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A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
A VALORAÇÃO DA COMPETÊNCIA
NUM MUNDO APROPRIADO
Luiz Antônio Bogo Chies*
RESUMO: Neste texto, transitando pelos processos e movimentos que viabilizaram a
constituição e consolidação da Sociedade Moderna, busca-se verificar a peculiar valoração
da noção de competência na modernidade, numa perspectiva de desvelamento crítico e
questionador (indicativo) dos efeitos, inclusive perversos, dessa valoração no favorecimento
de dinâmicas sociais concretas dentro do contexto social vigente.
PALAVRAS-CHAVE: competência, legitimidade, modernidade, sociedade moderna
SUMÁRIO: Introdução – 1. Um mundo apropriado – 2. Transitando pelos processos
iniciais de apropriação do mundo – 3. Uma nova ética do trabalho – 4. Novas tecnologias:
os emergentes e suas necessidades – 4.1. A ruptura entre o tempo e o espaço – 4.2. As
necessidades dos emergentes: relações de trabalho e poder político – 4.3. O Jurídico entra
em pauta – 5. A sociedade dos indivíduos – 6. O mundo apropriado na metáfora do jardim
– Considerações finais: ou, a valoração da competência, a competitividade “legítima”
como corolário da desigualdade concreta – Bibliografia.
Introdução
Pretendemos neste texto lançar algumas reflexões acerca da gêne-
se e consolidação da noção de competência enquanto um valor social
assumido pela Sociedade Moderna em sua própria viabilização e carac-
terização, bem como das conseqüências de tal valoração nas dinâmicas
desenvolvidas e típicas nesse modelo da experiência social humana.
ARTIGO
*Professor Adjunto da Universidade Católica de Pelotas (Escolas de Serviço Social e
Direito), responsável pela disciplina de Sociologia Jurídica. Doutor em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires –
Argentina).
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Tal tópico, a noção de competência e a influência que esta possui
nas dinâmicas sociais concretas, é por nós considerado pertinente sobre-
tudo a partir das orientações que temos assumido em nossos estudos e
reflexões.
Nesse sentido, sob um primeiro ponto de enfoque, temos partido
do pressuposto de que qualquer realidade social (seja em sua dimensão
institucional, estrutural ou mesmo normativa, ainda enquanto um coman-
do ou ordem) necessita obter um nível ao menos mínimo de estabilidade
perante o corpo social para que sua existência e efeitos sejam considera-
dos legítimos, entendendo-se como um nível ao menos mínimo de
estabilidade aquele que permite a existência social e concreta de tal
realidade sem que para isso tenha que ser utilizado com freqüência, e
portanto sendo excepcional, o recurso (ou os recursos) de coerção.
Esta noção nos remete de imediato à questão da legitimidade,
questão complexa em suas próprias dimensões1 vez que podemos falar
num processo de legitimação e na legitimidade enquanto uma realidade,
um produto. Procuramos, entretanto, sintetizar inicialmente a noção de
1Nesse sentido pertinente consignar a exposição de Sérgio Cademartori, (in: Estado
de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1999.) quando assim se manifesta, referenciado-se também em Silvana
Castignone (“Legittimazione e Potere. Elementi per una Riflessione Analitica” in:
Sociologia del Diritto, n. XI/1984/1. Milano: FAE, 1984.):
“Dispomos de duas palavras distintas, dois termos-chave com os quais indicamos
os dois diversos níveis ou aspectos do fenômeno da justificação e aceitação do poder:
os termos legitimidade e legitimação. Legitimidade é o termo mais carregado de
significado valorativo: quotidianamente, dizer que um poder é legítimo equivale a
assegurar que é justo, que é merecedor de aceitação, isto é, significa atribuir-lhe uma
valoração positiva.
De outra parte, dizer que o poder é legitimado, isto é, usar a palavra legitimação,
significa dizer que de fato suscita consenso. Podemos, conseqüentemente, distinguir
entre legitimação-atividade e legitimação-produto: a primeira indica o processo
através do qual o poder busca reconhecimento, consenso, adesão: os meios empre-
gados para isso podem ser múltiplos; desde a satisfação das necessidades fundamen-
tais da população ou de grupos isolados até a propaganda, ou ao aspecto de
legalidade com que se apresenta (como se verá em Max Weber), a apelação a valores
transcendentes etc. Com o termo legitimação-produto, podemos, por seu turno,
indicar a legitimação obtida, isto é, a obtenção do consenso. Trata-se, de qualquer
forma, de um conceito descritivo.” (CADEMARTORI, 1999: 93)
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legitimidade enquanto o status2ou o atributo concreto de uma realidade
social que lhe garante, pois, sua existência e vigência insertas numa
estrutura social num grau ao menos mínimo de estabilidade.
E, a partir de tal síntese da noção de legitimidade temos assumido
a orientação de que a expectativa e perspectiva concretas de verificação
da legitimidade (em suas várias dimensões: atividade, processo, produto)
se dá somente através de uma análise e reconhecimento de compatibili-
dade entre os valores que, de forma mediata ou imediata, decorrem ou se
vinculam à realidade social que está sob exame com os valores sociais de
fundamentação da estrutura societária na qual tal realidade se insere, ou
se pretende inserir de forma minimamente estável.
Com efeito, ao aceitarmos que cada estrutura societária se funda e
se fundamenta sob uma base valorativa e principiológica (cujos valores,
princípios e noções que a compõe denominamos de paradigma funda-
mental legitimador), é em relação a esta base valorativa e principiológica
que a verificação de compatibilidade valorativa, da qual poderá exsurgir
a legitimidade, deverá ser procedida.
Já tivemos oportunidade de manifestar3que localizamos nos valo-
res liberdade e igualdade (na sua feição e conteúdo racional-formal, e
portanto legal) e nos princípios e noções de contratualidade (o contrato
como mediador das relações sociais) e apropriação (possibilidade de
propriedade privada) o conteúdo básico do paradigma fundamental
legitimador da Sociedade Moderna. Das relações e interpretações possí-
veis entre os valores e princípios (noções) básicos do paradigma funda-
2Empregamos aqui, como também em outros momentos de nossos estudos, o termo
“status” não com um rigor de seu significado já tradicional em Sociologia enquanto
designador da “posição que um indivíduo ocupa num grupo, ou que um grupo ocupa
numa sociedade (entendida como grupo de grupos)”(BOUBON & BOURRICAUD,
1993: 543), mas sim numa mescla desse seu significado mais tradicional com seus
outros conteúdos sociológicos, inclusive apontados pelos autores acima referidos,
que nos conduzem a uma idéia de prestígio social.
3Os tópicos aqui apresentados já foram por nós trabalhados sobretudo em nossa estudo
sobre a privatização penitenciária e o trabalho do preso. Privatização Penitenciária
e Trabalho do Preso, Pelotas: Educat, 2000.
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mental legitimador decorrerão os outros elementos valorativos e
principiológicos de fundamentação da estrutura societária, os quais, em
ordens secundárias e decorrentes de valoração também, em nosso enten-
dimento, terão influência na expectativa e perspectiva de legitimidade
das realidades sociais concretas e no favorecimento das dinâmicas
sociais verificadas nos modelos societárias em espécie.
É, pois, nesse sentido que percebemos, sob este primeiro ponto de
enfoque, a relevância do estudo acerca da competência enquanto um
valor social assumido pela Sociedade Moderna (e típico e característico
dessa), vez que o localizamos – aqui preliminarmente, e o que no
desenvolver dessas reflexões pretendemos deixar mais claro – como um
dos mais relevantes valores decorrentes da relação entre os elementos
básicos do paradigma fundamental legitimador desse modelo societário
na consecução da “missão” que a Sociedade Moderna se auto-impôs.
Sob um segundo ponto de enfoque, que não se apresenta deslocado
do primeiro eis que complementares, também entendemos ser pertinente
o enfrentamento crítico acerca da noção e valoração da competência vez
que essa (noção valorada na e pela Sociedade Moderna) possui, em nossa
compreensão, íntimo vínculo de favorecimento às dinâmicas sociais de
índole competitiva.
Nesse sentido, não se olvidando que cooperação e competição são
processos sociais básicos de interação, bem como se admitindo a valia de
ambos num sentido de reconhecimento da inerência social de coexistên-
cia dos mesmos, temos também adotado como postulado de nossas
reflexões um similar reconhecimento de que a preponderância de dinâ-
micas sociais de índole cooperativa ou competitiva, com as conseqüên-
cias de solidariedade ou individualismo que se podem constituir a partir
daquelas, possuem íntima relação com a base valorativa e principiológica
de fundamentação da estrutura social, na medida em que de tal base
decorre a legitimação e legitimidade não só das estruturas, instituições e
normas sociais, como também das próprias modalidades (formais ou
informais) e conteúdos das dinâmicas sociais em si.
Com efeito, a partir desse segundo ponto de enfoque, e do qual
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decorre necessariamente um terceiro ainda com os anteriores conectado,
estamos de imediato a reconhecer (e porque não imputar) uma caracterís-
tica de preponderância competitiva às dinâmicas sociais típicas da
Sociedade Moderna. Tal preponderância é por nós interpretada como um
dos efeitos vislumbráveis da admissão e interpretação conferidos pela
Sociedade Moderna à noção da competência como um valor e, portanto,
do conteúdo (inclusive e sobretudo instrumental) da valoração da com-
petência.
Assim, como terceiro ponto de enfoque exsurge a questão do
indivíduo, seja numa dimensão de valorização do indivíduo e de seus
direitos e garantias enquanto membro de uma coletividade (dimensão
esta tão valiosa na constituição da Sociedade Moderna e do chamado
Estado Democrático de Direito), seja, entretanto – e aqui se concentra a
dimensão problemática, – na constituição do individualismo enquanto
uma prática social em oposição à solidariedade, ou mesmo na imputação
de responsabilidades meramente individuais aos membros da sociedade
no que tange à “conquista” e manutenção de seu status (posição) dentro
da estrutura social.
Estes três pontos de enfoque aqui sumariamente apresentados não
restam por esgotar a relevância do enfrentamento crítico da noção da
competência enquanto um valor social inserido, típico, característico e
necessário à Sociedade Moderna. Entendemos tais pontos de enfoque,
entretanto, como pontos básicos de partida para que a reflexão proposta
e procedida possa então ser adequada às especificidades de temáticas
mais delimitadas, a partir das quais os pontos de contato, influência e
relação poderão ser de melhor forma explorados.
Mas, para que possamos adequadamente enfrentar o objeto de
estudo proposto parece-nos ser o caminho mais pertinente aquele que nos
conduza numa análise sobretudo de reflexão histórica e social dos
processos, circunstâncias e elementos de gênese, constituição e consoli-
dação da noção de competência nos termos e conteúdos em que tal se
apresenta na Sociedade Moderna, o que implica, portanto, refletir-se
sobre a própria gênese e constituição desse modelo societário, em suas
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“missões” e “necessidades”. É o que pretendemos fazer a seguir, mas não
numa obediência necessariamente linear da cronologia histórica dos
fatos e acontecimentos, mas sim na exposição d’uma coletânea de
fragmentos dessa história de transição do pré-moderno ao moderno (e
quem sabe ao pós-moderno), fragmentos esses que nos viabilizem, quiçá,
em nossa opinião, dentro da complexidade dos fenômenos sociais abar-
car uma percepção mais clara e crítica de nosso objeto imediato de estudo
seja em sua substancialidade moderna, seja em seus efeitos diretos e
indiretos.
1. Um mundo apropriado
Ao propormos a expressão “um mundo apropriado” como subtítu-
lo deste item de nossas reflexões estamos, de imediato, querendo apro-
veitar uma ambigüidade semântica que o termo “apropriado” nos permite
e que nos parece de muita pertinência na orientação que estamos a
assumir. Com efeito, tal ambigüidade nos permite falar tanto de um
mundo que é considerado como conveniente, adequado, num sentido
valorado enquanto “melhor” ou que foi adaptado, conformado e acomo-
dado, como nos permite falar de um mundo que foi tomado para si por
alguém (aqui em nosso caso por uma espécie, a humana).
Nossas reflexões devem adotar como ponto de partida uma funda-
mental consideração a respeito desse segundo sentido da ambigüidade
lançada, ou seja: um mundo que foi apropriado, tomado por alguém (por
nós), como algo que lhe (nos) pertence, como algo que é uma propriedade
que lhe (nos) cabe.
Para tal reflexão podemos assumir como premissa uma fundamen-
tal oposição entre o físico e o metafísico, entre o racional e o teológico,
na constituição da Sociedade Moderna. Tal premissa, entretanto, para ser
apreendida em seu mais adequado sentido não deve significar já num
primeiro momento a imediata e absoluta exclusão de Deus do mundo ou
de seus horizontes (num sentido análogo ao da expulsão do homem do
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paraíso na narrativa do Gênesis), mas sim um gradual afastamento de
Deus, no decorrer do processo de secularização, da tarefa de organização
e gestão direta da vida social humana no mundo, o que não deixou de
conduzir, e tipificar como substancial na transição da sociedade pré-
moderna para a moderna, a uma ruptura que resultou na expropriação do
mundo do comando divino e conseqüente apropriação deste mesmo
mundo, e de seu comando, pelo homem.
Uma série de fatores, processos e movimentos (uma seqüência de
“revoluções”) científicos, tecnológicos e, sobretudo, de base filosófica e
teórico-política se fundiram no decorrer do período da transição à
Sociedade Moderna até que a ruptura, que então se poderá considerar
total, entre a base de fundamentação teológica da estrutura social e a base
de fundamentação racional humana da estrutura – em seus novos moldes
– se produzisse e se afirmasse obtendo um grau de estabilidade que
permitisse a admissão de sua legitimidade.
O mundo moderno se constituiu, pois, através de um humanismo
que, subsidiado pelas revoluções e experiências vivenciadas nos séculos
da transição, no dizer de John Carroll, aqui referido por Zygmunt Bauman
(1998b: 193) “tentou substituir Deus pelo homem, colocar o homem no
centro do universo, divinizá-lo. Sua ambição era instituir a ordem
humana na terra (...) – uma ordem inteiramente humana”.
Aqui o outro sentido da ambigüidade que o termo “apropriado” nos
oferta se une com o acima referido, ou seja, o sentido do estabelecimento
de uma ordem social formatada pelo homem para o seu ambiente concreto
de vida, uma ordem que, por não ser derivada da sabedoria e vontade
divina – vez que esta estava por ser gradualmente afastada desse desígnio
–, havia de ser uma ordem racionalmente buscada e “trabalhada”, do que
resulta de imediato uma primeira percepção do valor da competência,
pois nesse movimento de apropriação do mundo pelo homem para nele
estabelecer uma ordem apropriada a adequação dessa passa a ser da esfera
de competência humana – a ele compete essa tarefa e a mesma será bem
ou mal sucedida na medida da competência humana para tal.
E mesmo que se admita que os processos de gradual apropriação
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do mundo pela espécie humana, numa busca também incessante pela
“ordem” fazem parte de toda a trajetória da existência do homem, vez que
a própria “revolução social neolítica”, com a sedentarização da espécie
e a constituição de práticas de cultivo de plantas em suplante à vida
nômade e à mera coleta das ofertas da natureza, não pode deixar de ser
considerada como uma primitiva forma de apropriação do mundo e
geração de uma ordem que não a propriamente natural, nenhum outro
período de transição e ruptura de modelos de estruturação societária foi
tão contundente em fortalecer a dimensão humana da apropriação do
mundo e atribuir à esfera de competência humana a gestão desse quanto
à transição para a Sociedade Moderna.
Por que tal contundência?
Numa resposta mais direta (e talvez até simplista) porque, como já
referimos, uma série de fatores, processos e movimentos, uma seqüência
de revoluções, se fundem no decorrer do período da transição à Sociedade
Moderna. Mas tal resposta será incompleta se não nos servir de indicativo
para a compreensão de que esta fusão e confluência de fatores, processos,
movimentos e revoluções em especial desvelou à consciência humana a
ordem – como algo em oposição ao caos (à desordem) – e essa como uma
missão, uma tarefa que a racionalidade humana se deve auto-impor no
momento em que, face sua apropriação do mundo e conseqüente afasta-
mento de Deus, passa a experimentar a vida num mundo que não está mais
“ordenado” por uma fonte supra-racional da qual não se cogitaria a
permissibilidade ao caos, ao acaso, ao fortuito.
Zygmunt Bauman, com sua peculiar clareza, assim sintetiza:
A ordem é o contrário do caos; este é o contrário daquela. Ordem e
caos são gêmeos modernos. Foram concebidos em meio à ruptura e
colapso do mundo ordenado de modo divino, que não conhecia a
necessidade nem o acaso, um mundo que apenas era, sem pensar em
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jamais como ser. Achamos difícil descrever com seus próprios termos
esse mundo descuidado e irrefletido que precedeu a bifurcação em
ordem e caos. Tentamos captá-lo sobretudo com o recurso a negações:
dizemos a nós mesmos o que aquele mundo não era, o que não
continha, o que não sabia, o que não percebia. Esse mundo dificilmen-
te poderia se reconhecer nas nossas descrições. Ele não compreende-
ria do que estamos falando. Não teria sobrevivido a tal compreensão.
O momento de compreensão seria o sinal de sua morte iminente. E foi.
