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Reis et al. | Techne 3 (1) (2017) 97-111 97
1. Introdução
A investigação da arte rupestre pós-glaciar foi
dominada ao longo do século XX por perspectivas
que privilegiavam a análise, descrição e
classificação de motivos individuais e seu
tratamento estatístico, muitas vezes considerada
como fim em si mesmo, um pouco à imagem da
abordagem feita ao estudo de artefactos. O olhar
retinha-se quase exclusivamente sobre as imagens
inscritas nas superfícies rochosas, e só recentemente
se lançou sobre a paisagem, incorporando
arquitecturas, outras materialidades (e
imaterialidades), estimulando desta forma, a
procura dos contextos sociais, culturais e simbólicos
Art-facts - os contextos arqueológicos da Arte Esquemática no Vale do Côa
Mário Reis*
Fundação Côa Parque;
Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património. Universidade de Coimbra;
Lara Bacelar Alves**
Bolseira de Pós-doutoramento da FCT; Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património.
Universidade de Coimbra;
João Muralha Cardoso***
Bolseiro de Pós-doutoramento da FCT; Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património.
Universidade de Coimbra;
Bárbara Carvalho****
Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património. Universidade de Coimbra;
Artigosubmetidoem
18/03/2016
Artigopublicadoem
31/03/2017
Palavras-chave:
Pré-história Recente;
Arte rupestre;
Pintura Esquemática;
Contexto Arqueológico;
Vale do Côa;
Resumo
O projecto 'Art-facts' parte da investigação dos contextos arqueológicos
de abrigos pintados com Arte Esquemática, entendidos como espaços
incorporadores de acção, criação e construção, e pretende fazer uma
reflexão sobre arte, arquitecturas e paisagem. Neste sentido, o projecto
escora-se numa análise dialéctica da arte a três escalas - a face da rocha; a
arquitectura dos locais; o diálogo com a paisagem – aliada à
compreensão, percepção e experiência física de espaços e materiais.
Analisa quatro casos de estudo no vale do Côa, os abrigos da Ribeirinha,
Colmeal, Poço Torto e Lapas Cabreiras. Esta selecção teve por base a
possibilidade de contrastar a ocorrência de pintura em ambientes
distintos, sobre diferentes suportes geológicos, e com alguma
heterogeneidade ao nível temático, iconográfico e de conservação.
Apresentamos uma breve descrição dos resultados dos trabalhos de
prospecção, escavação e análise dos painéis.
*Mário Reis | marioreissoares@sapo.pt; **Lara Bacelar Alves | larabacelar@sapo.pt;
*** João Muralha Cardoso | jmuralha@gmail.com; ****Bárbara Carvalho | barbaracarvalho80@gmail.com;
eISSN:2182‑9985
Reis et al. | Techne 3 (1) (2017) 97-111
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da arte. Subjaz ao presente projecto uma reflexão
sobre arte, arquitecturas e paisagem, entendidas
como palcos/espaços incorporadores de acção,
criação e construção. Neste sentido, procurar-se-á a
prossecução de uma abordagem dialéctica a três
escalas de análise - o que se encontra inscrito na
face da rocha; a arquitectura dos locais eleitos para
a criação de pinturas rupestres; e a análise da
paisagem, e da maneira como estes sítios se
incorporam no seu ambiente, e como se poderão
relacionar com os lugares onde as populações
coevas estiveram, e deixaram vestígios materiais da
sua passagem e/ou estadia (ver também Alves et
al., 2014, onde se desenvolve mais a abordagem
teórica e metodológica do projecto).
2. Área de estudo
Pretendíamos escolher uma determinada área em
território português e, dentro desta, seleccionar um
conjunto de abrigos com Arte Esquemática pintada
como casos de estudo. A área escolhida foi o troço
final do vale do rio Côa, correspondente grosso
modo à área do Parque Arqueológico do Vale do
Côa (PAVC) (Fig.1). Um factor essencial desta
escolha foi a existência de uma excelente base
científica prévia de referência, com os trabalhos do
PAVC e do extinto Centro Nacional de Arte
Rupestre (CNART), que nos permitiam não
começar do zero e olhar para a região dispondo de
um forte conjunto de dados da sua ocupação pré-
histórica, com um acervo elevado de abrigos
pintados que permitiam uma adequada selecção
dos casos de estudo. É imperativo mencionar aqui o
apoio do PAVC e da Fundação Côa Parque,
traduzido em suporte logístico nos trabalhos de
campo e no acesso a dados científicos inéditos,
incluindo os levantamentos feitos em alguns dos
abrigos seleccionados.
