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Paz e ruido

Authors:
  • Conservatório de Música C. Gulbenkian, Braga, Portugal

Abstract

Todo o poder ou ideologia precisa de um músico para fazer esquecer a violência geral; de fazer acreditar na harmonia do mundo pela legitimação do poder; e de fazer calar a dissidência produzindo uma música ensurdecedora e eclética. O poder utiliza a música como bode expiatório ou rito sacrificial quando nos quer esquecidos; como encenação ilusória sempre que necessite da nossa credulidade; e como repetição em série, uniformizadora, quando precise de nos emudecer. A música sempre foi um instrumento nas mãos do poder. https://soutelo.eu/retorica-rhetoric
17MAI’23
Aniversário
Aniversário
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em Educação Artística e Ensino de Música
Paz e ruído
O ruído contraria a harmonia tal como
a violência se opõe à paz. Diz Jacques
Attali que o ruído é, em si mesmo, vio-
lência: molesta. Fazer ruído é romper
a comunicação, desconectar, matar.
Por outra parte, a música é o simula-
cro de canalização do ruído, imagem
de sacrifício, sublimação, exacerba-
ção do imaginário, ao mesmo tempo
que criadora de ordem social e de in-
tegração política1.
Todo o poder ou ideologia precisa de
um músico para fazer esquecer a vio-
lência geral; de fazer acreditar na har-
monia do mundo pela legitimação do
poder; e de fazer calar a dissidência
produzindo uma música ensurdecedo-
ra e eclética. O poder utiliza a música
como bode expiatório ou rito sacricial
quando nos quer esquecidos; como en-
cenação ilusória sempre que necessite
da nossa credulidade; e como repetição
em série, uniformizadora, quando pre-
cise de nos emudecer.
A música sempre foi um instrumen-
to nas mãos do poder. Carlos Magno
impôs o canto gregoriano para con-
trolar o pensamento e criar a unida-
de política e cultural em todo o seu
império. A ópera, a música sinfónica,
o jazz, o pop ou o rock reproduzem a
estrutura das sociedades nas quais se
manifestaram e também mudam com
elas. Mas o músico também pode ser
perigoso quando tem a possibilidade
de subverter a normalidade e nos faz
ouvir aquilo que acabará por se tornar
visível. Essa era a advertência de Pla-
tão, pois “nunca se abalam os géneros
musicais sem abalar as mais altas leis
da cidade”2. E quando o poder des-
leixa a proteção e nanciamento dos
seus músicos, eclodem os sons dos
diferentes poderes em conito e até os
ruídos de revolução.
Em 1830, quando tinha apenas dezas-
sete anos, Richard Wagner cou revol-
tado pela invasão russa da Polónia, e
começou o seu inamado posicio-
namento revolucionário. Em 1848,
ano do Manifesto comunista, Wagner
frequenta o anarquista Bakunin e,
pouco antes da revolução de maio de
1849, no dia 8 de abril publica um ar-
tigo radical, no Volksbläter, pedindo
a destruição da ordem existente; mas
a revolução foi duramente reprimida
e, milagrosamente, consegue fugir
ao fuzilamento exilando-se na Suíça.
Wagner nunca incluiu ‘Die Revolution’
na edição dos artigos e poemas mas foi
o germe do libreto da Tetralogia de O
Anel dos Nibelungos.
A viúva de Wagner, Cósima, e o seu
lho Siegfried, dirigiram o Festival de
Bayreuth até 1930, passando a direção,
nesse ano, para Winifred, viúva de Si-
gfried, que era muito amiga de Adolf
Hitler, começando aí a manipulação
da mensagem wagneriana. O gosto
musical de Hitler não ia além de ope-
retas e de insípidas musiquetas, mas
o aparato de propaganda nazi soube
capitalizar os convites do festival. No
nal da guerra, Winifried foi conde-
nada à prisão, com pena suspensa, e
afastada da direção.
O triste paradoxo é que após mais uma
invasão russa, e um século da perver-
sa manipulação nazi, ainda haja quem
acredite que Wagner inspirou as atro-
cidades de Hitler, ou que um grupo
paramilitar invoque o seu nome para
semear a morte na Ucrânia. Nenhum
deles percebeu alguma coisa do signi-
cado profundo das óperas wagneria-
nas, e como a invocação errada os leva
a uma desgraça imprevista e funesta,
como aconteceu a Hitler. Talvez esta
reexão de Edward Said nos ajude a
entender: “Em certo sentido, todas as
artes são silenciosas… a música, que
depende do seu som, e é som, é a mais
silenciosa, a mais inacessível ao sig-
nicado mimético que, por exemplo,
podemos obter de um poema, uma
novela ou um lme.”3 Interiorizar esse
silêncio é um ritual reconciliador com
a ordem social, mas o silêncio que
aqueles iluminados impõem à huma-
nidade tem mais a ver com a paz dos
cemitérios, em sentido literal.
Quando a música substitui o ruído na-
tural de fundo, transforma-se numa
violenta imposição do silêncio pela
música, num ruído para fazer calar
a massa ou reorganizá-la ideologica-
mente por meio da repetição. Mas a re-
petição só transmite a insignicância,
a incomunicação e utiliza o arcaico
sistema tonal para não surpreender o
público e assim conseguir que a mas-
sa consuma as musiquetas do ruído
de uniformização universal. Há uma
outra música, radicalmente oposta,
minoritária e sem mercado, que sub-
verte os códigos culturais dominantes,
e que pode fazer-nos ouvir aquilo que
acabará por tornar-se visível. Attali
conclui que “a música é como a mul-
tidão, tanto ameaçadora como uma
fonte necessária de legitimidade, um
risco que todo o poder deve correr ao
tentar canalizá-la”4.
O imperador romano Marco Aurélio,
no livro segundo das suas Meditações,
arma: “Eu já vi a beleza do bem e o
horror do mal, e percebi que a natu-
reza de quem pratica esse mal é se-
melhante à minha”5. A música é uma
negociação contínua das partes em
conito. A composição é um questio-
namento perpétuo da estabilidade, ou
seja, das diferenças. Lederach dá por
certo que “a criatividade vai além do
que existe, rumo a algo novo e inespe-
rado”6.
1 Attali, J.:
Ruídos. Ensaio sobre la eco-
nomia política de la música.
Valencia:
Ruedo Ibérico, 1977, p. 53.
2 Platão:
A República.
Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2008, p. 169 [424
c].3
3 Said, E.: Música al limite. Barcelona:
Random House Mondadori, 2011, p.
348.
4 Attali, J.:
Op. cit.
p. 29.
5 Aurélio, M.:
Meditações.
Lisboa: Cultu-
ra editora, 2019, p. 19.
6 Lederach, J.P.: The Moral Imagination
in
European Judaism.
Volume 40, Issue
2 (2007) (berghahnjournals.com). Aces-
so em: 11 abr. 2023.
‘Die Revolution’
no Volksblätter
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Ruídos. Ensaio sobre la economia política de la música. Valencia: Ruedo Ibérico
  • J Attali
Attali, J.: Ruídos. Ensaio sobre la economia política de la música. Valencia: Ruedo Ibérico, 1977, p. 53.
Música al limite. Barcelona: Random House Mondadori
  • E Said
Said, E.: Música al limite. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, p. 348.
The Moral Imagination in European Judaism
  • J P Lederach
Lederach, J.P.: The Moral Imagination in European Judaism. Volume 40, Issue 2 (2007) (berghahnjournals.com). Acesso em: 11 abr. 2023. 'Die Revolution' no Volksblätter