423167276518
43 Especialista em Psicologia Hospitalar (Conselho Federal de Psicologia). Psicóloga hospitalar e clínica.
CV: http://lattes.cnpq.br/8373459454361226
44 Especialista em Psicologia da Saúde e Hospitalar (Faculdades Pequeno Príncipe de Curitiba -PR).
Psicóloga da saúde e clínica. CV: http://lattes.cnpq.br/9013671290035163
100
a inclusão da criança nos CP, e a criança enquanto sujeito pertencente a
esse cenário. Parece elementar pensar na inclusão da criança no tratamento
de um ente querido em domicílio, afinal, ela presencia as visitas da equipe
de saúde, convive com queixas de dores, desconfortos, preocupações dos
familiares, mudanças na rotina, e outros tantos elementos cotidianos.
Contudo, não se trata apenas da inclusão, de estar no mesmo ambiente,
mas da possibilidade de abrir um espaço para que ela ocupe um lugar
real no contato com os cuidados45.
Importante esclarecer que os CP têm como um dos seus objetivos
o de propiciar recursos emocionais para lidar com possíveis crises decor-
rentes da doença e da finitude e para, assim, enfrentar o processo de luto
(ESPÍNDOLA et al., 2018). É digno que o cuidado seja assegurado à criança
que também vivencia esse percurso, como nas palavras iniciais:
Ser criança
é tropeço, é avesso, é marca, é registro [...] Existe na presença e pela presença cuidadosa,
amável e honesta de quem a convoca a existir. Ser criança-sujeito”. Por esse motivo,
a proposição de refletir e construir caminhos possíveis sobre o lugar da
criança nos CP de um ente querido se torna necessária.
IMPASSES COM A EQUIPE
Para apresentar os impasses e o momento com a equipe no cuidado
à criança, que acompanha alguém amado em CP, identificamos uma ques-
tão central: ao falar a palavra “equipe”, a impressão é de ser algo distante,
sem características próprias, individuais e singulares, de cada um que a
compõe, na sua forma particular de lidar com a morte que cotidianamente
se apresenta. A partir disso, é importante nos propormos a desfazer alguns
nós dessa trama delicada que é o trabalho na iminência da morte e perda.
A resistência e os impasses da equipe em incluir a criança nos CP
perpassam toda a significação da morte e do morrer relacionados à vivência
subjetiva no um a um, exigindo, assim, um trabalho psíquico individual
de cada membro da equipe, de reposicionamento e ressignificação subje-
tiva. Nessa ótica, para pensarmos tanto sobre a visão de uma equipe em
relação ao lugar da criança, bem como a inserção dela na prática dos CP,
45 Cuidados aqui não serão tomados como sinônimo de ordem prática e/ou cuidado físico com a pessoa
em cuidado paliativo, mas sim como possibilidade de troca afetiva.
101
tornam-se pertinentes algumas reflexões acerca dos processos de formação
dessa equipe. É significativo também considerar o lugar íntimo do infantil,
seja no adulto, seja na criança.
A falta de consensos acerca do lugar permitido à criança durante um
processo de adoecimento, CP e a morte de um familiar, possui, em partes,
ligação com o entendimento (ou falta dele) que a equipe multidisciplinar
tem a respeito dos efeitos disso na construção psíquica da criança. Além
de receios de causar um trauma ou uma descompensação emocional, por
acreditar que ela não tem capacidade de entender sobre a doença e nem
a morte, que remetem à exclusão da subjetividade infantil nessa ocasião.
A linguagem e comunicação da equipe têm fundamental importância
nesse momento e, por esse motivo, conversas e discussões de caso a respeito
do assunto se tornam enriquecedores e possibilitam a conscientização de
determinadas questões e resistências pessoais. Assim, possibilita-se um
trabalho executado de forma mais ética e menos entroncado em relação
ao que chamamos de resistências particulares. Os limites individuais dos
envolvidos nesse cenário, seja equipe e/ou família, interrompem o fluxo
natural da vida, à qual a morte faz parte, e impedem o enfrentamento
da criança frente a uma situação real e concreta, como a perda de uma
pessoa amada e, em decorrência, há uma possível ruptura de um sis-
tema familiar ao qual ela integra.
É percebido que alguns adultos tentam poupar as crianças do pro-
cesso do adoecimento e da preparação para a morte, fato que pode tornar
tal assunto algo tenebroso (e não é!). Porém, ao oferecer informações claras
e adequadas à idade da criança, torná-la parte da evolução do adoecimento
de seu ente querido, respeitando seu sofrimento genuíno e cheio de sen-
tido, há a possibilidade de diminuição da sua ansiedade e de elaboração
da falta sem se sentir muito abandonada, dando espaço para a despedida
e a reorganização emocional. Então, quem estaria sendo poupado com
tais restrições? O adulto resistente, sendo parte da equipe de saúde, pode
acabar transferindo sua resistência inconscientemente, assim, transmitindo
para a criança sua dificuldade em lidar com o tema e, consequentemente,
com as demandas emocionais que ela escancara e solicita.
102
A equipe de CP considera a família como uma parte do paciente e
deve validar o sofrimento psíquico da criança envolvida e toda angústia que
emerge nesse espaço. A relação de confiança construída nesse momento,
quando o apoio e o amparo existem para além do sofrimento, possibilita a
ela criar laços de confiança que serão importantes em suas relações futuras.
Outro ponto a ser destacado é que muitas vezes observamos, por
possível falta de formação técnica ou por interferências psíquicas pessoais,
aquilo que chamamos de “resistências quanto ao infantil”, por parte dos
próprios profissionais de saúde. Tal fato pode acarretar efetiva exclusão
das crianças dos processos de assistência e de cuidados de saúde pelos
trabalhadores, ao lidarem com os desencontros que a infância pode
promover, também nesse contexto.
Reiteramos a ideia de que em todo adulto apresenta-se também seu
infantil, sendo uma série de marcas de sua singular trajetória pulsional46
e de satisfações e representações carregadas consigo desde sua tenra idade.
Portanto, profissionais da saúde não se veem isentos de tais marcadores,
que acima chamamos de “desencontros”.
Agora, como se relacionam esses traços e os encontros com crianças
no trabalho de assistência à saúde? Esse é um importante ponto a ser dis-
cutido, com vistas a fomentar a formação de profissionais, inclusive. Pois,
para que se possa abarcar a efetiva participação das crianças no processo
saúde-doença de seus entes próximos, é necessário também o próprio
reconhecimento e acolhimento daquilo que é da ordem do infantil em
cada um: seus desamparos, finitudes e angústias.
Em consonância, evidencia-se também o aspecto crítico da educação
de profissionais da saúde no que tange ao tema do cuidado paliativo. A
formação em questão também ocupa um lugar paradoxal no modelo
curativo de atenção, pelo fato de que este cuidado pode se estender, na
verdade, pelos distintos níveis de complexidade da assistência e por todo
46 Conceito fundamental na obra de Freud, escrito entre 1914 e 1915, para apresentar a sua Metapsicolo-
gia. Em que diferencia instinto de pulsão e atribui a esta o caráter de uma força constante de origem
interna do organismo, à qual é impossível se apoderar pela força. Couvert (2020), a partir de Freud,
explica que “é a pulsão, ou mais, precisamente, seu circuito que vai construir a realidade psíquica do
bebê. Ele aparece como aquilo que deve imperativamente ocorrer porque ela vai dar corpo e relevo à
vida psíquica [...]”.
103
o percurso de cuidado frente a uma doença que ameaça a existência, e
não somente nos momentos de fase final de vida.
Logo, questiona-se: há possibilidade de tratamento e cura de uma
doença ameaçadora à vida, sem medidas efetivas de conforto e controle de
sintomas concomitantemente? Observamos, muitas vezes, que ambos os for-
matos de atenção acabam por se tornar excludentes pelo desconhecimento
das suas possíveis inter-relações. Para tanto, tomamos como exemplo o
fenômeno da dor total e de seu tratamento enquanto um objeto de cuidado
nesse cenário, que se alia aos princípios do cuidado paliativo. Consequen-
temente, é associado a um outro fator: o da visão integral do paciente.
A formação de profissionais da saúde se volta essencialmente à
doença - assim como à cura - e não ao paciente, na maioria das vezes. O
que pode novamente incorrer em faltas bioéticas e/ou com a humanização
e a terapêutica adequada em determinados casos, principalmente naqueles
em que o limite de cura se encerra.
Nessa temática, Silva Júnior et al. (2019, p. 2) tratam sobre o assunto
a partir de um estudo qualitativo com profissionais de uma equipe mul-
tidisciplinar em relação ao trabalho com CP e suas percepções. Como
resultados, os autores apontam que a prática efetiva desse tipo de cuidado,
quando “concomitante com a ação curativa, é tida como conflituosa e
desafiadora para muitos profissionais da saúde”. Dessa maneira, explicam
que a parcialidade do conhecimento dos trabalhadores em saúde pode
configurar um fator que amplia as distintas compreensões da práxis
do cuidado paliativo propriamente dito, o que acaba por desencadear
posturas de não adesão ou de incerteza quanto à efetividade e/ou ao
momento de aplicação dos CP, de fato.
Já no que tange às noções dos profissionais em questão sobre os CP,
há motivos para uma restrição da família à aceitação dessa terapêutica, pois
“ao mudar o foco da assistência de cura para a paliação, um desafio perce-
bido pelos profissionais é lidar com queixas familiares” (SILVA JÚNIOR
et al., 2019, p. 4). Tais dados viabilizam discussões sobre as perspectivas da
comunicação em saúde, do trabalho em equipe de modo compartilhado
e horizontal e sobre as consequências psíquicas de pacientes e famílias
nesses determinados momentos de seus tratamentos.
104
Sobre a perspectiva da comunicação, tanto na bibliografia como em
nossa prática, frequentemente nos deparamos com situações chamadas de
“cerco do silêncio”, um mecanismo que envolve família e equipe, a fim
de evitar um possível dano emocional ao paciente, que acabam por não
realizar uma comunicação efetiva, verdadeira e acolhedora sobre dilemas
e aspectos da finitude dos pacientes. Cabe destacar que essa não comuni-
cação fica ainda mais evidente quando se trata da criança.
A equipe multiprofissional busca garantir uma morte digna ao
paciente em CP e, para isso, o acolhimento aos familiares pode e deve
incluir também as crianças, sendo esta uma condição necessária à efe-
tiva prática paliativista. Todavia, em nossa atividade, frequentemente a
observamos se configurar como uma ação delicada e de complexa reali-
zação. Ao passar dos anos trabalhando em CP, é esperado que em algum
momento a questão vida e morte apareça. Isso é inevitável para quem
está nessa área de atuação. Trabalhar em CP é trabalhar na condição do
real. A existência do finito vem à tona. É impossível não ter nascido. É
impossível não morrer. A vida não tem garantias. Investir tempo a quem
necessita é o mesmo que dizer, ao cuidar daquele que padece de atenção,
que se pode produzir também vida.
OS ATRAVESSAMENTOS DA FAMÍLIA NA VIVÊNCIA DA
CRIANÇA
Percebe-se que o enfrentamento à perda se dá muito antes de algo
tão concreto quanto a morte, quando na incapacidade em lidar com o
sofrimento de uma criança, busca-se substituir a falta preenchendo o vazio
na tentativa de tamponar a dor. Quando algo é perdido, merece o espaço
genuíno de sua falta, como no seguinte exemplo: certa vez, me deparei
com uma criança que tinha muito apego e cuidado com seus brinquedos,
porém, mesmo assim, seu brinquedo favorito foi roubado em um assalto.
Enquanto ela se questionava por que pessoas malvadas se apropriaram de
algo que não as pertencem e buscava elaborar sua perda, aos pais ficou a
tentação de substituir essa angústia por um novo brinquedo, buscando
encontrar outro exatamente igual em tamanho e cores, na tentativa de que
105
a falta se apagasse e a criança não precisasse mais se lembrar do acontecido.
Mas será que esse era o melhor caminho?
A criança “punida pela maldade” ou a “falta inexistente”? Por outra
via, pode-se permitir à criança ter outro brinquedo similar, mas não o
mesmo. Cores, tamanhos e formas diferentes marcaram a falta jamais
apagada e possibilitaram à criança o enfrentamento e a organização
emocional que certamente formam base para futuros desafios afetivos e
enfrentamentos de lutos que a vida trará.
Na cena apresentada acima, havia alguma brecha na família para
o trabalho de elaboração da criança, o que nem sempre é possível, pois
durante o adoecimento e a morte de um ente querido, alguns familiares
estão tão fragilizados e envoltos em preocupações com o doente, que
outros membros da família se sentem invisíveis (ESPÍNDOLA et al., 2018).
É nesse momento que se pode não conseguir oferecer o suporte que a
criança precisa (FRANCO; MAZORRA, 2007).
Ao ficar invisível diante do sofrimento familiar, questiona-se: é
possível falar com a criança quando o sofrimento familiar emudece? E
discutir o lugar da criança nos CP sem falarmos com a sua família e sobre
esta? Ou ainda, ignorar a ausência de um familiar que agora deixa de ser
apenas pai ou mãe para tornar-se cuidador de doente? Ou o contrário,
a presença de aparelhos, cama, de pessoas estranhas (técnicos, outros
familiares que participam do cuidado) em um ambiente antes habitado
apenas pela família nuclear? E a ausência de alguém que foi e não volta?
A atenção ao paciente diante de um processo de finitude carece
também de cuidados aos seus familiares, que estão sofrendo com os
impactos da morte revelada. Profissionais inseridos no cuidado domici-
liar, presenciam a morte em cenários aconchegantes ou angustiantes da
forma mais controversa que se possa imaginar. Há momentos específicos
que causam estranhamento e desconforto na família, para a qual frisa-se
a comunicação e a aceitação. Os familiares apresentam dificuldade em
falar sobre morte e o cerco do silêncio ocupa um lugar central, pois
acreditam também que falar dói mais e que podem ficar fracos. Como
consequência, o sofrimento é calado.
106
Existe algo em comum que aparece nos discursos: “vou lidar com as
minhas emoções e sentimentos depois, pois agora não tenho tempo para isso” ou “logo
tudo vai car bem como antes”. Mas como era antes? Na fala dos familiares,
fica evidente a presença da negação como forma de enfrentamento para
afastar a insuportável realidade: a morte.
Às voltas com a impotência em salvar, em livrar o ente amado do
sofrimento do adoecer, em sentimento de culpa que perpassa o existir, por
vezes não só se esquece da criança que está ao lado, como, sem perceber,
se depositam nela expectativas e frustrações diante da perda progressiva,
vivenciada dia após dia da pessoa querida.
Isso aponta para o fato de que, nos ambientes onde existem crian-
ças, a ideia de proteção é a mola mestra nas relações. A comunicação fica
restrita aos familiares que compreendem que o menor não poderá supor-
tar a verdade dita, que seu ente querido está na fase final de vida e que a
morte pode aparecer a qualquer momento. Essa dificuldade que a família
tem em falar sobre morte com a criança pode se relacionar com a própria
dificuldade da aceitação. Kovács (2002) ressalta que o menor possui uma
importante capacidade de observação. E ao não falar sobre a morte com
ele, este se sente desamparado, confuso e sem ter com quem conversar.
O adulto que vivencia a possibilidade real da morte, seja de alguém
próximo ou a própria morte, muitas vezes desloca seus sentimentos até
a criança. Isso não é regra, mas a experiência de escuta nesse contexto
nos leva para essa colocação.
Desse modo, a forma como a família lida com a morte depõe
sobre a vivência da morte e do luto para a criança. Alguns aspectos,
tais como a informação repassada, a possibilidade de fazer perguntas
e a participação no luto familiar devem ser consideradas. O lugar da
criança na família antes e após a morte e o relacionamento da criança
com o falecido e demais familiares também se faz importante observar
(FRANCO; MAZORRA, 2007). Ainda para as autoras, atitudes como a
negação do sofrimento por parte da família, a ausência de continência
para os sentimentos de desamparo e abandono da criança, segredos a
respeito da causa da morte e a morte tratada como um tabu são fatores
que dificultam o processo de elaboração do luto pela criança. Já a possi-
107
bilidade de expressar os sentimentos e encontrar ajuda para compreender
o que aconteceu pode facilitar esse processo.
Dessa maneira, o contexto em que se dá o processo de elaboração
do luto é de extrema importância, visto ser este um trabalho relacional,
pelo qual a construção de um sentido para a perda e o desenvolvimento
de uma narrativa que possa dar significado à experiência vivida passa
pelo campo do outro. Assim, o compartilhamento e as relações de apoio
contribuem para a vivência do luto (LUNA, 2014). Este fato corrobora a
participação decisiva da família na inclusão dos menores nesse contexto
de cuidado paliativo domiciliar.
