Content uploaded by Rudesindo Soutelo
Author content
All content in this area was uploaded by Rudesindo Soutelo on May 17, 2023
Content may be subject to copyright.
17MAI’23
Aniversário
Aniversário
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em Educação Artística e Ensino de Música
Paz e ruído
O ruído contraria a harmonia tal como
a violência se opõe à paz. Diz Jacques
Attali que o ruído é, em si mesmo, vio-
lência: molesta. Fazer ruído é romper
a comunicação, desconectar, matar.
Por outra parte, a música é o simula-
cro de canalização do ruído, imagem
de sacrifício, sublimação, exacerba-
ção do imaginário, ao mesmo tempo
que criadora de ordem social e de in-
tegração política1.
Todo o poder ou ideologia precisa de
um músico para fazer esquecer a vio-
lência geral; de fazer acreditar na har-
monia do mundo pela legitimação do
poder; e de fazer calar a dissidência
produzindo uma música ensurdecedo-
ra e eclética. O poder utiliza a música
como bode expiatório ou rito sacricial
quando nos quer esquecidos; como en-
cenação ilusória sempre que necessite
da nossa credulidade; e como repetição
em série, uniformizadora, quando pre-
cise de nos emudecer.
A música sempre foi um instrumen-
to nas mãos do poder. Carlos Magno
impôs o canto gregoriano para con-
trolar o pensamento e criar a unida-
de política e cultural em todo o seu
império. A ópera, a música sinfónica,
o jazz, o pop ou o rock reproduzem a
estrutura das sociedades nas quais se
manifestaram e também mudam com
elas. Mas o músico também pode ser
perigoso quando tem a possibilidade
de subverter a normalidade e nos faz
ouvir aquilo que acabará por se tornar
visível. Essa era a advertência de Pla-
tão, pois “nunca se abalam os géneros
musicais sem abalar as mais altas leis
da cidade”2. E quando o poder des-
leixa a proteção e nanciamento dos
seus músicos, eclodem os sons dos
diferentes poderes em conito e até os
ruídos de revolução.
Em 1830, quando tinha apenas dezas-
sete anos, Richard Wagner cou revol-
tado pela invasão russa da Polónia, e
aí começou o seu inamado posicio-
namento revolucionário. Em 1848,
ano do Manifesto comunista, Wagner
frequenta o anarquista Bakunin e,
pouco antes da revolução de maio de
1849, no dia 8 de abril publica um ar-
tigo radical, no Volksbläter, pedindo
a destruição da ordem existente; mas
a revolução foi duramente reprimida
e, milagrosamente, consegue fugir
ao fuzilamento exilando-se na Suíça.
Wagner nunca incluiu ‘Die Revolution’
na edição dos artigos e poemas mas foi
o germe do libreto da Tetralogia de O
Anel dos Nibelungos.
A viúva de Wagner, Cósima, e o seu
lho Siegfried, dirigiram o Festival de
Bayreuth até 1930, passando a direção,
nesse ano, para Winifred, viúva de Si-
gfried, que era muito amiga de Adolf
Hitler, começando aí a manipulação
da mensagem wagneriana. O gosto
musical de Hitler não ia além de ope-
retas e de insípidas musiquetas, mas
o aparato de propaganda nazi soube
capitalizar os convites do festival. No
nal da guerra, Winifried foi conde-
nada à prisão, com pena suspensa, e
afastada da direção.
O triste paradoxo é que após mais uma
invasão russa, e um século da perver-
sa manipulação nazi, ainda haja quem
acredite que Wagner inspirou as atro-
cidades de Hitler, ou que um grupo
paramilitar invoque o seu nome para
semear a morte na Ucrânia. Nenhum
deles percebeu alguma coisa do signi-
cado profundo das óperas wagneria-
nas, e como a invocação errada os leva
a uma desgraça imprevista e funesta,
como aconteceu a Hitler. Talvez esta
reexão de Edward Said nos ajude a
entender: “Em certo sentido, todas as
artes são silenciosas… a música, que
depende do seu som, e é som, é a mais
silenciosa, a mais inacessível ao sig-
nicado mimético que, por exemplo,
podemos obter de um poema, uma
novela ou um lme.”3 Interiorizar esse
silêncio é um ritual reconciliador com
a ordem social, mas o silêncio que
aqueles iluminados impõem à huma-
nidade tem mais a ver com a paz dos
cemitérios, em sentido literal.
Quando a música substitui o ruído na-
tural de fundo, transforma-se numa
violenta imposição do silêncio pela
música, num ruído para fazer calar
a massa ou reorganizá-la ideologica-
mente por meio da repetição. Mas a re-
petição só transmite a insignicância,
a incomunicação e utiliza o arcaico
sistema tonal para não surpreender o
público e assim conseguir que a mas-
sa consuma as musiquetas do ruído
de uniformização universal. Há uma
outra música, radicalmente oposta,
minoritária e sem mercado, que sub-
verte os códigos culturais dominantes,
e que pode fazer-nos ouvir aquilo que
acabará por tornar-se visível. Attali
conclui que “a música é como a mul-
tidão, tanto ameaçadora como uma
fonte necessária de legitimidade, um
risco que todo o poder deve correr ao
tentar canalizá-la”4.
O imperador romano Marco Aurélio,
no livro segundo das suas Meditações,
arma: “Eu já vi a beleza do bem e o
horror do mal, e percebi que a natu-
reza de quem pratica esse mal é se-
melhante à minha”5. A música é uma
negociação contínua das partes em
conito. A composição é um questio-
namento perpétuo da estabilidade, ou
seja, das diferenças. Lederach dá por
certo que “a criatividade vai além do
que existe, rumo a algo novo e inespe-
rado”6.
1 Attali, J.:
Ruídos. Ensaio sobre la eco-
nomia política de la música.
Valencia:
Ruedo Ibérico, 1977, p. 53.
2 Platão:
A República.
Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2008, p. 169 [424
c].3
3 Said, E.: Música al limite. Barcelona:
Random House Mondadori, 2011, p.
348.
4 Attali, J.:
Op. cit.
p. 29.
5 Aurélio, M.:
Meditações.
Lisboa: Cultu-
ra editora, 2019, p. 19.
6 Lederach, J.P.: The Moral Imagination
in
European Judaism.
Volume 40, Issue
2 (2007) (berghahnjournals.com). Aces-
so em: 11 abr. 2023.
‘Die Revolution’
no Volksblätter