Assim, ao iniciar o projecto, conhecíamos um
acervo de mais de 200 sítios com vestígios materiais
da Pré-história Recente. Quanto a pintura,
conheciam-se 23 abrigos ou rochas pintadas em 12
sítios diferentes (sumariamente referidos no recente
inventário dos sítios da arte do Côa: Reis, 2012;
2013; 2014), dos quais apenas um se localiza sobre o
Douro, estando os restantes ao longo do Côa ou
afluentes. Escolhemos quatro casos de estudo: três
que tinham sido já levantados pelo CNART
(Ribeirinha, Poço Torto, e Colmeal), a que juntamos
as Lapas Cabreiras. Esta selecção teve por base a
possibilidade de contrastar a ocorrência de pintura
esquemática em ambientes topograficamente
distintos (serra, fundo de vale e planalto), em
diferentes suportes geológicos (quartzitos, granitos
e xistos), e com alguma heterogeneidade na
temática, iconografia e estado de conservação das
pinturas. Por fim, todos apresentavam sedimentos
passíveis de serem escavados junto aos painéis
pintados, algo raro nos abrigos pintados da região.
Figura 1: Localização de todos os sítios com pintura da Pré-
história Recente conhecidos na região do Côa. Salientados a
vermelho estão os quatro casos de estudo do projecto Artfacts: 1
- Ribeirinha; 2 - Lapas Cabreiras; 3 - Colmeal; 4 - Poço Torto. A
preto estão os sítios descobertos no âmbito do projecto:
Gamoal, perto da Ribeirinha e Castelejo, perto do Poço Torto
(mapa adaptado a partir da Carta Corográfica de Portugal na
escala 1:50.000, do Instituto Geográfico e Cadastral, Folhas 11C,
11D, 15A, 15B, 15C e 15D).
3. Metodologia de trabalho
Começando pela primeira escala de análise, era
necessário fazer uma revisão cuidadosa das
superfícies rochosas de cada um dos sítios,
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contrastando com o que já se conhecia e procurando
determinar a existência de novos painéis
historiados. Para os painéis já desenhados pelo
CNART, pretendíamos utilizar uma nova
ferramenta digital na análise de pintura rupestre, o
plugin DStretch do programa informático ImageJ. É
um sistema de análise de fotografias digitais que
realça manchas coloridas, sendo particularmente
eficaz para uma melhor visualização de manchas
pintadas muito desgastadas, ou para a separação de
elementos diferentes mas pouco distintos. Revela-se
já como um poderoso instrumento para a análise de
painéis pintados, permitindo descobrir aspectos
quase invisíveis a olho nu. Para além da revisão dos
decalques existentes, pretende-se também fazer o
registo dos restantes painéis, em desenho e
fotografia, sendo aliás possível a mistura dos dois
métodos, pois o DStretch permite a realização de
decalques com grande fiabilidade. A segunda escala
de análise encontra-se ao nível do local escolhido
para a realização das pinturas, o maciço rochoso
onde estas se encontram. Aqui, pretendemos
sobretudo investigar contextos arqueológicos
potencialmente associáveis às pinturas, pela
realização de sondagens arqueológicas nas
imediações directas dos abrigos e painéis pintados.
A terceira escala de análise é a paisagem envolvente
às pinturas. A abordagem de campo é a prospecção
arqueológica, procurando-se sítios com ocupação
pré-histórica ou novos abrigos com pinturas ou
gravuras, tentando determinar as suas possíveis
redes de vizinhança. Ao mesmo tempo, procura-se
uma melhor compreensão de como cada um destes
locais se relaciona e se integra na paisagem, como se
procederia ao seu acesso, qual a sua marca visual na
paisagem e como se impõe, ou não, ao olhar de
quem nela circula.
4. Os quatro casos de estudo: breve descrição dos
trabalhos realizados e dos resultados obtidos.
O projecto iniciou-se em 2012, e os trabalhos de
campo terminaram em 2015. As escavações foram
feitas uma em cada ano, com excepção do Poço
Torto, que não foi possível escavar, por interdição
do dono do terreno. Os restantes trabalhos de
prospecção e registo das superfícies historiadas,
foram sendo feitos ao longo do tempo do projecto.
O decalque final das superfícies historiadas está
ainda a decorrer. Futuramente, pretendemos
publicar com o detalhe que merecem os trabalhos
de prospecção e de escavação realizados no âmbito
deste projecto, assim como do registo das
superfícies historiadas. Neste texto apresentaremos
apenas uma primeira resenha geral dos resultados.
4.1. A prospecção
Na ribeira do Avelal, em cuja margem esquerda se
implanta o abrigo do Poço Torto, prospectamos
duas áreas distintas: a primeira em torno do próprio
abrigo, e ao longo da ribeira para jusante deste; e a
segunda num meandro apertado da ribeira para
montante do Poço Torto, com o sugestivo topónimo
de Castelejo. Na primeira área de prospecção
destaca-se a ausência de novos achados, quer nos
terrenos sobranceiros à ribeira e em redor do abrigo,
com aparentes boas condições para a instalação de
habitats pré-históricos, quer também nas margens
da ribeira. Aqui, num troço de aproximadamente
1,5 km para jusante do abrigo, vimos grande parte
das superfícies e abrigos que vão surgindo em
ambas as margens, confirmando que o Poço Torto
surge isolado, sem mais arte rupestre nas
imediações (Fig.2). A segunda área prospectada
abrangeu uma zona onde a ribeira faz um meandro
apertado definindo um cabeço em esporão sobre
uma zona encaixada e rochosa do vale, cerca de 1,6
km a montante do Poço Torto. O cabeço, com o
topónimo Castelejo, revelou-se como um possível
sítio arqueológico, mas de difícil interpretação.