A CRIANÇA NESTE CENÁRIO: O OUTRO LADO
DAS COISAS
O tempo da infância é o tempo do vir a ser, de construções, cons-
tituição e formação. A infância é um momento de grande permeabili-
dade às inscrições iniciais, que direcionam para constituição psíquica e
deixam marcas para uma vida inteira.
Incluir a criança enquanto membro da família nos CP é sim con-
siderá-la um sujeito, sabendo que as marcas do percurso permanecerão
como parte constituinte do psiquismo e deixarão rastros significativos
na vida adulta. Para isso é necessário que alguém ocupe o lugar de refe-
rência primeira no cuidado com a criança para possibilitar e convo-
car esse tempo e constituição.
As tramas familiares, sempre tão singulares no enredo das relações,
irão configurar uma série de reações comuns. Portanto, o modo de for-
mação de laço e a narrativa sobre a criança no meio familiar indicam
que “o sintoma da criança está em posição de responder ao que há de
sintomático na estrutura familiar” (FARIA, 1998, p. 79).
Para tanto, é necessário chamar a atenção para a diferença signifi-
cativa entre as manifestações da criança e na criança. Comecemos de trás
para frente: o sintoma na criança é entendido como aquele que é apontado
pelo adulto na criança, em situações de crise e sofrimento, diante do adoe-
cimento e morte. Compreender que existem manifestações singulares do
108
adulto que reaparecem e são revivenciadas com intensidade é uma forma
de representar o momento vivido47.
O outro lado, ou seja, o lado da criança, não condiz completamente
com a representação do adulto, sendo necessário deixá-la dizer a forma
singular que irá produzir o seu modo de sofrimento. Portanto, negar à
criança informações verdadeiras sobre o que está acontecendo é sinônimo
de retirar o direito de se apropriar de circunstâncias às quais ela está
envolvida, e construir um significado para a morte e perda.
A construção de sentido sobre a morte de alguém que se ama transpõe
a morte e é impresso na vida de que modo? À medida que é assegurado à
criança o direito de vivenciar a perda, ela própria pode construir, passo a
passo, momento a momento, o que aquele ente querido marcou em sua
vida, quais os registros que estruturam quem ela é e a fortalecem. De tal
maneira que, na melhor das hipóteses, o processo do luto irá produzir
um significado e possibilitar a continuidade da vida.
Ao passo que são negadas as informações adequadas, deixa-se espaço
para que a criança, em sua fantasia, crie narrativas, que por vezes, não
condizem com o real e irão trazer ainda mais sofrimento. Em outras
palavras, poupá-la não resulta em uma saída saudável, mas sim em
sofrimento ainda mais intenso.
Como apontam Franco e Mazzora (2007) no artigo “Criança e luto:
vivências fantasmáticas diante da morte do genitor”, as fantasias podem ser asso-
ciadas a complicações no processo de luto e trazem prejuízos ao longo da
vida, como manifestação de ideias suicidas, superdependência e depressão
grave (BOWBY, 2004). Nesse sentido, considerar a inclusão da criança nos
CP diz respeito à possibilidade de que ela seja ativa, sabendo do que está
acontecendo à medida das suas possibilidades internas, oferecendo a ela
informações reais e acessíveis ao seu interesse e aos seus questionamentos.
Não se trata de reproduzir sistematicamente todas as informações clínicas,
como se fosse a leitura de um manual ou bula de medicamentos, mas de
47
A perspectiva adotada para pensar e construir as manifestações do infantil no adulto refere-se ao trecho
do livro de Mariotto (2020, p.20) que, de certa forma, atravessa toda a problematização apresentada:
“a infância é um tempo essencialmente mortífero, onde transbordam riscos de desaparecimento, de
afânise, de abandono, de perdas de si, do outro e do Outro. Portanto, diante da morte, todo adulto é
infantil”.
109
oferecer as informações de forma acessível e verdadeira, sem deixar dúvidas
ou palavras mal ditas, como “falecer” ou muito menos “virar estrelinha”,
que são expressões pouco palpáveis.
A experiência nos mostra que a maneira particular de inclusão das
crianças enquanto familiar nos CP, e o quanto o lugar a elas é autorizado,
poderá sim reverberar em efeitos positivos, favorecendo o processo de
elaboração do luto e esclarecendo as fantasias, medos e imaginações.
Pensando na criança, os questionamentos sempre se voltam a como
comunicar circunstâncias tão difíceis ou perceber o sofrimento vivido por
elas. Claro, as palavras são sempre bem-vindas, em doses adequadas, mas
é preciso, além de dizer, escutá-las em todas as suas formas de comunicar
e, diga-se de passagem, a criança guarda um a mais: o brincar.
Ao brincar, se faz um importante trabalho de constituição do
sujeito durante a infância, pelo qual ela poderá elaborar e produzir res-
postas singulares aos acontecimentos de vida (JERUSALINSKY, 2011).
É um recurso simbólico de representação inconsciente, no qual aparece
a realidade psíquica por meio da sua própria criação. Ao acompanhar
o adoecimento e a proximidade da morte, o brincar toma dimensões
que revelam as suas angústias, medos e fantasias, abrindo espaço para
a escuta dessas representações, ao mesmo tempo em que é favorecido o
processo de elaboração do luto.
Freud (1907), no texto “Escritos criativos e devaneios”, nos lembra
que a brincadeira para criança é coisa séria e relaciona o comporta-
mento do brincar dela ao de um escritor criativo, na medida em que cria
seu próprio mundo, reajustando os elementos do seu exterior de uma
outra forma que mais lhe agrade.
Através do brincar, a criança se coloca no jogo da vida, no lugar
de quem ganha e perde. Ganha a presença, o amor da pessoa amada que
adoece, perde através da morte. Brincadeiras de esconde-esconde, em
que hora alguém está à vista, depois não mais; bonecos, pelos quais se
reproduz e se recria os lugares dos familiares; jogos, brincadeiras que a
raiva pelo abandono por parte de quem se foi pode aparecer, mais tarde,
darão lugar às novas figuras, novos arranjos e boas memórias e traços
110
de quem morreu. A brincadeira abre espaço para o impossível de ser
dito, quando não se encontram palavras.
Nas palavras de Kovács (2002), o luto é elaborado quando a criança
consegue guardar em si a presença da pessoa perdida mesmo na sua ausên-
cia. É esse processo que permite o estabelecimento de outras relações.
Sobre a morte e o morrer, Mariotto (2020) indica que a
criança não tem medo da morte em si, trata-se de uma realidade distante
e inatingível. A morte, para ela, está ligada ao desamparo, que é sinônimo
de abandono nos tempos da infância, ou seja, do medo de ficar sozinha.
Ao perder uma figura significativa, a ela cabem duas operações: a do luto
da pessoa morta e a sobrevivência diante da solidão.
Observa-se na prática clínica que a angústia da criança em alguns
momentos se relaciona às situações práticas do cotidiano, como quem irá
cuidar dela. Nota-se que perder alguém próximo é também perder parte
daquilo que ela era para a pessoa amada e parte de si.
Nos CP domiciliares, não é apenas a morte constatada pela ausên-
cia de frequência cardíaca que produz o sofrimento, mas na sensação
contínua e permanente do final de vida, que por vezes se associa à falta
de controle da dor e desconforto do paciente. É um cenário vivenciado
pela criança no qual se faz necessário um trabalho de aproximação das
condições reais do adoecimento e declínio do corpo: os tubos, o respi-
rador, medicações, as necessidades de cuidados especiais, as mudanças
nas características físicas. Nesse ponto, a perda é também pela função
daquele ente querido na sua vida.
As mudanças e perdas aparentes do corpo e da funcionalidade
da pessoa em CP, até o momento do óbito e destino do corpo, farão
falta significativa no jogo relacional com a criança e darão brecha para
a construção da sua fantasia.
São vários impasses que se apresentam na morte e no morrer e que
a criança é retirada de cena, como: o que é dito para ela após a morte,
sobre o destino do corpo? Muitas vezes esse tema é velado, evita-se dizer
o que aconteceu com o corpo. Quanto menor a idade da criança, menor
é a informação e a possibilidade de participar dos rituais de despedida.
111
Esses rituais são fundamentais para o processo de elaboração do
luto e compreensão, sempre a posteriori, da morte de quem se ama.
Quando destituímos a criança do direito de se despedir, tiramos o lugar
dela enquanto sujeito, que sente e que faz parte da história afetiva e
subjetiva da pessoa que se vai.
A prática clínica evidencia ainda os efeitos: uma criança certa
vez coloca: “as crianças da nossa família não foram no velório [..] falaram que é
coisa de gente grande”, e aí fica o questionamento: O que é “coisa de gente
grande” diante da morte e do morrer?
O trabalho de luto leva tempo. Tempo de trabalho subjetivo. Faz
parte a modificação do lugar que a criança ocupava em relação à dinâ-
mica familiar anterior, após o adoecimento, iminência e morte do seu
familiar, e outro lugar que lhe será atribuído e que ela precisará ocupar,
ou não. Mariotto (2020) esclarece que, ter conhecimento da morte não é
necessariamente compreendê-la.
Desse modo, a tarefa daquele que fica, quando testemunha aquele
que vai, é compreender o lugar que esse outro/Outro48 ocupava em sua
vida, para localizar o vazio que se abriu, pois “a criança não é inocente em relação
à morte. À infância não é um paraíso onde as duras realidades da vida não existem
(TORRES, 2012, n.p.), é necessário investi-la no seu saber e nas potencialida-
des para que possa sustentar as agruras da vida e, portanto, transformá-las.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso proposto indicou alguns elementos de destaque, pala-
vras que apareceram e reapareceram em diferentes momentos da pro-
dução e, ao fim, demarcaram sua significativa repetição por motivos
dignos de atenção e trabalho.
Os impasses da equipe na dificuldade em considerar a presença
e participação ativa da criança dizem sobre duas questões imbricadas,
quais sejam: a morte do outro causa uma angústia visceral por dizer da
nossa própria morte e finitude e, segundo a resistência ao considerar a
48 O Outro com letra maiúscula, permite fazer a distinção com o que Lacan nomeou como pequenos
outros. Poderíamos dizer que o grande Outro (A) aqui designa a função parental enquanto o pequeno
outro é o embaixador, pai, mãe ou cuidador (COUVERT, 2020, p. 26).
112
criança nessa cena diz sobre aquilo que foi constituído em cada um em
suas experiências infantis. Então, não há morte sem questionamentos e
elaborações para a equipe nem para a família.
O ser humano é o único ser que tem consciência de sua própria
morte e, ao morrer, o assunto também pode e/ou deve seguir sendo falado
pelos que ficam, como processo de elaboração do trabalho de luto para
que ela, a morte, possa ser simbolizada.
Por último, destacamos a fundamental importância do lugar da
criança enquanto familiar e, principalmente, do saber da criança como
valor inestimável para o tempo de constituição psíquica e de possibilidades
para a construção de laços afetivos para toda a sua vida e para a sociedade.
REFERÊNCIAS
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familiares no contexto dos cuidados paliativos. Rev. Bioética, 2018.
COUVERT, M. A clínica pulsional do bebê. São Paulo: Instituto Langage, 2020.
FARIA, M. R. Introdução à psicanálise de crianças - o lugar dos pais. São Paulo: Hacker, 1998.
FRANCO, M H. P.; MAZORRA, L. Criança e luto: vivências fantasmáticas diante da morte
do genitor. Campinas: Estudos de Psicologia, 2007.
FREUD, S. Escritos criativos e devaneios (1907). In: Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996.
FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1914/1915). Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2017.
JERUSALINSKY, J. A Criação da Criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador:
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MARIOTTO, R. M. M.; MOHR, A. M. A vivência da morte e do luto na infância e ado-
lescência: recortes psicanalíticos. Salvador, Agalma, 2020.
KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. 4 Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
LUNA, I. J. Histórias de perdas: uma proposta de (re)leitura da experiência de luto. Flo-
rianópolis, 2014.
SILVA JUNIOR, A. R; l. MAGALHÃES, T. M.; FLORENCIO, R. S.; SOUZA, L. C.; FLOR,
A. C.; PESSOA, V. L. P. Conforto nos momentos finais da vida: a percepção da equipe mul-
tidisciplinar sobre cuidados paliativos. Rev. enferm. UERJ, 2019.
TORRES, W.C. A criança diante da morte: desafios. 4.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
113
DO FILHO IMAGINADO AO FILHO REAL:
REFLEXÕES SOBRE O LUTO PARENTAL
Giovana Kreuz49
Jose Valdeci Grigoleto Netto50
A parentalidade é idealizada. Neste percurso sonhamos o lho.
Sim, sonhamos O FILHO e não com “o lho”,
pois ainda não o conhecemos”.
Giovana Kreuz
INTRODUÇÃO
Quando uma gestação está em curso, uma série de emoções e pen-
samentos povoam as expectativas do casal e, na verdade, de todo entorno
familiar. Um bebê a caminho sugere o ajuste e estreitamento de muitos
laços – e nós, conscientes e inconscientes, nessa transmissão de significantes
que envolvem uma variedade de afetos, dentre eles a angústia.
A trajetória de construção daquele que está sendo gestado, quando
este é desejado, faz pais e seus íntimos tratarem dos preparativos para
receber a criança, como por exemplo, o reconhecimento da notícia de
gravidez, percebida como surpresa ou como a realização de uma espera,
o desejo de saber o sexo e escolher um nome, a percepção de movimentos
fetais que concretizam a presença do bebê, a organização financeira e
instrumental (desde exames, medidas de acompanhamento da gestação,
escolha do parto até previsão de necessidades futuras) para as diferentes
etapas do desenvolvimento o bebê, o ajustamento emocional diante da
perspectiva da chegada de um novo membro, assim, configurando-se ou
ampliando-se o núcleo familiar.
Ao planejarem uma gestação, os pais idealizam um(a) filho(a), uma
criança que atenda, pelo menos em parte, suas fantasias, ou seja, que seja
compatível com suas crenças ou ideais, que atenda suas perspectivas éticas,
49 Doutora em Psicologia (PUC/SP). CV: http://lattes.cnpq.br/4829032098768031
50 Doutorando em Psicologia (UNESP). CV: http://lattes.cnpq.br/2661321527310427
114
estéticas, funcionais, imaginárias, e assim, possa realizar seus desejos paren
-
tais. A criança sonhada é fruto de uma somatória imaginária daquele casal.
Pensando sobre a parentalidade, sabemos que desde a infância, em
diferentes modelos de sociedade, as crianças são inseridas neste treino
por meio do brincar e que os referenciais fazem parte do arcabouço da
cultura na qual estão inseridas. Especificamente quando uma menina, que
um dia poderá tornar-se mãe, brincava de bonecas, essas ganhavam nome,
atribuição de características, afeto e, nesse lúdico do “faz de conta”, já se
preparava uma aprendizagem de como embalar um bebê, ninar, alimentar,
trocar de roupa, cuidar, amar, educar, exigir, conviver.
No entanto, é interessante pontuar que a maior parte dessa apren-
dizagem, seja da representação ou do ensaio das parentalidades, abarca
pouca diversidade de modelos (bebês diferentes), mesmo que atualmente
as brincadeiras sejam, neste sentido, um pouco mais pedagógicas, pois
sabemos que os brinquedos ampliam essa possibilidade de inclusões que
promovam reflexão, questionamentos ou algum desconforto sobre filhos
diversos (etnias, deficiências, condições neurotípicas, síndromes, corpos
anômalos, doenças e assim por diante). Mas, ainda assim, é pouco frequente
que sejamos preparadas, de fato, para o desafio de ter um filho “diferente”.
Neste recorte, estamos pensando o treino lúdico da parentalidade, e
isso ainda que muitas vezes não inclua as diversidades e, de fato, não exista
um caminho claro para este preparo, pensemos então no exercício específico
da maternidade e da paternidade, ou seja, no brincar de “como ser” mãe,
de “como ser” pai. Percebemos que o brincar de maternagem ocupa um
lugar nas brincadeiras das meninas, mas em muitas famílias e sociedades
pouco ocorre o brincar da paternidade, consequentemente tornando ainda
mais complexo ou distanciado o menino da configuração de uma função
paterna diante de um filho que destoa do padrão em qualquer sentido.
Se quisermos ampliar a discussão sobre as referidas funções, pensemos
em maternagem e paternagem independente do gênero da criança, mas
apenas como exercício das funções necessárias de parentalidade.
