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A distinção aristotélica entre Lógica, Dialética e Retórica e seu lugar na Teoria da Argumentação

Authors:

Abstract

Devemos considerar a obra de Aristóteles como a origem da Teoria da Argumentação ou como um obstáculo que explicaria parcialmente o desenvolvimento tardio desta teoria? Neste artigo, tento mostrar que existem boas razões para defender ambas as posições. Com isso, pretendo ilustrar certa forma de conceber as relações entre Lógica, Dialética e Retórica. Essa concepção estaria mais próxima dos objetivos da própria Teoria da Argumentação que da visão fragmentária que, por séculos, se apoiou no trabalho daqueles que, de uma ou outra disciplina, ocuparam-se do estudo normativo da argumentação. Ao considerar que essa visão fragmentária é uma herança daquela visão que ainda não se desfez inteiramente na moderna Teoria da Argumentação, a leitura das obras aristotélicas aqui proposta tenta fornecer elementos úteis para reflexão sobre o nosso trabalho atual, especialmente aqueles relacionados à concepção da Lógica como uma teoria normativa de inferência e do entimema como silogismo retórico.
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentão
ISSN 2 237-6984
139
http://dx.doi.org/10.47369/eidea-21-1-3091
A distinção aristotélica entre Lógica, Dialética e Retórica e seu lugar na Teoria
da Argumentação
*
Lilian Bermejo-Luque
Docente da Universidade de Granada, Espanha
https://orcid.org/0000-0002-2385-6026
Tradução:
Eduardo Lopes Piris
Universidade Estadual de Santa Cruz
Resumo: Devemos considerar a obra de Aristóteles como a origem da Teoria da
Argumentação ou como um obstáculo que explicaria parcialmente o desenvolvimento tardio
desta teoria? Neste artigo, tento mostrar que existem boas razões para defender ambas as
posições. Com isso, pretendo ilustrar uma certa forma de conceber as relações entre Lógica,
Dialética e Retórica. Essa concepção estaria mais próxima dos objetivos da própria Teoria
da Argumentação do que a visão fragmentária que, por séculos, se viu apoiada pelo trabalho
daqueles que, a partir de uma ou outra disciplina, se ocuparam do estudo normativo da
argumentação. À medida que essa visão fragmentária é uma herança daquela visão que
ainda não se desfez inteiramente na moderna Teoria da Argumentação, a leitura das obras
aristotélicas aqui proposta tenta fornecer elementos úteis de reflexão para o nosso trabalho
atual, especialmente aqueles relacionados à concepção da Lógica como uma teoria
normativa de inferência e do entimema como silogismo retórico.
Palavras-chave: Órganon aristotélico. Dialética. Lógica. Retórica. Teoria da Argumentação.
Abstract: Should we consider Aristotles work on argumentation as the origins of
Argumentation Theory or rather as an obstacle that, at least in part, would explain its late
emergence and development? In this article I try to show that, in fact, there are good reasons
to defend both views. By doing so, I aim to illustrate a certain way of thinking of the
relationships between Logic, Dialectic and Rhetoric. Such conception of the relationships
between these disciplines would be more suitable for the goals of Argumentation Theory than
the fragmentary view that, for centuries, has been endorsed by most scholars working on
each of them. As long as this fragmentary view has been inherited up to our days, our
proposed reading of Aristotles texts aims to offer some conceptual elements for current
developments, mostly regarding the conceptions of Logic as the normative theory of
inference and of the enthymeme as the rhetorical syllogism.
Keywords: Aristotles Organon. Dialectics. Logic. Rhetoric. Argumentation Theory.
*
A Revista EID&A agradece vivamente o Professor Francisco Pizarro, diretor da Revista Cogency, e a Professora
Lilian Bermejo-Luque, autora, por autorizarem a publicação da tradução deste artigo encontrado originalmente em
Cogency, v. 1, n. 2, 2009.
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Introdução
Devemos considerar a obra de Aristóteles como a origem da Teoria da
Argumentação ou como obstáculo que implicaria parcialmente seu desenvolvimento
tardio? Como tentarei mostrar nas páginas seguintes, penso que boas razões para
defender ambas as posições.
Embora isso possa ser visto como uma questão histórica interessante em si
mesma, o que pretendo, ao considerar o papel da obra de Aristóteles em relação à
Teoria da Argumentação, é antes ilustrar certo modo de conceber as relações entre
Lógica, Dialética e Retórica. Acredito que tal concepção se aproxima mais dos objetivos
da própria Teoria da Argumentação do que a visão fragmentária que, por séculos, se
viu apoiada pelo trabalho daqueles que, a partir de uma ou outra disciplina, se
ocuparam do estudo normativo da argumentação.
Mais ainda, considerando que essa visão fragmentária é uma herança da qual a
moderna teoria da argumentação ainda não se desfez completamente, a leitura das
obras aristotélicas que aqui se propõe visa a contribuir com elementos úteis de
reflexão para o nosso trabalho atual. É por isso que o que segue pretende ser de
interesse mais conceitual do que historiográfico: não se trata de apresentar uma tese
sobre a verdadeira interpretação da obra aristotélica, mas sim de oferecer uma
perspectiva distinta que nos permita considerar até que ponto a interpretação
tradicional não se encontra enviesada, pelo menos em parte, pelas mesmas
contingências históricas que postergaram o desenvolvimento da Teoria da
Argumentação.
Como se sabe, as origens da Teoria da Argumentação enquanto disciplina
acadêmica são bastante recentes. Em meados da segunda metade do século passado,
autores como Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1958), Stephen Toulmin
(1958) e Charles Hamblin (1970) enfatizaram o interesse e as idiossincrasias do estudo
normativo da argumentação em linguagem natural. O desenvolvimento da Teoria da
Argumentação aglutinou assim os esforços daqueles que, seja de uma perspectiva
Lógica, Dialética ou Retórica, interessaram-se pelas condições do bem argumentar.
Assim, em Acts of Arguing, Christopher Tindale (1999) levantou as observações
de Joseph Wenzel (1979) e Jürgen Habermas (1984), para identificar a distinção
aristotélica entre Lógica, Dialética e Retórica a três diferentes concepções da
argumentação como objeto de estudo. De acordo com Tindale, tratar-se-ia,
respectivamente, do argumento enquanto (1) produto da comunicação
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argumentativa, (2) procedimento de troca comunicativa que implica certo tipo de
prática argumentativa e (3) processo no qual tal prática se implementa.