Aparenta ter restos de um grande muro na zona de
acesso, que poderá prolongar-se para os lados, e
alguns grandes derrubes no interior, de forma
aparentemente circular. No entanto, para além
destas possíveis estruturas serem pouco evidentes e
terem um elevado grau de destruição, não foi
possível encontrar qualquer vestígio material à
superfície, cerâmico ou lítico, com excepção de um
ou outro seixo de quartzito sem vestígios de talhe.
Esta ausência é tanto mais estranha quanto as
condições de visibilidade do solo são boas, num
terreno que já foi agricultado. As condições e os
parcos vestígios sugerem a possibilidade de se
tratar de um pequeno recinto do III milénio, mas
neste momento não é possível afirmá-lo com
segurança, e outras hipóteses terão sempre que ser
colocadas (Fig. 3).
Algo que reforça a probabilidade de se tratar de um
sítio pré-histórico é o achado de um novo abrigo
pintado nos afloramentos fronteiros ao cabeço, na
vertente oposta da ribeira, no sentido Oeste. É um
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pequeno abrigo com poucos motivos pintados, que
se reduzem a umas manchas indeterminadas de
pigmento e algumas barras associadas a um
antropomorfo esquemático.
Na zona dos abrigos do Colmeal, uma parte
substancial da serra da Marofa foi alvo de
florestação recente, num processo fortemente
alterador do solo. A prospecção concentrou-se assim
em torno dos abrigos pintados, em ambas as
margens da ribeira e subindo pelo flanco da serra
Figura 2: As áreas prospectadas em torno dos quatro casos de estudo (sobre as cartas militares à escala 1:25.000, Instituto
Geográfico do Exército). Em cima à esquerda: Ribeirinha. As áreas a azul assinalam aproximadamente as manchas de dispersão
dos materiais pré-históricos do sítio do Gamoal. Os pontos vermelhos assinalam os abrigos pintados da Ribeirinha (ao centro) e do
Gamoal (Folha 151). Em cima à direita: Lapas Cabreiras. O ponto vermelho assinala o abrigo das Lapas Cabreiras, e a área a azul a
área de dispersão de materiais arqueológicos. Os pontos brancos assinalam os sítios pré-históricos da Casa Grande (ao centro) e do
Alto da Mioteira. Os pontos verdes assinalam outras rochas pintadas nas imediações: rochas 1 e 2 do Ervideiro (à esquerda) e a
rocha da Mioteira, a Sul (Folhas 151 e 161). Em baixo à esquerda: Colmeal. O ponto vermelho assinala o conjunto dos três abrigos
pintados, e o ponto verde o novo abrigo com gravuras. O ponto branco assinala a mina encontrada em prospecção (Folhas 161 e
162). Em baixo à direita: Poço Torto. Os pontos vermelhos assinala o abrigo do Poço Torto (à esquerda) e do Castelejo. O ponto
branco assinala o possível sítio arqueológico do Castelejo (Folhas 161, 162, 171, 172).
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acima dos abrigos. Prospectamos também uma
segunda área mais pequena a jusante dos abrigos,
uma grande crista rochosa xistosa na margem
esquerda da ribeira do Colmeal.
Na primeira área de prospecção encontramos uma
pequena exploração mineira de cronologia
indeterminada e aspecto muito artesanal, talvez
uma exploração de ferro, que corresponde a um
sítio anteriormente assinalado como tendo um
conjunto de materiais de superfície de cronologia
antiga (Alves et al. 2014, p. 104), o que não
conseguimos confirmar. Mais interessantemente,
encontramos o Abrigo 4 do Colmeal, desta vez com
gravuras lineares do tipo "unhadas do diabo", numa
pequena mancha de xisto a montante dos abrigos
pintados e na margem oposta.
Na segunda área tentamos confirmar a eventual
existência de ocupação pré-histórica na grande
crista xistosa, que se estende linearmente por cerca
de 100 metros e forma um conjunto em sequência
de variados abrigos com plataformas internas, de
topónimo "Lapas". Estão orientados a Norte, com
vista privilegiada para a crista do Colmeal.
Algumas plataformas estão colmatadas por grandes
blocos tombados da parede de fundo, sendo
perceptível a existência de uma forte sedimentação
aparentemente bem conservada. Assim, o lugar tem
excelentes condições para a existência de uma
ocupação antiga, tanto mais que abrigos com esta
dimensão e boas condições são raros na região. Mas
não nos foi possível confirmar se existe ou não, pois
não encontramos vestígios materiais, algo que se
poderá dever à conjugação da boa conservação dos
sedimentos com o denso matagal que cobre a zona.
Figura 3: Em cima, vê-se o meandro apertado na Ribeira do Avelal no sítio do Castelejo, um possível recinto da Pré-história
Recente. Na margem oposta, a seta assinala o abrigo pintado do Castelejo. Em baixo, a seta assinala o abrigo do Gamoal, sobre a
falésia da Ribeirinha que marca a transição de granitos para xistos.