Historicamente, essa compreensão foi o último suspiro do mundo
agonizante e o primeiro grito da recém-nascida modernidade. (1999:
12)
Noutro ponto de sua obra Bauman, retomando a discussão em
torno da ordem – elemento este que é fundamental em suas análise –,
remete-nos a uma consideração que entendemos de grande pertinência
nesse momento:
“Ordem”, permitam-me explicar, significa monotonia, regularidade,
repetição e previsibilidade; dizemos que uma situação está “em
ordem” se e somente se alguns eventos têm maior probabilidade de
acontecer do que suas alternativas, enquanto outros eventos são
altamente improváveis ou estão inteiramente fora de questão. Isso
significa que em algum lugar alguém (um Ser Supremo pessoal ou
impessoal) deve interferir nas probabilidades, manipula-las e viciar os
dados, garantindo que os eventos não ocorram aleatoriamente. (2000:
66)
Uma reflexão a partir dessas duas manifestações de Bauman nos
permite reconhecer que a transição à modernidade significou, para mais
além de uma objetiva e pragmática expectativa humana de ordenação do
caos anterior (também verificada), a gênese de um novo humanismo – em
oposição ao teocentrismo até então vigente e legitimado por valores
tradicionais – que atribui a qualidade de caos àquilo que antes era
irrefletidamente aceito como a “ordem”, ou mais propriamente não
pensado como “ordem” ou “caos” em face da confiança de que a
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disposição do mundo era originária e decorrente da sapiência e vontade
divina. Diante dessa nova consciência, que se impôs de forma paralela e
simultânea ao afastamento de uma superior razão metafísica da tarefa de
organização e gestão do mundo, outra razão deveria ocupar-se da promo-
ção da “ordem” enquanto elemento necessário às expectativas de certeza
e segurança sociais. Tal razão, pois, que há de ter sua origem num “Ser
Supremo pessoal e impessoal” (para retomarmos Bauman), no momento
final do período de transição consolidou-se através do chamado “Estado
Moderno”.
Não, portanto, sob outro contexto de referência de mudanças que
José Eduardo Faria, mesmo partindo de referenciais mais objetivos que
os aqui propostos, resta por localizar a problemática da legitimidade
como uma questão contemporânea à formação das Sociedades Moder-
nas:
Nesse sentido, se a legitimidade é efetivamente uma crise de mudança,
suas raízes estão no período de formação das modernas sociedades,
das quais é possível destacar o processo de superação das monarquias
aristocráticas (o que abala o prestígio das instituições conservadoras)
e o gradativo ingresso de novas parcelas da população nas atividades
políticas, mediante a extensão da cidadania às classes de menor poder
aquisitivo. Assim, o problema da legitimidade aparece de forma mais
concreta à medida que as comunidades vão perdendo as possibilida-
des de governos diretos e imediatos, da mesma forma que a escolha
dos governantes vai deixando de ser determinada por papéis sociais
preponderantes. É isso que explica, por exemplo, o inevitável proces-
so de competição - manifestado pelas eleições, que são a essência dos
regimes constitucionais pluralistas - uma vez que não há mais condi-
ções para designação de governantes por critérios de direito divino ou
por tradição. (1978: 63)
Com efeito, nesse sentido convém desde já mencionarmos que
entendemos ser possível, sobretudo a partir de alguns pontos de enfoque
referenciados nos processos mais objetivos da fase de transição à
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modernidade, localizarmos os principais elementos de índole utilitária
que acompanharam a gênese da base valorativa do paradigma fundamen-
tal legitimador da Sociedade Moderna. Voltaremos a este tópico adiante4,
mas, entretanto, já podemos aqui consignar, ainda com auxílio em Faria,
que sob tal enfoque é imperioso salientar-se o vínculo genético da
Sociedade Moderna com, por um lado, a Revolução Industrial, enquanto
fenômeno tecnológico responsável por profundas modificações no mo-
delo produtivo, nas relações de trabalho e na própria configuração da
sociedade, e, por outro, ao surgimento e afirmação do Liberalismo,
enquanto processo de teorização social, jurídica e política, que culmina
no aparecimento do Estado Moderno.
Este processo revolucionário e de renovação intelectual dos séculos
XVII e XVIII culmina no aparecimento do moderno Estado de
Direito: o Estado liberal do século XIX, resultante de um determinado
padrão histórico de relacionamento entre o sistema político e a
sociedade civil, por intermédio de um Direito Público desenvolvido
em torno de um conceito de poder público em que se diferenciam a
esfera pública e o setor privado, os atos de império e os atos de gestão.
(FARIA, 1978: 34)
Mas, feita a observação acima, e se retomando a questão da gênese
da consciência humana em torno da necessidade da ordem, o que se
verifica neste momento inicial da apropriação humana do mundo na
transição à modernidade é a “descoberta” (num sentido que entendemos
enquanto mais próximo da “invenção” do que propriamente do conhecer
o que era desconhecido) de que a ordem não era natural. Nesse sentido,
o da descoberta da ordem, novamente Bauman é esclarecedor ao
dimensionar a problemática e conseqüências que acompanham e se
seguem a essa descoberta:
4Alguns tópicos que serão trabalhados adiante já foram por nós, preliminarmente,
consignados sobretudo em nosso estudo sobre a privatização penitenciária e o
trabalho do preso. Privatização Penitenciária e Trabalho do Preso, Pelotas: Educat,
2000.
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A descoberta de que a ordem não era natural foi a descoberta da
ordem como tal. O conceito de ordem apareceu na consciência apenas
simultaneamente ao problema da ordem, da ordem como uma questão de
projeto e ação, a ordem como obsessão. Para colocar de forma ainda mais
clara, a ordem como problema surgiu na esteira da lufada ordenadora,
como reflexão sobre as práticas ordenadoras. A declaração da
“inaturalidade da ordem” representava uma ordem que já saía do escon-
derijo, da inexistência, do silêncio. “Natureza” significa, afinal, nada
mais do que o silêncio do homem. (1999: 14)
E, ainda com apoio em Bauman, podemos reconhecer que em tal
contexto de “descoberta”, de apropriação do mundo pelo homem, de
“divinização do homem e humanização (e até mesmo afastamento ou
exclusão gradual) de Deus”, a modernidade, a Sociedade Moderna, nasce
atribuindo a ordenação “do mundo, do habitat humano e do humano em
si” como sua principal tarefa (ainda que exeqüível ou não), do que decorre
a expectativa dominadora, modeladora, planificadora de suas instâncias,
instituições e práticas.
Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que é
produzida e sustentada pelo projeto, manipulação, administração,
planejamento. A existência é moderna na medida em que é adminis-
trada por agentes capazes (isto é, que possuem conhecimento, habili-
dade e tecnologia) e soberanos. Os agentes são soberanos na medida
em que reivindicam e defendem com sucesso o direito de gerenciar e
administrar a existência: o direito de definir a ordem e, por conseguin-
te, pôr de lado o caos como refugo que escapa à definição. (BAUMAN,
1999: 15)
O exposto, pois, já nos oferta suficientes indícios e fundamentos
para a percepção e reconhecimento daquele primeiro vínculo entre a
modernidade (a Sociedade Moderna) e a valoração da competência,
como já mencionado acima, haja vista que a apropriação do mundo pelo
homem, nos termos verificados, é acompanhada de uma correspondente
auto-atribuição, auto-imposição, de que ao homem compete a ordenação
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do caos, ao humano compete a implantação da ordem uma vez que esta
não é um dado da natureza e, que tal tarefa, da sua competência, na medida
de sua competência será desenvolvida de forma bem ou mal sucedida.
Necessário, entretanto, para que possamos aprofundar a reflexão
em torno dos efeitos e conseqüências decorrentes desse inicial vínculo
entre a modernidade e a competência, que o próprio desenrolar e
desenvolvimento dos movimentos e processos sociais insertos no perío-
do da transição sejam objetos de enfrentamento, vez que é a partir do
transitar nesses que se poderá avançar no sentido de desvelamento
substancial da noção de competência – assumida enquanto um valor
fundamental da Sociedade Moderna – naquilo em que essa é afetadora
das dinâmicas sociais concretas, e favorecedora da direcionalidade
dessas, ou ainda fomentadora e contributiva para as reproduções
valorativas e principiológicas necessárias à manutenção dos postulados
básicos da feição moderna da estrutura societária, seja inclusive nos
redimensionamentos desses para a pós-modernidade (uma modernidade
líquida, mole, fluída... como se referem alguns).
2. Transitando pelos processos iniciais de apropriação do mundo
Transitar pelos processos de apropriação do mundo significa, além
do imediato reconhecimento de que a gênese da Sociedade Moderna está
vinculada, como já mencionamos, a momentos revolucionários da huma-
nidade nos campos da tecnologia de produção (Revolução Industrial) e
da teorização e fundamentação da ordem sociopolítica e jurídica (Revo-
lução Liberal), também coletar e analisar os movimentos, igualmente
revolucionários, precedentes e viabilizadores desses dois grandes mar-
cos referenciais da modernidade, buscando-os inclusive em seus aspec-
tos de fragmentos, vez que não há, pois, como se desvelar a “descoberta”
da modernidade sem se reconhecer a importância das descobertas que
essa precederam em suas dimensões mais marcadamente perceptíveis e
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objetivas: as descobertas científicas (a Revolução Científica), portanto;
a descoberta de um “novo mundo”, ou de novas fronteiras para o mundo
conhecido (a Revolução dos “Descobrimentos” Ultramarinhos); e, tam-
bém, a própria alteração na ética e no valor do trabalho enquanto
elemento de produção econômica, satisfação de necessidades e viabilizador
da acumulação capitalista.
Transitar por tais processos sem olvidar algumas sendas dos
mesmos é tarefa quase impossível, sobretudo nos limites que nos são
impostos nas presentes reflexões, vez que, como expressamos, além dos
marcos de referência que há muito já foram desvelados em sua contun-
dente aparência, os caminhos a serem trilhados muitas vezes se compõem
de vestígios e fragmentos ainda não suficientemente perceptíveis na
clareza necessária. O que nos propomos, portanto, é numa tentativa de
síntese, auxiliada por outros que tais caminhos já percorreram, sinalar
aqueles que entendemos serem os principais elementos, movimentos e
conteúdos colaboradores não só do processo de apropriação do mundo –
na dimensão que vimos apresentando – mas, sobretudo, da conseqüente
valoração da competência, na substancialidade que tal noção assume em
sua feição moderna. Dessas reflexões, pois, esperamos que exsurgam
suficientes indicativos e fundamentos que viabilizem a posterior análise
dos efeitos e conseqüências de tal direcionalidade e conteúdo da valoração
da competência.
Nesse sentido, uma contributiva síntese de parte da caminhada que
pretendemos efetuar pelos movimentos de apropriação do mundo nos é
ofertada por Salo de Carvalho quando aborda “O Processo de Seculari-
zação e a Invenção da Tolerância” (2001: 33-53), em especial no
primeiro tópico de sua exposição: “A Conquista do Homem e do Mundo”
(2001: 33-35).
Carvalho em sua síntese, sobretudo no tópico acima destacado,
retoma um movimento que, não obstante sua importante influência na
gênese e no próprio processo de transição à modernidade, foi em muito
– e de forma contundente na América Latina – olvidado em sua verdadei-
ra dimensão sendo que somente agora, em recente período, veio a obter
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maior destaque na análise do processo de apropriação “subjetiva” do
mundo pelo homem (este enquanto viabilizador da modernidade), ou
seja: o movimento de expansão ultramarinha das nações da península
ibérica (Portugal e Espanha) com a conseqüente “descoberta” do “novo”
mundo (o continente americano) em fins do século XV.
Adauto Novaes (1998), cujo texto também é trabalhado por
Carvalho em sua obra, mostra-nos o contexto no qual se insere a
experiência das “descobertas” ultramarinhas e o conseqüente significado
dessas para a ruptura que contribuem a encetar:
O mundo das descobertas mostra-nos que, de alguma maneira, a
política européia, dominada pela Escolástica, pensava de olhos fecha-
dos. Era um pensamento sem objeto, e a experiência era feita a partir
apenas da idéia de experiência. O mundo não se preocupava em
interrogar as coisas. Ou melhor, os homens viam o mundo tal como
aparecia para eles e não tal como ele é; não viam nas coisas as próprias
coisas mas apenas idéias delas. Por meio da experiência concreta,
além da descoberta do mundo, o homem também se descobre, funda
a filosofia da autoconsciência, isto é, põe no lugar do ser “unicamente
pensado, no lugar de Deus, do ser supremo e último de toda filosofia
escolástica, o ser pensante, o Eu, o espírito autoconsciente”. Esta foi
a grande descoberta do homem que permitiu as experiências da
descoberta do mundo. A crença cede lugar a experimentação. Expe-
rimentar quer dizer, em última análise, não acreditar. A revolução
inaugurada no século XVI consiste, pois, na derrocada da “bela
unidade medieval”, que tinha no divino o mediador de todas as coisas.
A certeza imediata, sensível, ajuda a fundar a época moderna. (1998:
8-9)
Ao que adiante complementa:
O momento das descobertas foi também o momento o momento das
rupturas. Ao lado das invenções técnicas, que permitiram as aventuras
dos navegantes, transformações nas estruturas materiais e mentais
deram início ao que a filosofia e a história chamam de “libertação do
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Luiz Antônio Bogo Chies
indivíduo”, tirando-o do anonimato medieval: “a divinização do
homem e a humanização de Deus”. Com o nascimento da idéia de
indivíduo, surge um novo homem que se pretende autônomo. É essa
autonomia que permite a construção, por meio da experiência, de uma
nova ordem econômica e política que se contrapõe, no plano das
idéias, ao caráter ideológico dominante. (1998: 10-11)
A relevância das descobertas ultraminhas e da experiência dos
contatos com o novo mundo, encetados nos fins do século XV e durante
o século XVI, decorre do fato de serem fatores concretos, em termos de
irrefutáveis provas, em oposição à possibilidade de manutenção dos
fundamentos e explicações metafísicas e teológicas que “governavam” e
“regulavam” o mundo europeu até então. As descobertas, pois, represen-
tam o golpe concreto, propiciado pela experiência objetivamente visível
e palpável (inclusive para o homem comum), na crença da segurança
divina quanto à ordenação do mundo, do homem e de sua estrutura
societária até então admitida, ou mesmo irrefletida.
Mesmo que se deve considerar a importância do “ataque” cientí-
fico de Copérnico à geocentricidade do universo, ataque esse que põe em
dúvida toda base de sustentação ordenadora de Deus sobre o mundo e a
determinista ordem social medieval, temos que reconhecer que é a
experiência do novo mundo que, ao se fundir com o “Giro de Copérnico”,
viabiliza a ruptura com a fundamentação divina da ordem do mundo e da
sociedade, vez que remete o homem a si mesmo, ao questionamento de
suas “irrefletidas certezas”, e, sobretudo, ao questionamento da natura-
lidade (ou mesmo imutabilidade) daquilo que então, de forma consciente,
passou a cogitar como ordem (ou desordem).
Carvalho, com pertinência, assim sintetiza o que estamos a expor:
Inobstante a revolução copernicana, Colombo, chancelado pela pró-
pria Igreja, comprova a tese da esfericidade terrena e revela a
existência de culturas cujas crendices, além de não admitirem o
monoteísmo, demonstravam um modus vivendi altamente diferenci-
ado, baseado na igualdade e liberdade. Isentos da servidão tirânica
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
imposta pela ordem do medievo5, nascem, eis sua existência não era
perceptível ao saber central, povos que viviam em completo ‘estado
de natureza’.
A experiência da descoberta é altamente relevante nesta análise, pois
o homem volta-se a si mesmo, adquirindo novas concepções sobre sua
existência e abandonando qualquer metafísica, seja cosmológica ou
teológica. (2001: 34)
Ao que adiante complementa, também citando Gerd Bornheim
(1998:20):
Se a conquista do ‘paraíso terrestre’ – expressão utilizada por Colombo
em sua terceira viagem à América – gerou profunda crise no pensa-
mento filosófico moldado desde os primórdios da humanidade, pro-
porcionou, outrossim, o nascimento de idéias direcionadas à identifi-
cação e à construção do processo civilizatório. O descobrimento
representou não somente a criação de uma experiência inédita de
universalidade mas, inclusive, uma universalidade que soube deixar-
se perpassar pela prática da invenção de um espírito crítico também
ele inédito. (CARVALHO, 2001: 35)
As “descobertas” ultramarinhas, portanto, como objetiva apropri-
ação de um mundo até então desconhecido ao europeu, um mundo
disponível para sofrer a ação ordenadora humana, acompanhada da
5Desta manifestação de Salo de Carvalho apenas discordamos da contundência da
expressão “servidão tirânica imposta pela ordem do medievo”, vez que não analisa-
mos a Idade Média, e sua estrutura social, não obstante as críticas que sobre essa
devam recair, como um absoluto obscuro e tirânico período da experiência societária
humana. Ao contrário, reputamos à estrutura social feudal, ressalvas as críticas
possíveis aos seus eventuais excessos, uma preponderância de dinâmicas de índole
prioritariamente cooperativas (e portanto não competitivas), ainda que fundadas
sobre a premissa básica do valor da desigualdade natural entre os homens. Se, talvez,
excessivo seja se falar em solidariedade (ainda que preponderantes as dinâmicas
cooperativas), em igual sentido poderá se considerar a imediata imputação de tirania.
Uma análise mais detalhada desses aspectos, entretanto, foge ao fôlego dessas
reflexões. Sobre o assunto remetemos o leitor a interessante dobra de Régine Pernoud,
Idade Média: O que não nos ensinaram, Rio de Janeiro: Agir, 1979.
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Luiz Antônio Bogo Chies
experiência da alteridade (do outro) cultural e social num sentido de
maior proximidade com a natureza (não previamente ordenada), e
conseqüentemente com a verificação de status não servis da existência
humana em sociedade, é elemento substancial no encaminhamento do
pleito da liberdade individual e da auto-atribuição humana da tarefa
ordenadora do mundo em oposição ao determinismo e “naturalidade” da
fundamentação metafísica de ordenação social e do mundo.
