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“La Musique est une science”
Longe da hermenêutica burocratizada
que se centra no formalismo assético
sem vivência humana, a minha história
de vida desenvolveu-se em dois planos
independentes e interligados, ora em
consonância ora em discordância, como
a tensão-distensão de toda e qualquer
linguagem, ou dum contraponto a duas
vozes, onde as ideias, reexões e proje-
tos contracenam com uma paisagem de
evocação poética alicerçada na criação e
na pedagogia criativa da música. Obvia-
mente que não aprecio os sistemas arcai-
cos de ensino da música nem os pseudo-
modernos, como a chamada ‘pedagogia
nova’, que na música se caracterizou por
querer reviver o cadáver do sistema tonal.
A hierarquia tonal morreu há mais de um
século e um professor de música, no sé-
culo XXI, tem que assumir essa realida-
de nos seus princípios pedagógicos para
ensinar os alunos a criarem o seu próprio
futuro e não só a repetir o passado.
O eixo central da minha reexão foi,
desde cedo, o Harmonielehre (Harmo-
nia na tradução portuguesa) de Arnold
Schoenberg, como fonte original da
pedagogia criativa da música na qual,
hoje, todos bebem ainda que, por igno-
rância, poucos o citam. Assim como o
manancial primigénio do sistema tonal
encontra-se no Traité de l’harmonie re-
duite à ses principes naturels de Jean
Philippe Rameau, publicado em 1722 e
a partir do qual se escreveram milhares
de imitações mais ou menos éis aos
princípios básicos do modelo, desde a
terceira e denitiva edição do Harmo-
nielehre, em 1922, o sistema de criação
musical é uma ciência em construção
ou ciência do articial que vai orientar
os caminhos sonoros do século XX e
continua a ser o fundamento do sécu-
lo XXI. Rameau [“La Musique est une
science qui doit avoir des regles certai-
nes; cês regles doivent être tirées d’un
príncipe évident, et ce príncipe ne peut
gueres nous éter connu sans le secours
des Mathematiques”1.] teve de suportar
os ataques sistemáticos de Rousseau,
Diderot e D’Alambert que, carecendo de
sensibilidade para perceber a transcen-
dência dos seus princípios harmóni-
cos, utilizaram contra ele as páginas
da Encyclopédie onde aqueles déspotas
esclarecidos defendiam – hoje parece
chacota – o sistema de Tartini “do qual
parecem surgir todas as leis da harmo-
nia de forma menos arbitrária”2.
O sonho de Rousseau era ter sucesso
como compositor de óperas, mas fra-
cassou vergonhosamente pela futilida-
de da sua música; foi uma espécie de
‘bom selvagem’ compositor corrompi-
do pelas circunstâncias. Outro grande
lósofo, Friedrich Nietzsche, que tam-
bém quis ser compositor e ao longo
da sua vida escreveu várias dezenas
de partituras, reconhece numa carta a
H. Levi, em 1887, que “só poderia ser
um músico fundamentalmente cala-
mitoso”. Contudo, para Nietzsche, a
música foi sempre uma fonte de inspi-
ração, tirando proveito do formalismo
musical para estruturar o seu discurso
losóco. Talvez estes exemplos sejam
a melhor demonstração prática de que
a música não é losoa nem letras.
Arnold Schoenberg, por seu lado, foi ri-
dicularizado pelos novos doutores das
‘ciências musicais do passado’ ou tal-
vez pelos tolos – “os tolos têm sempre
medo de serem tomados por tolos, ou
seja: de serem reconhecidos”3 – insul-
tando a sua música de ‘atonal’ só por-
que careciam de sensibilidade auditiva
para perceber a pantonalidade de doze
tons e, quando esporadicamente ele
voltou a utilizar o sistema tonal numa
Suite, em 1934, e no Tema e Variações,
em 1943, também foi criticado pelos
arrivistas do serialismo, cumprindo-se
a sentença de Juan de Mairena: “Los
novedosos apedrean a los originales”4.
Rameau e Schoenberg construíram no-
vos patamares da ciência musical viva,
criando obras-primas que marcaram
um antes e um depois no devir histó-
rico.
Heinrich Schenker, compositor e in-
térprete frustrado, de quem Sloboda
arma que nunca ocupou uma posição
central no pensamento musicológico
por não conseguir apresentar as suas
ideias com a precisão formal com que
o fez Chomsky, na linguística5, desen-
volveu uma ciência analítica da músi-
ca tonal que teve algum sucesso, mas
considerava que depois de Brahms já
ninguém sabia compor6. Schoenberg,
no Harmonia, contesta-lhe que: “En-
tão não se coloca muito acima da es-
pécie de inválidos que murmuram pe-
los ‘bons tempos passados’”7. Insistir,
hoje, numa pedagogia tonal da música
é retroceder no tempo, viver fora da
realidade ética e estética, mas continua
a acontecer.
A música, tal como a linguagem fala-
da, utiliza sons, no entanto nenhuma
cultura conhecida confunde os sons da
música com os da palavra. São lingua-
gens paralelas com nalidades diferen-
tes. A música é uma ciência matemáti-
ca, do articial, que os compositores e
intérpretes constroem quotidianamen-
te. Se a música pudesse ser expressada
em palavras, deixaria de ser o que é
para se transformar em mais um géne-
ro das letras. A musicologia, que, sim é
de letras, nasceu no século XIX e pode,
com palavras, descrever, analisar ou
criticar a música, mas não cria nem
dá vida às obras musicais numa per-
formance. Os músicos, compositores e
intérpretes, são essencialmente mate-
máticos, ainda que alguns não sejam
conscientes porque a notação utilizada
é um eufemismo das fórmulas e cál-
culos que exige a física acústica. Não
é por acaso que a neurociência des-
cobriu que o cérebro dos músicos tem
uma maior massa cinzenta que o dos
não músicos e apresenta muitas simi-
litudes com a estrutura do cérebro dos
matemáticos.
Nunca devemos estar contentes com o
presente, não porque o passado fosse
melhor, mas porque o presente ainda
não atingiu o melhor da ciência musical,
que estimule o pensamento complexo e
movimente as emoções sublimes.
8FEV’23
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística e Ensino de Música
1 Rameau, J. Ph.:
Traité de l’harmonie re-
duite à ses principes naturels
(1722) (Ed.
Fac-simile). Madrid: Arte Tripharia, 1984,
p. Preface.
2 Rousseau, J.-J.:
Diccionário de Música
.
Madrid: Akal, 2007, p. 379.
3 Schoenberg, A.:
Harmonia
. São Paulo:
UNESP, 2001, p. 570.
4 Machado, A.:
Juan de Mairena
, Madrid:
Castalia, 1971, p. 168.
5 Sloboda, J. A.:
La mente musical: La psi-
cología cognitiva de la música
. Boadilla del
Monte: Machado Libros, 2012, p. 30.
6 Schenker, H.:
Counterpoint
. New York:
Schirmer Books, 1987, pp. xxi-xxvi
7 Schoenberg, A.:
Op. cit
. p. 561.