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Na Ribeirinha, as prospecções do PAVC
traduziram-se na descoberta de numerosos sítios
arqueológicos no planalto granítico por onde esta
ribeira corre, e até à sua entrada no Côa. Já havia
assim um interessante quadro de referência numa
área alargada em torno do abrigo. Mas faltava
prospectar a própria ribeira nas imediações do
abrigo, e investigar melhor um importante sítio com
ocupação pré-histórica a jusante das pinturas, o
Gamoal. A prospecção que fizemos na ribeira foi
infrutífera. No Gamoal, pudemos confirmar a
importância do sítio, localizado sobre um profundo
canhão que marca a transição dos granitos para
xistos. Tem uma vasta área de dispersão de
materiais em diferentes áreas, com uma cronologia
enquadrável entre o II e o IV milénio a. C., e um dos
sectores corresponde a um pequeno recinto murado
num esporão sobre a ribeira. A novidade da
prospecção foi a descoberta de um novo abrigo
pintado, dentro da área de dispersão de materiais,
mesmo por cima da falésia.
Nas Lapas Cabreiras também havia já um amplo
quadro de referência de sítios em associação com o
abrigo, em parte pelos trabalhos do PAVC, mas
também pelos resultados do Estudo de Impacte
Ambiental (EIA) da barragem do Alto Côa (García
Diez et al., 2001). Salientava-se, para além da
existência de alguns sítios com materiais pré-
históricos perto do abrigo, a integração destas
pinturas num conjunto mais vasto de abrigos
pintados, nos sítios da Faia, Ervideiro e Mioteira.
Havia também o conhecimento da existência de
materiais arqueológicos pré-históricos de superfície
nas imediações directas do abrigo das Lapas
Cabreiras, mas escassos e dispersos, e sem uma
percepção clara da sua origem (Fig. 4).
A prospecção evitou o fundo do vale, até porque
este já havia sido prospectado no EIA acima
referido, e concentrou-se numa área alargada em
torno do abrigo, numa espécie de anfiteatro natural
ao longo da orla superior do vale, de que as Lapas
Cabreiras formam o epicentro. Os resultados foram
escassos mas interessantes. Por um lado, não
encontramos outros sítios arqueológicos dentro
desta área, para além de dois já conhecidos: a Casa
Grande, uma pequena mancha de dispersão de
materiais numa plataforma aberta e voltada ao rio;
e o Alto da Mioteira, um enigmático recinto num
cabeço de vasta superfície, fechado por um muro na
entrada a Leste mas aberto a Sul em zona de fácil
acesso, e com escassos materiais de superfície,
incluindo restos de talhe em quartzito e raras
cerâmicas de fabrico manual. O que surgiu de novo
foi uma curiosa dispersão de vários materiais pré-
históricos de superfície, cerâmicos e líticos, isolados
e sem origem evidente num qualquer sítio
arqueológico, parecendo mais serem materiais
perdidos ou rejeitados. Por outro lado, o próprio
sítio das Lapas Cabreiras revelou-se um importante
local com ocupação pré-histórica, dividido por três
plataformas em sequência. A primeira e mais
elevada, anexa ao abrigo, tem escassos materiais de
superfície, com a escavação a revelar mais
informação. As outras duas, que se desenrolam
sucessivamente até à orla da abrupta encosta sobre
o Côa, são de pequena dimensão e contidas entre
afloramentos, revelando algum material de
superfície, lítico e cerâmico, incluindo barro de
revestimento, com material que pertencerá
maioritariamente aos III e/ou II milénios a. C.
4.2. A escavação
Não nos foi possível sondar arqueologicamente o
abrigo do Poço Torto, pela simples razão que o seu
proprietário não nos autorizou, como é legalmente
exigido para os projectos arqueológicos em
Portugal. A área que teríamos elegido para escavar
corresponde à plataforma interior do abrigo,
prolongando-se ligeiramente para o seu exterior.
Estando elevada em relação à ribeira, não se
colocava o problema de eventuais sedimentos
antigos terem sido lavados pelas suas águas, e a
existência de um conjunto de blocos rochosos
tombados, formando uma barreira natural fechando
por completo o espaço interior do abrigo, deixava
em aberto a hipótese dos sedimentos poderem estar
bem preservados, o que não foi ainda possível testar
(Fig. 5).
No Colmeal, a escavação consistiu na abertura de
duas sondagens em frente aos Abrigos 2 e 3,
encostando aos painéis pintados. Uma terceira
sondagem teria sido realizada em frente ao Abrigo
1, caso existissem sedimentos. Esta ausência
revelou-se penalizadora para a investigação, pois o
Abrigo 1 está mais elevado e afastado da ribeira do
que os outros dois, e eventuais sedimentos ali
existentes poderiam ter sobrevivido à lavagem feita
pela ribeira nas zonas mais baixas. Efectivamente,
as duas sondagens revelaram apenas depósitos
fluviais recentes, pelo que, a terem existido vestígios
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materiais pré-históricos neste sítio, foram há muito
arrastados pelas águas (Fig. 6).