A Lógica está preocupada com os produtos PPC (premissas-conclusão) da
argumentação, os textos e discursos em que são feitas afirmações com as evidências
de apoio, as quais podem ser julgadas como válidas ou inválidas, fortes ou fracas. A
Dialética se interessa por regras ou procedimentos que o necessários para o
argumento a ser feito corretamente e atingir seus objetivos de resolução de disputas
e promoção discussões críticas. A retórica se concentra nos processos
comunicativos inerente à argumentação, nos meios usados pelos falantes para obter
a adesão do público às suas afirmações (TINDALE, 1999, p. 3-4).
O objetivo principal deste trabalho é oferecer uma leitura da obra de Aristóteles
que mostre que o tradicional desencontro entre os três saberes a Lógica, a Dialética
e a Retórica que compõem o estudo normativo da argumentação não é uma
consequência natural da obra aristotélica, mas que tem a ver com a maneira como ela
foi recebida, tendo em conta o interesse que o próprio Aristóteles manifestou por um
desses saberes e o modo como este se desenvolveu posteriormente.
1. Teorias lógicas, dialéticas e retóricas da argumentação
Atualmente, a Teoria da Argumentação contém propostas representativas das
perspectivas lógica, dialética e retórica. As concepções da argumentação das quais
partem cada uma dessas propostasm como objetivo comum servir de base para uma
teoria normativa para o fenômeno ordinário da argumentação. Assim, por exemplo, o
próprio Tindale elabora seu modelo a partir de uma concepção de argumentação como
processo, pois, em sua opinião, isso permite uma visão integral, o que seria inacessível
com base em outros pressupostos. Por isso, ele propõe uma recuperação do trabalho
de Perelman, e do que podemos chamar de perspectiva retórica da Teoria da
Argumentação.
Por sua vez, a proposta mais representativa da perspectiva lógica dentro da Teoria
da Argumentação, a chamada gica Informal Canandense, reúne um conjunto de
trabalhos desenvolvidos desde a década de 1970, principalmente por Trudy Govier,
John Anthony Blair e Ralph H. Johnson, que dedicam-se a constituir uma lógica não
formal para argumentos em linguagem natural, que, segundo esses autores, uma
perspectiva retórica afigura-se insuficientemente normativa. Seu ponto de partida foi
o reconhecimento dos limites da Lógica Formal para lidar com as falácias
argumentativas e com a dimensão dialética da argumentação.
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Por fim, a perspectiva dialética seria representada principalmente pela
Pragmadialética, também chamada de Escola de Amsterdã, cujo trabalho
fundamental, Speech Acts in Argumentative Discussions, de Frans H. van Eemeren e Rob
Grootendorst (1984), desenvolve uma concepção de argumentação como
procedimento de discussão crítica que tem como objetivo resolver racionalmente uma
diferença de opinião. A concepção dialógica da argumentação também representou o
ponto de partida de diferentes sistemas de dialética formal, tais como o de Else Barth
e Erik Krabbe (1982), e uma característica fundamental da obra de Douglas Walton
(1989) e Douglas Walton e Erik Krabbe (1995).
Devido aos seus distintos focos de interesse isto é, os argumentos, os
procedimentos de troca argumentativa ou os processos de comunicação
argumentativa , pode parecer que as teorias que compõem atualmente a disciplina
não são, absolutamente, propostas concorrentes, mas são. Como projeto geral, a
Teoria da Argumentação é uma tentativa de oferecer um modelo normativo adequado
para dar conta do fenômeno da argumentação cotidiana, e as diferentes perspectivas
não caracterizam modelos paralelos ou complementares, mas sim concorrentes, uma
vez que cada teoria afirma ter encontrado o ponto de partida ideal para lidar com esse
fenômeno. Certamente, ao definir a argumentação de um modo ou de outro, essas
teorias definem seu próprio objeto de estudo. Mas a representatividade desse objeto
no que tange ao tipo de fenômeno cujas condições normativas devem ser analisadas
apresenta-se, então, como um critério essencial tanto para decidir sobre o valor teórico
e prático de tais teorias quanto para comparar modelos cujos objetos, em princípio,
diferem entre si.
2. O lugar da obra de Aristóteles
Apesar de, nos últimos tempos, o mero aparecimento da Teoria da
Argumentação ter conseguido integrar em uma única disciplina as distintas áreas do
estudo normativo da argumentação em linguagem natural, é verdade que subjaz a
ideia de que a Lógica, a Dialética e a Retórica são, na melhor das hipóteses, perspectivas
alternativas.
Mesmo reconhecendo, com justiça, os esforços de diferentes teorias para incluir
elementos alheios ao seu ponto de partida, não se articulou ainda uma proposta capaz
de integrar essas três disciplinas, enquanto perspectivas complementares, para a
elaboração de um modelo do bem argumentar.
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Qual é então a causa dessa fragmentação que nem mesmo o importante
desenvolvimento experimentado pela Teoria da Argumentação nas últimas décadas
conseguiu superar ainda? Na minha opinião, para encontrar uma resposta, deveríamos
indagar, em grande medida, a evolução histórica do modo como ocorreu a recepção
dos estudos aristotélicos sobre argumentação e o posterior estabelecimento da
Lógica, Dialética e Retórica como disciplinas consolidadas e completamente
independentes entre si.
Dito isso, como pretendo mostrar a seguir, este resultado não deve ser visto
como uma consequência intrínseca das propostas aristotélicas em si, mas
compreender de que maneira seria possível considerá-lo fruto de certas contingências
históricas; entre elas, aquelas que determinaram o papel de Aristóteles como o pai do
que, mais tarde, se constituiu como Lógica Formal.