Se Copérnico, ao deslocar a Terra do centro do universo, com o
resultado de seu esforço científico viabilizou o questionamento da
posição que Deus (o Ser Supremo ordenador divino) teria atribuído ao
mundo e aos homens que nele habitam, e assim o próprio questionamento
dos títulos de poder e dos estatutos sociais que sob o pálio de tais
argumentos eram ostentados e preservados, as descobertas ultramarinhas,
por seu turno, desvelaram um mundo entendido enquanto “não ordena-
do”, uma natureza “a ser”, e que, portanto, ainda não “era” – como assim
já se admitia a “ordem” européia e eurocêntrica. Este desvelamento de um
mundo “natural”, em estado de espera para a ação ordenadora, vivendo
a partir de estatutos de liberdade em oposição à servidão, foi, senão a
prova concreta, o suficiente indicativo de que o mundo e sua ordem eram
tarefas que competiam ao homem, uma vez que Deus (mesmo que ainda
não completamente excluído da humanidade, ou expulso da terra) estava
por ter decretado seu afastamento da gestão social do mundo e do homem
em face da desconfiança que passou a pesar sobre a validade de sua
suprema razão ordenadora, nos moldes até então admitidos.
Como estamos procurando analisar, o papel desempenhado pelas
descobertas ultramarinhas no início do período de transição à modernidade
foi muito além de um mero resultado do movimento expansionista de
nações compelidas ao mercantilismo através dos mares, ainda que num
plano político de tais nações esse fosse seu imediato objetivo. O papel das
descobertas se constitui numa verdadeira abertura de rotas – não só
marítimas e comerciais – à experiência que, ainda que sob o signo do
destino, resultou no encetar da oposição à irrefletida aceitação dos
desígnios de um mundo “dado”, consolidando, por fim, o valor da
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
invenção e da experiência enquanto modalidades adequadas à superação
da descrença do “dado” (natural, inadequadamente ordenado, ou mesmo
caótico) através da busca pelo “novo”, desejável e ordenado, ou ordenável.
Ora, pode-se dizer que as invenções são feitas sob o signo da
descrença. Com a experiência, o pensamento estabelece uma nova
modalidade de razão, operante, a partir das coisas do mundo. Expe-
riência quer dizer prova, tentativa, ensaio. Na época dos descobrimen-
tos, a palavra experiência designava o conjunto das aquisições do
espírito em contato com a realidade. Já no fim do século XVI, o termo
adquire conotações científicas, significando “praticar operações des-
tinadas a estudar algo”. A etimologia nos ensina que experiência liga-
se à importante raiz indo-européia per que quer dizer “ir adiante”,
“penetrar em”, dando origem às palavras perigo, pirata, porto.
(NOVAES, 1998: 9)
Assim, descrente da razão divina na ordenação do universo e do
mundo, a partir da plausibilidade dos argumentos da razão científica
(sobretudo a partir da demonstração da tese de Copérnico), ciente de
novos mundos, primitivos ou mais próximos de um imputado estado de
natureza no qual outra (des)ordem social tinha vigência, e portanto
descrente dos fundamentos metafísicos da naturalidade da ordenação
social medieval, pôde o homem libertar-se (se não ainda de todos os seus
vínculos societários servis, o que ocorreria mais adiante) para a experi-
ência, para a invenção, para o caminho da apropriação do mundo em todas
as suas dimensões sem que sobre ele pesasse qualquer culpa (e mesmo a
do pecado), eis que a ele, nesse autodescobrimento de sua consciência,
competia a racional tarefa ordenadora do mundo em desordem, projetiva
da ordem, que não estava mais depositada e creditada nas “mãos” da razão
divina.
Liberto à experiência, estava o homem, então, mais do que auto-
rizado, impelido e compelido à invenção e, sobretudo à invenção
tecnológica vez que forma projetada e ordenada racional de apropriação
da natureza e do mundo. Estava o homem, pois, liberto para seu verdadei-
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Luiz Antônio Bogo Chies
ro “destino”, impor a ordem racional ao mundo. Estava, por fim,
compromissado e comprometido, pela imposição inafastável e
irrenunciável de competência, da incessante tarefa ordenadora.
E, é esta libertação, esta ruptura inicial da irreflexão à
autoconsciência da competência humana para a apropriação e ordenação
do mundo, com o conseqüente compromisso de realização competente da
tarefa ordenadora que permite que alcancemos o século XVII em rumo
à consolidação da Revolução Industrial, processo este chave na constitui-
ção final da Sociedade Moderna.
Neste momento, entretanto, o homem ainda não estava totalmente
liberto de seus vínculos servis. A afirmação de uma nova base valorativa
e principiológica que permitisse a legítima (ou legitimável) suplantação
dos valores tradicionais sustentadores da estrutura nobiliária e aristocrá-
tica ainda existente estava porvir, numa necessidade emergente, mesmo
que seus indícios e fundamentos já se começassem a sentir capazes de
minar as já não mais tão sólidas bases da decadente estrutura societária
pré-moderna.
Transitar por esse momento, pelos fragmentos desse processo é o
que pretendemos fazer a seguir, tomando por referência as mudanças na
ética do trabalho, enquanto elemento de vínculo entre o modelo de
produção e a estrutura social na qual o mesmo se encontra inserido.
3. Uma nova ética do trabalho
O trabalho, em sua ontologia e dimensão axiológica, é um elemen-
to de extrema complexidade sobretudo quando analisado a partir de
referenciais societários humanos. Entretanto, desde seu mais cotidiano e
vulgar significado, no sentido de atividade física ou intelectual (mas
sobretudo física) que se direciona a um objetivo, via de regra a criação de
uma utilidade em vínculo com a satisfação de uma necessidade, o
trabalho já aparece como algo que tem, em sua própria natureza, uma nota
de desconfiança a sua inaturalidade, vez que é através dele que o homem,
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
por seus próprios meios (coletivos ou individuais) tem que obter a
satisfação de algo que lhe é negado pela natureza.
Assim, se nesse sentido o trabalho de imediato pode ser conside-
rado como uma modalidade de intervenção do homem sobre a natureza
e o mundo e, em especial, de apropriação e transformação desses, por
outro a necessidade do trabalho, no mesmo sentido, poderia então ser
interpretada como um sintoma de denúncia da não validade de uma ordem
natural, haja vista que essa mesma ordem, ou então desordem, não é capaz
de sem a intervenção e esforço humanos provê-los em todas as suas
necessidade.
Por óbvio que o acima exposto pode ser objeto de contestação no
sentido de que as necessidades humanas, e sobretudo as modernas e pós-
modernas, não são todas em absoluto naturais, seja na dimensão de
quantidade ou qualidade dos requerimentos humanos a título de suas
necessidades. O que pretendemos expor, entretanto, como o mencionado
é a complexidade que envolve a questão do trabalho, enquanto elemento
inserido nas experiências humana e societária do homem.
A transição à modernidade, por conseqüência, não escapa à
necessidade de enfrentar a complexidade da questão trabalho, até mesmo
porque lhe é indispensável redimensionar a concepção acerca do trabalho
para que se viabilize a expectativa de realização da tarefa ordenadora que
se auto-impôs. Bauman, nesse sentido assim se manifesta:
Quaisquer que tenham sido as virtudes que fizeram o trabalho ser
elevado ao posto de principal valor dos tempos modernos, sua
maravilhosa, quase mágica, capacidade de dar forma ao informe e
duração ao transitório certamente está entre elas. Graças a essa
capacidade, foi atribuído ao trabalho um papel principal, mesmo
decisivo, na moderna ambição de submeter, encilhar e colonizar o
futuro, a fim de substituir o caos pela ordem e a contingência pela
previsível (e portanto controlável) seqüência de eventos. Ao trabalho
foram atribuídas muitas virtudes e efeitos benéficos, como, por
exemplo, o aumento da riqueza e a eliminação da miséria; mas
subjacente a todos os méritos atribuídos estava sua suposta contribui-
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Luiz Antônio Bogo Chies
ção para o estabelecimento da ordem, para o ato histórico de colocar
a espécie humana no comando de seu próprio destino. (2001: 157)
Ocorre que esta compreensão moderna do trabalho, num primeiro
enfoque como meio para o atingimento do fim ordenador desejável,
apresenta-se em inicial conflito com a ética medieval que, como observa
Max Weber, constituía-se num sentido oposto ao da valoração moderna
absoluta e generalizante do trabalho, pois: “não apenas tolerava a
mendicância, como a glorificou nas ordens mendicantes. Até os mendi-
gos seculares, embora não dispusessem de meios para fazer boas obras
pela salvação das almas, foram por ela considerados e valorizados como
uma ‘classe’”. (2001: 128)
Georg Rusche e Otto Kirchheimer, na clássica obra Punishment
and social structure6, ao lado da contundência em afirmarem que: “A
história da política pública para mendigos e pobres somente pode ser
compreendida se relacionamos a caridade com o direito penal” (1999:
52) relembram-nos inclusive do “relevante” aspecto funcional da pobre-
za na estrutura e dinâmicas sociais da época pré-moderna da sociedade
fundada numa base valorativa e teológica do cristianismo tradicional:
Havia, pois, lugar tanto para o pobre, que vivia de esmolas, quanto
para o poderoso, que vivia da renda da propriedade e podia realizar
suas obrigações cristãs e justificando-se aos olhos de Deus fazendo
caridade. (...)(...) A relação entre este dois grupos contrastantes,
nenhum dos dois vivendo do produto de seu próprio trabalho, era
inculcado pelos ensinamentos sociais da igreja, que utilizava-se dos
desejos dos ricos de obter favores divinos através da assistência
material aos pobres. Esta atitude era compreensível numa sociedade
onde sempre era possível assegurar-se uma existência não muito
inferior à do nível médio dos trabalhadores e na qual quem escolhia
6A referida obra, publicada em 1939 pela Columbia University Press, de Nova Iorque,
recentemente obteve sua primeira edição brasileira: Punição e Estrutura Social,
tradução Gizlene Neder, 1999, pela Freitas Bastos Editora (Rio de Janeiro), num
esforço do Instituto Carioca de Criminologia, a qual é utilizada em nossa bibliografia.
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
voluntariamente o destino da pobreza, cumpria ato de abnegação
heróica reconhecida socialmente. Entregar comida e roupas aos
necessitados era uma atitude respeitada pelos homens e agradava à
Deus. (1999: 53)
No decorrer do século XVI, entretanto, como analisam Rusche e
Kirchheimer, as condições objetivas de vida das classes subalternas se
deterioram, ao mesmo tempo em que as mudanças na posição da igreja
e o confisco de suas propriedades – cuja acumulação era justificada em
momentos anteriores como em favor dos pobres, doentes e velhos – leva
a uma desorganização no atendimento à pobreza e à mendicância que,
perdendo o “prestígio” social antes atribuído, passam a serem vistas
como problemas e males sociais a serem enfrentados.
E a necessidade de redimensionar o enfrentamento da pobreza e da
mendicância encontrou nos conteúdos da ética protestante, então já
compartilhada por setores expressivos da emergente “classe média”, um
suficiente e adequado caminho para a perspectiva de legitimação das
iniciativas necessárias aos fins propostos, vez que a ética protestante,
como se verificará a seguir sobretudo a partir das análises de Weber,
permitiu o próprio redimensionamento do conteúdo ético do trabalho, e
do valor deste.
Nesse sentido consignam Rusche e Kirchheimer que:
A atitude da classe média relativamente à força de trabalho e à pobreza
diferia nitidamente daquela da classe senhorial feudal. A doutrina
tomista da necessidade do trabalho como uma condição vital, indis-
pensável e natural, implicava o dever de trabalhar o tanto requerido
para a preservação individual e coletiva. O trabalho não é a essência
principal da vida ou mesmo muito desejável, mas um fator meramente
necessário. Esta concepção corresponde a um sistema social estático
da Idade Média. Para os nobres poderosos, que viviam do trabalho dos
outros ou da guerra, a necessidade de trabalhar para viver era uma
calamidade comparável às circunstâncias de um homem desapropri-
ado, plenamente consciente de que seu trabalho nunca o levaria a
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Luiz Antônio Bogo Chies
galgar uma posição social melhor. A burguesia, entretanto, conseguiu
tornar-se próspera através da sua indústria. No entanto é questionável
se seu caminho para a prosperidade e o poder possa ser comparado
com o trabalho requerido a qualquer membro das classes subalternas.
Tão logo as idéias presentes de mérito difundiram-se, sua atividade foi
reconhecida e glorificada como trabalho. A prosperidade, portanto,
perdeu seu sentido pecaminoso, e a idéia de generosidade voluntária
com a pobreza como absolvição dos pecados imputados pelo fato de
ser próspero esvaziou-se. (...)(...) Não apenas qualquer um podia
dispor de algum dom, evidentemente, quando qualquer um que
honestamente se aplicasse no trabalho podia ganhar seu pão de cada
dia. O argumento típico para a prosperidade – de que os pobres são
displicentes com o trabalho e que as oportunidades para o trabalho são
muitas – encontram em Lutero um ardoroso defensor. (1999:55)
O conflito acima apresentado entre a concepção pré-moderna do
trabalho e o necessário redimensionamento desta para a modernidade
pode nos ficar mais claro a partir da análise do que Bauman expõe em
seqüência ao já referido, no sentido de uma necessidade de que o trabalho
seja assumido como “condição natural” e geral aos seres humanos,
atribuindo, pois, ao ócio – ao estar sem trabalho – uma conotação de
anormalidade, que podemos então imputar como individual e que acar-
reta a pobreza, a miséria e o desvio (porque não o crime – vez que se deve
consignar que o trabalho é elemento chave na análise do sistema punitivo
moderno) enquanto de responsabilidade decorrente da (in)competência
do individuo em si, que se afasta de sua natureza de trabalhador.
O “trabalho” assim compreendido era atividade em que se supunha
que a humanidade como um todo estava envolvida por seu destino e
natureza, e não por escolha, ao fazer história. E o “trabalho” assim
definido era um esforço coletivo de que cada membro da espécie
humana tinha que participar. O resto não passava de conseqüência:
colocar o trabalho como “condição natural” dos seres humanos, e
estar sem trabalho como anormalidade; denunciar o afastamento
dessa condição natural como causa da pobreza e da miséria, da
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
privação e da depravação; ordenar homens e mulheres de acordo com
o suposto valor da contribuição de seu trabalho ao empreendimento
da espécie como um todo; e atribuir ao trabalho o primeiro lugar entre
as atividades humanas, por levar ao aperfeiçoamento moral e à
elevação geral dos padrões éticos da sociedade. (BAUMAN, 2001:
157-158)
Nesse contexto é que se pode localizar a contribuição da ética
protestante para o processo de redimensionamento da noção do trabalho
– em seu conteúdo e valor (também utilitário) –, necessária à transição
para a modernidade. Tal contribuição, sob um primeiro enfoque, de
imediato está no fato da ética protestante alterar o próprio significado
ético do trabalho, sem, contudo, promover uma oposição absoluta à
expectativa de valor moral da acumulação desigual de seus resultados e,
portanto, viabilizando também uma percepção de competência individu-
al em seu desempenho.
Ademais, como não pode deixar de ser importante, a ética protes-
tante, ao não romper sua ética do trabalho com os desígnios de Deus,
também permite uma assimilação legitimável de seus preceitos num
mundo em que o afastamento de Deus, mesmo já decretado, transcorria
de forma gradual nas diferentes instâncias sociais.
Assim, um primeiro ponto da contribuição da ética protestante está
na concepção desenvolvida por Lutero, na primeira década de sua
atividade reformadora, como salienta Weber (2001: 53), do trabalho
como vocação, a partir da qual “a única maneira de viver aceitável para
Deus não estava na superação da moralidade secular pela ascese
monástica, mas sim no cumprimento das tarefas do século, imposta ao
indivíduo pela sua posição no mundo. Nisso é que está a sua vocação”.
(WEBER, 2001: 53)
Já neste primeiro aspecto podemos identificar a admissão de uma
noção de competência vinculada ao elemento trabalho enquanto inserido
na existência terrena e social humana, vez que o homem, ao se entender
– ao se assumir – vocacionado por Deus ao trabalho passa a tê-lo como
algo de sua competência para a realização das tarefas do século –
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Luiz Antônio Bogo Chies
mundanas – que podem ser entendidas sobretudo num sentido de
ordenadoras do mundo, ainda que nesse momento e, sob tal referencial,
executadas para a “glória de Deus”.
Outro destaque que se pode fazer na análise de Weber está
vinculado ao contributo da ética protestante ao valor da conduta racional-
mente planejada. Nesse sentido tal contribuição se deve em especial ao
Calvinismo, orientação protestante que maior desenvolvimento legou ao
redimensionamento da ética do trabalho:
O Deus do calvinista requeria de seus fiéis, não apenas “boas obras”
isoladas, mas uma santificação pelas obras, coordenada em um
sistema unificado. Não havia lugar para o ciclo essencialmente
humano dos católicos, de: pecado, arrependimento, reparação, rela-
xamento, seguidos de novo pecado; nem havia balança de mérito
algum para a vida como um todo, que pudesse ser ajustada por
punições temporais ou pelos meios de graça da Igreja.