O ensaio parental engloba possibilidades sobre as diferentes formas
de ter e criar filhos numa tessitura que encontra nos adultos um modelo
referencial e na sociedade um conjunto de condições, regras e expressões
da relação pais-filhos. Nessa conjuntura, constrói-se um universo imaginá-
rio, calcado no coletivo, mas singular, visto que, conforme afirma Tinoco
115
(2013) frequentemente esse novo e esperado indivíduo, ou seja, a criança
que está por vir é carregada de representações de continuidade, triunfo,
perfeição, renovação e união.
Neste sentido, em toda gestação há um temor implícito pelo que
está por vir, seja de forma mais consciente ou menos, pois este medo
está ligado à história de vida de cada pessoa, estrutura de personalidade e
fatores intervenientes complexos daquela que se configurará como mãe,
daquele que será autorizado como pai, daquele casal, daquela gestação em
específico. Geralmente, esse temor implícito não é tocado, é afastado, não
se fala sobre essa faceta da parentalidade de forma tão direta, pois tocar
em algo temido pode acarretar que se transforme em real. É por isso que
diante da espera de um(a) filho(a), sabemos das muitas necessidades, expec-
tativas e formas de antecipação que envolvem a gestação desta promessa,
no entanto, raramente incluímos a previsão de receber notícias difíceis.
Também, atualmente a medicina fetal contemporânea fornece dados
médicos confiáveis e as técnicas de diagnóstico intrauterino mostram-se
cada vez mais seguras (GAZZOLA, LEITE e GONÇALVES, 2020), no
entanto, esta ainda é uma pauta muito delicada e reconhecidamente
desconfortável quando se constata uma deficiência, síndrome, anomalia
ou doença grave no feto, configurando-se como um assunto desconcer-
tante para pacientes e médicos.
A CRIANÇA IDEALIZADA (IDEAL) É SEMPRE
DIFERENTE DA CRIANÇA REAL
Diante de tantos desafios, a parentalidade é sempre um mergulho
com os olhos vendados, uma travessia pelo desconhecido, sem muitas
garantias. A psicanálise explica que a criança vai ser um enigma para o
adulto e o adulto para a criança e é justamente na relação que ambos
aprendem a desvendar-se, decifrar-se na relação pais-filho(a) e filho(a)-pais.
Todo bebê, ao nascer, quebra a imagem idealizada, afinal de contas é
um bebê real. Mas, quando há um diagnóstico grave ou que define a criança
de forma “imponderável”, a quebra das expectativas é dolorosa demais.
A ruptura do imaginário do “filho perfeito” é um processo difícil
e gerador de crises familiares. O núcleo familiar pode sofrer grandes
abalos e emoções frente ao recebimento da notícia de que suas expectati-
116
vas não serão atendidas: o real não corresponderá ao que foi idealizado
(GRIGOLETO NETTO e LEONEL, 2021).
Por isso, Solomon (2013) define as identidades como sendo verticais
e horizontais, sendo a primeira o compartilhamento de características
de identidade de uma geração para outra, incluindo atributos, valores,
etnia, pigmentação da pele e autoimagem, linguagem e, a segunda, inclui
aquelas características que inatas ou adquiridas, são estranhas aos pais,
podendo refletir genes recessivos, mutações aleatórias, influencias pré-natais
ou valores, preferências ou condições que o(a) filho(a) não compartilha
com os pais. Desta forma, “as identidades verticais em geral são respei-
tadas como identidade; as horizontais são muitas vezes tratadas como
defeitos” (SOLOMON, 2013, p. 15).
No entanto, nem sempre o acesso a um diagnóstico é algo simples
e imediato. Quando os pais percebem algumas diferenças sutis ou evi-
dentes, algum estranhamento, algo que parece não atender tipicamente o
desenvolvimento da criança, isso liga um sinal de alerta iniciando-se uma
procura por especialistas. Este período de peregrinação em busca de um
diagnóstico consensual é imensamente causador de ansiedades e exaustivo,
principalmente quando se trata de uma doença ou síndrome rara, pois
o itinerário dessas famílias encontra obstáculos de diversas ordens, tais
como o difícil acesso aos serviços de saúde e a escassez de profissionais
habilitados ou especialistas – consequentemente gerando diagnósticos
equivocados ou tardios, atrasando o início de tratamentos adequados.
E, ainda que o diagnóstico seja estabelecido com certa segurança,
restam dúvidas que carregam os pais a continuarem a saga por respostas,
motivos ou uma insistente esperança de que o diagnóstico esteja definiti-
vamente errado – alento que livraria a criança da adversidade ambiental
ou da fatalidade genética, e seus pais da culpa. Tal rotina, muitas vezes,
não cessa até que o alto custo emocional e financeiro alcance seus limites.
Interessante relembrar que, no relato destes pais, seja na escuta
clínica ou nos apontamentos teóricos ao longo dos estudos nesta área,
frequentemente esta jornada em busca de esclarecimentos é permeada
por uma clara constatação de que os médicos, profissionais da saúde e
educação, e muitos membros da própria família, os desacreditam. Por
isso, essas famílias estão permeadas por profundos sentimentos de ambi-
valência entre acreditar na própria percepção e rechaçar o que sentem,
117
negando quaisquer sinais de perigo, o que pode confundir os pais diante
do exercício de sua parentalidade e obstruir a relação com o filho.
A percepção dos sinais e a busca de esclarecimentos não ameniza a
dor, pois quando o diagnóstico é definido, precoce ou tardio, abrangendo
uma síndrome, doença, anomalia, deficiência ou condição que exige cui-
dados permanentes ou complexos, então, este evento é concebido como
uma notícia difícil, disruptiva, que impacta profundamente não somente
aquela imagem idealizada, mas toda a perspectiva de futuro daquela criança.
As chamadas “más notícias”, também denominadas como difíceis
ou inesperadas, são terminologias usadas no estudo de comunicação em
saúde, e comumente são definidas como qualquer informação que afete
seriamente e de forma adversa a visão de um indivíduo sobre seu futuro
(BUCKMAN & KASON, 1992), ou seja, diante de um diagnóstico que
reconfigura a identidade da criança e de seus pais, surge a necessidade
de readaptação de condutas, provocando uma ruptura no roteiro de
sonhos e planos anteriores e, o surgimento de sensações e sentimentos
antagônicos, interpondo a necessidade de compreender quais aspectos
afetam a criança e qual o panorama realístico que o diagnóstico possibi-
lita (sintomatologia, tratamentos, intervenções) e, ainda, demandando a
elaboração das perdas concretas e simbólicas envolvidas neste processo
de luto pela perda da criança ideal.
As reações perpassam o choque, a descrença e a negação,
a frustração, a raiva, a culpa e até mesmo a irritação dire-
cionada ao médico que dá a má notícia, em um primeiro
momento a súbita quebra das expectativas da gravidez
desejada e substituição por esses sentimentos geram na
mãe reações ambivalentes: ora quer proteger o filho,
ora o rejeita (...). (GAZZOLA, LEITE e GONÇALVES,
2020, p. 39).
Neste momento de desamparo que atinge a todos os envolvidos,
incluindo o casal, os familiares, a comunidade, e até mesmo as equipes
de cuidados, a acomodação das emoções diante do choque da notícia
transcorre num período de tempo diferente para cada pessoa, pois está
em jogo também a reconstrução deste lugar simbólico materno e paterno,
de modo que todos os recursos disponíveis, sejam eles técnicos, emo-
118
cionais, espirituais, rede de apoio, podem ser necessários para o pro
-
cesso de aceitação do diagnóstico.
No entanto, este não é um processo simples, é gradativo, não linear,
singular e engloba algumas etapas, como o choque diante do recebimento
da notícia, que pode gerar incredulidade, senso de irrealidade, negação
e muito desconforto. Mas, se os pais forem apoiados pelo entorno e
tiverem acesso à bons profissionais, num segundo momento a situação
exigirá a experimentação de reações e respostas diante do evento, como a
busca por respostas e, desta maneira permitirá caminhos para a elabora-
ção de modos de compreensão e manejo da realidade e, em síntese, uma
possível construção de sentidos.
Os pais costumam vivenciar ansiedade, desânimo, falta de perspec-
tivas, isolamento e uma profusão de medos contraditórios que vão desde,
por exemplo, temer que a criança não sobreviva, desejar que realmente
não sobreviva, desejar morrer para não viver toda dor envolvida neste
processo. Por isso, em todas as etapas é importante que os pais não estejam
sozinhos, pois o apoio da família, amigos e equipe fazem toda diferença.
É fundamental que possam contar com informações qualificadas e com
a competência de profissionais respaldados por uma abordagem humani-
zada das relações, ou seja, que verdadeiramente se ocupam desta condução
empática, sendo solidários aos percursos de cada gestação e, consequen-
temente, validando e acolhendo sem julgamentos as emoções destes pais.
Assim, os pais que enfrentam notícias inesperadas podem sentir
que não foram abandonados por seus médicos e equipe de saúde, que
continuam a desempenhar o protagonismo das decisões, mas podem ter
a segurança de que os profissionais oferecerão perspectivas realistas, mas
também com vistas otimistas para as tecnologias, recursos e possibilidades
que engajem a tomada das melhores decisões compartilhadas.
O LUTO PARENTAL
Sabemos que os pais e os familiares anseiam, se preparam e esperam
pela criança perfeita e saudável, visto que desejam encontrar no(a) filho(a)
a possibilidade esperançosa de concretizar seus próprios sonhos e ideais, e
quando a criança que nasce possui algum tipo de limitação significativa,
suas expectativas se fragilizam, já que a criança perfeita que lhes propor-
cionaria alegrias “não” nasceu (JERUSALINSKY, 2007).
119
Esta fala de Jerusalinsky (2007) é impactante porque nos remete ao
choque e descrença, ao questionamento interrogante que não cessa nestes pais
até que encontrem algum sentido: “onde falhamos?”, afinal, “o que fizemos
de errado para merecer tamanha provação?”, “como cuidaremos de um bebê
que demanda tanto, que exige tanto, que retribui ou expressa tão pouco?”
O luto pela perda irreparável do filho imaginário, a
culpa por gerar um bebê malformado e o temor das
dificuldades inerentes à criação de uma pessoa com
deficiências são sentimentos vivenciados pelo casal
(GAZZOLA, LEITE e GONÇALVES, 2020, p. 39).
O luto para além da morte concreta do corpo também merece
destaque e validação. É preciso compreender os lutos simbólicos como
aqueles que acontecem em vida, sendo oriundos de perdas e/ou rupturas
que não estão ligados à finitude, mas sim à quebra de idealizações, sonhos,
alianças, conexões: são as mortes que acontecem quando a vida continua.
Este processo envolve, muitas vezes, sentimentos ambivalentes como
negação, rejeição, frustração, medo, ansiedade, dor, revolta, e também uma
necessidade muito intensa de proteção e acolhimento deste filho. O luto
a ser elaborado envolve a perspectiva parental em relação aos indivíduos
deste casal materno-paterno acerca das fantasias ideais de como desem
-
penhar estes papeis, e a perspectiva de que nasce um bebê fora do ideal,
trazendo consigo a quebra radical do que foi presumido e a necessidade
de (re)construção de um modelo de compreensão desta criança.
Se não bastasse toda a perplexidade e dor vividas por estes pais,
ainda precisam enfrentar todo tipo de julgamento e conselhos advindos
de diferentes direções, incluindo olhares carregados de incômodo, nojo,
piedade ou apenas alguma curiosidade.
No conjunto de comentários, destacamos na literatura o relato
de uma mãe sobre o conselho de um médico a respeito de seu filho
deficiente, em que ele dizia: “seria melhor deixar o bebê morrer” (BUS-
CAGLIA, 1997, p. 163). Você pode estar pensando que essa literatura é
ultrapassada, que atualmente a realidade se apresenta de outra forma, e
isso é verdade, pois as tecnologias, incrementos medicamentosos e de
tratamento são amplamente melhores e mais numerosos, ainda assim, os
relatos ainda são muito semelhantes.
120
Relatos desta magnitude deixam claro que bebês assim não são
bem-vistos na sociedade, remetendo aos pais a condição de sofrerem em
silêncio, ou seja, “lágrimas vertidas na privacidade” (BUSCAGLIA, 1997,
p. 164), por isso, se quiserem salvar seu bebê, precisam aparentar força
inabalável e lutarem incansavelmente, desde que compreendam que isso
é uma escolha pessoal realmente insensata.
Neste sentido, o luto destes pais não é reconhecido, não é franqueado
o espaço simbólico de acolhimento para que possam lastimar este longo e
intenso período de pesar, pois “ninguém lhe diz que é normal sentir-se assim
e, com certeza, você não o admitirá a ninguém” (BUSCAGLIA, 1997, p. 164).
Para Doka (1998, p. 4 apud DOKA, 2022, p. 31) o luto não reconhe-
cido é definido como “o luto vivenciado pelo indivíduo que passa por uma
perda que não é ou não pode ser reconhecida abertamente, socialmente
aprovada ou publicamente sofrida”, ou seja, estamos diante de como “esse
processo é fortemente influenciado pela intensidade em que o outro e que
a sociedade reconhece e valida esta perda” (DOKA, 2022, p. 31).
Cada sociedade vai determinar, ou seja, dar as diretivas que modelam
a forma como pensar, viver, sentir, expressar, comportar-se e até mesmo
adaptar-se diante de uma perda. Quando não há morte relacionada, como
no caso do luto destes pais, então, a classificação é de uma “perda não
reconhecida” (DOKA, 2022, p. 33), ou seja, a perda não é socialmente
vista como significativa, afinal de contas, como é possível viver o pesar
por uma criança que está viva?
Ainda, “as maneiras como um indivíduo sofre” (DOKA, 2022, p. 34)
podem não ser validadas, visto que as formas de expressão do sofrimento
envolvendo algo, tido pela sociedade como exagero na superação ou na
lamúria, pode desqualificar a forma como o indivíduo sofre sua dor.
Desta forma, pode haver uma privação própria ou
intrapsíquica dos direitos de sofrer nas quais os indi-
víduos acreditam que sua própria dor é inapropriada,
reprimindo o luto e transformando-o em sentimento
de culpa ou vergonha (DOKA, 2022, p. 32).
Neste sentido, o próprio indivíduo pode sentir que sua perda não
deve ser reconhecida, pois “não considera, consciente ou inconsciente-
121
mente, aquela forma e condição de luto passível de espaço e validação
intrapsíquica” (CASELLATO, 2022, p. 38).
O problema do luto não reconhecido é que ele causa uma espé-
cie de limitação ou escassez na rede de apoio, pois a natureza da perda
barra o apoio social, visto que se não há direito a lamentar, então não
há necessidade de apoio, de empatia, de compaixão, de amparo, assim,
intensificando ou complicando as reações de luto.
Mesmo que a sociedade tenda a banalizar o sofrimento advindo de
perdas simbólicas e/ou ambíguas, as famílias frequentemente experimentam
estes tipos de perdas, como por exemplo, quando há perda psicológica,
mas se mantém fisicamente presente aquilo que foi perdido, impedindo o
reconhecimento da concretude do que foi perdido (CASELLATO, 2022),
como os sonhos, planos de futuro, perspectivas de “normalidade” ou cura,
favorecendo a invisibilidade da perda e do luto.
DO FILHO IMAGINADO AO FILHO REAL:
POSSIBILIDADES DE CRESCIMENTO PARENTAL
Cada pessoa, singularmente, reage de maneira diferente diante de
uma perda, de uma situação potencialmente traumática, de um rompi-
mento de vínculo, ou seja, como afirma Casellato (2022, p. 37), “a dor
do luto é sempre desafiadora, em especial, por seu caráter subjetivo e
intangível”. No entanto, as regras do luto podem mudar com o tempo,
o reconhecimento das formas de sofrer e a validação de diferentes perdas
é mais frequente nas subculturas (DOKA, 2022, p. 33) onde outros pais
vivenciaram ou vivenciam o mesmo tipo de situação.
Por isso, buscar os pares como pais, profissionais da saúde e edu-
cação, que sejam realmente qualificados, faz parte da construção de
possibilidades que visam compartilhamento, aprendizagem, amparo e
validação, tanto no sentido de redimir a exclusão, como de acessar e
divulgar informação fundamentada.
O engajamento de pais-filhos-sociedade em atividades promotoras de
coesão, informação, ampliação de direitos, reconhecimento de potencialida-
des e habilidades, organização de esferas promotoras de saúde com base na
realidade vivida é recurso potente para tornar o fenômeno visível e tangível.
122
Quando uma perda não é reconhecida e o processo de luto fica
embotado, há a necessidade de promover intervenções que forneçam
suporte para esses pais. Neste sentido, Doka (2022) orienta a exploração
de diversas modalidades como a terapia individual ou em grupo, grupos
de apoio, terapias expressivas ou ainda, a promoção terapêutica de rituais
fúnebres, ou neste caso em questão, a adaptação de um ritual que possa
simbolizar a perda para aqueles pais em específico.