Na Ribeirinha abrimos duas sondagens, adjacentes
à parede de fundo do abrigo, mas a cotas distintas.
Uma foi aberta por baixo dos painéis pintados, e o
resultado é similar às sondagens do Colmeal.
Estando adjacente ao leito da ribeira, as enchentes
desta arrastaram os eventuais sedimentos antigos e
deixaram depósitos fluviais recentes e caóticos. Na
outra sondagem mais acima em zona protegida das
águas, a escavação revelou a existência de uma
bolsa de terra preservada entre blocos tombados,
onde exumamos um pequeno conjunto de
fragmentos de cerâmica de fabrico manual, de
tipologia e pastas muito homogéneas. Entre estes,
um único fragmento com decoração, um pequeno
bordo com uma banda penteada de linhas incisas
paralelas e rectilíneas, numa tipologia decorativa
bem conhecida na região Norte e Centro, com uma
cronologia que medeia entre o IV e o II milénios
a.C.
A escavação nas Lapas Cabreiras foi a de resultados
mais interessantes. Efectuaram-se três sondagens,
encostadas ao limite do grande afloramento em que
se abre o abrigo pintado. Este não foi possível
sondar, estando preenchido por grandes blocos
tombados do tecto e das paredes do afloramento,
quase sem sedimentos. Abrimos uma sondagem
num pequeno espaço fechado na extremidade Norte
do afloramento, bem sedimentado e protegido por
grandes blocos. Esperávamos uma boa conservação
de eventual estratigrafia arqueológica, mas não o
pudemos confirmar porque o espaço disponível na
sondagem, após a remoção da camada humosa,
ficou quase preenchido por grandes blocos
tombados do abrigo, não permitindo continuar a
escavação (Fig. 7).
As outras sondagens implantaram-se de cada lado
do sector principal do abrigo, ligeiramente abaixo
deste. Concluímos que a sua estratigrafia
corresponde a deposições secundárias resultantes
da escorrência dos sedimentos que estariam no
abrigo principal, subjacentes ao painel 1. Em todos
os estratos das duas sondagens surgem materiais
arqueológicos, mas com pormenores relevantes. Na
sondagem a Sul do abrigo surge uma mistura de
materiais, incluindo cerâmicas e líticos de
cronologia pré-histórica e alguma cerâmica de
Figura 4: O abrigo das Lapas Cabreiras é visível à direita, na base do cabeço granítico. As setas indicam as três plataformas entre
rochedos onde se encontram materiais arqueológicos de superfície. A profunda garganta do Côa é bem perceptível à esquerda.
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cronologia recente, seguramente relacionadas com o
uso pastoril do abrigo. Esta mistura de materiais
antigos e recentes encontra-se desde o topo da
sondagem até à rocha-base.
Na sondagem a Norte algo similar acontece, mas
apenas nas camadas superiores. Na última camada,
acima da rocha-base, deixa de aparecer materiais
recentes, e também desaparece a cerâmica pré-
histórica, limitando-se o espólio a numerosos
fragmentos de talhe em pedra, sugerindo que esta
última camada terá uma formação muito mais
antiga que as restantes. Estes materiais, com poucos
elementos tipologicamente reconhecíveis,
distinguem-se pelo tamanho miniatural da maioria
dos elementos e pela variedade da matéria prima,
com quartzo branco e quartzo hialino, quartzito e
sílex, este também com alguma diversidade. Não é
possível afirmar se correspondem a um momento
cronológico curto ou a longo período de tempo na
pré-história, mas a ausência de cerâmica nesta
camada e as características do seu material sugerem
uma cronologia recuada, talvez do Neolítico ou
Figura 5: À esquerda, o abrigo da Ribeirinha. Os números
assinalam os painéis pintados, e as setas a localização das
sondagens arqueológicas. À direita, o abrigo do Poço Torto,
com a localização dos dois painéis pintados. As setas assinalam
a área que se pretendia sondar arqueologicamente.
Figura 6: A garganta quartzítica do Colmeal, indicando-se a
localização de cada abrigo pintado. As setas brancas assinalam
as duas sondagens arqueológicas realizadas. A seta vermelha
mostra a localização do novo abrigo com gravuras.
Figura 7: O abrigo das Lapas Cabreiras. As setas brancas assinalam as três sondagens arqueológicas. Os números assinalam os
quatro painéis, pintados e gravados, com a seta vermelha a amostrar a localização do fragmento deslocado do painel 2, e a seta
verde a assinalar o que poderá ter sido aproximadamente a sua posição original.
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Neolítico Antigo, podendo eventualmente recuar ao
Epipaleolítico. Uma cronologia tão recuada torna-se
mais provável pela existência de um elemento
cronologicamente mais seguro na outra sondagem
mais a Sul e misturado com materiais mais recentes,
um fragmento de bordo com decoração boquique,
datável do Neolítico antigo (Fig.8).