A conduta moral do Homem médio foi, assim, despojada de seu
caráter não planejado e assistemático, e sujeita, como um todo, a um
método consistente. (WEBER, 2001: 81-82)
Com efeito, o redimensionamento protestante da ética do trabalho
se dá, pois, em oposição à concepção tradicional medieval predominante,
como a representada por São Tomás de Aquino, que restava por encarar
“o trabalho secular – embora desejado por Deus para suas criaturas, e
indispensável para uma vida de fé – como algo eticamente neutro, da
mesma forma que o ato de comer e de beber”. (WEBER, 2001: 53)
O conteúdo ético protestante do trabalho se, pelo prisma mais
essencialmente religioso, via-o como uma vocação e como uma “ativida-
de que serve para aumentar a glória de Deus, de acordo com a
inequívoca manifestação de Sua vontade” (WEBER, 2001: 112), tam-
bém o via como a própria finalidade da vida. Weber comenta: “A
expressão paulina ‘Quem não trabalha não deve comer’ é incondicional-
mente válida para todos. A falta de vontade para trabalhar é um sintoma
de ausência do estado de graça”. (2001: 113)
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Este último aspecto referido, e sua admissão com atribuição de
validade, possui contundentes efeitos no “espírito” da Sociedade Moder-
na, para mais além de sua dimensão puramente religiosa, pois viabiliza
que se firme a concepção de que o ócio do indivíduo – o entregar-se ao
não trabalho, ainda que mesmo involuntariamente, e, portanto, estar-se
em situação de não trabalho – é um sintoma de desajuste, de desadequação
social daquele à ordem e à vocação desta e do trabalho, como elemento
natural e tarefa do indivíduo e para o projeto da sociedade e da coletivi-
dade. A negação do assumir a ordem do trabalho – do se inserir na ordem
do trabalho – essa desordem individual, é a prova de seu desajuste em
relação ao projeto de ordenação do mundo. Trata-se, pois, de uma questão
de (in)competência individual.
O cristianismo em geral, e o que poderá ser interpretado com
conteúdos e efeitos distintos por orientações católicas, ortodoxas ou
protestantes, nos fornece ainda a um outro elemento que se pode ver
agregado à análise da valoração da competência como nos propomos.
Nos referimos aqui à Parábola dos Talentos (do Evangelho de São
Mateus: 25, 14-30).
Weber, em sua análise, a esta parábola se refere quando expõe que
na ética protestante a riqueza é condenável “só na medida em que
constituir uma tentação para a vadiagem e para o aproveitamento
pecaminoso da vida. Sua aquisição é má somente quando é feita com o
propósito de uma vida posterior mais feliz e sem preocupações. Mas,
como empreendimento de um dever vocacional, ela não é apenas
moralmente permissível, como diretamente recomendada” (2001: 116),
ao que em seguida complementa:
A parábola do servo que foi desaprovado por não ter aumentado a
soma que lhe foi confiada serve para expressar isso diretamente.
Querer ser pobre, como repetidas vezes se disse, equivalia a querer ser
doente, era reprovável do ponto de vista da glorificação do trabalho
e derrogatório à glória de Deus. Especialmente a mendicância dos
capazes de trabalhar não constitui apenas um pecado de preguiça, mas
ainda, de acordo com a palavra do apóstolo, uma violação do dever de
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Luiz Antônio Bogo Chies
amor ao próximo. (2001: 116)
Uma outra interpretação dessa parábola nos remete, entretanto,
para além da liberação da riqueza e do significado espiritual dos talentos,
ao prêmio pela competência de quem executa aquilo que lhe compete,
àquilo para o qual foi “chamado” (vocacionado). Aos competentes (que
agiram com maior grau de competência) – os servos laboriosos, ou talvez
“menos” displicentes, na parábola, os indivíduos em sua competência
social para o trabalho na sociedade – o legitimado prêmio da desigualda-
de de resultados e tratamentos. O trabalho e a competência, portanto,
como elementos atribuidores de uma “legitimável” desigualdade concre-
ta, ainda que a partir de uma eqüitativa igualdade (abstrata ou formal)
inicial.
Com efeito, o primeiro legado concreto que a contribuição da ética
protestante deu ao mundo apropriado (em seus dois sentidos) e ao seu
projeto, como se pode buscar na síntese de Weber, sobretudo aos
sucessores utilitários desses redimensionamentos éticos, foi “uma cons-
ciência incrivelmente boa – podemos até dizer farisaicamente boa – do
endinheiramento, enquanto ocorresse por vias legais”, ao que
complementa em seqüência:
Uma ética profissional especificamente burguesa surgiu em seu lugar.
Consciente de estar na plena graça de Deus, e sob a sua visível benção,
o empreendedor burguês, enquanto permanecesse dentro dos limites
da correção formal, enquanto sua conduta moral fosse sem manchas
e não fosse objetável o uso de sua riqueza, podia agir segundo seus
interesses pecuniários, e assim devia proceder. (2001: 127)
Mas os efeitos desse primeiro legado se expandem em outros – e
sequer aqui estamos de imediato nos referindo às posteriores flexibilizações
dos limites de uma “correção formal” no agir ou do conteúdo da
moralidade das condutas. As contribuições da atividade redimensionadora
da ética e do valor do trabalho por parte das orientações protestantes, para
além da gênese do espírito do capitalismo, colaboram para o
A valoração da competência num mundo apropriado
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enquadramento da noção do trabalho naqueles termos expostos por
Bauman – conforme citação supra (2001: 157-158) –, ou seja: do trabalho
como atividade do destino, da natureza e da competência humana,
individual e coletiva, elemento de valor privilegiado no cumprimento da
tarefa ordenadora do mundo, bem como “divisor de águas”, eis que da
separação entre o ordenado e o não ordenado, o trabalhado e o não
trabalho, a ordem e o caos, o indivíduo ajustado e o não ajustado, o
trabalhador e o não trabalhador, a normalidade e a anormalidade, o prumo
e o desvio e, porque não, o lícito e o ilícito (o crime), o sadio e o patológico
(a doença).
Ainda o redimensionamento ético do trabalho o converteu num
dimensionador da competência coletiva e individual no exercício e na
execução daquilo que, como tarefa primordial, lhe compete: a ordenação,
a busca, projeção, planejamento, atingimento e administração racionali-
zada da ordem.
No contexto de apropriação do mundo e do mundo apropriado,
pois, esse redimensionamento, essa alteração no conteúdo ético do
trabalho – com vistas inicialmente à prosperidade legítima – é elemento
fundamental para uma Sociedade (Moderna) que virá a se consolidar
(como veremos adiante) na necessidade de postular, ou se embasar, numa
base valorativa que sustente a igualdade formal de seus membros, mas
que não dispensará a desigualdade concreta na vida social, e portanto
também numa sociedade em que os status sociais de seus membros já não
serão mais definidos e imutáveis por critérios tradicionais, metafísicos ou
teológicos (a nobreza, a vontade divina), mas poderão se estabelecer
através de recompensas legitimáveis através de critérios de competência
e competitividade, de responsabilidade e mérito, relacionadas com o
trabalho. E, aqui, nos vem à mente outra vez a Parábola dos Talentos.
4. Novas tecnologias: os emergentes e suas necessidades
Vimos sustentando, desde o início dessas reflexões, que, para que
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Luiz Antônio Bogo Chies
se viabilize uma melhor compreensão da complexidade da Sociedade
Moderna, bem como de sua complexa gênese, faz-se necessário uma
atitude de trânsito por processos e movimentos sociais de diversas
índoles (“descobertas” e “invenções” de cunho científico, tecnológico,
éticas, filosóficas, políticas, etc.), postura que implica também uma
atenção aos vestígios e fragmentos deixados por tais processos e movi-
mentos, do que decorre a quase, senão total, impossibilidade de se atribuir
a um único elemento a primazia no sentido de fonte genética da
modernidade. Não obstante isso, inegável também que alguns movimen-
tos e processos devem ser salientados em sua importância e relevância
para que à Sociedade Moderna fosse possível assumir os contornos e
características que a fazem um modelo societário diverso dos seus
antecessores, e não, portanto, somente uma modulação de sistemas
anteriores.
Até o momento, pois, nesse sentido nossas reflexões se têm
atentado para percepções que restaram por influenciar os contornos mais
propriamente “subjetivos” da modernidade: sua inicial inquietação,
racional humana, ordenadora do mundo – a partir da desconfiança da
gestão divina do mundo (o gradual afastamento da “ordem” teológica) –
, a apropriação deste num projeto de crença de aprimora-lo, a gênese de
uma nova ética do trabalho (com seu efeito “libertário” para o
“endinheiramento” individual e para a legitimável desigualdade concre-
ta). Tais processos são, por conseqüência, de sobremaneira contributivos
para a formação da “mentalidade”, do “espírito”, do homem moderno e
da modernidade, ainda que não deixem de provocar efeitos nas estruturas
sociais objetivas que virão a se cristalizar como típicas da Sociedade
Moderna.
Agora, por outro turno, pretendemos lançar algumas reflexões nos
processos e movimentos da outra índole, ou seja, àqueles que, não
deixando também de influenciar aspectos da “subjetividade” do espírito
moderno, deitaram seus efeitos em dimensões mais objetivamente sensí-
veis da constituição da Sociedade Moderna, vez que, sobretudo, ao se
embasarem em alterações (ou exigirem estas) no campo das concepções
A valoração da competência num mundo apropriado
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cognitivas e valorativas humanas e sociais, restaram por viabilizar as
modificações estruturais, institucionais e formais normativas da socieda-
de em questão.
4.1 – A ruptura entre o tempo e o espaço
Ao encetarmos essas reflexões buscamos, novamente, suporte em
Bauman que, em determinado momento de sua obra nos instiga com a
seguinte manifestação:
Pode-se associar o começo da era moderna a várias facetas das
práticas humanas em mudança, mas a emancipação do tempo em
relação ao espaço, sua subordinação à inventividade e à capacidade de
técnica humanas e, portanto, a colocação do tempo contra o espaço
como ferramenta da conquista do espaço e da apropriação de terras
não são um momento pior para começar uma avaliação que qualquer
outro ponto de partida. A modernidade nasceu sob as estrelas da
aceleração e da conquista de terras, e essas estrelas formam uma
constelação que contém toda a informação sobre seu caráter, conduta
e destino. Para lê-la, basta um sociólogo treinado; não é preciso um
astrólogo imaginativo. (2001: 131)
Esta manifestação de Bauman é precedida de uma reflexão que nos
remete a considerar que por todo o anterior período da história da
humanidade – pré-moderno – espaço e tempo eram “categorias” intima-
mente relacionadas e vinculadas. “Se as pessoas fossem instadas a
explicar o que entendiam por ‘espaço’ e ‘tempo’, poderiam ter dito que
‘espaço’ é o que se pode percorrer em certo tempo, e que ‘tempo’ é o que
se precisa para percorrê-lo” (2001: 128), ao que adiante complementa:
O modo como compreendíamos essas coisas que hoje tendemos a
chamar de “espaço” e “tempo” era não apenas satisfatório, mas tão
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Luiz Antônio Bogo Chies
preciso quanto necessário, pois era o wetware – os humanos, os bois
e os cavalos – que fazia o esforço e punha os limites. Um par de pernas
humanas pode ser diferente de outros, mas a substituição de um par
por outro não faria uma diferença suficientemente grande para reque-
rer outras medidas além da capacidade dos músculos humanos. (2001:
128).
Nesse sentido, seguindo ainda a análise de Bauman, verifica-se
uma substancial ruptura entre tempo e espaço quando da:
... construção de veículos que podiam se mover mais rápido que as
pernas dos humanos ou dos animais; e veículos que, em clara oposição
aos humanos e aos cavalos, podem ser tornados mais e mais velozes,
de modo que atravessar distâncias cada vez maiores tomará cada vez
menos tempo. Quando tais meios de transporte não-humanos e não-
animais apareceram, o tempo para viajar deixou de ser característica
da distância e do inflexível “wetware”; tornou-se, em vez disso,
atributo da técnica de viajar. O tempo se tornou o problema do
“hardware” que os humanos podem inventar, construir, apropriar,
usar e controlar, não do “wetware” impossível de esticar, nem dos
poderes caprichosos e extravagantes do vento e da água, indiferentes
à manipulação humana; por isso mesmo o tempo se tornou um fator
independente das dimensões inertes e imutáveis das massas de terra
e dos mares. (2001: 129-130)
Com efeito, se tal perspectiva, velocidade e “técnica” de viagem na
conquista do espaço – menos tempo (movimento acelerado) como
significado de maior potencial de conquista do espaço – já se pôde fazer
sentir desde os processos iniciais de apropriação do mundo enquanto
movimento legitimável do poder e da desigualdade concreta (mais
espaço conquistado é mais poder), mesmo numa época em que a quali-
dade potencial de uso e controle do hardware ainda não está sobre o
domínio total do homem (se deve em muito aos caprichos do “vento e da
água”), como nas expansões ultramarinhas, as inovações tecnológicas
que vem a culminar na Revolução Industrial maximizam tais efeitos –
A valoração da competência num mundo apropriado
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poder e desigualdade concreta – também para a esfera da produção
econômica (e, portanto, não só na conquista física do espaço) numa igual
perspectiva de legitimidade, autorizada em conjunto com a “nova” ética
do trabalho.
Diz Bauman (e o que aqui vamos aproveitar também num sentido
metafórico da produção econômica industrial, que entendemos ser per-
tinente e compreensível):
Com o advento do vapor e do motor a explosão, a igualdade fundada
no wetware chegou ao fim. Algumas pessoas podiam agora chegar
onde queriam muito antes que as outras; podiam também fugir e evitar
serem alcançadas e detidas. Quem viajasse mais depressa podia
reivindicar mais território – e controlá-lo, mapeá-lo e supervisioná-lo
–, mantendo distância em relação aos competidores e deixando os
intrusos de fora. (2001: 130)
O exposto por Bauman, sobretudo nas reflexões que podemos
realizar a partir de uma interpretação similar da ruptura entre o tempo e
o espaço agora vinculada, mais propriamente, com a lógica da produção
econômica industrial – em processo de consolidação no decorrer da
transição para a modernidade (vez que elemento fundamental dessa
transição) – nos permite analisar não só como se dá o surgimento de
algumas necessárias alterações valorativas para a perspectiva de um novo
paradigma fundamental legitimador da Sociedade Moderna, como tam-
bém o porquê dos próprios conteúdos valorativos e principiológicos do
paradigma consolidado na constituição desse modelo societário, além de
nos ofertar importantes subsídios para a discussão e análise da valoração
da competência nesse mundo apropriado.
60 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
4.2. As necessidades dos emergentes: relações de trabalho e
poder político7
Com efeito, partindo-se agora de um enfoque pautado, como ponto
de referência, no processo de mudanças tecnológicas no modelo de
produção econômica que se insere nesse período de transição à
modernidade – a chamada Revolução Industrial – o que se pode conside-
rar de imediato é que essas alterações no modelo produtivo, ao viabilizarem
um novo critério e potencial de acumulação econômica (já admissível
como legítimo – legitimável – em face da modificação na ética do
trabalho), propiciam também a emergência, primeiro em termos econô-
micos e imediatamente em termos de expectativa de acesso ao poder
político e gestão ordenadora social, de uma nova classe, sendo esta a que
está diretamente vinculada a primeira apropriação dos benefícios do
processo de industrialização.
Ocorre que, tendo em vista a origem dessa classe (numa relação
com a estrutura social anterior), centrada na nascente burguesia industrial
(cuja possibilidade de acumulação econômica a partir do modelo de
produção industrial é o elemento objetivo de sua emergência), verifica-
se que no âmbito econômico e produtivo o industrialismo reconfigura não
só a potencialidade da produção, através das possibilidades geradas pelas
inovações tecnológicas e mecanizadoras do trabalho humano, mas tam-
bém, e sobretudo, estabelece novos parâmetros nas relações sociais do
trabalho, colocando-as sob uma nova perspectiva que, se por um lado se
demonstra necessária ao novo modelo de acumulação, por outro, não se
enquadra nos critérios até então vigentes de utilização da força de
7Neste tópico voltaremos a algumas reflexões que já procedemos em nosso anterior
estudo sobre a privatização penitenciária e o trabalho do preso, mais especificamente
no seu capítulo 3: “Elementos básicos do paradigma fundamental legitimador da
sociedade moderna” (CHIES, Luiz Antônio Bogo. Privatização Penitenciária e
Trabalho do Preso, Pelotas: Educat, 2000). Retomamos, pois, em muito o que
consignamos naquela oportunidade agregando, entretanto, outras reflexões que, para
fins da linha adotada nesse estudo, fazem-se pertinentes e necessárias.
A valoração da competência num mundo apropriado
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trabalho humano e apropriação dos resultados dessa, eis que aqueles não
se compatibilizam com as possibilidades geradas pelo próprio
industrialismo, como se analisará adiante.
Simultaneamente ao acima exposto, a emergência econômica
dessa parcela da população, beneficiada diretamente pelo modelo de
produção industrial, faz com que a mesma se torne também politicamente
emergente, reclamando então seu ingresso e participação na estrutura de
poder e de organização da sociedade e buscando, para tanto, como
conseqüência, a substituição dos critérios legitimadores de atribuição de
poder e de autoridade dentro da sociedade, uma vez que se torna
necessário fundamentar sua possibilidade de dominação política em
parâmetros outros que não os presentes no modelo social que está sendo
suplantado, já que vinculados prioritariamente em valores tradicionais e
situações de hereditariedade que não estavam ao alcance da emergente
classe.