Como argumentei em Bermejo-Luque (2008; 2009), a preponderância da Lógica
Formal constituiu um verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento da Teoria da
Argumentação, promovendo a crença de que um modelo normativo para
argumentação na linguagem natural não era nada mais do que o resultado da adição,
aos sistemas lógicos formais, de uma teoria adequada para a formalização de
argumentos reais. Durante séculos, a normatividade argumentativa passou a ser
equiparada à normatividade lógica, entendida, sobretudo, como algo de natureza
meramente formal. Essa visão deixou de fora os condicionamentos pragmáticos da
argumentação enquanto atividade comunicativa. Por exemplo, tudo o que estava
relacionado com o estudo das falácias informais aparecia, quando muito, como um
capítulo pitoresco e assistemático em alguns manuais sensíveis à questão da
aplicabilidade da Lógica para a avaliação da argumentação cotidiana.
Dado esse preconceito, não é surpreendente que, até o surgimento do Teoria da
Argumentação, pensava-se que a contribuição mais importante de Aristóteles para o
estudo normativo da argumentação consistia em que ele teria firmado as bases da
Lógica como uma teoria formal da inferência válida. Certamente, o próprio Aristóteles
parece considerar a silogística analítica dos Analíticos Anteriores
1
como o núcleo dessa
empreitada e seus estudos sobre as categorias, as proposições e os juízos constituiriam
elementos complementares a essa obra, mas, ao contrário, obras como Retórica e
Refutações Sofísticas esta sobre falácias informais seriam, na melhor das hipóteses,
reflexos adicionais, quando não meros elementos estranhos ao programa de
1
N.T.: Para consulta às obras de Aristóteles aqui citadas, exceto a Retórica, indicamos a edição brasileira:
ARISTÓTELES. Órganon: Categorias, Da interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos,
Refutações Sofísticas. 2.ed. rev. Tradução do grego, textos adicionais e notas de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2010.
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elaboração de uma ciência formal para a avaliação dos argumentos. Tal concepção de
sua obra tornaria Aristóteles o pai da gica Formal contemporânea, contudo, à
medida que essa disciplina foi sendo apresentada, por séculos, como o único modelo
propriamente normativo possível para a argumentação, Aristóteles teria sido antes um
obstáculo para o desenvolvimento da Teoria da Argumentação, tal qual a conhecemos
hoje.
Ora, seria esta a única leitura possível da obra aristotélica sobre argumentação?
Na minha opinião, também é possível ver a silogística analítica tão somente como uma
parte de um todo maior, cujo núcleo não é inferência formal, mas sim a prática da
argumentação enquanto instrumento para a Filosofia e conhecimento. Deste ponto de
vista, o conjunto de obras que Andrônico de Rodes teria reunido sob o título Organon,
Instrumento, representaria a missão de fundar metodologicamente o
empreendimento teórico aristotélico, mais do que acompanhar e complementar a
elaboração de uma ciência formal sobre o método. Para essa empreitada, não apenas
a silogística analítica mas também as reflexões aristotélicas sobre a Dialética, os tópicos
e as falácias seriam peças fundamentais às quais teriam de ser adicionadas as reflexões
da Retórica e até como sugerido por Covarrubias (2006) da Poética aristotélica:
assim, tal projeto, como um todo articulado, ocupar-se-ia da comunicação
argumentativa em geral e não somente da teoria da prova e inferência formal.
É verdade que, de um ponto de vista meramente histórico, a primeira dessas
interpretações da obra de Aristóteles seria a mais precisa. Isso certamente explicaria
por que, depois de Aristóteles, o estudo da argumentação ficou dividido em três
disciplinas que tiveram desdobramentos muito distintos: por um lado, a Lógica, que se
desenvolveu sob a influência de silogística analítica, evoluiu como um conjunto de
teorias formais sobre a inferência válida; por outro lado, a Retórica, que após percorrer
uma longa jornada, acabou quase esquecida e parcialmente desacreditada por sua
suposta preferência pelo ornamento em detrimento do argumento; e, finalmente, o
estudo das falácias formais, um assunto que praticamente até os trabalhos de
Hamblin (1970) sobre Dialética o havia recebido tratamento sistemático algum.
No entanto, caberia questionar essa evolução a partir de uma perspectiva
moderna da Teoria da Argumentação, destacando que a concepção aristotélica de
argumentação era suficientemente ampla para considerar não apenas que o
argumentos são o meio por excelência de justificar nossas afirmações e crenças, mas
também que a argumentação é frequentemente usada para tentar persuadir os outros
conforme aquilo que afirmamos e acreditamos.
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Não pretendo fazer desta intuição uma tese sobre a interpretação adequada da
obra de Aristóteles sobre argumentação. Mas, ao menos, eu gostaria de mostrar que
faz sentido ler Aristóteles desta forma e que, além disso, esta leitura permite
compreender mais fecundamente as relações entre Lógica, Dialética e Retórica.
3. Platão e o estereótipo da oposição entre Dialética e Retórica
As primeiras reflexões teóricas sobre a argumentação constituiram, por sua vez,
uma primeira demarcação entre a Dialética e a Retórica. Como se sabe, o modo de
conceber as relações entre discurso e verdade articulou, nos tempos de Sócrates e
Platão, o debate ético-político e epistemológico entre sofistas e filósofos, o que pode
ser considerado como a origem do estudo normativo da argumentação.
Tradicionalmente, a oposição entre as propostas sofistas e as de Sócrates ou Platão foi
representada como a contraposição entre os defensores da Retórica e os defensores
da Dialética, respectivamente concebidas como disciplinas com um interesse
meramente instrumental na argumentação e no discurso, em face de uma disciplina
teórica que a argumentação e o discurso como o próprio método do conhecimento.
Em todo caso, essas eram as premissas logocêntricas da reflexão grega.
É um lugar comum opor sofistas a filósofos, dizendo que, em vez de um
compromisso com a verdade e o conhecimento, os sofistas tinham um compromisso
com seus clientes, a quem eles treinaram nas artes do discurso como forma de
prosperar em um contexto social e político que havia elevado a arte do discurso a meio
de interação pública por excelência e até mesmo a um espetáculo em si.
Contrariamente, a Sócrates, e especialmente a Platão, essa concepção de discurso
como espetáculo teria bastado para tornar os sofistas culpados da acusação geral de
preferir a simples opinião ao verdadeiro conhecimento. Essa caricaturização das
relações entre sofistas e filósofos seria a base da ulterior concepção pejorativa da
Retórica como arte da persuasão: para Platão, a Retórica seria um mero instrumento
nem mesmo uma arte, pois careceria de um objeto próprio para desenvolver a
duvidosa habilidade de confundir auditórios eficazmente, apresentando como
verdadeiro o que somente é opinável. Pelo menos, essa é a visão estereotipada das
suspeitas de Platão contra a Retórica.