4.3. A Arte rupestre
Após a observação cuidada de todos os abrigos
estudados, o Poço Torto foi o único que não revelou
novos painéis com arte rupestre. Na parede lateral
esquerda do abrigo encontra-se o painel 1, com uma
fractura central que terá ocasionado a perda de
superfície e de pintura no sector esquerdo. Anexos a
essa fractura, na zona central, há alguns traços, por
vezes cruzados, que podem formar um ou mais
motivos, interrompidos pela fractura e já não
reconhecíveis (Fig. 9).
O painel 2 está na parede de fundo do lado direito
do abrigo, e é uma grande superfície com o único
motivo pintado a branco conhecido na região,
sendo os restantes a vermelho. A parte superior tem
uma pequena barra vertical, não incluída no
levantamento do CNART. No sector inferior surge a
maior congregação de motivos, incluindo o motivo
branco, que consiste numa linha semicircular raiada
externamente, tendo no interior uma linha
ondulada ramiforme. Este motivo está rodeado
pelos restantes, que são uma figura solar, uma
pequena figura subcircular, um motivo ovalado alto
e estreito, ladeado à esquerda por dois motivos
semelhantes e muito apagados, linhas rectilíneas
raiadas, uma ausente no levantamento do CNART e
a outra representada incompleta. Em duas áreas
separadas no sector intermédio do painel surgem
dois motivos diferentes dos restantes, no estilo e na
técnica (ambos executados em pincelagens finas), e
que poderão talvez ser mais antigos (Fig. 10).
No Colmeal, começamos por realçar o novo abrigo
com gravuras. Estas consistem em conjuntos de
pequenas linhas rectilíneas profundamente
repassadas, um tipo de gravura familiar na região
do Alto Douro e conhecida pela sua designação
popular de "unhadas do diabo". Distribuem-se por
quatro pequenos painéis, e apenas num deles,
surgem com alguma abundância, um conjunto de
14 traços paralelos. Os restantes painéis ostentam
unicamente um ou dois traços cada. A cronologia
deste tipo de gravuras está por estabelecer (Reis,
2014, p. 43-47), mas parece-nos provável uma
cronologia da Pré-história Recente (Fig. 11). O
Abrigo 1 é o maior no conjunto do Colmeal, na
extremidade Norte do maciço rochoso. As pinturas
surgem num único grande painel lateral,
perpendicular à ribeira, desenhado pelo ex-CNART
em 2004. Confrontando o desenho com fotografias
tratadas com DStretch, a única omissão encontrada
foi uma figura antropomórfica na extremidade
esquerda do painel.
Figura 8: À esquerda, fragmento de cerâmica decorado
encontrado na escavação do abrigo da Ribeirinha. À direita,
fragmento de cerâmica decorado encontrado na escavação do
abrigo das Lapas Cabreiras.
Figura 9: O sector inferior do painel 2 do Poço Torto, onde se
agrupa a maior parte dos motivos, incluindo o motivo em
branco, que quase desaparece no filtro utilizado na imagem
DStretch em baixo (filtro lds).
Figura 10: À esquerda, detalhe do painel pintado do abrigo do
Castelejo. À direita, detalhe das gravuras lineares do painel 1
do Abrigo 4 do Colmeal.
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Figura 11: À esquerda, o abrigo 1 do Colmeal. À direita, detalhe do conjunto de antropomorfos no sector superior direito do painel
pintado do abrigo 1, com a respectiva imagem DStretch por baixo.
Figura 12: À esquerda, o abrigo 2 do Colmeal, indicando-se a localização dos dois painéis. À direita,
detalhe do antropomorfo do painel 1, com a respectiva imagem DStretch por baixo.
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O painel divide-se em dois sectores. O lado
esquerdo é uma área grande, de forma, superfície e
coloração muito irregulares, em que os motivos se
dispersam espaçadamente. Contamos 11 figuras
antropomórficas esquemáticas, cinco barras, três
das quais agrupadas, e um motivo abstracto
bastante indistinto, que parece consistir numa linha
vertical da qual arrancam variados pequenos traços
rectilíneos. O sector direito é mais pequeno e surge
a maior altura, numa zona de cor avermelhada e
fora rectangular. Em cima surge um denso conjunto
de 12 figuras antropomórficas e um outro motivo
indeterminado. Por baixo há mais um
antropomorfo e um motivo grande e pouco
definido, uma figura larga e ovalada com
segmentações internas, lembrando um grande
motivo abstracto do painel 1 das Lapas Cabreiras.
Nos Abrigos 2 e 3 surgem em alguns painéis
variadas linhas finas de cor avermelhada. Apenas
num único caso, no painel 2 do Abrigo 3, estas
linhas parecem formar um motivo reconhecível, um
rectângulo com o interior cruzado por linhas
unindo os vértices. Alguns casos são seguramente
formações naturais, mas outros são menos
evidentes. No estado actual da investigação não
podemos afirmar a origem antrópica destas linhas,
incluindo o rectângulo referido.
O Abrigo 2 está na parte mais baixa e aberta do
maciço rochoso, a poucos metros da ribeira e ao
lado do Abrigo 3. Tem dois painéis historiados, o
painel 1 com pintura esquemática e o painel 2 com
gravuras incisas modernas.