Este processo de crescimento pós-traumático pode abrir espaço para
que os pais conheçam suas potencialidades, descubram qualidades que nem
mesmo tinham consciência antes do nascimento deste(a) filho(a), afinal, a
construção de uma relação amorosa entre pais-filho(a) em meio a tantos
desafios só se constitui, de fato, se este casal estiver disposto a vivenciar
estes lutos e permitirem-se a olhar o filho(a) real, para assim, poderem
(da forma que lhes for possível, crível) fazer o enfrentando dos obstáculos
e engajamento genuíno e profundo na verdadeira criação desta criança.
REFERÊNCIAS
BUCKMAN, R.; KASON, Y. How to break bad news: a guide for health care professionals.
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992.
BUSCAGLIA, L. Os decientes e seus pais: um desafio ao aconselhamento. Rio de Janeiro/
São Paulo: Editora Record, 1997.
CASELLATO, G. Perdas simbólicas e ambíguas: quando quase tudo é invisível. IN: ZILBER-
MAN, A.B; KROEFF, R.F.S.; GAITÁN, J.I.C. (Orgs.). O processo psicológico do luto: teoria
e prática. Curitiba: CRV, 2022. pp. 37-48.
DOKA, K. Luto não reconhecido. IN: ZILBERMAN, A.B; KROEFF, R.F.S.; GAITÁN, J.I.C.
(Orgs.). O processo psicológico do luto: teoria e prática. Curitiba: CRV, 2022. pp. 31-36.
GAZZOLA, L.P.L., LEITE, H.V., GONÇALVES, G.M. Comunicando más notícias sobre mal-
formações congênitas: reflexões bioéticas e jurídicas. Rev. bioét. (Impr.). 2020; 28 (1): 38-46.
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KREUZ, G.; GRIGOLETO NETTO, J. V. (Orgs.) Múltiplos olhares sobre morte e luto:
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JERUSALINSKY, A. Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Artes e Ofí-
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SOLOMON, A. Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade. São Paulo: Companhia
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TINOCO, V. Maternidade prematura: repercussões emocionais da prematuridade na vivência
da maternidade. Tese de doutorado em Psicologia Clínica: PUC-SP, 2013.
123
GRUPO TERAPÊUTICO PARA ENLUTADOS:
MÉTODO EDUCATIVO REFLEXIVO SOBRE
MORTE E LUTO
Keila Barros Moreira51
Joyce Duailibe Laignier Barbosa Santos52
Janete Monteiro Gomes53
Os mortos não levam consigo as palavras que você pode dizer sobre eles.
Morrer é deixar de ser aquele corpo e passar a ser a falta desencarnada.
Por isso não deixe que as palavras morram com os mortos.
As palavras são o que temos para viver, depois de qualquer morte.
THEBAS, AMARAL, 2022.
INTRODUÇÃO
A humanidade sempre se questionou a respeito do fim da existência
do corpo físico, e em muitos momentos tem apresentado reflexões acerca da
morte do outro ou mesmo da própria morte (KOVÁCS, 2003). Não há res-
postas certas ou erradas nesta esfera de discussão. Há diferentes percepções,
que variam de acordo com cada crença, filosofia ou arte, e há reações diver-
sas frente ao evento da morte e no enfrentamento do luto (RAMOS, 2016).
Para Parkes (1998), as pessoas que enfrentam a perda de alguém
vivenciam um momento de grande estresse que pode ser denominado
como “crise”. O luto é um período de intensidades e mudanças. Essa
vivência resulta do rompimento de vínculos significativos. O traço mais
característico são episódios agudos de dor, crises de ansiedade e dor psí-
quica, impossibilitando ou dificultando o enlutado momentaneamente
ou por um período de realizar tarefas cotidianas.
Segundo Luna (2020), a experiência de luto é individual e coletiva
ao mesmo tempo. Individual porque as circunstâncias e os vínculos que
51 Mestranda em Ensino em Ciências e Saúde (UFT). Psicóloga. CV: https://lattes.cnpq.br/8613515410774600
52 Doutoranda em Psicologia (Universidade de Évora - POR). Psicóloga.
CV: http://lattes.cnpq.br/8487935631368681
53 Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Advogada. Analista Jurídico (SEFAZ-TO). Voluntária
como Conselheira de Luto. CV: http://lattes.cnpq.br/5071858861207495
124
unem as pessoas são únicos, assim como cada perda é única. Coletiva
porque é uma situação à qual todos os humanos estão suscetíveis, sendo
a perda uma realidade universal, e que gera sentimentos diversos. Para a
autora, quando a pessoa perde alguém ou algo significativo não passa a
ser mera expectadora de relações sociais ou terapêuticas, mas é ativa na
gestão compartilhada da sua experiência privada de sofrimento.
Contrapondo a autonomia que o enlutado deveria ter sobre seu
processo de luto, ele frequentemente é bombardeado a superar ou aban-
donar prematuramente seu processo, para dar conta das demandas sociais,
de trabalho, etc. que no geral não acolhem os impactos naturais (porém,
vistos como negativos) na produtividade e na vida da pessoa enlutada. É
como se esse processo precisasse ser evitado. O que muitas vezes induz o
enlutado, a assumir um comportamento aceitável socialmente, e camuflar
emoções e necessidades psicológicas naturais do luto. Como consequência,
vive o seu processo isoladamente ou é forçado a abandoná-lo antes que
seja vivenciado em sua totalidade (SOUSA, 2016).
Bicalho Reis et al. (2023), citando estudos epidemiológicos, afirma
que para a maior parte da população, o luto pode acontecer de forma
satisfatória com o suporte da rede de apoio composto por familiares e
amigos, ou com suporte de um profissional especializado e terapias de
grupo, além de estratégias desenvolvidas pelo próprio enlutado.
Entretanto, em razão da morte e do luto ainda serem considerados
temas tabus, há uma ausência de ações educativas em diversos contextos,
e também de apoio aos enlutados, incluindo os educacionais e de saúde,
e como consequência, falta qualificação e manejo de muitos profissio-
nais, para abordarem a morte e acolherem o enlutado (MARQUES,
2012; GENARO, DE MEDEIROS, 2020).
Parkes (1998) destaca que o luto é tão parte de nossa vida como a
alegria de viver, é um processo que envolve uma sucessão de reações que se
mesclam entre si diante da perda. Trata-se de uma resposta normal diante
do estresse da morte, podendo ser considerado como acontecimento vital
mais grave experimentado por nós. Autores como Kovács (2003), Parkes
(1998), Kubler-Ross (1996) e Worden (2013) defendem uma mudança
cultural, que possibilite transpor o tabu, e trazer as temáticas sobre morte
e luto para perto de nós, como parte do nosso ciclo de vida. Seria, a imple-
125
mentação de uma educação para a morte, ocorrida em todos os espaços
da nossa vida cotidiana, inclusive o ambiente escolar/universitário.
Com o intuito de contribuir nessa mudança de paradigma, este
capítulo tem como objetivo apresentar os resultados do projeto “Terapia
sobre luto”, que foi submetido ao edital da “UFT em Movimento”, na área
temática da extensão universitária da Saúde. O programa é uma iniciativa
da Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários (Proex), da
Universidade Federal do Tocantins (UFT), que tem o objetivo de “oferecer
à comunidade acadêmica e ao público externo atividades esportivas e de
qualidade de vida, considerando as dimensões física, emocional, ocupa-
cional e social dos envolvidos” (UFT, 2022).
O projeto baseou-se nos pressupostos da abordagem Sistêmica e da
comunicação não violenta, concatenados com o método fenomenológico. E
teve como objetivo principal promover em ambiente acadêmico um espaço
de vivência e reflexões para pessoas enlutadas, por meio do acolhimento,
da construção coletiva e segura, do compartilhamento e da escuta sensível.
DESENVOLVIMENTO
O método - O projeto pautou-se na abordagem qualitativa, que
permite compreender e refletir a respeito das particularidades sociais e
humanas que envolvem a temática, proporcionando aproximação entre
os sujeitos e objeto de pesquisa, tornando as ações, estruturas e relações
significativas (MINAYO, 2010).
Utilizamos o método fenomenológico que objetiva “proporcionar uma
descrição direta da experiência tal como ela é, sem nenhuma consideração
acerca de sua gênese psicológica e das explicações causais” (GIL, 2008, p. 14).
Para registrar os encontros, utilizamos o diário de campo, instru-
mento “inspirado no trabalho dos primeiros antropólogos que, ao estudar,
carregavam consigo um caderno no qual escreviam todas as observações,
experiências, sentimentos etc. para posteriormente selecionar os dados
mais relevantes” (VÍCTORA, KNAUTH, HASSEN, 2000, p. 73).
Conforme Yalom e Leszcz (2007), dentre as diferentes estratégias
para trabalhar o processo de luto, o grupo terapêutico tem se destacado
como abordagem eficiente. Nesse contexto, importante acrescentar que o
126
grupo terapêutico se caracteriza por pessoas que formam uma “integração
íntima e de certa fusão de individualidades em todo comum, de tal modo
que a meta e a finalidade do grupo é a vida em comum, (...) e um sentido
de pertencimento, de simpatia e identidade” (RIBEIRO, 1994, p. 33).
Na perspectiva sistêmica, o sujeito é visto de forma relacional e
com sua rede de interações. Dessa forma, utilizamos essa abordagem,
na qual o profissional atua para estimular e propiciar o protagonismo e
autonomia das pessoas, concebendo o sujeito com seus diferentes siste-
mas linguísticos, e promovendo espaços colaborativos e emancipatórios
(AUN, VASCONCELLOS, COELHO, 2010).
A coordenação do grupo foi realizada por duas psicólogas e uma
conselheira de luto, que se dividiram nos papéis de: coordenadora, co-coor-
denadora e observadora. A importância desse tipo de coordenação se dá
pela maior possibilidade de perceber e acompanhar as intensidades e movi-
mentos do próprio grupo (AUN, VASCONCELLOS, COELHO, 2007).
A metodologia previa a participação de até 12 pessoas no grupo, com
total de 10 encontros semanais, com duração de 1 hora e 30 minutos. Os
critérios para participação foram a vivência do processo de luto identificado
no autorrelato e ter interesse em participar do grupo terapêutico sobre luto.
Foram utilizadas dinâmicas de grupo, que se constituem como
valioso instrumento educacional, capazes de potencializar o entrosamento
do grupo, a reflexão e autoconhecimento, em uma concepção de educação
que valoriza tanto a teoria quanto a prática e considera todos os sujeitos
envolvidos (PERPÉTUO, GONÇALVES, 2005). Os diálogos e questiona-
mentos reflexivos “pretenderam instigar o sistema a refletir sobre as impli-
cações, percepções e ações atuais e a considerar novas opções” (AUN, VAS-
CONCELLOS, COELHO, 2010, p. 201) de lidarem com suas demandas.
Os encontros foram caracterizados por um tema ou assunto dispa-
rador (elencados no encontro anterior); uma dinâmica de grupo ou outro
método educativo. Utilizamos: música, poesia, vídeos, cartazes, perguntas
reflexivas e outros recursos. O principal objeto foi ofertar espaço de fala
igualitário, com segurança e acolhimento (AUN, VASCONCELLOS,
COELHO, 2007). Dessa forma, a condução das coordenadoras teve como
127
objetivo principal possibilitar que ecoasse a voz, os sentidos e emoções
dos participantes (ROLNIK, 1989).
Descrição dos encontros - Houveram 11 inscritos, pessoas que sofreram
a perda de filhos, mãe e esposa nos últimos quatro anos. Os encontros
ocorreram no período de setembro a dezembro de 2022, semanalmente,
com uma média de 6 participantes por encontro.
Para proteger a identidade dos participantes, utilizaremos codinomes
de flores: Dália, Margarida, Papoula, Orquídea, Tulipa, Açucena, Rosa,
Lírio, Antúrio, Jacinto e Cravo.
O primeiro encontro teve um roteiro previamente planejado, que
foi a apresentação dos participantes, a história do luto de cada um e a
elaboração dos acordos de convivência grupal. Durante a narração deles
sobre os lutos, ficou visível a necessidade de espaço de fala que existia
ali, o que foi concedido. “Em muitos espaços você não pode falar sobre a sua dor
sem julgamento e sem interrupções, foi o que mais chamou minha atenção no grupo, a
liberdade de falar de maneira livre e respeitosa” (Papoula).
Os demais encontros foram divididos em espaços de diálogo aberto
para atender as temáticas trazidas pelos participantes; e em outros, houve
um direcionamento das facilitadoras, para ampliar a expressão de senti-
mentos, porém, os direcionamentos partiram das demandas e necessidades
trazidas por eles. Foi oferecido espaço para refletirem, trocarem, fortalecer
ou ressignificarem percepções.
Foi enfatizado, que o processo de luto é singular e que cada
sujeito expressa e sente de uma forma diferente, sendo todas as expres-
sões legítimas e incomparáveis. Sendo assim, trata-se de “um processo
dinâmico, que varia de pessoa para pessoa e suscita sensações diversas”
(FUKUMITSU, KOVÁCS, 2016, p. 4).
Dália contou da perda da filha que se suicidou, demonstrando
no semblante a dor que tem vivenciado. “Era minha única lha, sinto algo
muito profundo e intenso, já fazem quatro anos, mas, é como se tivesse ocorrido ontem”.
Situações de suicídio podem desencadear no enlutado “uma diversidade
de emoções que transitam pela raiva, tristeza, pesar, culpa, vergonha, entre
outros, (...) elevando as suas chances de desenvolver um luto complicado”
128
(SACILOTI, BOMBARDA, 2022, p. 16), a rede de apoio, acolhimento,su-
porte e não julgamento fazem grande diferença no processo.
A perda real de um ente querido/figura de apego gera desespero,
perturbação e grande tristeza, além de evidenciar a raiva. Bowlby (1985)
defende que essas emoções em torno do rompimento iminente de vín-
culos devem ser consideradas reações normais e saudáveis. Além disso,
tendemos a desejar o poder de barganha com a morte, que na realidade
é inegociável (PARKES, 1998).
O processo de luto é influenciado por diversos elementos, tais
como o vínculo com a pessoa que morreu, a relação entre familiares e
amigos/conhecidos, as circunstâncias da morte, a vulnerabilidade pessoal
do enlutado, forma de enfrentamento da situação, experiências relaciona-
das à perda e o suporte social recebido no processo de ressignificação e
reequilíbrio (BOWLBY, 1985; KOVÁCS, 2003; FREITAS, 2013; GOMES,
GONÇALVES, 2015; FUKUMITSU & KOVÁCS, 2016). Esses elementos
se ramificam “em uma ampla gama de variáveis, o que nos obriga a
compreender o luto como uma experiência única para cada indivíduo
- o resultado complexo de uma combinação única de fatores de risco e
proteção” (CÂNDIDO, 2011, p. 47).
A culpa foi um tema recorrente. Papoula compartilhou com o
grupo que perdeu a mãe, e pouco tempo depois o marido faleceu. Contou
que acompanhou a mãe e cuidou até o último minuto dela, e nesse caso
não sente culpa, porque considera que fez o que podia. Por outro lado, o
esposo faleceu menos de um mês depois da mãe, de maneira repentina,
e por isso sentia-se culpada por não estar perto dele nos últimos meses.
“Eu poderia ter sido mais atenciosa, cuidadosa com o problema de saúde dele”.
Neste aspecto, observa-se a força da sociedade patriarcal, na respon-
sabilização da mulher pelo cuidado e manutenção dos seus, como se ela
tivesse poderes para prever, controlar, de ser onipotente, onipresente, e
com ‘sabedoria’ manter a funcionalidade familiar, através do seu inces-
sante cuidado e zelo. Nesse sentido, não se leva em consideração, suas
limitações, necessidades e a condição humana de não prever e evitar o
inevitável (BARBOSA, ROCHA-COUTINHO, 2012).
Além de Papoula, Cravo também relatou a culpa que sentiu, jun-
tamente com os filhos, por terem ‘deixado’ a esposa fazer procedimento
cirúrgico que desencadeou na sua morte. A culpa faz parte do processo de
129
luto, e geralmente é direcionada a alguém ou situação, que na concepção
do enlutado, poderia evitar o fato, sendo que muitas vezes é direcionada
a ele próprio (PARKES, 1998).