É, pois, diante desse contexto que o ancién regime resta por ser
atingido em sua base valorativa de sustentação, ou seja, em seu próprio
paradigma fundamental legitimador, eis que a Revolução Industrial ao
viabilizar objetivamente a emergência econômica de uma nova classe
social como dominante na sociedade e, a partir disso, permitir que esta
reclame o exercício político da dominação – situações que eram incom-
patíveis com essa classe a partir dos valores até então vigentes – torna
também necessária a alteração dos valores que compõem o paradigma
fundamental legitimador da sociedade a fim de que essa nova classe,
dentro de uma estrutura social que necessariamente será diferente da
anterior, fundamente com critérios “legitimáveis” sua aquisição e exer-
cício do poder econômico e político, adquirindo assim também um grau
de autoridade perante o restante do corpo social que lhe permitirá a
estabilidade do novo status.
Logo, compreensível porque os valores sociais vigentes até então,
e que compunham o paradigma fundamental legitimador da estrutura
societária pré-moderna, vinculados prioritariamente a critérios tradicio-
nais, a títulos de nobreza, à hereditariedade e a conseqüente vinculação
62 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
da detenção e uso do poder à vontade divina, e que não eram acessíveis
à nova classe, emergente em sua dominação e participação no poder
político (e, sobretudo, incompatíveis com um mundo apropriado), neces-
sitassem ser suplantados por outros que se adequassem à possibilidade de
aquisição e exercício do poder por parte dessa emergente classe dominan-
te.
Assim, pois, é na conjugação dessas duas necessidades básicas do
então nascente modelo societário moderno – fundamentação das novas
formas de relações de trabalho exigidas por um novo modelo de produção
e acumulação econômica; e fundamentação da aquisição e utilização do
poder político e da autoridade por uma classe social emergente em sua
dominação – que se constituirão os valores que irão compor o paradigma
fundamental legitimador da Sociedade Moderna.
Nesse contexto, e frente a essas necessidades, que as teorizações
de fundo contratualista e liberal da sociedade e do Estado adquirem valia,
uma vez que sustentam, dentro de critérios racionais e sob uma perspec-
tiva jurídica que dota o sistema social de um aceitável elemento coerci-
tivo, a possibilidade de apropriação de bens materiais e imateriais e de
parcelas do poder por parte de camadas da sociedade que dessa se viam
desprovidas no critério anterior, sem, por critérios objetivos, ainda que
abstratamente, excluir dessa mesma possibilidade as demais camadas da
população, devido a uma lógica que coloca todos os indivíduos num
plano, ao menos mínimo, de igualdade e liberdade em relação aos outros.
Isto se torna possível, pois, não obstante as diferentes nuances das
teorizações acerca da sociedade e do Estado presentes nos principais
teóricos do contratualismo e do liberalismo, percebe-se que o fio condu-
tor de suas manifestações centra-se na perspectiva de igualdade e
liberdade básicas de todos os membros da sociedade que, reunidos,
abrem mão de parcelas dessas prerrogativas básicas, através do hipotéti-
co Contrato Social, limitando-as em prol da ordem ou do bem estar social,
dando assim origem a um status sociojurídico, a um Estado de Direito, no
qual a igualdade e a liberdade, não mais entendidas em sua forma
primitiva, apresentam-se referenciadas à lei, enquanto manifestação
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
objetiva de uma vontade geral.
Nessa formulação percebe-se também que as concepções
contratualistas do final do século XVII e início do século XVIII refletem,
no âmbito da teorização sociopolítica, as alterações desencadeadas pelas
reformas do modo de produção com a decadência do feudalismo e o
surgimento de uma sociedade industrial e de mercado.
A noção de contrato, que é o instrumento básico do mercado e das
relações comerciais, além de ser elemento de fortalecimento da propri-
edade privada, é conceito fundamental da classe emergente na gênese da
Sociedade Moderna.
Luciano Gruppi (1987) ao analisar as concepções dos principais
teóricos contratualistas observa em suas construções a revelação “do
caráter mercantil e comercial das relações sociais burguesas”.
Fica evidente a base burguesa dessa concepção. Já estamos numa
sociedade em que nasceu o mercado, onde a relação entre os homens
se dá entre os indivíduos que estabelecem entre si contratos de compra
e venda, de transferência de propriedades, etc. Esta realidade indivi-
dualista da sociedade burguesa, alicerçada nas relações mercantis e de
contratos, expressa-se na ideologia política, na concepção do Estado.
(1987:14)
Nesse sentido os postulados das teorizações liberais e contratualistas
mostram sua utilidade para a consolidação da estrutura social então
emergente, eis que viabilizam a possibilidade de legitimação não só das
novas formas de relações de trabalho exigidas pelo modelo de produção
industrial, e conseqüentemente da acumulação econômica desse decor-
rente, como também da aquisição e utilização do poder político e da
autoridade pela classe social diretamente beneficiada pela acumulação
econômica gerada a partir do modelo de produção industrial.
Tem-se, pois, que se colocando todos os indivíduos em condição
de igualdade, sustentando também sua condição de seres livres e institu-
indo-se o contrato como forma e instrumento basilar de estabelecimento
das relações sociais (que sendo em seu momento de origem realizado por
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Luiz Antônio Bogo Chies
entes iguais e igualmente livres não poderia ter questionada sua validade
e legitimidade), que a ampla apropriação privada e o intercâmbio dos
bens, sejam materiais ou imateriais, por qualquer membro da sociedade
ou grupo (inclusive uma classe específica) passa a ser também entendida
como legítima, uma vez que todos se encontram, ao menos no plano
formal, em condição de igualdade para se apropriarem do que está
disponível para tal.
O contrato, nessa perspectiva de dinâmica e relação social, funci-
ona como o instrumento mediador entre dois momentos igualmente,
porque mediados por ele, considerados legítimos ou legitimáveis: o da
igualdade e liberdade (mesmo que formais e abstratas) das partes na
situação em sua origem – o momento anterior ao contrato, de sua
formulação – e o da “eventual” (porque mesmo que situação freqüente
não pode ser considerada conditio sine qua non) desigualdade concreta
delas nos resultados, ou no acesso aos resultados, do objeto do contrato.
Com efeito, através do contrato, pois, se, mesmo em hipótese
formal e abstrata, foi a parte preservada em sua potencial liberdade e
igualdade para contratar – poderia ou não contratar, não obstante as
influências e pressões concretas do contexto no qual está inserida, vez
que não são obra das partes, mas de dinâmicas gerenciadas por supra-
partes – a desigualdade concreta do momento pós contrato passa a ser
aceita como legítima, ou legitimável, vez que produzida através da
manifestação livre e igualitária da vontade das partes.
Trata-se, pois, de uma argumentação tipicamente jurídica (e o
argumento jurídico é fundamental na transição à modernidade, como
analisaremos adiante), sendo já observada com perspicácia por Friedrich
Engels, numa peculiar analogia ao matrimônio “moderno”, em sua obra
A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
Supõe-se que o contrato de trabalho seja livremente firmado por
ambas as partes. Mas considera-se livremente firmado desde o mo-
mento em que a lei estabelece no papel a igualdade de ambas as partes.
A força que a diferença de classe dá a uma das partes, a pressão que
A valoração da competência num mundo apropriado
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esta força exerce sobre a outra, a situação econômica real de ambas;
tudo isso não interessa à lei. Enquanto dura o contrato de trabalho,
continua a suposição de que as duas partes desfrutam de direitos
iguais, desde que uma ou outra não renuncie expressamente a eles. E,
se a situação econômica concreta do operário o obriga a renunciar até
a última aparência de igualdade de direitos, a lei – novamente – nada
tem a ver com isso. (ENGELS, 2000: 78-79)8
Mas, nessa lógica é necessário que o trabalho, ou mais propriamen-
te a força de trabalho humana, passe a ser um bem abstratamente
autônomo, em termos de sua possibilidade de valoração e apropriação,
ainda que objetivamente indissociável do ser humano, podendo assim,
considerada como uma mercadoria, ser passível de apropriação e aliena-
ção sem que o trabalhador o seja enquanto indivíduo.
Sobre tal aspecto Bauman relembra Karl Polanyi quando, atuali-
zando Marx, sugere que “o ponto de partida da ‘grande transformação’que
trouxe à vida a nova ordem industrial foi a separação dos trabalhadores
de suas fontes de existência” (2001: 162), para consignar, nesse sentido,
que:
A nova ordem industrial e a rede conceitual que permitiu a proclama-
ção do advento de uma sociedade diferente – industrial – nasceram na
Grã-Bretanha; e esta se destacava entre seus vizinhos europeus por ter
destituído seu campesinato, e com ele a ligação “natural” entre terra,
trabalho humano e riqueza. Os cultivadores de terra tinham primeiro
que ficar ociosos, vagando e “sem senhores”, para que pudessem ser
vistos como portadores de “força de trabalho” pronta para ser usada;
e que essa força de trabalho pudesse ser considerada como potencial
“fonte de riqueza” por si mesma. (2001: 163)
8Em seqüência Engels assim se refere em relação ao matrimônio “moderno”: “Quanto
ao matrimônio, mesmo a legislação mais progressista dá-se inteiramente satisfeita
desde o instante em que os indivíduos fizeram inscrever formalmente em ata o seu
livre consentimento. O que se passa fora dos bastidores do tribunal, na vida real, não
são questões que cheguem a inquietar a lei ou ao legislador.” (2000: 79)
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Luiz Antônio Bogo Chies
Um caráter ambíguo desse movimento de desconexão entre o
trabalhador (servo na estrutura feudal, campesino na proximidade do
processo, mas nem por isso até então titular de “algo” valorado como
propriedade, bem patrimonial alienável) e suas fontes de existência
(sobretudo a terra), resta por permitir interpretações “libertárias” de
antigos “grilhões” e, portanto, tende a ser bem recepcionado pelos
membros daquelas sociedades em transição, até mesmo porque envolto
nos sedutores elementos de um discurso libertador e igualitário, cuja
formalidade abstrata de seu pseudoconteúdo somente será objeto de
reflexão quando a crítica não mais puder modificar facilmente o curso já
trilhado pela modernidade.
Essa nova ociosidade e o desenraizamento dos trabalhadores parecia
às testemunhas contemporâneas mais inclinadas à reflexão da eman-
cipação do trabalho – parte da alegre sensação da libertação das
capacidades humanas em geral das vexatórias e estultificantes limita-
ções paroquiais, e da inércia da força do hábito e da hereditariedade.
Mas a emancipação do trabalho de suas “limitações naturais” não
manteve o trabalho flutuando, desvinculado e “sem senhores” por
muito tempo; nem o tornou autônomo, autodeterminado e livre para
fixar e seguir seus próprios desígnios. O desmantelamento do “modo
tradicional de vida” de que o trabalhador era parte antes de sua
emancipação estava por ser substituído por uma nova ordem; desta
vez, porém, uma ordem pré-projetada, uma ordem “construída”, não
mais o sedimento do vagar sem objetivo do destino e dos azares da
história, mas produto do pensamento e ação racionais. Ao descobrir
que o trabalho era fonte da riqueza, a razão tinha que buscar, utilizar
e explorar essa fonte de modo mais eficiente que nunca. (BAUMAN,
2001: 163-164)
Logo, na Sociedade Moderna o trabalhador passa a ser entendido
como livre enquanto indivíduo. Não pode ser apropriado como o era o
escravo e tampouco está vinculado por valores de servidão a um senhor.
Somente sua força de trabalho pode ser apropriada, pois lhe é, além
elemento (bem) natural que lhe confere a igualitária capacidade de
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apropriação do mundo – a ser utilizada numa expectativa de competência
individual –, um elemento da sua esfera também individual de patrimônio
natural e, portanto, negociável, alienável mediante o “relevante” instru-
mento mediador contratual.
Há que se reconhecer e frisar, entretanto, que essas alterações nas
formas de relações de trabalho vinculam-se de sobremodo à necessidade
de se legitimar a apropriação do produto do trabalho de alguns por outros
que, não possuidores dos atributos que conferiam essa possibilidade de
apropriação no sistema anterior (e até mesmo porque tais atributos então
estavam sendo questionados e desacreditados em sua validade), necessi-
tavam de uma nova ordem de valores que agora a justificasse, e não,
portanto, a critérios necessariamente humanizantes da estrutura social
que visassem a libertação dos trabalhadores de seus anteriores grilhões,
como muitos querem fazer crer.
Assim, tal situação fática do homem enquanto trabalhador livre na
Sociedade Moderna, que decorre da incidência concreta na estrutura
social do princípio da liberdade e da igualdade entre os membros do corpo
social, vez que se todos são livres e iguais, enquanto seres humanos e
membros da sociedade, não há possibilidade legítima da escravidão, que
exige a negação da liberdade, e tampouco da servidão, que exige a
negação da igualdade, viabiliza que o burguês, enquanto emergente
capitalista da nascente sociedade industrial, que não podia (e nem poderia
aceitar com coerência) justificar a apropriação do produto do trabalho de
seu operário da mesma forma que o senhor justificava a apropriação do
produto do trabalho do servo, justifique tal apropriação em critérios que
se tornam aceitáveis pelo restante da sociedade na medida em que se
referenciam em valores também acatados pelo grupo social, conferindo,
assim, uma perspectiva de legitimidade ao modelo, capaz de mantê-lo
estável.
Nesse sentido as concepções liberais e contratualistas da socieda-
de e do Estado, a partir dos valores que sustentam e nos quais se
referenciam, viabilizam, no âmbito das relações de trabalho, que a
apropriação do fruto da força de trabalho do “empregado” seja apropriada
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Luiz Antônio Bogo Chies
pelo “empregador” de forma legítima (legitimável) pois aquele, no uso de
sua liberdade, e em condição de igualdade perante a lei em relação ao
empregador, alienou sua força de trabalho, que resta a ser um bem
alienável, mediante um instrumento legal, o contrato, que formalmente
preserva a liberdade e a igualdade de ambos na relação. O empregador,
uma vez proprietário da força de trabalho do empregado, dentro dessa
lógica, legitimamente torna-se proprietário do produto que resulta da
utilização da força de trabalho.
Já no âmbito da estrutura de organização política da sociedade,
para qual as teorizações e concepções liberais e contratualistas se dirigem
com maior ênfase, essas, numa visão sintética, viabilizaram também o
acesso legítimo ao poder político pelas camadas sociais emergentes em
sua dominação no momento de gênese da Sociedade Moderna uma vez
que, sustentando os valores da liberdade e da igualdade de todos os
membros da sociedade e instituindo o princípio do contrato – entendido
enquanto instrumento de manifestação e acordo de vontades – como
forma de estabelecimento das relações sociais, conduziram ao consenso
social em torno da noção de que, em face desses valores e princípios, não
existem critérios legítimos outros de atribuição do poder político que não
aqueles que permitem a aquisição das parcelas de poder e autoridade
disponíveis na sociedade por qualquer um de seus membros ou grupos,
já que todos são iguais, sendo a concurso livre da vontade dos demais o
elemento atribuidor do poder e da autoridade.
Não obstante o acima exposto apresentar-se dentro de um purismo
teórico que pressuporia uma igualdade de oportunidades a todos os
membros e grupos da sociedade em termos de acesso ao poder político,
igualdade essa que não é verificada na realidade concreta da estrutura
social, é necessário se reconhecer que é essa lógica, em sua hipótese
teórica, abstrata e ideal de igualdade referenciada pela lei, que acatada
pelo corpo social permite que os até então vigentes critérios de atribuição
do poder político a tão somente uma camada da sociedade, àquela
possuidora dos atributos tradicionais que conferiam poder e autoridade,
sejam suplantados permitindo o acesso do novo grupo à condição de
A valoração da competência num mundo apropriado
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dominante.
Logo, para tal legitimação do acesso ao poder político identifica-
se, de forma similar à legitimação das novas formas de relações de
trabalho, a utilização de três elementos básicos de justificação: os dois
primeiros os argumentos da liberdade e da igualdade de todos os
membros da sociedade, enquanto valores desta; e, como terceiro, o
princípio de que as relações sociais legítimas somente ocorrerão se
intermediadas por um contrato que, ainda enquanto noção possa ser um
instrumento tácito de gênese das relações, representa a possibilidade de
um acordo de vontades que preserva as partes em seus aspectos sociais
básicos, ou seja: livres e iguais.
Um quarto elemento, entretanto, deverá ser agregado na questão
do acesso ao poder político na Sociedade Moderna, não tanto como
fundamento da possibilidade de acesso, como os da igualdade e liberda-
de, ou mesmo como instrumento de mediação e acesso, como o caso do
elemento contratual (enquanto noção de contratualidade), mas sim como
o elemento distintivo, de fundamentação de legitimidade – ou de perspec-
tiva de legitimação – do porquê de um (indivíduo ou grupo) e não outro,
ascender ao poder político e ocupá-lo, mesmo que em nome dos demais,
da coletividade, e na promessa de em benefício de todos agir: tal elemento
é a competência, no sentido em que essa pode ser entendida como
vinculada a uma expectativa (atribuição, reconhecimento, esperança,
aceitação crítica ou acrítica) de capacidade qualitativa superior para o
desempenho da tarefa ordenadora e gestora da sociedade.
Trata-se aqui, pois, de uma conseqüência de tudo o que vimos
expondo, ou seja, na medida que a busca (a tarefa) da ordem no mundo
e na sociedade apropriadas passa à esfera de competência humana
(compete ao homem, lhe é uma atribuição da razão), ao mais competente,
àquele que se fizer aceito (ainda que num plano de aceitação acrítica, o
que não pode ser coerentemente presumido numa sociedade de racionais
e iguais) como o mais capaz, detentor de conhecimentos e qualidades
específicas e especiais (especializados), para desempenhar ou guiar – e
devemos nos lembrar que a etimologia do termo governo nos remete a
70 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
essa noção, o “timoneiro” – os demais na missão, na consecução da tarefa
da “ordem”, competirá (novamente num sentido de atribuição racional
para algo) o legitimável acesso ao poder político.