Platão certamente opôs a confiabilidade da Dialética à maleabilidade da Retórica,
destacando a diferença entre a aquisição de conhecimento e a mera promoção de
crenças mais ou menos populares e corretas. Com efeito, esse é um dos principais
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temas desenvolvidos em diálogos como rgias e Fedro. Mas, para inferir disso uma
preferência da parte de Platão, deveríamos pressupor que ambas as disciplinas seriam
comparáveis em seus resultados, ao perseguir os mesmos objetivos. No entanto, tal
hipótese parece contradizer outro dos estereótipos sobre a filosofia platônica, a saber,
a ideia de que a Dialética era o método por excelência para alcançar o conhecimento,
enquanto a Retórica seria apenas um conjunto desarticulado de técnicas destinadas ao
treinamento das habilidades persuasivas: uma disciplina de tão curto alcance não
poderia representar por si uma ameaça ao conhecimento.
Por sua vez, autores como James Benjamin (1997) ou Charles Griswold (2004)
têm argumentado que Platão teria reconhecido explicitamente a natureza retórica de
toda comunicação, distinguindo entre boas e s práticas da arte de apresentar
discursos. Assim, à luz de textos como o Livro III da República, em que Platão parece
não se importar tanto com o que deve ser dito mas com a maneira que deve ser dito,
encontramos certa concessão: uma importante função para a boa Retórica dentro
de seu grande projeto político, que se baseava na promoção da educação (paideia)
adequada a cada grupo social. Assim, embora tivesse tratado de nos prevenir contra a
perversão da arte do discurso praticada pelos sofistas, Platão não estaria
simplesmente opondo a Retórica à Dialética, pois mesmo os grupos destinados a
receber o verdadeiro conhecimento teriam de avançar em sua educação, entre outras
coisas, graças às habilidades discursivas de seus mestres. Além disso, no Górgias, Platão
até chega a falar de uma verdadeira Retórica cujo objetivo não seria produzir o maior
prazer do auditório, mas sim produzir o que é o bem maior por meio de sua verdade
(PLATO, 451d-452d-e).
4. Lógica e Dialética na perspectiva da Retórica de Aristóteles
Longe da cautelosa avaliação da retórica que encontramos em Platão,
Aristóteles, como se sabe, dedicou um tratado à Retórica e, com isso, pode lhe garantir
o caráter de disciplina autônoma, o que Platão havia tentado evitar. Mas também é
verdade que, nas primeiras linhas da Retórica, ele insiste em que, apesar de considerá-
la uma arte, esta seria uma contraparte da Dialética, com a qual compartilharia a falta
de um conteúdo específico, a independência dos princípios das ciências, o destino da
consideração do provável, da opinião, do possível, a incessante remissão aos dois lados
de qualquer assunto. Para Aristóteles, mais do que ciências, Dialética e Retórica seriam
técnicas que podem ser aplicadas a qualquer conhecimento, o que é coerente com a
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ideia de que seu interesse pela argumentação remete a inquietações metodológicas
mais que ao desejo de elaborar uma ciência no sentido de um saber demonstrativo
semelhante à Lógica Formal contemporânea.
Segundo a leitura tradicional, mais que opor entre si a Dialética e a Retórica,
Aristóteles oporia ambas as disciplinas à Lógica enquanto ciência da demonstração,
sustentando que esta se refere à verdade, enquanto a Dialética e a Retórica versam
sobre o plausível. Entretanto, também es subjacente às suas reflexões sobre a
argumentação como prática a ideia de que, em geral, avaliar qualquer argumento é agir
por meio do mesmo tipo de faculdade, a saber, a faculdade de julgar se algo deve ou
deveria ser conveniente, dadas certas condições. Nessa perspectiva, à Lógica caberia
determinar a correção desses juízos enquanto inferências, ao passo que a Retórica
estaria preocupada em estudar a maneira pela qual podemos induzir tais juízos nos
outros, a fim de persuadi-los. Por sua vez, a Dialética teria como objetivo determinar a
aceitabilidade dos princípios e evidências dos quais partimos no momento de elaborar
tais juízos, pois, como instrumento para o conhecimento, sua função é a de ver quais
das nossas opiniões (endoxa) são capazes de resistir ao exame cuidadoso.
Desse modo, haveria, na opinião de Aristóteles, uma antítese entre os objetivos
persuasivos que motivam a Retórica e os propósitos científicos da Dialética e da Lógica
como instrumentos para a demonstração? O certo é que, no Capítulo I da Retórica,
Aristóteles começa criticando aqueles que, estudando a arte do bem dizer, somente se
ocupam, porém, daquilo que é mais acessório nos discursos, em vez de se
preocuparem com o argumento, que deveria ser o seu foco. Em seguida, assinala que
existem argumentos dialéticos e retóricos, sendo que a principal diferença entre estes
e os argumentos demonstrativos é que os primeiros apenas chegam a deduções
prováveis, e não necessárias. À luz dessas observações, parece que, ao contrário, o que
Aristóteles faz é mostrar que a Lógica (entendida como a teoria da inferência), a
Dialética e a Retórica estão igualmente preocupadas com as condições normativas da
argumentação. A complementaridade dessas disciplinas seria um reflexo da
compatibilidade que Aristóteles entre persuasão e justificação. E seria precisamente
a duplicidade do argumento como instrumento para justificar e para persuadir que o
tornaria um elemento chave tanto no momento de estabelecer e transmitir o
conhecimento no âmbito da ciência quanto no momento de nos conduzir
racionalmente no âmbito das decisões ético-políticas.
Assim, ao contrário de Platão, Aristóteles não iria apenas encontrar nenhuma
oposição entre persuadir e justificar, mas assumiria que se chega à persuasão ao
oferecer ao juízo dos outros que as coisas são desta ou daquela maneira. Nessa tarefa,
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a credibilidade do orador e as emoções do auditório certamente desempenham um
papel fundamental, mas também tem parte nisso a força do argumentos empregados.