Orquídea relatou que sente ainda muita culpa porque o filho
morreu afogado durante uma viagem de férias em família, na qual ela
insistiu para ele ir; outra mãe, a Tulipa, demonstrou estar mergulhada em
culpa, porque o filho cometeu suicídio e no dia anterior, ele foi visitá-la,
e, ela não percebeu os sinais da ideação suicida. Assim como Papoula,
Tulipa passa por múltiplos lutos, havia perdido também o esposo e dois
irmãos no período de um ano, esses fatores trazem maior complexidade
e delicadeza ao processo (KOVÁCS, 2003).
A culpa pode estar relacionada ao medo da morte e de morrer,
medo da extinção e do que vem após a morte, e do desejo inconsciente da
imortalidade. Quando um indivíduo se depara com a morte é difícil ver o
seu sofrimento e desintegração, o que origina sentimento de impotência
e culpa por não poder fazer nada para evitar (KOVÁCS, 1992).
Foi enfatizado, que eles estão seguindo da maneira que podem, não
deixaram de viver, e que a vida segue e cresce em torno do luto, da maneira
que cada contexto permite. Que há uma inabilidade social para lidar com
o enlutado, pela temática ser tabu. Que o luto não tem tempo “certo” de
duração nem “forma correta” de ser sentido. Cada um sente à sua maneira.
O enlutado é o especialista sobre o que precisa para passar por esse processo
da melhor forma (KOVÁCS, 1992, WORDEN, 2013, ARANTES, 2022).
Outro tema trazido com maior ênfase, foi a necessidade de rituais.
Margarida perdeu a mãe em razão da Covid-19 e relatou pesar e tristeza pela
mãe ter falecido tão jovem, e por não ter tido ritual de despedida. Os rituais
têm uma função importante para o enlutado por ativar a rede de apoio
e solidariedade, e por permitir despedidas (BICALHO REIS et al., 2023).
Lírio trouxe a dor de não ter podido participar dos ritos de des-
pedida da mãe. Escreveu em uma atividade o que gostaria de ter dito a
ela, e o quanto pesava não ter se despedido. Simbolicamente pôde dizer
e sentir ao compartilhar o que escreveu, relatou alívio posteriormente.
Rosa enfatizou a desesperança e falta de sentido na vida, disse que
tanto faz as coisas aconteceram ou não. Para ela o pior já aconteceu, então
130
é como se nada mais pudesse mudar essa realidade. Relatou profunda
tristeza e falta de ânimo, com o falecimento do filho de 19 anos, vítima
de acidente. O luto promove hiatos, pausas, silêncio e ausências indizíveis,
trata-se de uma travessia que não ocorre de maneira retilínea e uniforme.
É através desse caos, no ritmo e tempo de cada um, que é possível mudar
a roupa do existir e se realocar na vida (THEBAS, AMARAL, 2022).
Não sei se consigo continuar. Eu tenho sentido muita dor... vi no
grupo pessoas com anos de luto e ainda sofrendo muito. O sofri-
mento deles também me faz sofrer. Sinto que perdi a perspectiva
da minha vida. Pela primeira vez não tenho sonhos, nem planos,
nem estrada (Rosa).
O movimento do grupo traz de volta afetos, memórias e lembranças
do ente querido, e pode gerar sentimentos diversos. É preciso considerar
que a temática é sensível e difícil de ser abordada, e por isso, pode gerar
sensações desconfortáveis e contraditórias. Para alguns participantes foi
espaço de apoio, enquanto para outros foi sinônimo de dor e sofrimento.
Um dos participantes afirmou: “consigo conversar com meus irmãos e ajudá-los
a falar sobre a minha mãe. O grupo me ajudou a ajudar outras pessoas, que também
estão sofrendo com a perda.” (Lírio). Enquanto Orquídea compartilhou:
não tá fácil pra mim sabe, eu fui, participei do encontro, achei
muito bom. Mas eu vou falar a verdade, eu saí de lá pior do que
entrei (...). Eu fui como uma esponja, absorvi a dor de todo mundo
ali, e quando acabou, eu saí, e voltou tudo sabe, tudo da minha
dor... (Orquídea).
As falas de Orquídea, Rosa, e outros participantes foram acolhidas.
As profissionais responsáveis pelo grupo se colocaram à disposição para
diálogos de outras maneiras, enfatizando que é natural; que as experiências
impactam de maneira diferente, e que naturalmente devem optar pelo
que lhes for mais confortável neste momento. A experiência reforça o que
a literatura traz: de cada um viver o luto à sua maneira, para uns falar
auxilia, enquanto outros precisam de seus silêncios, ou manifestar o que
sentem através da arte, trabalho, etc.
Os participantes ressaltaram o quanto é difícil para eles ouvi-
rem frases prontas, que desconsideram ou desprezam os sentimentos
131
vivenciados pelo enlutado, como por exemplo: “ele está em um lugar
melhor”, “você precisa seguir em frente”, “seja forte”, “Deus quis assim”,
etc. A partir dessa demanda, foi realizada uma Oficina sobre a Comu-
nicação Não Violenta- CNV e o luto, a fim de repensar como as pes-
soas próximas ao enlutado podem acolhê-lo de maneira mais assertiva,
assim como poderiam acolher outros.
Durante a Oficina, verificou-se que muitos estavam magoados com
pessoas próximas por terem falado frases desse tipo, descritas por eles como
inconvenientes e agressivas. Em seguida, cada um foi listando as frases
que os magoaram, e como poderiam ser proferidas de maneira respeitosa
e acolhedora, tais como: “estou aqui para o que precisar”, “imagino o
quanto pode ser difícil sua perda”, “posso fazer algo por você?”, “estou
aqui para escutá-lo”, “dar um abraço e manter-se ao lado”, “que respeitem
as necessidades de falar ou silenciar do enlutado”.
Para Rosenberg (2006) com o uso da Comunicação Não-Vio-
lenta, as respostas a estímulos comunicacionais devem deixar de ser
automáticas e repetitivas e se tornarem mais conscientes, baseadas na
percepção do momento, por meio da observação dos comportamen-
tos e da escuta ativa. O método sugere que as interações ocorram com
mais respeito, atenção e empatia.
Cravo contou sobre seu relacionamento com a esposa, sobre suas
boas memórias e o quanto ela era uma pessoa alegre e espontânea. Que 30
dias após sua morte, a família se reuniu para festejá-la como ela gostava,
com churrasco, cerveja, dança e todos reunidos. Um encontro regado
a lembranças, lágrimas e sorrisos. Fica evidente que o luto é dinâmico,
não linear e tem espaço para todos os sentimentos e emoções - que reme-
tem angústias, saudades, gargalhadas e alegrias contidas nas lembranças;
por quem partiu continuar em quem ficou e pela vida que pulsa no
enlutado (THEBAS, AMARAL, 2022).
Foi trazido por eles o quanto é difícil lidar com essa diversidade
de emoções. É como se não pudessem mais sorrir, como se não estives-
sem honrando quem morreu, ou quando já conseguem sorrir, se sentem
culpados, como se não amassem o suficiente. Na conversação trouxeram
percepções diversas a esse respeito, e buscou-se ampliar essa compreensão.
A experiência do grupo possibilitou compartilhar a dor, e compreender que não é só você
que está sofrendo, e que poder falar abertamente sobre isso é natural. Foi importante
ouvir outras dores e outras formas de lidar com ela” (Margarida).
132
Em um dos encontros foi proposto a criação de um ‘produto’. Algo
que fizesse sentido ao momento vivenciado por cada um. Oferecemos:
papéis/envelopes, tintas, lápis coloridos e potinhos, e os participantes
foram convidados a criar. Açucena encheu um potinho de lembranças
divertidas e bons momentos com a filha, falecida há poucos meses.
Jacinto, confeccionou um pote sobre afetos e boas lembranças da
mãe, e compartilhou que depois que participou do primeiro encontro,
conseguiu dar vazão ao choro contido em seu ser.
Nesse sentido, vale ressaltar que a exigência social de não demonstrar
sentimentos como a tristeza, pode sobrecarregar o enlutado (PARKES,
1998). Essa cobrança costuma ser bem maior para os homens. “Para mim
foi bem importante ouvir os relatos, poder falar sem me sentir julgado. Consegui começar
a sair do lugar de inadequado. Era como se não pudesse mais sofrer pela partida de
minha mãe, foi aliviador perceber que não estou só.” (Jacinto).
Questões a respeito da morte são frequentemente silenciadas e
ignoradas em nossa sociedade. Agimos como se a morte, fato inegável
para quem vive, não fizesse parte de nosso ciclo vital, sendo incapaz de
atingir a nós, e àqueles a quem amamos e conhecemos. Ao silenciar a
realidade da mortalidade, tornamos a finitude uma fatalidade (BACEL-
LAR, 2017). Assim, “quando ocorre uma perda, perdemos não somente
a pessoa a quem éramos apegados, mas também a nossa posição de imor-
talidade” (PARKES, 2009, p. 170).
Açucena participou do grupo com seu esposo, Antúrio. Inicial-
mente muito calado, no decorrer dos encontros, ele foi sentindo-se
seguro, e foi deixando sua voz ecoar. Nos últimos encontros, demons-
trou revolta, negação e culpa pela morte da filha, acreditando que a
morte dela pode estar relacionada com as escolhas de vida dele. Essas
são características também esperadas no processo de luto, e que com o
tempo podem tomar novos significados, acolher e não julgar auxiliam
nesse processo (KUBLER-ROSS, 1996).
Penso que um espaço para o luto deva ser um templo. Onde levo
e deixo a minha dor. De alguma forma deve-se sair mais leve...
Cada um tem um jeito de deixar a dor. Seja chorando, dramati-
zando, criando... O espaço de luto deve ser um espaço vivo. Penso
133
que não na busca de tocar o outro ou ser tocado por ele. Isso no
luto dói. Penso que a intenção seja tocar-se, permitir-se para que
um dia, talvez você deixe a luz entrar (...). A gente meio que
perde parte da identidade e somos obrigados (olha que pesado) a
nos transformar em fênix e renascer das cinzas. Obrigados, pois
ninguém pergunta se você quer voar. Só diz que é assim, que tem
que ser… Essa reestruturação é bonita de imaginar… renascer...
como uma fênix… todos acham o máximo. Mas será que alguém
parou pra pensar na dor dela para realizar esse ciclo? Imagine
você sozinha, sentar no ninho e esperar ser incinerada pelo sol e se
refazer depois de toda dor? (Rosa).
As dificuldades de lidar com sofrimentos tão profundos induz
a patologização do luto e medicalização do sofrimento, por vezes,
de maneira inadequada (ALVES, 2021). Acolher a dor como parte da
existência e a limitação de não ter o poder de extingui-la, conecta-nos
com a potente, porém limitada condição humana, e permite fazer o
possível (THEBAS, AMARAL, 2022).
Assim, no luto, a vida não volta ao estado anterior. As possibilida-
des crescem em torno da dor do luto. Assim como as batidas do coração
fazem o sangue fluir e mantém a vida, o olhar para a existência constrói
novos significados e sentidos, que podem possibilitar o processo de rea-
locamento do enlutado diante da vida, carregados de dores, ausências e
saudades infinitas (ARANTES, 2022).
CONSIDERAÇÕES
Coerentes com a fenomenologia, destacamos que muitas das con-
siderações já foram compartilhadas durante a descrição da experiência,
elencada pelos próprios participantes. O grupo terapêutico para enlutados
mostrou-se um espaço potente de construção coletiva, onde as vozes,
silêncios, tristezas, angústias, lágrimas e risos foram manifestados com
acolhimento e empatia. Ouvimos reivindicações sobre o direito de estar
enlutado, sobre a necessidade de serem validados e respeitados, e do
quanto pesa e dificulta a pressão social para fazer parecer que está tudo
bem, quando tudo está destruído internamente.
Sinalizamos que, sair do lugar de super/imortal dói profundamente,
mas trata-se de um movimento que cedo ou tarde precisa ser feito. A morte
134
costuma ser a mensageira desse confronto. Abraçar nossa humanidade traz
uma forma ‘leve’ de lidar com situações difíceis como o luto por tirar o
peso de ‘ter’ que extinguir o sofrimento, e abre possibilidades de ofertar
o possível, como apoio, respeito, empatia e cumplicidade.
Existe uma forte tendência à negação do processo de luto, à patolo-
gização das sensações e sentimentos negativos e aumento do número de
prescrição de medicamentos na busca por soluções rápidas e tentativa de não
sentir dor, para o enlutado continuar a ter uma vida funcional e produtiva.
Assim, observou-se que compartilhar a experiência da perda, permi-
tiu outros significados à vivência natural da dor. Desse espaço surgiram
reflexões profundas a respeito do significado da perda, da possibilidade
de sentir e falar sobre o ente querido (espaço muitas vezes negado social-
mente), de compreensão sobre o enfrentamento e vivência do luto e da
realocação do sistema familiar e do indivíduo após sua perda.
Os participantes, no geral, ressaltaram a importância desse espaço,
ambiente para expressar sentimentos, livre de julgamentos, e no qual
puderam “compartilhar a dor” com outras pessoas que vivem situações
semelhantes. Que o processo grupal os ajudou a lidar com a dor, e assim
conseguiram conversar mais abertamente com familiares e amigos que
estavam passando por esse mesmo processo. Enfatizaram a importância
de poder lembrar livremente da pessoa que morreu, de receberem e ofe-
recerem apoio e legitimar as formas diversas de viver o luto.
Nós que coordenamos o grupo, também vivemos o processo
de luto, de forma que a experiência compartilhada foi extremamente
potente para o nosso percurso.
Como sinalizado pelos autores, precisamos trazer a morte e luto
para o nosso cotidiano. É necessário fazer esta mudança no nosso meio,
tendo em vista que Deixar de falar da morte, não evita o seu existir, porém
concebê-la como parte de nossa existência, pode modificar a relação que
temos com ela, pode potencializar a vida que a precede e conceber formas
diferentes de vê-la e senti-la.
A partir dessa mudança, podemos oferecer ao enlutado a compreen-
são, respeito e empatia que ele precisa para essa trajetória. Não se pode pato-
logizar um evento esperado e natural da nossa condição humana e finita.
Destacamos a importância do caminho ter sido construído com
o grupo, a partir das demandas dos participantes. Esse movimento esti-
mulou autonomia e possibilitou significados e sentidos singulares que
ofereceram suporte no caminhar.
135
Portanto, enfatizamos a necessidade de pesquisas e compartilhamento
de experiências sobre a temática, assim como, a oferta de espaços para
abordar morte e luto, em diversos contextos, como escolar/acadêmico,
nas formações, equipamentos de saúde, em cotidianos familiares. Com
métodos vivos e dinâmicos, que utilize a fala, a arte, o corpo e as diversas
possibilidades de expressar os sentimentos oriundos dessa travessia.
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137
O PAPEL DO PSICÓLOGO E AS VICISSITUDES
DO PROCESSO DE MORTE E LUTO
Patrícia Carlos dos Santos Leonardo54
Todos nós passaremos pelo luto em algum momento da vida, somos
constituídos pelo outro e também o constituímos, vivendo uma relação
de troca. Tão logo, morrer faz parte do ciclo vital e ao longo do tempo,
as pessoas vão significando a morte de diferentes maneiras.
A morte não é uma escolha, todos vamos morrer. Aqui falo da
finitude, da morte como perda e do momento final, de forma irreversível
quando ocorre a perda real, a perda do outro. Logo, não existe recomeço,
substituição ou esquecimento. Você não encontrará respostas sobre a morte
ou o morrer, mas uma pesquisa que explora esse fenômeno e os sentimen-
tos e comportamentos advindos dela. A morte envolve um mistério, que
certamente influencia nossa forma de ser e viver no mundo
[...] Existem várias possibilidades de ocultamento,
tanto culturais quanto psicológicas. Entre essas últi-
mas podem ser destacados os mecanismos de defesa:
negação, repressão, intelectualização, deslocamento. As
defesas ao mesmo tempo que nos protegem do medo
da morte, podem nos restringir. Há momentos em que
o sujeito fica tão acuado que parece não viver. E esse
não-viver, pode ser equivalente a morrer. Então surge
uma situação paradoxal, em que a pessoa “está” morta,
mas “esqueceu” de morrer: temos a chamada morte em
vida. Com isso estamos brincando com as palavras vida
e morte e com seu entrelaçamento, mas que verdades
profundas essas brincadeiras nos trazem! (KOVÁCS,
2010, p. 2/3).
54 Especialista em Saúde Mental, Atenção Psicossocial e Psicopatologias e em Traumas, Cuidados Palia-
tivos e Processos Autodestrutivos (UNICESUMAR). Formação em Tanatologia pela Rede Nacional
de Tanatologia. CV: http://lattes.cnpq.br/6247492748126622
138
O medo é a resposta psicológica mais comum diante da morte,
atingindo todos os seres humanos, sem exceção de classe social, idade,
etnia ou religião. Alguns medos são conscientes e outros são encober-
tos. O medo pode ser da morte do outro, que envolve a consciência da
separação e rompimento de vínculos; da própria morte, que envolve
a fantasia de como será o fim e o contato com a própria finitude; do
que vem após a morte, que ameaça ao desconhecido; e medo da extin-
ção que envolve estar vulnerável.