O painel 1 surge na parede direita, levemente
inclinado para a frente e de forma rectangular. Os
dois motivos estão na parte superior, um
antropomorfo simples em cruz e uma grande
mancha irregular (Fig.12). O painel 2 é pequeno e
de forma ovalada, integrando a parede de fundo.
Na parte inferior surge uma inscrição e uma data
ilegíveis, cujo traço e pátina parecem mais recentes
que as restantes gravuras. Estas, para além de duas
possíveis e toscas figuras antropomórficas,
consistem em cerca de 30 motivos abstractos, de
que se destacam as linhas em ziguezague.
No Abrigo 3 encontram-se 3 painéis pintados. O
painel 1 corresponde à parede lateral direita do
abrigo, e tem dois motivos pintados a vermelho na
extremidade inferior direita do painel, um grande
antropomorfo em fi associado a uma barra vertical.
O painel 2, do lado esquerdo da parede de fundo,
tem vários motivos pintados a vermelho, havendo
pelo menos sete antropomorfos, uma barra
horizontal e quatro motivos indeterminados. O
painel 3 é uma pequena superfície do lado superior
direito da parede de fundo, com três motivos
similares pintados a preto, em traço fino. Consistem
em duas linhas oblíquas cruzadas, tendencialmente
uma mais vertical e outra mais horizontal, em que a
parte inferior de cada é rematada por um pequeno
círculo fechado. Poderão ser figuras
antropomórficas muito estilizadas, sem paralelos na
arte do Côa, constituindo-se também como as
únicas pinturas a preto da região (Fig.13).
Na Ribeirinha, para além dos dois painéis
previamente levantados, descobrimos dois novos
painéis, pouco relevantes. O painel 3 esconde-se por
baixo do painel 2, em posição fortemente oblíqua, e
tem duas pequenas manchas informes vermelhas. O
painel 4 corresponde ao tecto do abrigo fronteiro
aos painéis 1 e 2, com uma inscrição moderna, a
palavra "João" pintada em lápis de cor vermelho.O
painel 2 corresponde à parede lateral esquerda do
abrigo. Para além de algumas manchas
indeterminadas e de três possíveis antropomorfos
muito indistintos na zona central, apresenta uma
enorme quantidade de barras, mais de 40, dispersas
pela superfície. O painel 1 corresponde à parede de
fundo do abrigo, sendo o maior e mais importante
do conjunto. Quase todas as suas pinturas a
vermelho estão fortemente degradadas, pouco mais
sendo visível a olho nu do que conjuntos de
manchas informes, com uma ou outra figura
antropomórfica a revelar-se. No entanto, a aplicação
do DStretch permite visualizar muitos outros
detalhes, e o painel parece compor-se de uma
quantidade avultada de figuras antropomórficas,
entre outros motivos, sendo necessário completar o
levantamento existente (Fig.14).
Nas Lapas Cabreiras descobrimos mais três painéis
dispersos ao longo do maciço rochoso, dois com
gravuras e outro com pinturas. Este, o painel 2, é
um bloco isolado solto, fragmentado e tombado,
com uma pequena mancha vermelha.
Originalmente, estaria talvez fronteiro ao painel 1, e
os restantes fragmentos poderão estar no caos de
blocos por baixo desse painel, mas onde não
encontramos outros vestígios de pintura. Os painéis
3 e 4 são grandes paredes verticais nas
extremidades do abrigo; o painel 3 a Norte e o
painel 4 a Sul. Ambos apresentam figuras
Reis et al. | Techne 3 (1) (2017) 97-111
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Figura 13: À esquerda, o abrigo 3 do Colmeal, indicando-se a localização dos três painéis. Ao centro, antropomorfo em fi do painel
1. À direita em cima, antropomorfo do painel 2 (imagem DStretch). À direita em baixo, motivo a negro do painel 3.
Figura 14: À esquerda, uma secção do painel 1 do abrigo da Ribeirinha, com a respectiva
imagem em DStretch. Note-se como estão apagadas a maioria das figuras, e como se
confundem com o fundo avermelhado do painel, e também como a imagem em DStretch revela
pormenores pouco visíveis. À direita, secção do painel 2 da Ribeirinha, mostrando um conjunto
de barras, com a imagem em DStretch por baixo.
Reis et al. | Techne 3 (1) (2017) 97-111 109
antropomórficas picotadas.
No painel 3 uma tosca figura esquemática de cabeça
redonda e braços e pernas abertas, associado a
outro motivo fragmentado e incompleto, já não
reconhecível. No painel 4 encontra-se um único
antropomorfo em fi, quase irreconhecível no meio
de uma superfície preenchida por inúmeros sulcos
naturais muito similares aos traços gravados (Fig.
15).
Por fim, o painel 1, onde se notam a olho nu alguns
raros motivos e conjuntos de manchas,
distinguindo-se pelo menos duas figuras
antropomórficas, duas representações de mãos,
algumas barras e pouco mais. Mas foi neste painel
que a aplicação do DStretch melhor funcionou,
permitindo facilmente distinguir uma enorme
quantidade de motivos, por vezes dando resolução
a manchas aparentemente informes, noutros
fazendo aparecer motivos invisíveis a olho nu.