O ethos do orador, o pathos do auditório e do logos do próprio discurso são igualmente
constitutivos do ato argumentativo, de modo que todos eles determinariam as
condições do bem dizer, não apenas no que se refere à sua capacidade de persuadir os
outros, mas também à sua capacidade de justificar, de mostrar que certas afirmações
são corretas.
Idealmente, em um processo de comunicação, trata-se de persuadir que algo é
verdadeiro. Mas, muitas vezes, nossas afirmações podem ser propostas como
plausíveis ou razoáveis. Para Aristóteles, essa é, de fato, nossa situação em grande
parte dos assuntos importantes. Entretanto, a racionalidade também deve ser
acessível nestes casos: as decisões corretas sobre em que acreditar e o que fazer são
levadas a cabo à luz de bons argumentos. A Retórica, como campo de estudo do
discurso enquanto mecanismo persuasivo, inclui o estudo dos argumentos que são
usados para persuadir uns aos outros sobre questões em que a prova e a
demonstrão são elusivas e a busca pela verdade tem de abrir caminho para a busca
da verossimilhança. Mas esta observação não possui as conotações negativas com as
quais a filosofia platônica permeia a ideia de opinião: no uso da razão, descartamos o
falso, de modo que a verdade se coloca como horizonte, porque, para Aristóteles, as
coisas verdadeiras e melhores são, por natureza, bem mais aptas à inferência e mais
persuasivas.
Desse modo, ainda que o objetivo da Retórica não seja o conhecimento, mas sim
a persuasão, Aristóteles assume como Platão em várias passagens que dizer a
verdade é inútil se não tivermos meios eficazes para persuadir os demais a seu respeito.
Portanto, não haveria conflito, mas correspondência entre conhecimento e Retórica,
como haveria entre a ciência de um médico e os conselhos que ele pode dar ao seu
paciente, como assinalava o próprio Platão. No entanto, em Aristóteles, encontramos
razões mais importantes para defender a legitimidade da Retórica. Em primeiro lugar,
sua visão de nossa capacidade de preservar a racionalidade, mesmo em campos em
que a demonstração não é possível: o conhecimento e a verdade muitas vezes
permanecem fora de nosso alcance, mas ainda podemos aspirar a formar crenças
corretas, conduzindo nossas opiniões de maneira adequada. Mas, mais
significativamente em Aristóteles, encontramos também a ideia de que justificar é
tornar evidente para os outros a verdade daquilo que afirmamos e, para alcançar esse
objetivo, a dimensão retórica da argumentação teria que fornecer elementos
normativos que devemos levar em conta.
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Assim, nossa tese é que nas reflexões de Aristóteles sobre a argumentação como
prática encontramos a ideia de que esta, enquanto mecanismo de justificação e
persuasão, inclui condições normativas lógicas, dialéticas e retóricas. Nessa
perspectiva, mais do que definir disciplinas, a obra aristotélica sobre argumentação
estaria tratando do fenômeno da comunicação argumentativa em suas três dimensões
fundamentais.
A seguir, tentarei ilustrar essa perspectiva, baseando-me em uma leitura um
tanto heterodoxa de alguns de seus textos clássicos e, mais concretamente, em uma
concepção geral do silogismo como mero argumento, e não como uma forma
particular deste.
5. Lógica formal versus silogística aristotélica
Nos Analíticos Anteriores (AA), Aristóteles caracteriza o silogismo como um
discurso no qual, quando certas suposições são feitas, alguma coisa distinta delas se
segue necessariamente devido à mera presença das suposições como tais (AA, I. 2,
24b18-20). Nesta obra, Aristóteles estaria desenvolvendo o estudo dos princípios que
regem o silogismo, ou seja, sua silogística analítica, como uma teoria formal da
inferência, analisando o tipo de relações de conseqüência que ocorrem entre algumas
classes de proposições.
Tradicionalmente, o silogismo tem sido entendido como um certo tipo de
raciocínio formalmente válido. Em particular, como um conjunto de proposições nas
quais, a partir de uma premissa menor (uma proposição que contém como sujeito o
termo que por sua vez é o sujeito da conclusão) e uma premissa maior (uma proposição
que contém como predicado o termo que por sua vez é o predicado na conclusão), tira-
se, necessariamente, uma certa conclusão. No entanto, como veremos, esta
concepção tradicional do silogismo enfrentaria o fato de que Aristóteles também
define o entimema como um silogismo, neste caso, retórico, e não como um silogismo
incompleto, tal como a maioria dos intérpretes posteriores havia concordado, partindo
de uma concepção claramente dedutivista. Ademais, esse dedutivismo formal entraria
em conflito com a importância que Aristóteles deu à condição de que as premissas
sejam relevantes para a conclusão. Nossa proposta será, ao contrário, conceber o
silogismo como sinônimo de argumento ou processo inferencial, em geral, e não como
um tipo particular deste.
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De acordo com Aristóteles, o silogismo procede de premissas universais (AA, I. 27
43b11-14). Conforme a concepção dedutivista tradicional, essas premissas universais
foram identificadas como as premissas do silogismo. No entanto, tal como Frede (1987,
p. 117) tem argumentado, isso significaria descartar como silogismos exemplos
aristotélicos típicos na forma Darii (premissa universal afirmativa, premissa particular
afirmativa, conclusão particular afirmativa). Talvez então caberia pensar que tais
premissas universais pelas quais procede o silogismo são de fato os princípios de
inferência que, em sua aplicabilidade geral, conferem justificação a cada proposição
deduzida a partir deles. Desse modo, poder-se-ia dizer que uma das causas para que
um raciocínio não fosse um verdadeiro silogismo, mas apenas um silogismo aparente,
seria que não existe um princípio que garanta que das premissas se tirem a
efetivamente a conclusão.
Nos Analíticos Posteriores, Aristóteles afirma que os princípios da uma
demonstração devem ser verdadeiros, primários, mais bem conhecidos em si mesmos,
anteriores à conclusão e à causa da conclusão. Mas, se notarmos que para Aristóteles
existem quatro tipos de causas (material, formal, eficiente e final), teríamos de deduzir
que existiriam quatro tipos de princípios do silogismo conforme o tipo de causa
estabelecida entre o expresso nas premissas e aquilo que é dito na conclusão.
