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Primeiros silêncios
A música é o conhecimento do todo com‑
plexo e é preciso preparar os alunos para
lidar com as incertezas através dela pois,
ao ser um processo de interação social,
abrange uma pluralidade de disciplinas
“privilegiando a interação do sujeito ob‑
servador e do objeto observado mais do
que a sua absoluta separação, e conside‑
rando o conhecimento mais um projeto
construído do que um objeto dado”1.
Sendo conscientes dessa realidade, se
acreditamos que – como arma Sloboda –
“a maioria das nossas respostas à música
são aprendidas”2 e, ainda, que a missão
das instituições educativas e dos profes‑
sores, segundo estabelece o Estatuto da
Carreira Docente (D.L. n.º 41/2012, no ar‑
tigo 10A b) é “Promover a formação e rea‑
lização integral dos alunos, estimulando
o desenvolvimento das suas capacidades,
autonomia e criatividade”, é necessário
desenvolver as condições e estratégias
especícas para que todos os alunos do
ensino artístico especializado possam
manifestar o talento que levam dentro,
independentemente da bagagem cultural
e musical que o contexto social lhes pro‑
porcionou. Os fundamentos duma didáti‑
ca para adquirir as competências básicas
e necessárias para atuar em grupo, para
além dos constrangimentos técnicos de
cada instrumento, baseiam‑se em prá‑
ticas pedagógicas largamente experi‑
mentadas em diversos países do mundo
ocidental e que foram iniciadas por dois
compositores e pedagogos da música do
século XX, o inglês John Paynter e o cana‑
diano Murray Schafer.
Schafer arma que “toda a pesquisa so‑
nora precisa concluir com o silêncio”3 e
Paynter refere a importância do silêncio
como elemento estruturante na música4.
O silêncio é, portanto, o elemento mais
subtil da música, já que nele há sempre
um eco dos sons que o circundam. Assim
pois, não é exagero dizer que toda a peda‑
gogia da música se fundamenta na peda‑
gogia do silêncio, mas sabemos que, no
mundo barulhento em que vivemos hoje,
a quietude do silêncio tornou‑se assusta‑
dora. As didáticas de Schafer e Paynter
reclamam atenção para o silêncio posi‑
tivo como uma capacidade auditiva que
deve ser treinada para que os alunos de‑
senvolvam a audição interior, como pas‑
so prévio para sentir a música e interagir
com ela.
“A paisagem sonora do mundo está mu‑
dando”, diz a primeira frase do livro A
anação do Mundo publicado por Schafer
em 1977, e é fácil comprovar como o am‑
biente sonoro, tanto quotidiano como o
de qualquer sala de concertos muda com
o passar do tempo, quantitativa e qualita‑
tivamente. Uma paisagem sonora consis‑
te em “eventos ouvidos e não em objetos
vistos”5. A proposta didática de Schafer
parte da exploração da paisagem sonora
da sociedade presente e passada e, atra‑
vés do ambiente acústico geral, descobrir
os indicadores das condições sociais que
o produziram. Os alunos devem apren‑
der a ler e a interpretar esses indicadores
e a intervir criativamente na paisagem
em que estão imersos. Já no Harmonia,
publicado em 1911, Arnold Schoenberg
arma que para ensinar um artista há
que “ajudá‑lo a escutar‑se a si mesmo”6.
Paynter designa isso de ‘escuta criativa’,
uma caraterística da experiência musical
que se perla como elemento fulcral tan‑
to na criação e interpretação da música
como na apreciação do amador, que as‑
siste aos concertos ou ouve gravações. A
apreciação também exige um esforço de
imaginação através do qual o mundo so‑
noro do compositor se reconstrói dentro
do indivíduo. Será um tipo de criativida‑
de diferente da que precisa o compositor
mas, se escutar com atenção, não deixará
de ser um ato criativo, uma aventura que
proporciona tanto um sentido de autos‑
suciência como o reconhecimento da
existência de uma força que nos ultrapas‑
sa. Podemos aspirar, conclui Paynter, ao
artifício da arte, à sua totalidade e à sua
lógica interna7.
Assim mesmo, Paynter arma que o sig‑
nicado especial das obras de arte reside
na importância transcendental dos pa‑
drões e das estruturas, pois “é através das
estruturas artísticas que vislumbramos
um tipo diferente, exterior ao constante
uxo de espaço/tempo”. “O pensamento
encontra‑se com o pensamento quando
compartimos a nossa criatividade e quan‑
do interpretamos, escutamos e compreen‑
demos a criatividade de outras pessoas”8.
As estruturas são como aqueles arqui‑
pélagos de certezas que, segundo Edgar
Morin, permitem que o conhecimento
navegue num oceano de incertezas9. A
conclusão de Paynter, e que orienta toda
a sua proposta didática, é que “a realida‑
de essencial da música continua a ser a
integridade das suas estruturas de som e
a satisfação que estas nos produzem”10.
As paisagens sonoras de Schafer e as es‑
truturas de Paynter são os alicerces peda‑
gógicos e didáticos que deveriam orientar
os primeiros silêncios de quem se quer
adentrar no mundo dos sons, para além
da ginástica que exige qualquer instru‑
mento, porque isso fomenta uma visão
inovadora do mundo e realça os elemen‑
tos substanciais da música, o qual melho‑
ra o desempenho geral dos alunos do En‑
sino Artístico Especializado e desenvolve
a criatividade.
14JUN’23
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em
Educação Artística e Ensino de Música
1 Moigne, J.-L. L.:
O Construtivismo (Dos Fun-
damentos)
(Vol. I). Lisboa: Instituto Piaget,
1999, pp. 72-73.
2 Sloboda, J. A.:
La mente musical: La psi-
cología cognitiva de la música.
Boadilla del
Monte: Machado Libros, 2012, pp. 8-9.
3 Schafer, R. M.:
A afinação do mundo.
São
Paulo: UNESP, 2011, p. 29.
4 Paynter, J.:
Sound and Structure.
Cambrid-
ge: Cambridge University Press, 1992, p. 58.
5 Schafer, R. M.:
Op. cit.
p. 24.
6 Schoenberg, A. (2001).
Harmonia
. (M. Ma-
luf, Trad.) São Paulo: UNESP, 2001, p. 568.
7 Paynter, J.:
Op. cit.
p. 13.
8 Ibidem, p. 17 e 23.
9 Morin, E.:
Os sete saberes para a educação
do futuro.
Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p.
92.
10 Paynter, J.:
Op. cit.
p. 21.
Silêncio