Falar da morte tornou-se algo impactante porque a sociedade con-
temporânea não discute assuntos acerca da morte e o morrer, afastando
então as possibilidades de falar sobre as relações humanas e o sofrimento
do luto, não aceita a morte como um processo natural da vida, buscando
meios de se afastar dessa realidade, e, portanto, trazendo a imobilidade
diante da finitude do outro e da própria finitude quando se aproxima
do assunto, mas nem sempre foi assim.
De acordo com a literatura, antigamente o luto, um processo decor-
rente da morte era vivenciado de forma que as famílias se preparavam e
tinham seus próprios rituais, desde o momento da descoberta da enfer-
midade até a morte propriamente dita.
A obra “História da Morte no Ocidente” (ARIÈS, 1977) disserta
sobre alguns modelos de morte, dentre elas a morte domada e a morte
interdita, percorrendo um caminho da história da morte e como era vista
nos séculos passados e como foi sendo modificada na contemporaneidade.
A morte, no século XVIII, era aceita como um processo natural da
vida, antes esperada no leito com uma cerimônia pública e organizada pelo
próprio enfermo, que a transformava em um evento público. Contudo,
eram comuns rituais de despedida ao moribundo (como eram chamados
os enfermos) que aconteciam por meio de visitas com a participação de
familiares, amigos e crianças. A esse fenômeno dá-se o nome de morte
domada. Não havia seleção ou restrição para tal ato. A morte domada é
aquela que o sujeito está consciente da sua própria finitude, seguindo o
processo natural da vida. “Não se morre sem ter tido tempo de saber que
vai morrer. Ou se trataria da morte terrível, como peste ou morte súbita,
que deveria ser apresentada como excepcional, não sendo mencionada”.
139
(ARIÈS, 2017, p. 29). A morte domada nos dias atuais é considerada
como um movimento de insensibilização, pois com as novas percepções
de mundo, morte e luto passaram a ocupar um espaço de sofrimento para
quem perde um ente querido, sendo vistos de forma vergonhosa e velada.
Durante o longo período que percorremos, desde a Alta Idade Média
até a metade do século XIX, a atitude diante da morte mudou, porém de
forma tão lenta que os contemporâneos não deram conta. Ora, há mais
ou menos um terço de século, assistimos a uma revolução brutal das
ideias e dos sentimentos tradicionais; tão brutal que deixou de chocar os
observadores sociais. Na realidade trata-se de um fenômeno inaudito. A
morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se apagar e desapa-
recer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição. (ARIÈS, 2017, p. 82).
Segundo Ariès (2017, p. 22), “as transformações do homem diante
da morte são extremamente lentas por sua própria natureza ou se situam
entre longos períodos de imobilidade”.
Outro modelo adotado é nomeado de Morte Interdita, da qual as
crianças, que outrora faziam parte; são afastadas e preservadas quando
perdem um amigo ou parente próximo, havendo então a necessidade de
construir um relato para explicar um contexto natural da vida. Conside-
rando que a morte amedronta tornando-se então um fenômeno estranho.
A morte do outro configura-se como a vivência da morte em vida.
É a possibilidade de experiencia da morte que não é própria, mas é vivida
como se uma parte nossa morresse, uma parte ligada ao outro pelos vín-
culos estabelecidos. (KOVÁCS, 2010, p. 153).
A partir daí, tudo o que antes acontecia nas residências dos enfer-
mos, as despedidas, testamentos, os velórios, os últimos dias de vida, hoje
acontece no hospital. Essa decisão é entendida como uma maneira de
trazer conforto ao enfermo, que estando internado, amparado por médicos
e profissionais especializados no contato com a doença, dessa forma, a
família isenta-se da culpa de não saber lidar com a finitude.
Sem dúvidas já encontramos, na origem, um sentimento já expresso
na segunda metade do século XIX: aqueles que cercam o moribundo tendem
a poupá-lo e a ocultar-lhe a gravidade de seu estado. Admite-se, contudo,
que a dissimulação não pode durar muito [...] o moribundo deve um dia
140
saber, mas nesse momento os parentes não têm mais a coragem cruel de
dizer eles próprios a verdade. (ARIÈS, 2017, p. 83).
As pessoas não se preparam para lidar com a finitude. Logo, evitam
entrar em contato com assuntos relacionados à morte como um meca-
nismo de proteção evitando a dor, no entanto, passar por esse processo
é necessário; o sofrimento traz novos significados para quem fica, pois, a
morte envolve outras perdas, como de sentimentos, de pessoas, de tempo
levando consigo as ações do dia a dia, as coisas simples, mas, que devem
ser ressignificadas diante da própria perda e do indivíduo que perde
alguém. Nesse sentido, falamos de como elaborar a vida de quem ficou,
o então enlutado, estabelecendo novos papéis.
Tratando a morte como um elemento contínuo no processo de desen-
volvimento humano, Kovács (2010) considera como um vínculo que se rompe
de forma irreversível quando ocorre a perda real, ou seja, a morte vivida.
A morte do outro configura-se como a vivência da morte em vida.
É a possibilidade de experiência da morte que não é própria, mas é vivida
como se uma parte nossa morresse, uma parte ligada ao outro pelos vín-
culos estabelecidos. (KOVÁCS, 2010, p. 153).
Há várias formas de se viver o luto. Cada pessoa dá um sentido e
uma configuração para essa experiência. Cada perda tem um significado
diferente para cada indivíduo de um mesmo núcleo familiar, de acordo
com sua subjetividade e com o papel que cada ente perdido representou
em sua vida; tudo depende das particularidades das relações que existia
entre ambos. Não há então uma regra para o luto, para as perdas e para
a finitude, visto que somos indivíduos únicos, com pensamentos singu-
lares e comportamentos distintos. Sendo assim, não há certo ou errado.
As reações diante o luto irão acontecer de acordo com a vivência e as
experiências de vida de cada um.
Assim como a morte, o luto tem uma construção social. Cada cul-
tura apresenta maneiras diferentes de como a morte deve ser enfrentada e
determinados comportamentos. Internalizamos aquilo que nos é ensinado
através de nossos antepassados, assim, vamos reconstruindo nossas crenças
sobre o luto; com intuito de poupar o sofrimento o indivíduo afasta-se
dele. Ver a perda como fatalidade, ocultar os sentimentos, eliminar a dor,
141
apontar o crescimento possível diante dela. podem ser formas de negar os
sentimentos que a morte provoca para não sofrer. (KOVÁCS, 2010, p. 154)
A morte é algo que não se pode mudar e os sentimentos relacionados
a perda são subjetivos e inerentes à condição do enlutado, como também
as mudanças de comportamentos, mas a sociedade contemporânea não
tolera o sofrimento e as perdas, dessa forma exige que o sujeito enlutado
passe por esse processo em um curto período e que não demonstre suas
frustrações, sua falta de interesse pelo mundo externo e o vazio que carrega
com a falta do ente perdido. Com isso, tornou-se visível a negação da dor,
pois o indivíduo evita o contato com a realidade como uma forma de
negar a ausência do outro e se afastar da própria finitude, uma estratégia
de neutralizar a dor psíquica.
Considerando sempre o sentido das relações, a morte de uma pessoa
querida traz para o indivíduo não somente a ausência do outro em seu
mundo, mas a própria ausência, quando este sente que uma parte de si
foi sepultada com quem partiu. Diante disso, o enlutado vive um vazio
existencial, sentindo-se incapaz de encontrar sentido nas relações a seu
redor, como se as suas capacidades desaparecessem com o ente perdido.
A maneira de pensar a morte, fala muito sobre o processo de luto.
Caracteriza-se como luto a vivência experienciada após uma situação
de perda significativa, sendo “a perda” um elemento fundamental para
compreensão dessa experiência, perdendo não só o ente, mas o sentido
da relação: a ausência do outro no eu, as especificidades relacionais, o
horizonte dessa história. Cada luto, carrega com si um significado da
relação construída no decorrer da vida. O sofrimento sempre associado
a um sentimento de fraqueza, um esvaziamento do mundo externo, um
processo de perda do objeto e a incapacidade de substituição do mesmo.
O traço permanente no luto é o sentimento de solidão que permeia todas
as perdas, independentemente da idade do enlutado, pois quando se perde
um ente, perde-se também o sentido de ser, buscando novas maneiras
de existir. Nessa percepção, o luto discorre como uma experiência dura,
profunda e árdua, considerando a realidade da morte inevitável e irrever-
sível, geradora de um momento de conflito sobre quem eu sou e sobre a
nova identidade após a perda.
142
Podemos compreender o luto como um processo de transforma-
ção e adaptação. A partir dessa perda é necessária uma nova maneira
de construir-se diante do mundo presumido, o sujeito enlutado precisa
encontrar formas de continuar, assumindo novos papéis que muitas vezes
eram realizados pelo falecido, organizando sua vida a partir de um novo
contexto; e nesse período, além do ente, o enlutado perde a identidade
de acordo com a proximidade que mantinha com quem se foi; ele passa
viver as mudanças na sua realidade atual com o mundo.
O luto, então conceituado como um sofrimento humano de maior
dor com sentido, com razão de ser e significado para a subjetividade, com
sentimento de pesar, de aflição, tristeza sentida e vivida em sua maior
plenitude e de forma avassaladora. Tal dor se estende com suas nuanças,
etapas, formas e implicações peculiares para cada enlutado, na busca de uma
reorganização para viver – com a presença da ausência – do ente perdido
sem buscar esquecê-lo; como o indivíduo se comporta diante da perda de
um ente querido, como estabelece suas relações diante da ausência do outro.
O luto é uma condição que todo ser humano está sujeito a passar
pelo menos uma vez no decorrer da própria existência. Não tem um prazo
para existir, algumas pessoas passam mais tempo enlutada, pois cada ente
exerce um papel diferente no núcleo familiar, nas relações sociais, na
relação pai-filho, na relação cônjuge.
O tempo de luto é variável e em alguns casos pode durar anos.
Pode-se dizer que em alguns casos o luto nunca termina. Com o passar
do tempo uma tristeza profunda, um desespero e um desanimo tomam
conta, quando se recorda o morto, embora esses sentimentos ocorram com
menos frequência. O traço mais permanente no luto é um sentimento de
solidão. (KOVÁCS, 2010, p. 157).
No processo de luto, há muitas reações comuns que podem variar
de acordo com cada pessoa enlutada, podendo alguns indivíduos reagir
de forma semelhante. Soares e Mautoni (2013) suscitam em sua obra
algumas reações esperadas no processo de luto, identificando as reações
físicas como respiração curta e falta de ar, boca seca, dor física e perda da
força física, gemidos, tensão muscular, menor resistência a enfermidades,
alteração de sono (falta ou excesso), hipertensão arterial, mudança de
143
apetite (ganho ou perda de peso); as reações emocionais como falta de
esperança e sentimento de inveja de quem não está vivenciando o luto,
choque e negação, desespero e tristeza quando o indivíduo enlutado, como
em uma ambivalência de sentimentos, parte da esperança de um retorno a
constatação da perda, e percebe então que não há mais retorno, entra em
um processo de sofrimento profundo onde não encontra mais motivos
para viver, podendo haver desejos de morte, sensação de estar perdido,
falta de paz interior, confusão e culpa, euforia, irritação e incapacidade de
aceitação da notícia, ataques de pânico e tensão, vingança e rancor, sensação
de abandono; as reações comportamentais como falta de concentração,
desorientação, preocupação, busca de solidão, apatia, choro, esquecimento
de fatos corriqueiros, agitação; as reações sociais como afastar-se de pessoas,
dificuldade de interagir com os outros, perda de interesse pelo mundo
externo, não aceitação e a revolta de não ter mais a presença física e fantasiar
um possível retorno da mesma, tornando o processo contraditório, entre
a realidade da perda e a esperança do reencontro e as reações espirituais
como perda de fé (afastamento da religião) e aproximação de Deus (busca
constante dele para tentar compreender a perda).
A dor da perda por morte é imensurável e quando as pessoas tive-
rem espaço para refletir sobre a própria morte e o morrer elas poderão
encará-la de maneira mais saudável e quanto antes o indivíduo puder
falar sobre a morte, menor será seu aborrecimento diante dela, é possível
perceber que o indivíduo enlutado, busca uma compreensão particular,
de acordo com a sua subjetividade.
Muitas vezes, alguns laços se fortalecem e outros se desintegram,
ocorrendo a forte reação emocional com o rompimento de vínculos.
Para o enlutado, a aceitação é um processo de aprendizagem, pois ele é
capaz de iniciar novos projetos de vida, ressignificando o que perdeu e,
só é possível se fortalecer e crescer entrando em contato com o luto e
compreendendo a finitude como algo inerente a vida humana, portanto,
é necessário retomar alguns sofrimentos do passado, como relembrar
acontecimentos e deixar as emoções fluir, pois só entrando em contato
com a dor e a perda podemos nos reconstruir em relação a elas. Enten-
der que as pessoas que morreram não são substituíveis, mas podemos
144
guardar memórias dessas e assim seguir o fluxo da vida, sem assombros,
aprendendo com as novas experiências.
O objetivo dessa pesquisa foi estudar o processo de luto por morte
que vivemos durante a nossa existência e como elaborar a dor pela perda
de um ente querido, não importa quem foi essa pessoa significativa que
partiu, mas quais significados ela deu a vida do indivíduo enlutado,
o que a tornou tão marcante em sua existência e como aceitar a par-
tida, elaborando a dor da perda.
O papel do psicólogo é, a partir, de uma escuta atenta, promover o
crescimento do cliente dentro de um ambiente facilitador, que somente
ele é capaz de decidir e escolher o próprio caminho.
Considerando que o terapeuta deve unir sentimentos e conheci-
mentos na relação terapeuta-cliente. Tendo em vista a postura dedicada
do terapeuta em caminhar em direção ao seu cliente, respeitando seus
limites de acordo com seu tempo, o que possibilita que o mesmo se
mostre da maneira tal como se apresenta a psicoterapia no processo do
luto possibilita mudanças, que sozinho o indivíduo não consegue obter,
bem como as mudanças relacionadas a perturbação das lembranças do
momento da perda, consciência da necessidade da ajuda psicológica, alívio
dos sintomas e reações comuns ao luto, a nova maneira de adaptar-se à
realidade, recuperação da autoestima, projetos futuros.
O processo psicoterapêutico compreende o significado que o cliente
concede às suas próprias vivências e experiências, tornando o sujeito ativo
e portador de vontade própria com suas possibilidades de escolha, sendo
singular e epistêmico, em devir, configurado em seu ambiente seja físico,
experiencial, relacional, social, cultural, numa perspectiva positiva quanto
a potencialidades e possibilidades.
Dessa forma, o papel do Psicólogo é ter conhecimento das reações e
comportamentos advindos da perda, para orientar o enlutado a passar pelo
processo do luto, compreender a história de vida do indivíduo, colocá-lo
em contato com o seu sofrimento, para que o mesmo seja transformado
pela dor, pela consciência da existência e da morte; traçar novas maneiras
de aceitar a perda e encarar a realidade, respeitando o ser no mundo; abrir
caminho para reflexões e discussões de como encarar a vida, a morte do
145
outro e a própria morte a partir da realidade diante das perdas, preocu-
pando especificamente com o aparelho psíquico do enlutado, acolhendo
e buscando estratégias de passar por esse processo de maneira a não viver
de luto; e assim ampliar autoconhecimento, um cuidado consigo e um
ambiente acolhedor, para enfrentamento da dor da perda, e ressignificar
suas relações com o mundo e consigo mesmo, resgatando e respeitando
sua história de vida, suas dificuldades e os vínculos a partir de memórias
e lembranças significativas; possibilitando o enlutado a perceber-se como
é, entrando em contato com o mundo interno, considerando que somos
seres em constante transformação e as situações vividas não determinam
o nosso futuro, porém, a maneira que enfrentamos as dificuldades será
um passo para construção de uma nova forma de ser no mundo.
A importância de não estabelecer um pré-julgamento e possibilitar
ao cliente uma condição natural de pensar e sentir, torna o trabalho do
Psicólogo eficaz na relação terapeuta-cliente, pois este se sente confortável
podendo entrar contato com seus próprios sentimentos e modo de ser.