Portanto, sustentar que a validade do silogismo depende da existência de um princípio
que garanta a inferência desde as premissas até a conclusão implicaria em admitir que
a normatividade silogística não seria exclusivamente de natureza formal, mas que
também poderia ser material (relações de relevância), eficiente (relações causais) ou
final (raciocínios práticos). Como veremos, seguindo esta interpretação, poderíamos
dar sentido à ideia de que os entimemas são silogismos cujos princípios de inferência
não seriam formais, mas materiais, teleológicos ou causais, em nosso sentido
moderno de causa. Da mesma forma, poderíamos definir a noção aristotélica de
silogismo perfeito como aquele cujo princípio de inferência é um princípio formal.
Tanto no caso dos silogismos perfeitos como nos dos silogismos imperfeitos, os
princípios iriam apenas garantir a validade do silogismo, não a verdade da conclusão:
se aplicado a premissas falsas, eles podem servir para deduzir conclusões falsas. Como
se sabe, Aristóteles concebe a dedução científica como um silogismo com premissas
necessárias, que seriam os primeiros princípios de sua ciência (AA, I.1 24a29).
Contudo, de alguma forma, sua própria teoria da inferência poderia, por sua vez,
se considerar uma ciência cujos primeiros princípios são todos aqueles que Aristóteles
resume no capítulo 25 dos Analíticos Anteriores. Então, proposições como a de que
toda demonstração será feita por meio de três termos e não mais, ou que todo
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silogismo procede de duas premissas e não mais, ou que adicionar um termo aumenta
o número de conclusões possíveis por um número menor que o número original de
termos, seriam alguns desses primeiros princípios da silogística, pois tais princípios não
apenas garantiriam as inferências silogísticas em geral, mas também seriam as
premissas necessárias do próprio raciocínio sobre o silogismo, uma vez caracterizados
os conceitos de termo, premissa, conclusão etc (AA, I.4 25b 26-27). Desse modo, a
silogística aristotélica se apresentaria como uma ciência do raciocínio em geral,
enquanto a silogística analítica, em particular, viria a estudar as relações formais que
ocorrem entre certos tipos de proposições.
A silogística lidaria, então, com os argumentos em geral, com sua capacidade de
mostrar que certas proposições decorrem de outras. Mas, entendida desta forma, ela
não estaria identificada com a Lógica Formal, tal como a conhecemos hoje: com efeito,
haveria princípios formais que relacionariam algumas proposições a outras, mas
também haveria princípios que relacionariam material, causal ou teleologicamente
uma premissa à sua conclusão. Os princípios formais seriam necessariamente
verdadeiros, mas a própria necessidade não seria uma condição necessária para a
validade do silogismo: um bom argumento seria um argumento que segue um
princípio, seja uma verdade necessária ou o. O fato de que, para boa parte das
questões importantes, carecemos de princípios formais, ou mesmo necessários, isto é,
de não termos demonstrações para tais questões, não deveria nos levar a pensar
que a maneira de resolvê-las não pode ser oferecer bons argumentos. Tal intuição
estaria na base do interesse de Aristóteles na argumentação em geral como resposta
à demanda de encontrar garantias para nossos juízos sobre o que não admite
demonstração.
6. O entimema como um silogismo retórico
Segundo Aristóteles, em sua Retórica (Ret.), os entimemas são silogismos
retóricos e os silogismos são o corpo do argumento (Ret., L.1 1354a).
Tradicionalmente, a definição de entimema como silogismo retórico tem sido fonte de
dificuldades, principalmente porque não parece evidente que exista uma tradução
para a forma silogística, tradicionalmente concebida isto é, como um argumento
composto de premissa maior, premissa menor e conclusão com base nos exemplos
de entimema que Aristóteles oferece. Por isso, tem se sugerido que os entimemas são
silogismos incompletos. Tal concepção estaria apoiada em duas razões: por um lado,
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Aristóteles diz explicitamente que os entimemas têm menos premissas do que as
demonstrações científicas. Mas, de fato, não é o evidente que esta fosse para
Aristóteles uma condição necessária dos entimemas (ver, por exemplo, Braet, 1999, p.
107). Pode ser que o fato de os entimemas serem silogismos retóricos isto é,
argumentos usados para persuadir um auditório implique que eles não devam ser
muito complexos, se quiserem ser compreendidos e suscitar aceitação.
Se adotamos a concepção tradicional de silogismo, certamente fica difícil
reescrever em forma silogística os entimemas que Aristóteles oferece como exemplo.
No entanto, qualquer argumento pode se tornar um argumento formalmente válido se
lhe adicionarmos uma condicional redundante cujo antecedente é a premissa ou
conjunto de premissas e cujo consequente é a conclusão. Eventualmente, esta
condicional poderia ser traduzida como uma afirmação universal, de modo que,
efetivamente, pareceria possível entender o entimema como um silogismo incompleto
que careceria da premissa maior. Assim, um entimema como Ela deu a luz, que tem
leite nos seios deve ser interpretado como:
Premissa maior: todas as mulheres que têm leite nos seios deram a luz
Premissa menor: esta mulher tem leite nos seios
Conclusão: esta mulher deu a luz
Mas o certo é que o princípio que torna válido um silogismo como este é o
princípio segundo o qual, se uma propriedade Q se aplica a todos os elementos aos
quais se aplica uma propriedade P, logo um elemento que tem a propriedade P tem a
propriedade Q. Este é um princípio formal, aplicável a qualquer elemento e
propriedades P e Q, e como tal, é necessário e a priori. No entanto, o princípio que
justificaria o entimema original seria algo como as mulheres que têm leite nos seios
deram a luz. Este não é um princípio formal, nem necessário, nem a priori , mas uma
generalização empírica. Por essa razão, a dedução que garante o primeiro princípio
terá propriedades diferentes daquelas que garantem o segundo: na realidade, quando
tentamos adaptar um entimema à forma silogística padrão, o que fazemos é modificar
seu verdadeiro sentido. Além disso, neste caso, ao tentar conferir uma estrutura
formalmente válida ao nosso entimema original, o que fizemos foi transformar um
argumento suficientemente sólido em um mau argumento, pois uma de suas
premissas (a premissa maior) acaba sendo simplesmente falsa: nem todas as mulheres
que têm leite nos seios deram a luz.