Assim, no contexto de gênese da Sociedade Moderna verifica-se
que as teorizações liberais viabilizaram não só que o trabalhador pudesse
se transformar no indivíduo livre do qual, no entanto, a força de trabalho
será passível de apropriação, mas também que o poder político pudesse
ser alcançado, apropriado e exercido legitimamente por camadas sociais
antes desprovidas dessa possibilidade, resolvendo-se, desse modo, as
duas necessidades básicas para a consolidação do modelo societário
moderno.
4.3. O Jurídico entra em pauta
Mas, para que tal se desenvolvesse como acima foi observado, a
igualdade e a liberdade enquanto valores basilares da estruturação social
moderna não conservaram suas características primitivas, ou seja: não
são valores absolutos, desprovidos de qualquer referencial, mas sim
valores vinculados a um critério racional, formal, do que decorre a
necessidade de que o Jurídico e o Direito entrem em pauta.
Entretanto, antes que avancemos nesse ponto, entendemos perti-
nente uma sucinta exposição da orientação que vimos adotando no
entendimento do Jurídico e do Direito, haja vista que traçamos uma certa
distinção, sobretudo de amplitude e foco especial de gênese, quanto aos
fenômenos referidos por tais termos9.
9Neste ponto específico vamos apresentar uma síntese daquilo que já trabalhamos, de
forma um pouco mais ampliada, em nosso texto “Por uma Sociologia do Fenômeno
Jurídico: Reflexões motivadas por uma disciplina e sua inserção no ensino do
Direito”, publicada pela Educat (Editora da Universidade Católica de Pelotas), na
série Cadernos de Direito (nº 4), 2001.
A valoração da competência num mundo apropriado
71
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Com efeito, entendemos o Jurídico enquanto um fenômeno social
complexo que constitui uma forma de expressão socialmente perceptível
dos sentimentos e processos, valores e condutas, de conservação das
condições de viabilização da vida social, informada pelo melhor conhe-
cimento possível em cada época (a cognição em seu grau máximo de
racionalização possível em cada momento e contexto histórico; o conhe-
cimento científico-empírico, no caso das sociedades civilizadas) e
compatibilizador da expectativa social de realização de seus conteúdos
com a exigibilidade externa desses a partir de intervenções sociais de
coercibilidade aceitas.
Tal fenômeno social, por ser complexo, pode ser enfocado a partir
de diferentes dimensões suas, das quais nós salientamos a de “processo”,
a de “status” (vinculada a questão da legitimidade), e a(s) de “realidade”
(vinculada às normas jurídicas em espécie). O Direito é por nós localiza-
do como essencialmente vinculado à dimensão, ou uma das dimensões,
de realidade do fenômeno Jurídico, o que não lhe retira o inerente vínculo
e inter-relação com as demais dimensões.
Como em referência a uma dimensão de realidade do Jurídico,
entendemos que o Direito se vincula a uma noção geral de norma Jurídica,
sendo que esta consideramos como um juízo, expresso por formas
socialmente perceptíveis, cujo conteúdo é programático e/ou prescritivo
ou proscritivo, de valores ou padrões de comportamento, selecionados
(através de processos conflitivos) como de superior relevância para fins
de consolidação, vigência e manutenção de um sistema societário, ou de
aspectos deste, a partir de um típico e característico processo de
nomogênese Jurídica, compatibilizador da expectativa de realização de
seu conteúdo com a exigibilidade externa deste a partir de intervenções
sociais de coercibilidade aceitas.
Com efeito o Direito (em sentido estrito e normativo), em nossa
orientação, é norma de gênese Jurídica com características especiais. É
norma, pois, que obviamente quando legítima guarda características
fundamentais do Jurídico e das dimensões deste, mas, entretanto, tem
natureza especial por ter sofrido um processo de positivação.
72 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
Quanto ao processo de positivação da norma Jurídica, que a
especializa para caracterizá-la como Direito, entendemos que este ocorre
sempre a partir do foco de dominação de uma estrutura de poder
organizada em relação a um grupo social.
Do exposto decorre, pois, que em nossa orientação o Direito
possuirá sempre um vínculo de cumplicidade com um status quo social,
uma estrutura de poder organizada, o que impõe que o Direito, enquanto
norma Jurídica positivada, tenda a priorizar aquela função conservadora
do Jurídico (que é uma dentre outras funções suas), tornando-a senão
única ao menos a preponderante.
Feitas essas observações podemos retomar nossas reflexões acer-
ca do período de transição que estamos a analisar, de imediato, consig-
nando a seguinte, e pertinente, observação de Gilhermo O’Donnell:
O direito racional-formal nasceu e expandiu-se juntamente com o
capitalismo. Isto expressa uma relação profunda: esse direito é a
codificação formalizada da dominação na sociedade capitalista, median-
te a criação do sujeito jurídico, implícito na aparência da vinculação livre
e formalmente igual do intercâmbio da força de trabalho e, em geral, da
circulação de mercadorias. (1981a: 82)
O’Donnel ainda considera o Direito racional-formal:
a cristalização mais formalizada da contribuição do Estado à socieda-
de qua capitalista. Isto, não apenas porque cria o sujeito social
descarnado, implícito nas relações capitalistas e na apropriação
privada dos meios de produção. Mas também porque, como
formalização cognoscível, ensina preventivamente às partes os limi-
tes de seus direitos e deveres, diminuindo, portanto, a necessidade de
intervenção ostensiva para invocar em última instância a fiança
coercitiva do Estado; graças a isto, tal intervenção aparece movida
não por sujeitos de um sistema de dominação, mas por sujeitos
juridicamente iguais, que “apenas” limitam-se a exigir o cumprimento
do que contrataram livremente e na base de situações abstratamente
tipificadas nas normas legais. (1981a: 82)
A valoração da competência num mundo apropriado
73
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Também Weber, cuja análise do Direito racional é bastante diversa
da de O’Donnel, credita “incontestável importância” aquele para o
desenvolvimento do capitalismo. Consigna ele, na introdução de A ética
protestante e o espírito do capitalismo: “Entre os fatores de importância
incontestável, encontram-se as estruturas racionais do direito e da
administração. Isto porque o moderno capitalismo racional baseia-se,
não só nos meios técnicos de produção, como num determinado sistema
legal10 e numa administração orientada por regras formais”. (2001: 10)
Redundante, pois, que se venha aqui lançar maior esforço no
sentido de demonstrar o já uníssono, ou seja: a indissociabilidade
genética entre o Direito (em sua positivação racional-legal) e a Sociedade
Moderna. Análises e interpretações diversas, entretanto, decorrem dessa
constatação a partir de enfoques específicos sobre os conteúdos jurídicos
consagrados no(s) sistema(s) normativo(s) de essência típica da
modernidade, não sendo nosso intuito nem sacralizá-lo – numa imputa-
ção reverente de suas contribuições para a esteira que indica o rumo da
conquista de um verdadeiro Estado Democrático de Direito – e tampouco
demonizá-lo por seus formalismos e abstrações que lhe permitem ser
assumido como forma independente e indiferente de substatividade. O
que pretendemos é, nos limites desse estudo, promover algumas refle-
xões sobre fragmentos específicos desse Direito, tão caro à modernidade
em sua constituição e consolidação, que nos permitam agregar às análises
já procedidas outros retalhos dessa complexidade que resulta numa
especial valoração da competência dentro de um mundo apropriado.
Resguardaremos, pois, outros enfoques para momentos de reflexão
posteriores.
Apresentado tal limite de nossas presentes abordagens retomamos
nosso rumo para considerar que, na configuração da Sociedade Moderna,
em termos de sua estruturação sociopolítica, o Direito (como não poderia
deixar de ser) exerce especial papel enquanto elemento racional-formal
10 Nesse ponto o tradutor da obra de Weber registra a seguinte nota: “No original
berechenbaren Recht, cuja tradução literal é “direito calculável”.
74 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
cristalizador dos valores necessários à organização da estrutura societária
dentro de seus novos moldes, especialmente em face da necessidade de
delimitação e consolidação dos valores basilares de sua constituição: as
noções de igualdade e liberdade, viabilizadoras das apropriações de bens
mediadas pelos contratos, instrumentos também de natureza jurídica.
Nesse sentido a igualdade, como valor fundamental da Sociedade
Moderna, não significa que todos sejam iguais em tudo, mas sim que
todos, no plano racional-formal da lei, ou seja, perante esta, terão igual
possibilidade de gozo de determinados direitos e garantias legalmente
asseguradas. Assim, a igualdade jurídica possui como referencial não a
igualdade de condições concretas da vida humana, mas tão somente a
perspectiva de todos participarem em iguais condições de um mesmo
regramento jurídico(positivo)-social, sem que restrições sejam impostas
a alguns por critérios que não possam acarretar a mesma imposição a
outros que se encontrem em igual condição.
As limitações à concreta igualdade dos indivíduos no plano fático
da vida social, ou seja no acesso, uso e gozo dos bens socialmente
produzidos serão resultantes de situações também sociais (diferenças de
competência, porque não!), e não da hipotética imposição de distinções
legais para estes ou aqueles grupos.
De forma similar a liberdade será um valor referenciado pela lei,
ou seja, todos são livres, e igualmente livres, pelos critérios legais e para
agir dentro dos limites da lei, o que, sem que exista contradição com a
lógica formal-legal do valor liberdade, não significa que todos necessa-
riamente consigam exercer sua liberdade em iguais condições concretas.
Logo, o que se verifica é que os valores igualdade e liberdade
enquanto fundamentais na Sociedade Moderna, ao se referenciarem com
uma perspectiva formal-legal, são valores abstratos, cuja necessária
concretização na produção de iguais condições de vida e de competitividade
nas relações sociais não é obstáculo a conflituar com a lógica de suas
noções. Ou seja, dentro da lógica formal-legal desses valores a não
existência de fato de uma igualdade social entre os indivíduos e de uma
igual condição de uso da liberdade não lhes retira a validade, face a
A valoração da competência num mundo apropriado
75
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
própria natureza ideal dos mesmos.
Dentro dessa lógica, que resta por gerar uma expectativa de
isenção de responsabilidade outra que não aquela que possa ser imputada
ao indivíduo – e não podemos olvidar, mesmo que nesse momento não
aprofundemos o tópico, que o Direito moderno é, em sua primeira feição
liberal ainda não suplantada, essencialmente individual, ou seja, tutelador
de “direitos” que se exercem à exclusão dos demais (erga omnes) ou em
garantia contra os demais, ainda que sob outro enfoque isso possa
significar uma limitação do arbítrio do Estado contra o cidadão – a
desigualdade concreta, pois, trata-se de uma questão, em gênese e em
efeitos (e portando também de responsabilidade), de desigualdade de
competências (entendida enquanto capacidade para agir na esfera daqui-
lo que nos compete – atribuído pela razão) individuais, e tão somente
individuais.
De qualquer forma, a principal herança do pensamento liberal, e que
ocasionará um impacto muito grande na concepção dos regimes
constitucional-pluralistas do século XX, é a idéia de livre competição
entre todos, sob igual subordinação à ordem jurídica, que resulta no
predomínio do melhor em qualquer campo relevante. (FARIA, 1978:
61)
Assim, a partir dessa perspectiva de análise do momento de gênese
da Sociedade Moderna, e portanto do momento em que a constituição de
seu modelo básico de estruturação e organização referenciou-se, para sua
consolidação e conquista de vigência, nos níveis ao menos mínimos de
estabilidade de seu status quo, em determinados valores que na dinâmica
social se cristalizaram em princípios cuja validade social obteve reconhe-
cimento por parte dos membros da estrutura societária, podemos concluir
que os elementos valorativos básicos que compõem o paradigma funda-
mental legitimador da Sociedade Moderna se referem, numa primeira
ordem, às noções, e também valores, de igualdade e liberdade de todos os
indivíduos perante a lei, bem como à noção de contrato, enquanto
76 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
instrumento formal ou tácito necessário ao legítimo estabelecimento das
relações sociais entre os indivíduos, livres e iguais, que convivem numa
sociedade regulamentada.
A esses três elementos, numa perspectiva delimitadora do conteú-
do básico e mínimo do paradigma fundamental legitimador da Sociedade
Moderna, será necessário somar-se a noção de apropriação privada como
também um princípio basilar, que manifesta um valor social reconhecido,
dessa estrutura societária (lembremo-nos que toda a constituição da
modernidade é perpassada por um processo de apropriação do mundo
pelo homem).
Nesse sentido, e verificando-se que a noção de propriedade priva-
da viabiliza que os bens materiais e imateriais disponíveis na natureza ou
resultantes do trabalho cultural humano sejam passíveis de apropriação
pelo particular, conferindo a este a possibilidade de uso exclusivo do bem
e, portanto, também a possibilidade de exclusivamente gozar dos bene-
fícios que o mesmo lhe pode gerar, deve-se reconhecer uma importância
quase superior da noção de apropriação privada, enquanto um princípio
e um valor social, na compreensão do conteúdo do paradigma fundamen-
tal legitimador da Sociedade Moderna.
Devem ainda integrar a base elementar do paradigma fundamental
legitimador da Sociedade Moderna, senão como valores de primeira
ordem, como noções valoradas de caráter auxiliar a esta primeira ordem,
o trabalho – a partir de seu redimensionamento ético como acima exposto
– e a competência, vez que não só, a partir de uma de suas acepções de
significado, é noção reforçadora do princípio e valor da apropriação
(privada e do mundo, e sobretudo privada no mundo coletivo) como
também é um elemento de permissão legitimável da desigualdade concre-
ta (o valor básico não confessado da Sociedade Moderna), resultado sem
o qual a própria noção e valor da apropriação privada perderia sentido e
significado nos termos da “ordenação” moderna (que assim, também,
deixaria de poder ser o que é).
Podemos assim manifestar, pois, inclusive a partir do que foi
exposto nessa análise, verifica-se que a formulação social dos princípios
A valoração da competência num mundo apropriado
77
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
da liberdade e igualdade dos membros da Sociedade Moderna, bem como
da noção do contrato enquanto o instrumento básico do estabelecimento
de relações sociais legítimas entre os indivíduos, e reconhecimento da
validade social do conteúdo que estes expressam na dinâmica social
prendeu-se prioritariamente à necessidade de se legitimar a apropriação
dos bens disponíveis no mundo (além do próprio mundo) e na vida social,
sejam eles materiais ou não, tal qual o resultado de uma atividade
economicamente produtiva a partir de um trabalho industrial, ou mesmo
uma fração do poder político existente na estrutura de organização social.
Com efeito, para retomarmos uma questão exposta na introdução
dessas reflexões, não olvidando assim nossos objetivos, podemos de
imediato reforçar nossa orientação no sentido de que, ao delimitarmos o
conteúdo básico (e mínimo) do paradigma fundamental legitimador da
Sociedade Moderna como composto pelos valores e princípios (noções
valoradas) acima expostos, sejam os de primeira ordem, sejam os
auxiliares a essa, serão esses os que encerram, expressam e manifestam
os mínimos, e também básicos, elementos de referência da perspectiva
legitimadora de qualquer realidade social que se pretenda inserir e
adquirir vigência estável nesse característico e delimitado modelo
societário moderno.
5. A sociedade dos indivíduos
A Sociedade Moderna se consolidou e se constitui através de um
mosaico de ambigüidades e paradoxos, através de inúmeros avanços
“humanizantes” do anterior status de determinismo concreto da pré-
modernidade que, entretanto, converteram-se em armadilhas para o
próprio projeto “iluminista” no qual se embasou. Como já referimos em
passagens acima, nossas reflexões não pretendem levantar uma bandeira
pró ou contra a modernidade, rotulando-a ou etiquetando-a em avaliações
de mérito absolutas; pelo contrário, esperamos que uma perspectiva de
78 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
diálogo através dos fragmentos que nos propomos recolher e analisar seja
contributiva numa apreensão mais crítica da complexidade do modelo
societário no qual estamos inseridos.
Nesse sentido indubitável que uma das conseqüências substanci-
ais dos processos de apropriação do mundo que vimos apresentando foi
o desenvolvimento de uma concepção individualista na sociedade, refle-
xo da afirmação e consolidação dos valores de liberdade e igualdade, nos
termos já expostos, e que resulta na estruturação do chamado Estado de
Direito.
Norberto Bobbio nos oferta uma adequada síntese desse significa-
do da concepção individualista quando expõe que nessa “primeiro vem
o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si
mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito
pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado”. (1992: 60)
Em sua análise Bobbio, que enfoca sobretudo a “evolução” e
historicidade dos direitos humanos, não descarta que orientações diver-
sas podem se vincular à concepção individualista noticiada, entretanto
defere uma conotação positiva da contribuição das três versões e orien-
tações que salienta, assim consignando:
É hoje dominante nas ciências sociais a orientação de estudos chama-
da de “individualismo metodológico”, segundo a qual o estudo da
sociedade deve partir do estudo das ações do indivíduo. Não se trata
aqui de discutir quais são os limites dessa orientação; mas há duas
outras formas de individualismo sem as quais o ponto de vista dos
direitos do homem se torna incompreensível: o individualismo
ontológico, que parte do pressuposto (que eu não saberia dizer se é
mais metafísico ou teológico) da autonomia de cada indivíduo com
relação a todos os outros e da igual dignidade de cada um deles; e o
individualismo ético, segundo o qual todo o indivíduo é uma pessoa
moral. Todas essas três versões do individualismo contribuem para
dar conotação positiva a um termo que foi conotado negativamente,
quer pelas correntes de pensamento conservador e reacionário, quer
pelas revolucionárias. O individualismo é a base filosófica da demo-
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
cracia: uma cabeça, um voto. Como tal, sempre se contrapôs (e sempre
se contraporá) às concepções holísticas da sociedade e da história,
qualquer que seja a procedência das mesmas, concepções que tem em
comum o desprezo pela democracia, entendida como qualquer forma
de governo na qual todos são livres para tomar as decisões sobre o que
lhes diz respeito, e têm o poder de fazê-lo. Liberdade e poder que
derivam do reconhecimento de alguns direitos fundamentais,
inalienáveis e invioláveis, como é o caso dos direitos do homem.