Também permitiu realçar a existência de quatro
pigmentos diferentes (vinhoso, vermelho-vivo,
vermelho-escuro e laranja), e de três diferentes
técnicas de pintura (pincelagem, digitação e
raspagem, esta provavelmente com pequenos
blocos de hematite), assim como aclarar a sequência
de sobreposições de alguns motivos.
No final, contamos cerca de 30 figuras
antropomórficas, quatro mãos, uma figura solar,
três animais indeterminados, uma mão cheia de
motivos abstractos, incluindo um escutiforme com
segmentações internas, e uma enorme quantidade
de barras ou traços finos, cerca de 120, quase todas
digitadas, isoladas ou em conjuntos de dimensão
variável (Fig. 16).
5. Conclusão
O projecto ARTFACTS, sendo pequeno e de meios
limitados, traduziu-se num interessante conjunto de
novidades e dados relevantes provenientes das três
escalas de análise aplicadas: prospecção, escavação
e análise dos painéis historiados. Salientamos o
achado de três novos abrigos com arte rupestre pré-
histórica, o Abrigo 4 do Colmeal com gravuras, e os
abrigos do Castelejo e do Gamoal, com pinturas.
Estes dois últimos configuram uma situação algo
similar no tocante à distribuição de sítios
arqueológicos nas imediações de importantes
abrigos pintados, no caso o Poço Torto e Ribeirinha,
respectivamente. Em ambas as situações, os dois
novos abrigos são iconograficamente pobres e
directamente associados a recintos murados da Pré-
história Recente, que se encontram
aproximadamente a um quilómetro de distância dos
abrigos mais importantes, sobre a mesma linha de
água.
Pelo menos no caso do Gamoal, com a evidente
importância do sítio arqueológico, a sua
Figura 15: Lapas Cabreiras: painel 3 (à esquerda) e painel 4 (à direita).
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proximidade e relação privilegiada com os abrigos
da Ribeirinha e Gamoal, poderemos sugerir que
este grande povoado possa estar directamente
relacionado à realização das pinturas. Na zona do
Colmeal, o mesmo poderá suceder com o grande
conjunto de abrigos das Lapas onde, a confirmar-se
um dia a existência de uma ocupação antiga, será
do maior interesse estudar a sua eventual relação
com os abrigos do Colmeal, que surgem a curta
distância e com relação visual directa.
Nas Lapas Cabreiras, a conjugação dos trabalhos de
prospecção com escavação mostra que este local,
para além das pinturas, tem uma importante
ocupação pré-histórica, ainda por caracterizar
adequadamente mas enquadrada entre o Neolítico
Antigo (pelo menos) e o Calcolítico/Idade do
Bronze. Na Ribeirinha, a escavação mostrou a
existência de algum tipo de ocupação ou actividade
em tempos pré-históricos, mas a exiguidade dos
vestígios impede uma melhor compreensão das
suas características. A análise cuidada das
superfícies de todos os abrigos foi um trabalho
compensador, pois apenas no Poço Torto não
descobrimos novos painéis com arte rupestre.
Salienta-se a descoberta de pinturas a negro no
Colmeal ou, nas Lapas Cabreiras, de um novo
painel pintado, fragmentado e muito incompleto, e
de dois painéis com antropomorfos esquemáticos
gravados. A aplicação de um novo método digital
de visualização de pinturas, o DStretch, permitiu
rever adequadamente alguns dos levantamentos
anteriormente efectuados pelo ex-CNART, assim
como melhor analisar os novos painéis. Desta
forma, no Poço Torto e Colmeal detectamos alguns
Figura 16: O painel 1 das Lapas Cabreiras, dividido em três sectores (esquerdo, central e direito), e com o respectivo tratamento
DStretch em baixo. Atente-se na extraordinária quantidade de detalhes que o uso deste filtro digital revela neste painel.
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motivos omitidos ou insuficientemente
interpretados nos levantamentos. Na Ribeirinha, o
conjunto de manchas informes do painel 1
transformou-se num magnífico conjunto de motivos
diversos, com destaque para as figuras
antropomórficas. Por fim, no painel 1 das Lapas
Cabreiras, que visualmente se parecia limitar a
pouco mais de meia dúzia de motivos e variadas
manchas incompreensíveis, o DStretch revelou
aproximadamente 180 realidades diferentes, num
conjunto de variadíssimas figuras antropomórficas,
grupos de barras, mãos, animais, figuras abstractas
diversas e uma figura solar, distinguindo-se várias
sobreposições e o uso de diferentes pigmentos e
técnicas, no que é sem dúvida um dos principais
conjuntos de arte esquemática pintada em território
português.
Bibliografia
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ART-FACTS: Uma investigação sobre os contextos
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policopiado, Instituto Português de Arqueologia
Reis, M., 2012. ‘Mil rochas e tal...’: inventário dos sítios
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da arte rupestre do vale do Côa (2.ª parte). Portugália,
34, 5-68
Reis, M., 2014. ‘Mil rochas e tal...’: inventário dos sítios
da arte rupestre do vale do Côa (conclusão). Portugália,
35, 17-59