Como mencionamos na seção anterior, esta é uma das razões para pensar que o
conceito de silogismo excede o de dedução formal e que, portanto, os silogismos não
deveriam ser caracterizados como conjuntos de premissa maior, premissa menor e
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conclusão. Ao menos, esta não parece ser a estrutura profunda do entimema, que é
todavia definido por Aristóteles como um silogismo retórico.
O que Aristóteles quis dizer então com essa definição? Se pensarmos que a Lógica
é o campo da decisão sobre a validade dos argumentos, tanto formal quanto material,
teleológico ou causal, poderíamos igualmente conceber que a retórica é o campo da
indução de crenças, seja por meio de argumentos ou de outros mecanismos
persuasivos. O entimema seria a forma do argumento quando não é concebido como
um meio de determinar a correção de uma conclusão, mas como um meio de induzir
crenças. Nesse sentido, ao passo que a função do princípio da inferência na justificação
de uma conclusão é garantir a dedução desta, sua função na indução de crenças seria
motivar nossos juízos. Como uma motivação, não seria uma parte explícita do
argumento por meio do qual trataríamos de induzir a crença na conclusão. Por isso, a
aparência de incompletos dos entimemas em relação ao modelo silogístico
tradicional enquanto representação do argumento.
O equívoco de considerar a forma silogística padrão como a estrutura profunda
do entimema baseia-se, a meu ver, na crença de que mostrar que uma afirmação
decorre de certas premissas aceitas é suficiente para produzir a persuasão de nosso
auditório. Mas essa crença é errônea: persuadir alguém de uma afirmação é fazê-lo
julgar que tal afirmação é correta. Ao induzir crenças por meio de argumentos,
tentamos produzir juízos indiretos, juízos que giram em torno de juízos prévios sobre
certas evidências que nos foram apresentadas. Esses juízos prévios nos fornecem
razões para inferir, desde que nosso comportamento seja motivado por um princípio
de inferência que, se correto, apoiará as conclusões a que chegamos a partir de tais
juízos. Sem essa motivação inferencial, o simples fato de julgar que p após julgar que q
não seria considerado como um processo de raciocínio, e sim, quando muito, como um
caso de associação de ideias.
Conclusão
Nas últimas seções, tentei tornar plausível a ideia de que a Lógica aristotélica,
entendida como o estudo normativo do silogismo em geral, não deve ser
simplesmente assimilada à Lógica Formal, tal como a conhecemos hoje, pois, além de
incluir condicionantes, como a pertinência, que são estranhos ao conceito de validade
desta última, aquela contemplaria a possibilidade de admitir como válidos os
silogismos, como os entimemas, cujos princípios de inferência não são formais.
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Como se sabe, a caracterização aristotélica da Dialética faz desta mais um
método de investigação do que um modelo de comprovação: na investigação dialética,
examinamos certas proposições para estabelecer a sua coerência em relação a outras
proposições. É um procedimento crítico; de fato, Aristóteles sustenta que o princípio
subjacente à sua prática é o da não contradição. No entanto, o máximo que se pode
fazer é mostrar contradições, pois sua capacidade de fazer afirmações é limitada: pode
nos ajudar a descartar opiniões problemáticas, mas não a demonstrar o contrário. A
Dialética seria um complemento da demonstração, ao permitir a avaliação dos
primeiros princípios de toda ciência (Tóp. 101a 27-28; 101a 34). Nesse sentido, pode-se
falar de uma complementaridade entre Lógica e Dialética como disciplinas associadas
pelas condições da argumentação enquanto meio para a justificação. No entanto, esse
conjunto parece deixar de fora a Retórica, uma vez que seu interesse pela
argumentação não se refere à justificação, mas à persuasão.
Apesar disso, também tentei oferecer uma leitura que dissociasse o interesse
aristotélico pela retórica do âmbito da deliberação ético-política, insistindo em sua
complementaridade no que diz respeito aos métodos de justificação e de prova, uma
vez que é possível determinar a racionalidade do discurso, mesmo em áreas em que a
demonstração científica é elusiva e, mais importante ainda, porque a justificação
requer métodos para mostrar, para persuadir, para tornar evidente o que se está
tentando estabelecer.
Assim, não apenas a legitimidade da persuasão, mas também a habilidade de
justificar falariam a favor de uma integração das dimensões lógica, dialética e retórica
do discurso. No que tange à persuasão, embora sua dimensão retórica manifeste a
capacidade comunicativa de induzir crenças, o que pode, indubitavelmente, ser
alcançado não apenas pelas boas razões, mas também pelas más razões, o certo é que
as condicionantes retórica, dialética egica da comunicação devem ser avaliadas, para
que se possa determinar a racionalidade do discurso e de nossas reações perante ele,
isto caso a nossa aquiescência às palavras do orador conte ou não como um caso de
persuasão racional. Da mesma forma, quanto à justificação, a mera correção de nossos
argumentos não seria suficiente para produzir conhecimento se não forem conduzidos
de maneira adequada e, com isso, servirem para revelar tal conhecimento, isto é, para
torná-lo evidente aos nossos semelhantes.
À nossa tese da complementaridade entre Retórica, Dialética e Lógica em
Aristóteles opor-se-iam autores como Christian Kock (2009), que defendeu a existência
de um tipo de argumentação essencialmente retórica, cuja principal característica seria
o tipo de temas de que trata ou seja, a deliberação sobre decisões práticas,
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, n.21, v.1, abr.2021.
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principalmente de natureza política. Kock apoia-se no fato de que Aristóteles parecia
restringir o escopo da Retórica ao debate sobre assuntos públicos, que são aqueles em
que as decisões sobre no que acreditar ou o que fazer admitem mais de duas opções.
Desse modo, caberia pensar que o definitório de cada uma dessas disciplinas é o seu
campo de competência: enquanto a Retórica pareceria referir-se ao espaço da razão
prática, a Lógica e a Dialética seriam, respectivamente, os métodos próprios da
demonstração científica e a investigação filosófica.
De minha parte, considero que as caracterizações aristotélicas destes disciplinas
não endossam uma diferenciação temática, mas de método e de foco. Cada uma delas
cumpriria funções essenciais tanto no campo da razão prática como na razão teórica.