(1992: 60-61)
Ainda com suporte em Bobbio há que se destacar que tal concep-
ção individualista, acompanhada da perspectiva de um Estado de Direito
(como se compreende tal noção na Sociedade Moderna, mesmo que ainda
mais uma noção do que uma realidade), representou, em especial no
período de final da transição à modernidade, ou seja, no período de
constituição e afirmação dos Estados Modernos através do encetar dos
movimentos na América do Norte e França, a própria constituição da
noção política e social de cidadania, à qual, ao menos no plano formal-
legal, teve acesso toda a população anteriormente despojada de signifi-
cado político digno nas estruturas societárias anteriores, e isso através do
reconhecimento do indivíduo-cidadão e da inerente cidadania do indiví-
duo, sujeito de direitos e não só vinculado prioritariamente a deveres ou
mero titular de direitos privados.
É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final
do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No
Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não
direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao
soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em
face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos
públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. (BOBBIO,
1992: 61)
Assim, a Sociedade Moderna constitui-se essencialmente enquan-
80 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
to uma sociedade de cidadãos, mas tal cidadania se embasa na afirmação
“necessária” de uma concepção individualista do homem que se apropria
do mundo e do planejamento e gestão social deste.
É nesse ponto que se faz pertinente e, também, necessária uma
reflexão questionadora e crítica da conversão da sociedade a uma
cidadania de indivíduos (formalmente iguais e livres) na transição à
modernidade, pois, como frisa Bauman: “‘Sociedade’ sempre manteve
uma relação ambígua com a autonomia individual: era simultaneamente
sua inimiga e condição sine qua non”. (2001: 50)
Ocorre que sob outro prisma de enfoque do processo de formação
de uma concepção individualista na transição à modernidade, o do
processo de individualização do homem, e, portanto, não só o do
reconhecimento e atribuição de direitos e garantias individuais em
relação ao poder do Estado, inserem-se, novamente, em nossas reflexões
as necessárias considerações aos efeitos “perversos” (ou ao menos
inicialmente colaterais) dos processos de apropriação do mundo e auto-
imposição racional de tarefas ordenadoras em oposição ao caos
desordenado da natureza em seu estado “puro”.
Bauman resume o significado do processo de individualização do
homem no sentido da constituição de uma autonomia “de direito” (ou em
termos “de direito” e porque não “de dever”) deste, e, portanto, não “de
fato”, do que podemos também relacionar na analogia de uma igualdade
jurídica dos homens na Sociedade Moderna que não lhes implica,
necessariamente, numa igualdade de fato.
Resumidamente, a “individualização” consiste em transformar a
“identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os
atores da responsabilidade de realizar a tarefa e das conseqüências
(assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Em outras
palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure
(independentemente de a autonomia de facto também ter sido
estabelecida). (BAUMAN, 2001: 40)
Nesse sentido, pois, como igualmente podemos refletir a partir dos
A valoração da competência num mundo apropriado
81
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
suportes de Bauman, a igualdade entre os indivíduos no mundo apropri-
ado da modernidade, ao mesmo tempo que suplanta o determinismo de
status da estrutura social estamental anterior, impõe a “construção” da
identidade individualizada, da individualização do indivíduo, e a própria
conquista do status social como tarefas de competência e da medida da
competência individual de cada um, responsabilidade irrenunciável e
indissociável de avaliações de mérito e valor individual às quais todos
estarão sujeitos a qualquer momento.
Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à
individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização
está decididamente fora da jogada. (...)(...) se ficam doentes, supõe-
se que foi porque não foram suficientemente decididos e industriosos
para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não
aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram
o suficiente para encontrar trabalho ou porque são, pura e simples-
mente, avessos ao trabalho; se não estão seguros sobre as perspectivas
de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não são suficiente-
mente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de
aprender e dominar, como deveriam, as artes da auto-expressão e da
impressão que causam. Isto é, em todo o caso, o que lhes é dito hoje,
e aquilo em que passaram a acreditar, de modo que agora se compor-
tam como se essa fosse a verdade. (BAUMAN, 2001: 43)
É, com efeito, uma tal concepção de individualidade como tarefa
que converte a perspectiva ontológica dignificante do indivíduo numa
angústia, que somente pode se resolver pela competição, pela
competitividade no ambiente social, em busca de uma identidade e de um
status individual senão totalmente tranqüilizador, ao menos
potencializador de menos angústia, incerteza e desordem desacomodadora.
O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a
crítica compulsiva da realidade. A privatização do impulso significa
a compulsiva auto-crítica nascida da desafeição perpétua: ser indiví-
duo de jure significa não ter ninguém a quem culpar pela própria
82 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
miséria, significa não procurar as causas das próprias derrotas senão
na própria indolência e preguiça, e não procurar outro remédio senão
tentar com mais e mais determinação. (BAUMAN, 2001: 47-48)
A modernidade, pois, ao se constituir embasada no postulado do
valor da igualdade (de direito e não de fato) e do valor da liberdade,
fundando-se igualmente na racionalidade de um mundo apropriado, no
qual, portanto, a apropriação (privada) se converte num valor e num
princípio básico que, conjugado à liberdade e igualdade individuais, se
converte na fonte autorizadora da desigualdade concreta legitimável pela
mediação do contrato, somente poderá ser a sociedade da competição
entre entes presumidamente competentes e competitivos para competir.
A angústia humana da modernidade não poderá ser outra que não à
vinculada ao risco da (in)competência individual, vez que e esse o valor
de medida legítima (legitimável) da identidade própria, do status diferen-
ciado e da desigualdade concreta vista como “porto seguro” a ser atingido
na tarefa ordenadora individual, ainda que este porto não comporte
muitas embarcações e que isso represente negar o seu acesso aos demais.
Aqui, pois, a concepção individualista da Sociedade Moderna
expõe um de seus mais graves paradoxos, o indivíduo como inimigo do
cidadão. Bauman, com suporte em Tocqueville, mais uma vez nos
sintetiza a questão (não dispensando ao final seu peculiar tom crítico,
irônico e realista) :
... como Tocqueville há muito suspeitava, libertar as pessoas pode
torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão,
sugeriu ele. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar o seu próprio
bem-estar através do bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo
tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”,
ao “bem comum”, à “boa sociedade” ou à “sociedade justa”. Qual é
o sentido de “interesses comuns” senão permitir que cada indivíduo
satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam
quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto
possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de
A valoração da competência num mundo apropriado
83
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
buscar o que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não
ajudarão. As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do
“poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que
permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que
todos o façam “em paz” – protegendo a segurança de seus corpos e
posses, trancando criminosos reais e potenciais nas prisões e manten-
do as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de
estranhos constrangedores e maus. (2001: 45)
No legado da igualdade libertadora da modernidade (racional,
formal e legal) está não só o Estado de Direito e a concepção individua-
lista que o sustenta, funda e embasa (na noção de conotação positiva
como exposta por Bobbio), e portanto a gênese do cidadão e da cidadania
modernas – enquanto substancias conquistas ou metas –, como também
a angústia da tarefa da individualização “de fato” do homem inserido num
mundo apropriado, a angústia, portanto, de sua auto-atribuição de com-
petência para a tarefa e para o mundo, que, como vimos, tende a
necessariamente se resolver pela exigência de uma competitividade em
dinâmicas sociais competitivas, e não, pois, cooperativas.
O valor emancipatório da igualdade na modernidade, em oposição
a determinista concepção pré-moderna de desigualdade ontológica entre
os homens (num sentido talvez não pejorativo ou indignificante, vez que
então aceito em sua pressuposta ontologia), representa também uma
armadilha da transição ao favorecimento de dinâmicas sociais coopera-
tivas, que se tornam incompatíveis ou inadequadas às possibilidades e
exigências ordenadoras do mundo apropriado.
Não por outro motivo, supomos, seja o redimensionamento dessa
questão uma tarefa tão árdua e tão importante no decorrer da percepção
crítica da modernidade. Questão que, enquanto problemática, encontra-
se atualmente maximizada, potencialidade pela realidade pós-moderna
(modernidade leve, líquida, fluída como alguns preferem – entre eles
Bauman).
Suplantar a igualdade como valor somente nos pontos perversos de
sua feição moderna nos empurra a outros labirintos, ambigüidades e
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Luiz Antônio Bogo Chies
ambivalências de significados, conteúdos e substancialidades não dese-
jadas, perigosas por relembrarem, num processo de risco atávico, crité-
rios basilares de modelos societários que não desejamos (re)construir ou
mesmo (re)despertar.
Nesse sentido Cláudio Souto (sociólogo-jurídico brasileiro), criti-
cando a irrealidade concreta da igualdade entre os seres, vez que significa
fundamentalmente identidade e não analogia entre os mesmos, propõem-
nos o critério da semelhança consignando:
Com a perspectiva da “semelhança”, o panorama é outro. Ao invés da
irrealidade da “igualdade” (“identidade”), uma realidade de altíssima
abrangência, pois tudo é mais ou menos semelhante na natureza
conhecida: o próprio homem que parecia tão dessemelhante do apenas
físico-químico, o tem na sua própria infra-estrutura de composição
orgânica. Porém como não existe igualdade absoluta dos seres, tudo
é, ao mesmo tempo, semelhante e dessemelhante na natureza conhe-
cida. Os graus de semelhança e dessemelhança é que vão definir as
relações entre os seres. (1997: 119)
O que Souto propõe, em última instância, é a perspectiva de se
retomar critérios e valores que sejam favorecedores de dinâmicas sociais
cooperativas enquanto preponderantes às competitivas, situação que nos
parece suficientemente indicada como inversa na atual concepção
valorativa moderna. Assim, como tantos outros, aos quais também nos
filiamos, sustenta na busca da solidariedade estar a chave para o desvelar
de uma substantividade ética-social a qual nossa modernidade ainda
objeta.
A questão que se põe, e para a qual também ainda não temos
resposta, está em como, numa prática concreta e geral, sem descaracterizar
o indivíduo ontológico (em sua dignidade, valor e direitos) e se opor aos
benefícios racionais-tecnológicos, suplantar a sociedade dos indivíduos
com a sociedade dos cidadãos.
A valoração da competência num mundo apropriado
85
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
6. O mundo apropriado na metáfora do jardim
Bauman, em diversos momentos de sua obra, trabalha, com a
propriedade que lhe é peculiar, uma metáfora que entendemos sintetizar
o sentido da modernidade: a Metáfora do Jardim, ou da Lógica do
Jardineiro. Apresentaremos e utilizaremos essa metáfora, com suporte no
sociólogo polonês, pois a temos como de extrema contributividade, não
só para o total de nossas reflexões, mas também, para o encaminhamento
das conclusões pertinentes aos tópicos da valoração da competência num
mundo apropriado (como vimos até agora desenvolvendo nesse estudo).
Como bem expõe Bauman, e com o que concordamos plenamente:
O Estado moderno nasceu como uma força missionária, proselitista,
de cruzada, empenhado em submeter as populações dominadas a um
exame completo de modo a transformá-las numa sociedade ordeira,
afinada com os preceitos da razão. A sociedade racionalmente plane-
jada era a causa finalis declarada do Estado moderno. O Estado
moderno era um Estado jardineiro. Sua postura era a do jardineiro. Ele
deslegitimou a condição presente (selvagem, inculta) da população e
desmantelou os mecanismos existentes de reprodução e auto-equilí-
brio. Colocou em seu lugar mecanismos construídos com a finalidade
de apontar a mudança na direção do projeto racional. O projeto,
supostamente ditado pela suprema e inquestionável autoridade da
Razão, fornecia os critérios para avaliar a realidade do dia presente.
Esses critérios dividiam a população em plantas úteis a serem estimu-
ladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removi-
das ou arrancadas. Satisfaziam as necessidades das plantas úteis
(segundo o projeto do jardineiro) e não proviam as daquelas conside-
radas ervas daninhas. Consideravam as duas categorias como objetos
de ação e negavam a ambas os direitos de agentes com autodetermi-
nação. (1999: 29)
A metáfora do jardim se demonstra de grande pertinência para a
reflexão acerca do mundo apropriado (nos dois significados que estamos
86 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
empregando o termo) não só porque nos remete a uma ampla possibili-
dade de considerações numa exploração dos conteúdos metafóricos
implícitos e explícitos, como também numa perspectiva de desvelamento
das conseqüências sociais (em termos de dinâmicas e valores adotados e
favorecidos) que o assumir da lógica do jardineiro, inerente à metáfora,
resta por produzir.
Em primeiro lugar podemos destacar que um jardim, por definição
é ordinariamente um espaço (senão fechado) limitado e delimitado, por
maior que pretenda ou possa ser seu tamanho. Como um segundo aspecto
deve-se salientar que o jardim é um lugar de cultivo, de atividade
transformadora da natureza e, portanto, sobretudo de intervenção huma-
na sobre a natureza para transformá-la, para cultivá-la, para conferir-lhe
uma ordem diversa da (des)ordem natural, não cultivada.
Aqui, interessante notar-se que mesmo a orientação teológica
cristã, fundamental no mundo pré-moderno, com base na descrição
Bíblica do Gênesis, nos remeterá tanto aos limites (fronteiras) do jardim
como à destinação de tal espaço a uma tarefa de cultivo humano, não
obstante esteja preservada a criação divina do Jardim.
Com efeito, tem-se no Gênesis (2,8) que “o Senhor Deus plantou
um jardim em Éden, ao oriente, e ali pôs o homem que havia formado”,
o que se complementa no versículo 15, adiante: “O Senhor Deus tomou
o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e guardar”.
A existência de fronteiras a limitarem o espaço do Jardim
paradisíaco, que é indicada a partir do próprio significado da palavra
Éden – no sumério “planície fértil” e usada no livro do Gênesis para
indicar uma região ao sul da Mesopotâmia11 –, fica ainda mais percep-
tível pela própria expulsão do homem, por Deus, após o “pecado
11 Note-se, ainda, que em Gênesis 2,10-14, há uma tentativa de localização geográfica
do Jardim do Éden (Paraíso) na terra: “De Éden nascia um rio que irrigava o jardim
e de lá se dividia em quatro braços. O primeiro se chamava Fison; ele banha todo o
país de Hévila, onde se encontra o ouro , um ouro muito puro. Lá também se encontra
o bdélio e a pedra de ônix. O nome do segundo rio é Geon, o rio que banha todo o país
de Cuch. O nome do terceiro rio é Tigre. Corre ao oriente da Assíria. E o quarto rio
é o Eufrates.”
A valoração da competência num mundo apropriado
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Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
original”, como se lê em Gênesis 3,23-24: “E o Senhor Deus o mandou
para fora do jardim de Éden, a fim de cultivar o solo de que fora tirado.
Tendo expulso o homem, colocou diante do jardim de Éden os querubins
com o cintilar da espada fulgurante, para guardar o caminho da árvore
da vida”. O homem, pois, foi expulso para o espaço exterior ao Jardim do
Éden, para o lado de fora daquele ambiente e daquela “ordem”, para a
desordem não cultivada das forças naturais.
O jardim humano, de forma ainda mais contundente que o jardim
divino, é o lugar de cultivo transformador em oposição ao “reinado
agreste das forças naturais12 ”; é o local onde, no ponto máximo inclusive
da concepção racional e estética da cultura, a natureza será objeto de
transformação a partir de intervenção ordenadora do jardineiro, desde a
infra-estrutura do ambiente cultivado – o solo, com técnicas adubação
para uma potencialização fertilizante, passando-se, se possível, até
mesmo pelo controle do clima, temperatura etc. – avançando por um
projeto paisagístico que formatará canteiros e definirá, através da valoração
e seleção, quais as plantas dignas ou indignas de permanecerem inseridas
no ambiente cultivado, e, mesmo assim, designando lugares e posições
determinados para as categorias de plantas na perspectiva de uma
composição supostamente harmônica como estipulada no projeto.
Os processos de apropriação do mundo pelo homem, portanto,
viabilizaram que este vislumbrasse o mundo como um amplo espaço de
jardinagem, encontrado, entretanto, no momento de humana gênese da
auto-consciência racional apropriadora, numa imputada situação de
desordem paisagística, quando não num estado ainda “agreste do reinado
das forças naturais” e, pois, não ordenado.
Logo, os processos de apropriação do mundo pelo homem, no
sentido de que o mundo foi tomado pelo homem para si, que entrou na sua
12 Esta expressão, “reinado agreste das forças naturais”, foi por nós buscada numa
citação de Bauman (1999: 36), na qual reproduz um escrito de R.W. Darré, de 1930,
que depois seria ministro nazista da Agricultura. Indicamos aqui a referência
bibliográfica apresentada por Bauman: R.W. Darré, “Marriage Laws and the Principles
of Breeding”, em Nazy Ideology bbefore 1933, org. Bárbara Miller e Leila J. Rupp
(Manchester: Manchester University Press, 1978), p.115.
88 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
esfera de competência, conduziram necessariamente a adoção de uma
postura de auto-imposição humana de uma tarefa de apropriação do
mundo, no sentido de este ambiente deveria ser “cultivado” racionalmen-
te para se tornar conveniente, adequado, adaptado, conformado e acomo-
dado, num sentido valorado enquanto “melhor”, “potencialmente
maximizado”, o que será obra de competência humana na medida da sua
competência.