O cliente enlutado busca uma maneira de lidar com os sentimentos
que parecem confusos, chegando sobrecarregado de emoções que ele não
é capaz de definir sem ajuda. Ao falar, ele se sente aliviado; por isso, é
importante que o que está sendo dito seja aceito, é relevante identificar a
real demanda através da queixa do cliente. Para ele todo relato que fizer
é real, são suas experiências e devemos contribuir com o processo através
disso, uma vez que o Psicólogo deve ver o mundo com os olhos do outro,
sem diminuir ou intensificar suas dores.
Os pensamentos e sentimentos, outrora desorganizados, vão se
manifestando ao reviver momentos e histórias que teve com o ente perdido,
dessa forma ele pode colocar algumas questões não percebidas anterior-
mente em ordem. O processo de elaboração do luto se dá a partir das
reações apresentadas pelo cliente, dessa maneira, devemos compreender
e ajudar o mesmo com autoconhecimento de seus sentimentos e com-
portamentos advindos da sua dor. Nesse sentido, é possível alcançar um
resultado satisfatório na mudança.
O cliente enlutado traz consigo as vivências e experiências que teve
com a pessoa que morreu e também planos que não foram realizados, por
146
isso é fundamental estar em sintonia respondendo de modo que o cliente
entenda sua responsabilidade no processo terapêutico, encontrando manei
-
ras de personalizar o atendimento como único e orientar esse indivíduo,
indicando formas de viver o processo de luto para não viver em luto. De
acordo com o comportamento do terapeuta, o cliente tende a responder
ao processo de ajuda através do autoconhecimento adquirido na relação.
Portanto, é possível identificar no cliente o envolvimento com o trabalho
que está em andamento, se o mesmo tem explorado seus sentimentos e
se está compreendendo de forma devida seu papel na transformação que
busca e agindo de maneira adequada escolhendo aonde quer chegar.
Conduzir um cliente enlutado é um desafio como outro qualquer
na profissão do Psicólogo que pode se deparar com esse acontecimento
em vários campos de atuação que não se restringem apenas a clínica.
Durante esse percurso, pela teoria e vivências foi possível identificar que,
como Psicólogo, é necessário direcionar o cliente, ajudando-o a remover
as barreiras que o impedem de seguir adiante com os sentimentos que a
perda proporciona. O papel do Psicólogo nesse trabalho de ressignifica-
ção do modo de ser do outro é identificar as habilidades interpessoais
que este possuí e apresenta-se em suas relações humanas, desenvolvendo,
reforçando e permitindo que adquira novas habilidades.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente: Da idade média aos nossos dias, Edição Especial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
KLUBER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. 9. ed. [S. L.]: Martins Fontes, 2008.
KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. 5. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
SOARES et al. Conversando sobre o luto. [S. L.]: Ágora, 2013.
147
DE ANTÍGONA AO SÉCULO XXI: O LUGAR DO
LUTO NOS ESCRITOS DE JUDITH BUTLER
Jose Valdeci Grigoleto Netto55
Mariele Rodrigues Correa56
INTRODUÇÃO
É comum, ainda hoje, quando pesquisadoras e pesquisadores se
propõem a pesquisar a temática dos rompimentos de vínculos, o luto,
quase que exclusivamente o façam calcados em teorias que se originam
da psicologia ou da psiquiatria. No entanto, é preciso compreender que
esta temática não se faz enquanto um nicho que pertença, de maneira
única, a uma área do saber: ao contrário, o luto é um tema que precisa
ser discutido no campo das ideias através da multidisciplinaridade, para
além das ciências acima citadas, cada qual contribuindo com seus saberes
particulares. Logo, estudos da sociologia, educação, do direito, da filosofia,
dentre outros, merecem espaços para debates e aprofundamentos.
Neste caminho, o objetivo deste trabalho é se voltar para os estudos
da filósofa estadunidense Judith Butler no que tange à compreensão do
luto. Podemos dizer que o grande ponto de culminância de Butler se dá
quando ela nos propõe um caminho para a compreensão da problemática
dos corpos que são considerados humanos e, em contrapartida, quais não
o são. Consequentemente, a autora faz com que olhemos para algumas
vidas que são consideradas enquanto passíveis de serem enlutadas, enquanto
outras podem ser ignoradas, apagadas, rechaçadas.
Desta forma, quando se volta para o fenômeno do luto, a autora o
faz ampliando o viés clínico, passando a questionar os espaços sociais, as
situações de poder e controle que os corpos são inseridos e enquadrados
cotidianamente. Desta maneira, coloca o luto enquanto um dispositivo
que precisa ser encarado enquanto político e não meramente individual.
55 Doutorando em Psicologia (UNESP). CV: http://lattes.cnpq.br/2661321527310427
56 Doutora e Mestra em Psicologia (UNESP). Professora dos cursos de Graduação e Pós-graduação em
Psicologia (UNESP). Psicóloga. CV: http://lattes.cnpq.br/7034542530075753
148
Para este trabalho, foi realizada uma breve linha do tempo dos estu-
dos de Butler sobre a temática do luto para que, na sequência, apresentásse-
mos a obra Antígona de Sófocles, interseccionando a discussão com o mito
grego. Destaca-se que nesta pesquisa, além dos textos de Butler, utilizamos
referências que se propõem a analisar e compreender o luto a partir de
seus trabalhos, a saber, os escritos da filósofa Carla Rodrigues (2017, 2020,
2021), pesquisadora e professora com amplo conhecimento nos estudos de
Butler e que se dedica, com afinco, às discussões sobre o luto e a filosofia.
UM PANORAMA DO LUTO NA OBRA DE JUDITH
BUTLER
Para iniciar, como proposto, faremos uma breve linha do tempo
nas discussões de Butler no que se refere ao tema do luto para nos loca-
lizarmos historicamente em suas produções e ideias. Segundo Rodrigues
(2017, 2020, 2021), Butler apresentou pela primeira vez a noção de luto
em 1990, quando publica o livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade
57
. Neste livro, ao mencionar o fracasso social no reconhecimento
das vidas que foram perdidas para a AIDS, ainda muito timidamente, a
autora traz sua compreensão e noção de luto. Em 1993 com o livro Corpos
que importam: os limites discursivos do sexo, Butler passa a retomar suas pesquisas
e reflexões acerca do luto, apresentando, desta vez, a relevância e o papel da
política na expressão do luto coletivo, isto é, que engloba grupos e massas.
Em 1997, Butler lança A vida psíquica do poder: teorias da sujeição,
apresentando uma abordagem maior acerca do tema, amparando-se nos
estudos de Sigmund Freud, quando discute os conceitos de luto e melan-
colia apresentados pelo autor. Neste momento, a autora traz algumas
reflexões acerca do trabalho da psicanálise e sua contribuição aos estu
-
dos do luto. Na virada do século, em 2000, publica O clamor de Antígona,
apresentando o exemplo da tragédia grega para ilustrar que nem todos
os mortos possuem o mesmo direito de serem enlutados, bem como
nem todos os que vivem possuem o mesmo direito de reconhecerem seus
57
Neste trabalho utilizamos a data original de publicação dos livros de Judith Butler em inglês, mas
trouxemos o título traduzido conforme as obras foram sendo publicadas em português.
149
mortos (RODRIGUES, 2017, 2020, 2021). Mais adiante, iremos discorrer
acerca desta obra em específico.
Em 2004, ainda segundo a autora acima citada, Butler lança o livro
Vida precária: os poderes do luto e da violência, em que apresenta as discussões
do luto e os contextos e momentos de guerra. Essa discussão é ampliada
em 2009 em Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Nestes livros,
Butler faz uma leitura do luto pautado em sua relação com a violência,
com foco após os atentados terroristas que os Estados Unidos vivencia-
ram no início do presente século.
Em seu texto, a filósofa (2018, 2019) apresenta que a percepção de
que podemos ser violados (ou violentados) e que também os outros ao
nosso redor também o podem ser. Além disso, o fato de que em situa-
ções de violência podemos estar sujeitos à morte pela vontade do outro,
isso passa a representar possíveis gatilhos para o surgimento de medo
e, consequentemente, de luto. Com essas discussões, a compreensão do
luto para Butler (2019) frente à problemática da violência alcança a esfera
política, chegando à seguinte questão: “[...] quem conta como humano?
Quais vidas contam como vidas? E, finalmente, o que concede a uma vida
ser passível de luto?” (BUTLER, 2019, p. 40).
Ao refletir acerca da vulnerabilidade para a violência e para o luto,
Butler (2019) destaca que existem condições que marcam determina-
das vidas enquanto mais vulneráveis do que outras, o que consequente-
mente resulta em vidas que tendem a provocar mais reconhecimento ao
luto do que outras. Ela assinala:
Vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e exis-
tem formas radicalmente diferentes nas quais a vul-
nerabilidade física humana é distribuída ao redor do
mundo. Certas vidas serão altamente protegidas, e a
anulação de suas reivindicações à inviolabilidade será
suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras
vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz
e nem sequer se qualificarão como “passíveis de ser
enlutadas” (BUTLER, 2019, p. 52).
150
Importante assinalar que quando pensamos acerca de quais vidas
podem ser consideradas passíveis de luto, podemos nos referir a uma
questão que se faz presente em vários espaços, desde os estudos LGBTI+,
aos movimentos de gêneros e sexualidades, assim como o campo das pes-
soas com deficiência e dos estudos raciais. Vemos, então, que são grupos
de pessoas que, em sua maioria, vivenciam situações de desrealização, ou
seja, que são retirados da compreensão ontológica de real e que precisam,
a todo momento, buscar recriar a realidade na qual estão inseridas. Isso
acontece porque se a violência é praticada contra elas, ao serem pessoas não
consideradas reais, logo, as violências exercidas não são compreendidas,
vistas, no campo da violência, enquanto reais (BUTLER, 2019).
Outro termo importante que Butler (2018) apresenta é a noção de
enquadramento. Para a autora, este conceito é compreendido enquanto
“as molduras pelas quais apreendemos ou, na verdade, não conseguimos
apreender a vida dos outros como perdida ou lesada” (BUTLER, 2018, p.
14). Com o enquadramento das vidas, surge a delimitação do que pode
aparecer e o que deve ficar à margem deste recorte que compõe uma cena,
logo, um enquadramento. No entanto, como esperado, a moldura limita,
exclui, amplia ou intervém determinada imagem.
Em trabalho anterior, Grigoleto Netto (2023) realizou uma pesquisa
a fim de compreender o luto para além da clínica, isto é, com foco no
social, em rupturas de relacionamentos afetivos em homens gays. Neste
trabalho, também ancorado nos estudos de Butler e em outras/os pesqui-
sadores da temática, partiu-se da noção de que se relacionamentos que
fogem à normatividade heterossexual tendem a não possuir reconhecimento
enquanto relação, como se dará a experiência da ruptura? Haverá espaço
para o reconhecimento da perda enquanto uma possibilidade genuína
de expressão de sentimentos? Haverá luto? Para tanto, foram realizadas
entrevistas com homens gays que haviam passado por rupturas e, através
de suas narrativas, foi possível constatar a dificuldade e a falta de espaços
sociais que venham a reconhecer e validar seus lutos.
Nesta ótica, respaldada pelos estudos de Butler, Rodrigues (2017,
2020, 2021) alerta que é preciso, além de buscarmos estabelecer o reco-
nhecimento de todas as vidas enquanto vidas que são vivíveis e passíveis
151
de luto, é necessário que busquemos a compreensão acerca de quais são
as condições que enquadram determinadas vidas em não serem reconhe-
cidas e enlutáveis, isto é, quais são os interesses por trás da exclusão, do
enquadramento, da demarcação dos corpos?
ANTÍGONA: A REIVINDICAÇÃO DO LUTO PARA SI
Neste viés, quando se propõe a refletir acerca do luto, em algumas
ocasiões Butler se volta para a tragédia grega Antígona, de Sófocles (2019/442
a.C.), para traçar um paralelo com os dias atuais. A obra faz parte de um
total de sete tragédias escritas pelo autor. Em especial, esta obra nos volta
o olhar para uma mulher que, enlutada pela morte do irmão Polinice,
morto por ordem do poderoso Creonte, busca o direito de enterrá-lo e
proporcionar um fim digno ao seu familiar. Este é um texto que aborda
diversos temas que se mesclam: relações de poder, autoritarismo, violência,
local do feminino e, acima de tudo, o amor fraterno.
Na busca por enterrar seu irmão, Antígona se volta para seu corpo,
violentado, morto, mas dotado de história, afeto e significados. Ela, uma
mulher sem poderes, uma mulher sem partidos, “sem nada”, conforme
pontua Schüller (2019), busca reivindicar para si o direito ao luto, enfren-
tando aqueles que detinham o poder de decidir quais corpos e quais vidas
importavam. Sua busca era de que aquele corpo tivesse um fim digno,
que sua alma fosse acompanhada, com os ritos necessários, até o mundo
dos mortos. Ela resiste, rouba o corpo do irmão e tenta lhe proporcionar
um fim respeitoso e de cuidado ao corpo.
É interessante notar que a prática de rituais fúnebres, especialmente
o sepultamento, é algo presente em diversas culturas, mitos e filosofias
ao longo dos tempos. Tal prática, na verdade, se inscreve enquanto parte
de nosso processo de hominização. De acordo com estudiosos (MORIN,
1990; RODRIGUES, 2011), desde o homem de Neandertal realiza-se o
sepultamento do corpo morto., o qual desperta sensações e emoções que
mobilizam um gesto de cuidado, de necessidade de ritualizar a perda. Nos
humanizamos na relação com a morte, com a consciência da morte – e
isso seria um dos principais elementos que nos diferenciaria dos outros
animais viventes. A luta de Antígona é pela dignidade do corpo morto.
152
Ela “representa o direito ao sofrimento como forma de dar consistência
e consciência à morte” (NOGUERA, 2022, p. 108).
A partir desta breve sinopse da obra de Sófocles, é possível traçar
um paralelo, ou vários, com a busca de Antígona e os dias atuais: quando
nos propomos a pensar em quais corpos importam, pensamos nos valores
que são atribuídos a determinadas vidas enquanto outras são rechaçadas,
ignoradas e postas à margem. À vista disso, podemos trazer dois exemplos:
o primeiro, é o que Moscheta (2020) ilustra quando traz a violência sofrida
pela travesti Dandara dos Santos que foi morta e apedrejada por diversos
homens enquanto uma pessoa filmava toda a cena. Quais discursos auto-
rizam e fomentam essas violências? Mais: quais discursos são responsáveis
por permitir que esta cena não fosse interrompida por alguém?
Segundo exemplo foi o que aconteceu na cidade de Maringá em 2020,
com os movimentos da sociedade para barrar a criação de um Conselho
Municipal dos Direitos LGBTQIA+, como destacam Grigoleto Netto
e Moscheta (2022). O que faz com que uma parcela da sociedade (não
qualquer parcela, mas àquela que detém o poder, em sua maioria pessoas
brancas, cisgêneras, heterossexuais e de classe média) decidam que um
conselho de proteção e de criação de Políticas Públicas para uma parcela
da sociedade tão vitimizada pela violência não seja importante? Quem dita
quais corpos importam? Quem são os Creontes de nossa contemporaneidade?
É fato que, mais do que trazer respostas, os estudos de Butler
(2018, 2019) indagam, questionam e incomodam no sentido de que tira
o leitor da segura zona-de-conforto e o interroga acerca de quais locais
os corpos não normativos ocupam e, além disso, quais os locais que
passam a ser realocados no jogo social, nas relações de poder-saber e de
interesse, inclusive, sendo alvos da necropolítica que determina quais
vidas podem ser eliminadas, descartadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações até aqui feitas abrem espaços, incomodam, geram
perguntas. Esse é um movimento aprendido com Butler quando a autora
não visa obter respostas claras, mas sim criar novos espaços de debates e
153
questionamentos. Indagar sobre o valor de uma vida é olhar para aspec-
tos políticos, éticos e sociais de uma população. Desde Antígona em que
a busca da protagonista extrapolou a esfera particular: ela clamou por
apoio social, das pessoas ao seu redor, da sociedade, até os dias atuais, em
que pessoas são mortas por não cumprirem um ideal de normatividade.
Butler é perspicaz ao resgatar o mito grego e ampará-lo enquanto
exemplo para discutir nossa organização contemporânea de realidade; o
que a autora faz nas entrelinhas é mostrar que muitas coisas não muda-
ram, em que o ser humano continua ditando e diferenciando os corpos,
a partir de discursos que violentam e matam.
Muito avançamos enquanto sociedade, é inegável, como por exem-
plo a possibilidade de criarmos campos de ideias para discutirmos estes
pontos. No entanto, em contrapartida, mesmo que quanto ao tempo
cronológico muito se passou desde que Sófocles escreveu a tragédia, é
como se estivéssemos em Atenas e tivéssemos que lutar, diariamente, para
enterrar nossos mortos e para ter o direito de viver e expressar o luto.