Porém, como manifestado anteriormente, meu propósito não foi oferecer uma tese
sobre o modo adequado de interpretar Aristóteles, mas sim uma leitura de sua obra
que pudesse apontar o caminho para uma integração da Lógica, Dialética e Retórica na
Teoria da Argumentação.
Nesta perspectiva que propusemos, a Retórica trataria de estudar a maneira
como o discurso se torna um meio para uma decisão razoável. Por esse motivo, ela se
afiguraria especialmente adequada na esfera prática, na qual prevalece a necessidade
de agir racionalmente, ainda que a verdade e o conhecimento sejam fugidios. O que a
Retórica tornaria possível na esfera prática seria o estudo dos discursos como meio de
persuadir seres racionais, a possibilidade de articular essa esfera como âmbito do
razoável. De acordo com esta leitura, Aristóteles descartaria a ideia de um conflito
entre a Retórica como arte da persuasão, a Dialética como método de investigação e a
Lógica como método de prova.
A ideia de que Lógica, Dialética e Retórica são disciplinas complementares inspira
o trabalho de muitos teóricos da argumentação na atualidade, desde o interesse da
Lógica Informal Canandense pelo componente dialético dos argumentos ao estudo
das condições retóricas dos procedimentos argumentativos da Pragmadialética. Mas
o fato é que esta visão integradora é bem recente. As obras de Perelman, Toulmin e
Hamblin, que hoje são consideradas como a origem da Teoria da Argumentação,
podem ser vista, respectivamente, como um questionamento da concepção
meramente instrumental da Retórica como arte de persuasão, da concepção da Lógica
como mera Lógica Formal ou teoria da inferência formalmente válida e da suposição
da impossibilidade de desenvolver um tratamento sistemático das trocas dialéticas e,
com isso, das falácias argumentativas. Esses autores destacaram o interesse da
argumentação, a necessidade de dedicar esforços ao seu estudo e a escassez e
fragilidade dos tratamentos anteriores. Suas propostas foram centrais para o
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, n.21, v.1, abr.2021.
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desenvolvimento ulterior da Teoria da Argumentação e ainda são profícuas em muitos
aspectos. No entanto, na medida em que cada uma delas representa, respectivamente,
as origens da perspectiva retórica, lógica e dialética, de alguma forma, elas abundariam
na visão dissociada do estudo normativo da argumentação.
Como tentei mostrar, a ideia de considerar a Lógica, a Dialética e a Retórica não
como três perspectivas, mas como três dimensões constituintes da argumentação é
algo que, de uma forma ou de outra, poderia ter sido encontrado na obra aristotélica,
se a preeminência da Lógica Formal não tivesse dificultado o desenvolvimento de uma
teoria normativa de argumentação em linguagem natural. Avançar por este caminho
significa assumir que o desenvolvimento de uma teoria normativa adequada requer
considerar a prática da argumentação como um composto de propriedades lógicas,
dialéticas e retóricas. Na minha opinião, esta seria a leitura mais proveitosa que
poderíamos extrair das obras aristotélicas em relação à Teoria da Argumentação: não
é um conjunto de obras incorretas, mas sim um projeto epistêmico e cognitivo cujo
núcleo constituiria o fenômeno cotidiano e ubíquo da argumentação.
Agradecimentos
Apresentei algumas ideias deste trabalho no Colóquio de Pesquisa do
Departamento de Comunicação, Teoria da Argumentação e Retórica da Universidade
de Amsterdã, a convite do Professor Frans van Eemeren. Agradeço a seus membros
pelos comentários e sugestões interessantes que fizeram. Além disso, uma primeira
versão deste artigo beneficiou-se muito das valiosas críticas e devolutivas dos
Professores Javier Rodríguez Alcázar e Luis Vega Reñón. Este trabalho foi financiado
pelo Ministério da Educação e Ciência do Governo da Espanha, por meio do programa
JAE-doc do CSIC para a contratação de pesquisadores e do financiamento do projeto
de pesquisa FFI2008-00085.
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Article
Full-text available
Leading contemporary argumentation theories such as those of Ralph Johnson, van Eemeren and Houtlosser, and Tindale, in their attempt to address rhetoric, tend to define rhetorical argumentation with reference to (a) the rhetorical arguer’s goal (to persuade effectively), and (b) the means he employs to do so. However, a central strand in the rhetorical tradition itself, led by Aristotle, and arguably the dominant view, sees rhetorical argumentation as defined with reference to the domain of issues discussed. On that view, the domain of rhetorical argumentation is centered on choice of action in the civic sphere, and the distinctive nature of issues in this domain is considered crucial. Hence, argumentation theories such as those discussed, insofar as they do not see rhetoric as defined by its distinctive domain, apply an understanding of rhetoric that is historically inadequate. It is further suggested that theories adopting this understanding of rhetoric risk ignoring important distinctive features of argumentation about action.
Article
Which properties are characteristic of the enthymeme in Aristotle's Rhetoric? There is no consensus on this point. The present discussion centres on three properties. 1. Is there always an implicit premise? (Answer: Above all, a pragmatic level and a logical level must be distinguished.) 2. Do the premises consist by definition of probabilities and signs? (Answer: No.). 3. Are all enthymemes reducible to a syllogistic form? (Answer: The literature pertaining to this question is dominated by a false dilemma: an enthymeme does not have either a topical or a syllogistic structure). In general, Aristotle's approach to the enthymeme in the Rhetoric appears to shift from argumentation theory to logic.
Article
A central theme throughout the impressive series of philosophical books and articles Stephen Toulmin has published since 1948 is the way in which assertions and opinions concerning all sorts of topics, brought up in everyday life or in academic research, can be rationally justified. Is there one universal system of norms, by which all sorts of arguments in all sorts of fields must be judged, or must each sort of argument be judged according to its own norms? In The Uses of Argument (1958) Toulmin sets out his views on these questions for the first time. In spite of initial criticisms from logicians and fellow philosophers, The Uses of Argument has been an enduring source of inspiration and discussion to students of argumentation from all kinds of disciplinary background for more than forty years.
Traducción del griego, estudio preliminar, preámbulos y notas por Francisco de P. Samaranch
  • Aristóteles
  • Obras
ARISTÓTELES. Obras. Traducción del griego, estudio preliminar, preámbulos y notas por Francisco de P. Samaranch. Aguilar: Madrid, 1964 (Colección Grandes culturas)
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