Bauman nos esboça a cultura moderna como um canteiro de
jardim, assim consignando:
A cultura moderna é um canteiro de jardim. Define-se como um
projeto de vida ideal e um arranjo perfeito das condições humanas.
Constrói sua própria identidade desconfiando da natureza. Com
efeito, define a si mesma e à natureza, assim como a distinção entre as
duas, por sua desconfiança endêmica em relação à espontaneidade e
seu anseio por uma ordem melhor, necessariamente artificial. À parte
o plano geral, a ordem artificial do jardim precisa de instrumentos e
matérias-primas. Também precisa de proteção contra a ameaça impla-
cável de – óbvio – uma desordem. A ordem concebida originalmente
como um projeto, determina o que é um instrumento, o que é matéria-
prima, o que é inútil, o que é irrelevante, o que é perigoso, o que é erva
daninha e o que é uma praga. Classifica todos os elementos do
universo pela relação que têm com ela. Tal relação é o único sentido
que lhes concede e tolera – e a única justificativa para os atos do
jardineiro, diversos como as próprias relações. Do ponto de vista do
plano geral, todas as ações são instrumentais, enquanto todos os
objetos de ação são coisas que facilitam ou estorvam o plano.
(BAUMAN, 1998a: 115-116)
Dentre as diversas conseqüências dessa cultura moderna que se
funda na lógica da jardinagem, decorrente da própria auto-imposição da
ordem como tarefa e missão da modernidade, localizar-se-á como uma
das de efeito mais contundente, sobretudo no que influência as dinâmicas
sociais, a postura preponderantemente racional, e, nesse ponto, sobretu-
do racional-instrumental, que se encontra tanto a partir do enfoque nas
A valoração da competência num mundo apropriado
89
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
instituições e organizações da Sociedade Moderna quanto do homem da
modernidade (em todas as feições dessa) em suas relações.
A postura racional, a racionalidade, como nos apresenta Bauman,
é uma conseqüência indissociável da atividade e da tarefa ordenadora
que, como vimos, foi auto-imposta pelo homem como a “missão” que
deve ser cumprida pela modernidade através da apropriação do mundo.
A ordenação – o planejamento e a execução da ordem – é essencial-
mente uma atividade racional, afinada com os princípios da ciência
moderna e, de modo mais geral, com o espírito da modernidade. Como
a empresa de negócios moderna, que teve de separar-se da família para
bloquear o impacto corrosivo das responsabilidades morais economi-
camente injustificáveis, das redes de afinidades e quaisquer outras
situações governadas por relacionamentos pessoais, assim também o
impulso racionalizante dos agentes políticos deve procurar libertar-se
das “restrições éticas”. (BAUMAN, 1999: 47)
Mas, como a própria citação de Bauman já está a nos indicar, a
racionalidade moderna possui uma nota característica que a torna poten-
cialmente perversa, no sentido em que se constitui enquanto uma
racionalidade-instrumental, ou seja, pretende-se liberta de eventuais
restrições éticas sendo, “como todos cremos, política e moralmente
neutra” (BAUMAN: 1999, 52).
O desenvolvimento, inclusive teórico, dessa modalidade especial
de racionalidade, a racionalidade-instrumental, será fundamental nas
análises de Weber acerca da burocracia, estando o tipo ideal que formula
(“constrói”) em relação às organizações burocráticas embebido e ineren-
temente vinculado à noção da racionalidade-instrumental, salientado-se,
nesse sentido, como de forma redundante já se sabe, que o modelo
organizacional burocrático se constituirá no modelo básico das institui-
ções modernas, da Sociedade Moderna enquanto uma Sociedade Com-
plexa, uma Sociedade de Organizações.
E aqui podemos de imediato consignar que é através do modelo
organizacional burocrático que a Sociedade Moderna viabilizará a
90 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
“institucionalização” da lógica da jardinagem em seu mundo apropriado
e para a apropriação do mundo, vez que será através das estruturas
burocráticas que a racionalidade-instrumental (presumidamente liberta
das restrições éticas, ou indiferente a essas por se propor neutra) perpas-
sará todas as esferas institucionais e relacionais da vida individual e
social moderna, alcançando e contaminando o nível sociopolítico (estru-
tural e institucional) mais elevado (hierarquicamente superior) do plane-
jamento, gestão, administração (e também dominação) social: o Estado,
do qual também não deixa de ser cúmplice genético na consolidação da
Sociedade Moderna.
Bauman, que sobretudo em sua obra Modernidade e Holocausto
(1998a) confere à burocracia e suas dinâmicas especial papel – conditio
sine qua non – no genocídio nazista, em sua pertinente visão crítica nos
oferta uma síntese dos efeitos da admissão da burocracia como modelo
organizacional na modernidade, utilizando-se, para tal, da análise da
atividade dos cientistas (aos quais se pode até imputar a qualidade de
“colaboradores”, muitas vezes inconscientes, das possibilidades
genocidas) – mas que pode ser entendida como análoga às demais
categorias profissionais modernas –, o que também nos poderá fornecer
substanciais argumentos para reflexões acerca do já tão desmentido mito
da neutralidade científica.
O que ajuda é que os cientistas modernos estão organizados numa
estrutura burocrática – com sua divisão vertical e horizontal do
trabalho que os lança, na maioria, em uma posição de “intermediári-
os” (Lachs), mantendo-os no “estado de agentes” (Milgram). Rara-
mente os especialistas vêem as conseqüências últimas de seus atos.
Ainda é menos freqüente verem os fins lógicos de suas decisões. (Suas
contribuições representam apenas funções parciais numa complexa
rede de atividades entrelaçadas; como funcionários, como unidades
de uma totalidade mais ampla que qualquer um deles, sentem-se
eminentemente substituíveis: se não fizerem isso ou aquilo, alguém
mais fará. Assim elimina-se de suas ações toda personalidade, junta-
mente com a responsabilidade pessoal.) Acima de tudo, raramente
A valoração da competência num mundo apropriado
91
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
enfrentam com destemor os resultados finais. Se quiserem, podem
mesmo permanecerem inconscientes desses resultados. (BAUMAN,
1999: 58)
O caráter de perversidade das dinâmicas racionais-instrumentais
favorecidas pelas estruturas burocráticas, entretanto, numa confluência
sobretudo das possibilidades liberadoras das restrições éticas às quais
eventualmente poderiam estar vinculados os agentes e participantes
(diretos e indiretos) das instituições, ou os que a essas se submetem
(voluntária ou involuntariamente), está para mais além de uma simples
perspectiva de isenção de responsabilidade decorrente de seus atos,
posturas, práticas e valores, está, portanto, numa substituição de uma
responsabilidade moral por uma responsabilidade (meramente) técnica –
ou ao menos numa preponderância e valoração dessa responsabilidade
meramente técnica – compreendendo-se que a “responsabilidade técnica
difere da responsabilidade moral pelo ato de esquecer que a ação é um
meio para alcançar algo para além dela mesma”. (BAUMAN, 1998a:
125)
Com efeito, tais reflexões nos remetem à necessidade de se
considerar que a Sociedade Moderna, assumindo uma lógica de jardina-
gem que se demonstra indissociável da tarefa ordenadora, que os proces-
sos de apropriação do mundo pelo homem e de autoconsciência racional
lhe impõe como missão apropriadora do mundo, viabilizada através de
uma racionalidade-instrumental que alcança os níveis institucionais com
a burocratização das estruturas e dinâmicas organizacionais, converte-se
no palco da competência e das competições técnico-instrumentais, ou
seja, que se pretendem e se constituem na desconsideração de restrições
éticas na conduta, nas práticas, nos atos e, se possível nos próprios
“valores” ou valorações, numa busca de isenção de perquirições de índole
moral para o efetivo desempenho das tarefas de “cultivo e manutenção do
jardim” em todos os seus níveis e por todos os seus elementos (mesmo
aqueles categorizados pelo superior jardineiro).
92 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
Considerações finais: ou, a valoração da competência, a
competitividade “legítima” como corolário da desigualdade concre-
ta
Em todos os momentos do caminho até aqui percorrido pudemos
perceber a noção de competência como um elemento que perpassa todos
os processos e movimentos que se fundem na transição à modernidade.
Seria aqui, então, demasiado redundante que arrolássemos novamente,
ainda que numa perspectiva de síntese, os pontos de vínculo entre a noção
de competência (em ambos os significados com os quais vimos trabalhan-
do) e a modernidade. Avançaremos, portanto, no encaminhamento das
considerações finais desse estudo, para algumas reflexões que,
referenciadas nos pontos de enfoque apresentados na introdução, enten-
demos poderão ser contributivas numa compreensão mais crítica e
questionadora da noção de competência tanto enquanto valorada de
forma especial pela Sociedade Moderna, como nas influências que tal
valoração tende a provocar nas dinâmicas sociais verificáveis nesse
modelo societário.
Com efeito, como já mencionamos acima, podemos considerar
que a valoração especial que é atribuída à noção de competência na
modernidade é uma valoração instrumental, pois que é através dessa que
os valores e princípios basilares do paradigma fundamental legitimador
da Sociedade Moderna conseguem se apresentar numa perspectiva de
compatibilidade legitimável.
Nesse sentido, admitindo-se que o conteúdo básico do paradigma
fundamental legitimador da Sociedade Moderna é composto, em seu
conteúdo mínimo, pelos valores igualdade e liberdade (nos conteúdos já
mencionados) como atribuídos indistintamente a todos os membros
individuais da sociedade, somados – de forma indissociável nos termos
da modernidade – à noção da contratualidade, como modalidade instru-
mental também de relacionamento interpessoal, e à possibilidade de
apropriação privada dos bens materiais e imateriais disponíveis, o que
A valoração da competência num mundo apropriado
93
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
teremos, portanto, é que a modernidade resta por tornar admissível a
desigualdade concreta de seus membros como um resultado preponde-
rantemente tendencial (assim consignado somente porque não seria
adequado absolutizá-lo como uma regra, ainda que dessa forma nos
parece se constituir) de suas dinâmicas típicas.
Entretanto, por mais compreensíveis que sejam os limites impos-
tos à possibilidade de se atribuir à igualdade (enquanto um valor social)
um conteúdo realizável de plenitude igualitária fática para todos os
membros da sociedade – o que talvez sequer seja desejável pois signifi-
caria a uniformidade humana como negação da diversidade, da pluralidade
e da própria individualidade – justificando-se, assim, que a
substancialidade racionalmente atribuída pela modernidade na sua
valoração social se refira a uma perspectiva formal-legal, abstrata en-
quanto de jure e não de facto, torna-se imperioso reconhecer que a
permissibilidade que os elementos do paradigma fundamental legitimador
da Sociedade Moderna, quando relacionados, ofertam, a partir das
dinâmicas favorecidas, ao resultado “desigualdade concreta” de seus
membros, constitui-se enquanto paradoxo em relação à igualdade como
valor fundamental (mesmo que formal-legal, como acima indicado), e
que, portanto, a de ser “resolvido” com uma plausibilidade legitimável,
ainda que talvez, em nosso entender, falaciosa.
Tal resolução deste paradoxo coube, senão em sua totalidade, em
grande parte à valoração da noção de competência pelos termos
racionalizantes da modernidade. É, pois, a noção de competência, sobre-
tudo enquanto um atributo individual, valorada em sua perspectiva
instrumental de grau mensurável de capacidade qualitativa no desempe-
nho de tarefas, “missões”, também atribuíveis (de competência
indelegável) a todos os indivíduos indistintamente (como por exemplo
unir-se, através da disponibilização alienável de sua capacidade laboral,
ao esforço ordenador do mundo apropriado), que permite admitir-se (de
forma legitimável) a desigualdade concreta como um resultado das
dinâmicas sociais favorecidas, e típicas, da Sociedade Moderna. E assim
porque então a desigualdade concreta não será admitida, percebida ou
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Luiz Antônio Bogo Chies
reconhecida, como o resultado da dinâmica social em si, mas sim
resultante de uma característica individual de cada membro da sociedade
que, por ser da ontologia do indivíduo, não permite responsabilidade
outra por seus efeitos que não seja a atribuível ao próprio indivíduo, não
estando, portanto, na capacidade ordenadora da sociedade como uma
estrutura racionalizada.
Tem-se, assim, a noção de competência, nessa valoração substan-
cial típica e especializada da modernidade, como um valor de prioritária
relevância, mesmo que instrumental, e portanto talvez não fundamental,
para que a apropriação privada, desencadeadora da desigualdade concre-
ta, possa ser admitida não só como legitimável mas também como de
isenta responsabilidade por parte do modelo societário em questão,
através de suas estruturas e dinâmicas típicas.
Dentre os efeitos que se poderá identificar dessa valoração espe-
cial da noção de competência ter-se-á o favorecimento às dinâmicas
sociais competitivas, em oposição às cooperativas, na Sociedade Moder-
na. Nesse sentido a noção de competência, valorada nos termos da
modernidade, constitui-se não somente como uma conseqüência mas
também como uma causa das dinâmicas e estruturas típicas desse modelo
societário.
Logo, num mundo apropriado pelo homem, e que deve por este ser
apropriado (ordenado racionalmente, e nesse sentido toda a ordem é
necessariamente racional), mas que também se constitui enquanto um
mundo de homens individualizados na sua missão, auto-tarefa, de orde-
nação individual – conquista de seu status social, de sua identidade
própria – e por presunção iguais em capacidade racional (em potencial
competência), bem como libertos e livres para utilizarem-se da apropri-
ação privada no desempenho dessa missão auto-ordenadora, a competi-
ção, a competitividade, assumirá posição de destaque não só como
conteúdo e direcionalidade das dinâmicas sociais favorecidas mas,
inclusive, como a própria dinâmica social típica da modernidade.
Para mais além do “ser competente”, o desejo e a paradoxal
angústia da individualidade moderna (aguçada pela pós-modernidade
A valoração da competência num mundo apropriado
95
Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
globalizante) está no “ser competitivo”, e “ser competitivo”, sobretudo
com um plus de assim ser com competência, tende a um significado em
frontal antagonismo com a cooperação, tende, portanto, a um significado
favorecedor, senão inerentemente vinculado, do individualismo que, por
sua vez, acarreta a exclusão do outro da competição.
Avançar em tal linha de reflexão poderia nos conduzir a identifi-
cação de um conteúdo antiético na valoração moderna da competência.
Ainda que tal consideração aqui entendamos como apresentada em já
suficientes indícios, foge, em sua necessidade de aprofundamento, ao
fôlego do presente estudo.
Não obstante, entretanto, o que estamos a expor nos permite, de
imediato, delimitarmos a competitividade, como nota característica das
dinâmicas sociais típicas da Sociedade Moderna, e o individualismo
enquanto uma decorrência dessa (com todos os efeitos sociais perversos
que pode produzir), como conseqüências que se pretendem legitimáveis,
ou já legitimadas, de uma desigualdade concreta que, por sua vez, já se
encontra admitida, mesmo que por um discurso falacioso acriticamente
recepcionado, como legítima nos termos da modernidade através da
especial valoração que esta atribui à noção de competência.
Aqui, pois, nossa principal conclusão quanto à valoração da
competência num mundo, “nos termos da modernidade”, apropriado: a
competência como o valor instrumental do paradigma fundamental
legitimador da Sociedade Moderna que a esta viabiliza a perspectiva
legitimável da desigualdade concreta dos indivíduos, sobretudo em
termos da acumulação econômica privada polarizadora em significativas
distâncias, e de todas as demais diferenciações entre indivíduos, mesmo
aquelas de conteúdo perverso.
Importante ainda, nesse sentido, consignarmos nosso entendimen-
to de que tal valoração da competência, na dimensão que aqui estamos a
expor, quando compreensão crítica a referenciar análises de práticas e
dinâmicas sociais específicas nos permitirá identificar, com pouca mar-
gem de dúvida neste momento de hipótese, a inerente preponderância da
responsabilidade meramente técnica, em oposição à responsabilidade
96 Sociedade em Debate, Pelotas, 7(2):27-98, Agosto/2001
Luiz Antônio Bogo Chies
moral13, em todas as esferas objetivas e subjetivas da modernidade.
Por fim, quanto às conclusões que julgamos devam ser explicitadas
neste estudo (ou que talvez sejamos “competentes” para aqui, neste
momento, ofertar!), ao identificarmos a noção de competência como um
relevante valor instrumental que se encontra agregado ao paradigma
fundamental legitimador da Sociedade Moderna a estamos reconhecen-
do como um importante elemento de referência na análise da perspectiva
de legitimidade de realidades concretas (institucionais, normativas etc)
que pretendem obter vigência substancialmente válida, portanto de
forma minimamente estável, perante o modelo societário em questão e os
membros do corpo social que a ele se vincula, mesmo que em tal análise,
sob tal elemento referencial, possam as conclusões nos ser desagradá-
veis.
As reflexões procedidas no presente estudo indubitavelmente não
esgotam o enfrentamento crítico da temática, do objeto, sobre a qual se
debruçaram. As entendemos, entretanto, como contributivas, nos limites
de nosso atual fôlego, para que outros enfrentamentos, estes a partir de
objetos de análise mais específicos, possam ser realizados com critérios
mais questionadores de compreensão e apreensão das complexidades
que, a todos os fenômenos sociais, tendem a ser inerentes.
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13 No sentido da distinção já apresentada com suporte em Bauman: “responsabilidade
técnica difere da responsabilidade moral pelo ato de esquecer que a ação é um meio
para alcançar algo para além dela mesma”. (BAUMAN, 1998a: 125)
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