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018.
BUTLER, J. Vidas precárias: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.
GRIGOLETO NETTO, J. V.; MOSCHETA, M. dos S. As lutas e os lutos das pessoas LGBTI+:
implicações ético-políticas In: MAIO, E. R. e col. (Orgs.) Diversidade sexual e identidade
de gênero: direitos e disputas. Curitiba: CRV, 2022, p. 219-228.
GRIGOLETO NETTO, J. V. Rupturas de vínculos afetivos e o luto em casais de homens
gays. Maringá, 2023. 97p. Monografia (Mestrado em Psicologia) – (Programa de Pós-graduação
em Psicologia – PPI), Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2023.
MORIN, E. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
MOSCHETA, M. dos S. Estética da destruição e a morte de pessoas LGBTQ no Brasil In:
GRIGOLETO NETTO, J. V.; KREUZ, G. Múltiplos Olhares sobre morte luto: aspectos
teóricos e práticos. Curitiba: CRV, 2021, p. 165-182.
NOGUERA, R. O que é o luto: como os mitos e as filosofias entendem a morte e a dor da
perda. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2022.
154
RODRIGUES, C. Por uma filosofia política do luto. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro,
v. 29, n. 46, 2020, p. 58-73.
RODRIGUES, C. A função do luto na filosofia política de Judith Butler In: CORREIA, A.;
HADDOCK-LOBO, R.; SILVA, C. V. da (Orgs.) Deleuze, desconstrução e alteridade. São
Paulo: ANPOF, 2017, p. 329-339.
RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo
Horizonte: Autêntica, 2021.
RODRIGUES, J. C. Imagens e significados da morte no Ocidente. In: GOLDENBERG, M. (org.)
Corpo, envelhecimento e felicidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 357-387.
SCHÜLER, D. Apresentação In: SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2019 (Original
publicado em 442 a.C.).
SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2019 (Original publicado em 442 a.C.).
155
SOBRE O ORGANIZADOR
JOSE VALDECI GRIGOLETO NETTO
Psicólogo e supervisor clínico (CRP 08/24556). Douto-
rando em Psicologia pela Universidade Estadual Pau-
lista ‘Júlio de Mesquita Filho’ - UNESP/FCL Assis/
SP na linha de pesquisa Processos Psicossociais e de
Subjetivação na Contemporaneidade, pesquisando as
interfaces entre envelhecimento, luto e Cuidados Palia-
tivos. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual
do Paraná – UEM/PR com a dissertação: Rompimentos
de vínculos afetivos e o luto em casais de homens gays.
Especialista em Intervenções Terapêuticas para Situações
de Luto pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo - PUC/SP junto ao Laboratório de Estudos sobre
o Luto – LELu com o trabalho intitulado: O luto em Hilda Hilst: narrativas de
derrelição em A Obscena Senhora D. Especialista em Saúde Mental, Psicopatologia
e Atenção Psicossocial pela UniCesumar/PR com a pesquisa: Homossexualidade
e suicídio: o luto não reconhecido dos sobreviventes. Especialista em Educação
Especial e Inclusiva pela UniFatecie/PR a partir da elaboração do trabalho: Luto
parental e deciência: quando não nasce a criança idealizada. Atua como Professor
e supervisor de estágios curriculares em cursos de graduação e pós-graduação. Possui
ampla experiência prossional em atendimentos clínicos com pessoas enlutadas e
em coordenação de grupos de pesquisas e intervenções em tanatologia. É autor e
organizador de diversos livros e artigos sobre a temática da morte e luto.
Contato: josegrigoleto@outlook.com
156
ÍNDICE REMISSIVO
A
Acolhimento 5-7, 65, 67, 73, 76, 78,
81, 89, 91, 96-97, 102, 104, 119-120,
125-126, 128, 133
Adolescência 77, 81, 85, 90, 112
Antígona 6, 8, 147-148, 151-154
B
Bebê 43, 45-47, 102, 112-115, 119-120
Brincar 94, 109, 112, 114
Butler 6, 8, 147-154
C
Clínica 5, 7, 19, 21-28, 30, 32-33, 36,
38, 40, 43, 48, 83-84, 89, 93-94, 97, 99,
110-112, 116, 122, 135, 146, 150, 154
Colonização 16
Comunicação 58, 79-80, 82, 92, 101,
103-106, 117, 123, 125, 131, 136
Concretas 54, 74, 81, 84, 117
Coronavírus 49-52, 54-55, 58-60, 62,
64, 73, 81
Corpo 9-10, 14-15, 17-18, 32, 55-57,
59-60, 102, 110, 119, 123, 135, 151, 154
Covid-19 5, 7, 22, 49-62, 72-74, 76,
80-84, 129, 135
Criança 5-8, 35, 37, 42, 47, 75, 79-80,
82-85, 88-95, 97-102, 104-120, 122, 155
Cuidado 5, 11, 14-15, 35, 45, 62-64, 67,
70-71, 76, 83, 89, 91, 97, 100, 102-105,
107, 128, 136, 145, 151
Cuidados Paliativos 6, 8, 63-65, 67-72,
84, 99, 112, 137, 155
Cultura 12, 59, 61, 63, 65, 74, 96, 114,
125, 136, 140
D
Desenvolvimento 27, 65-66, 75-77, 80,
82, 84-93, 96-97, 107, 112-113, 116,
122, 125, 136, 140, 146
Doença 29, 35-38, 42-45, 47-51, 53-54,
56, 65-67, 73-74, 83, 100-101, 103, 115-
117, 139
E
Educativo 6, 8, 123, 126, 135
Educação 5, 7, 9, 62-65, 69-73, 76,
81-82, 102, 116, 121, 125-126, 135-
136, 147, 155
Enfrentamento 52, 62, 74, 89, 92-93,
96, 101, 104-106, 123, 128, 134, 145
Equipe 36, 51, 63-65, 67-68, 70, 72,
99-104, 111-112, 118
Escola 5, 7, 39, 72-73, 78-79, 81, 84,
89, 91, 94, 135-136
Ética 6, 22, 25, 27-28, 30, 32-34, 63,
71, 101
F
Familiar 6, 8, 41-42, 65-66, 77, 79-80,
90-91, 94, 99, 101, 105-107, 109, 111-
113, 115, 128, 134, 139-140, 142, 151
Família 6, 39, 41, 45, 58-59, 75, 82,
89-91, 99, 101-107, 111-112, 116, 118,
129, 131, 139
Fases 27, 85, 88-89, 92
Filho 6, 8, 31, 37, 39-44, 113-119, 121-
122, 129-130, 155
Freud 23, 48, 99, 102, 109, 112, 148
Fúnebres 5, 9-10, 13, 15, 17-18, 49, 51,
59, 61, 122, 151
G
Grupo 6, 8, 10, 27, 58, 61, 75, 78, 83,
122-128, 130-136
Guarani 12
H
Habilidades 24, 84, 88-89, 94, 96,
121, 146
Hospital 35, 40-41, 44, 57, 63-65, 70,
72, 139
Humanos 12, 14-15, 60, 62, 69, 124,
138, 147
I
Imaginado 6, 8, 113, 121
Indígena 9-12, 15-16, 18
Infantil 5, 7, 73, 75, 78-82, 84-85, 97,
101-102, 108, 122
Interdito 80
Intervenções 22, 32, 79, 82, 84, 88, 91,
97-98, 117, 122, 155
K
Kovács 71-72, 75-78, 80, 82, 106, 110,
112, 123-124, 127-129, 135-137, 139-
142, 146
Kovács 71-72, 75-78, 80, 82, 106, 110,
112, 123-124, 127-129, 135-137, 139-
142, 146, 156
L
Laços 12, 58, 102, 112-113, 143
Liberdade 21, 24-28, 30-32, 34, 77,
127, 136
Luto 5-9, 15, 30, 35, 49, 51, 53-54,
56-62, 64, 67, 71-98, 100, 106-113,
117-151, 153-155
M
Moribundos 5, 7, 49, 53-54, 57, 62
Morte 5-10, 14-19, 22, 28-30, 32-33,
35-36, 39, 41-43, 45-49, 51-56, 58-61,
63-86, 88-98, 100-101, 104-112, 119-
120, 122-125, 128-129, 131-141, 143-
146, 149, 151-155
Multidisciplinaridade 147
N
Natural 64, 67-68, 70-71, 74, 77, 80,
101, 130-131, 134, 138-139, 145
O
Ocidental 9, 65-66, 75
P
Pacientes 6, 35-36, 55, 62-63, 65, 67,
103-104, 115
Pandemia 5, 7, 49-56, 58-62, 64, 70-74,
76-77, 79-84, 135
Pandêmico 5, 7, 49, 53, 60-61, 64-65,
71, 75-76
Parental 6, 8, 91, 111, 113-114, 118-
119, 121, 155
Parentalidade 113-115, 117, 122
Perdas 35, 52, 54, 56, 60, 64, 71, 73-77,
81-84, 96, 98, 108, 110, 112, 117, 119,
121-122, 140-141, 145
Processo 2, 6, 8, 10, 15, 24, 27, 30, 32,
35, 52-55, 60-61, 64-65, 67-68, 70-71,
74-75, 77, 79, 81, 83-85, 87-97, 100-102,
105-112, 115, 117-120, 122, 124-129,
132-138, 140-146, 151
Professores 5, 7, 73, 75-76, 80-81, 84
Psicanálise 5, 20-26, 28, 31-34, 36,
47-48, 63, 71, 82, 99, 112, 115, 122, 148
Psicologia 2, 5-6, 19-20, 27, 30, 33, 35,
48, 63, 71, 73, 76, 81-83, 99, 112-113,
122-123, 135-136, 147, 153, 155
Psicoterapeuta 25-26, 30-32, 36
R
Real 6, 8, 26, 32, 46-47, 82, 93, 100-101,
104, 106, 108, 113, 115-116, 121-122,
128, 137, 140, 145, 150
Reflexivo 6, 8, 25, 27-28, 123
Ritos 14-15, 18, 64, 129, 151
Rituais 5, 12, 15, 18, 49, 51, 53-54,
56, 58-61, 80, 92, 110-111, 122, 129,
138, 151
S
Sedução 35, 42-46, 48
Sentimentos 15, 40, 58, 61, 75-76,
78-81, 89, 94-95, 106-107, 116-117,
119, 124-125, 127, 130-132, 134-135,
137, 139-146, 150
Sepultamento 16, 55, 58-59, 151
Simbólicas 54, 74, 81, 83-84, 117,
121-122
Social 9-10, 18, 25, 27, 53, 55-57, 60-62,
66, 72-75, 80, 91-92, 99, 121, 125, 128-
129, 132-133, 135, 138, 140, 144, 148,
150, 152-153
Sociedade 6, 10, 15, 31, 54-56, 60-62,
65-66, 68-70, 72, 74-75, 78-80, 82, 112,
114, 120-121, 123, 128, 132, 135, 138,
141, 152-153
T
Tabu 77, 80, 106, 124, 129
Teorias 19, 23, 64, 147-148
Território 10-12, 16-17, 23, 52
Transferencial 35-36, 41-42, 44, 46, 48
Tratamento 15, 17, 36, 38-40, 42,
45-47, 51, 53, 65, 67-68, 100, 103, 119
V
Veredas 5, 7, 19, 22
Vida 5, 7, 12, 17, 20, 22-24, 29, 35,
38-40, 42-46, 49, 53-54, 60-61, 63-71,
74-75, 77, 79-82, 85, 88, 90, 94, 96-98,
101-112, 115, 119, 124-126, 129-134,
136-145, 148-150, 153
Vínculos 74-75, 82, 91, 97, 123, 128,
138-140, 143, 145, 147, 153, 155
Este livro foi composto pela Editora Bagai.
www.editorabagai.com.br /editorabagai
/editorabagai contato@editorabagai.com.br
ISBN 978-65-5368-251-1
9786553 682511 >
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Article
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Relata a experiência de extensão de Grupos de Apoio on-line a enlutados pela Covid-19. Foram realizados dez encontros semanais, com oito participantes. De abordagem breve e focal, objetivou ajudar os enlutados a resolver os conflitos de separação e facilitar a adaptação ao luto. As atividades foram pensadas a partir das demandas do grupo e suas características. A partir dos relatos dos participantes, percebeu-se que o grupo de apoio se constituiu espaço importante de expressão e validação das emoções e sentimentos que compõem a experiência do luto, com possibilidade de aprendizagem sobre o luto e a construção de redes de apoio social e emocional. Na pandemia, avolumam-se fatores de risco para vivências mais difíceis do luto, como perdas múltiplas, falta de suporte social e ausência de rituais tradicionais de despedida. Propostas como a do Acolhe(dor) podem diminuir os riscos para o luto complicado e produzir efeitos positivos sobre a saúde mental dos enlutados.
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Resumo Introdução O luto consiste em uma reação natural e esperada diante do rompimento de um vínculo, sendo compreendido como um processo vivenciado de modo singular, em que são manifestadas respostas emocionais, físicas, comportamentais e sociais que se diversificam de indivíduo para indivíduo. O cuidado integral ao enlutado deve perpassar pela compreensão do sujeito como um ser biopsicossocial e ocupacional; contudo, impactos sobre a dimensão ocupacional do luto ainda são pouco explorados na literatura. Objetivo Caracterizar as práticas de terapeutas ocupacionais brasileiros com pessoas enlutadas. Método Pesquisa transversal, exploratória, de abordagem qualitativa. Os dados foram coletados através de um formulário virtual voltado a levantar os potenciais participantes e, posteriormente, de entrevistas com os terapeutas ocupacionais que afirmaram realizar atenção ao luto. Os dados foram avaliados por análise de conteúdo temática. Resultados Constatou-se que apenas um terapeuta ocupacional usou referenciais teóricos do luto como base para as intervenções, bem como a predominância de assistência ao público adulto e idoso. As demandas relatadas pelos terapeutas ocupacionais na assistência aos enlutados culminaram em três categorias: prejuízos ocupacionais, demanda emocional e restrição de espaços para trocas. Conclusão Os terapeutas ocupacionais participantes deste estudo manifestaram percepções das repercussões do luto nas ocupações; contudo, práticas nessa vertente emergiram principalmente a partir de fluxos de atendimento não estruturados especificamente para essa assistência, o que pode justificar o distanciamento de referenciais teóricos sobre luto relatado pelos profissionais.
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OBJECTIVE: This study presents reflections from a psychoanalytic point of view about real and symbolic grief in the context of the COVID-19 pandemic. METHODS: A qualitative approach was adopted with an exploratory objective to review the literature, with the aim of updating the discussion in psychoanalytic studies about the phenomenon of grief in the pandemic period. RESULTS: The publications found still present an embryonic view of the facts, however, despite this, it was possible for us to shed light on the psychic implications arising from absences, especially of funeral rituals, making difficult the libidinal disinvestment in a given object, so that the ego can seek other objects of desire. CONCLUSION: The conclusion of this study points to the need for further research, considering that the implications of a psychic order will only be perceived and, probably, clarified in a few years' time. However, it is possible to anticipate that a significant part of the population, faced with losses and the impossibility of experiencing the farewell ritual, has been overwhelmed by discouragement. The risk is, then, in the death of desire.
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O presente artigo tem como objetivo apresentar os fundamentos teóricos e os princípios metodológicos dos grupos reflexivos e de apoio ao luto (GRAL) com base na prática grupal realizada no âmbito de um serviço escola de Psicologia. Destacam-se como relevantes os conceitos e procedimentos da metodologia de grupos reflexivos de gênero do Instituto Noos, da perspectiva construcionista social do luto, os princípios terapêuticos grupais e a postura ética no cuidado ao luto. Com base nestes aspectos conceituais, apresentam-se os objetivos e os princípios metodológicos do GRAL quanto ao seu modo de constituição, dispositivos para a sua realização e avaliação. O GRAL constitui em uma proposta de construção de diálogos colaborativos, reflexivos e de apoio às pessoas no seu processo de enlutamento, de se engajar consigo próprio e com os outros, por meio da construção de empatia, sociabilidade e narrativas pessoais quanto à necessidade e direito ao luto público.
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Thirteen parents who lost the mother or father to their child were interviewed, using semi-structured interviews. Participants reflect on their young children’s (3–6) grief, support needs, and what they learned from this trying time. The event scarred all participants. While some moved on, others were still struggling years after. The study uncovers difficulties associated with informing a young child, with a limfited understanding of illness and loss, in a life-situation where parents themselves are clinging to hope. While support is available from daycare, it can be better organised and structured. Proactive support that assists the child through illness and death relieves the parental care burden.