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Cultura Politica Sexualidade e Gênero na America Latina

Authors:

Abstract

A bilingual book (in Portuguese and Spanish) containing research on gender and sexuality in Latin America.
Departamento Editorial: Instituto de História e Ciências Sociais UFCAT
Editor Responsável
Prof. Dr. José Luís Solazzi, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Comissão Editorial Executiva
Profa. Dra. Eliane Martins de Freitas, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Getúlio Nascentes da Cunha, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Lilian Marta Grisolio, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Conselho Editorial
Profa. Dra. Ángeles Castaño Madroñal, Universidade de Sevilha.
Prof. Dr. Claudio Lopes Maia, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Getúlio Nascentes da Cunha, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Eliane Martins de Freitas, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Ismar da Silva Costa, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Jose Lima Soares, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Jose Luis Solazzi, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Lilian Marta Grisolio, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Luiz Carlos do Carmo, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Luzia Marcia Resende Silva, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Marcia Pereira dos Santos, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Paulo Cesar Inácio, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Prof. Dr. Radamés Vieira Nunes, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Profa. Dra. Regma Maria dos Santos, Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil.
Prof. Dr. Rogerio Bianchi de Araújo, Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Brasil.
Rio de Janeiro, 2022
Cultura, política, sexualidade e gênero na América Latina
, Eliane Martins de (org.)
, Rhanielly Pereira do Nascimento (org.)
, Vinícius (org.)
: 978-85-518-4873-9
1ª edição, novembro de 2022.
Programa de Pós-Graduação em História - Mestrado Prossional (PPGH-MP)/INHCS.
Avenida Dr. Lamartine Pinto Avelar, 1120, Setor Universitário, Catalão, Goiás.
Editora Autograa Edição e Comunicação Ltda.
Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
  , : 20090-050
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É proibida a reprodução deste livro com ns comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autograa.
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)
C968 Cultura, política, sexualidade e gênero na América Latina [livro eletrônico] / Organizadores
Eliane Martins de Freitas, Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto, Vinícius Zanoli. – Rio de
Janeiro, RJ: Autograa, 2022.
Formato: ePUB
Inclui bibliograa
ISBN 978-85-518-4873-9
1. Identidade de gênero. 2. Homossexuais – Aspectos sociais. I. Freitas, Eliane Martins de. II.
Pinto, Rhanielly Pereira do Nascimento. III. Zanoli, Vinícius.
CDD 305.76
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
SUMÁRIO
CULTURA, POLÍTICA, SEXUALIDADE E GÊNERO NA AMÉRICA LATINA � � � � � � � � � � � � � � � � �7
Eliane Martins de Freitas
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto
Vinícius Zanoli
Parte I – POLÍTICAS E ATIVISMOS EM DEBATE
CREAR UNA TRADICIÓN ARCO-ÍRIS - APUNTES SOBRE LOS ORÍGENES
DE LAS MARCHAS CONMEMORATIVAS A LOS DISTURBIOS DE
STONEWALL EN AMÉRICA LATINA � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 17
Felipe Cesar Camilo Caro Romero
A NORMA DO PLURAL: NOTAS SOBRE A NOVA HOMONORMATIVIDADE
NO BRASIL E NA ARGENTINA DO SÉCULO XX-XXI � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 47
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto
Jorge Luiz da Silva Alves
ATIVISMOS LGBT EM CAMPINAS (SP): FRAGMENTOS DE UMA TRAJETÓRIA � � � � � � � 67
Vinícius Zanoli
POLÍTICAS INSTITUCIONAIS VOLTADAS À POPULAÇÃO TRANS* NO
ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO E ALGUNS DE SEUS LIMITES
E DESAFIOS � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 97
Brume Dezembro Iazzetti
DESPATOLOGIZACIÓN, INTEGRALIDAD Y AUTOGESTIÓN: DEMANDAS E
INICIATIVAS POR LA SALUD TRANS EN ARGENTINA (2012-2019) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 121
Anahí Farji Neer
Parte II – SEXUALIDADES, DISSIDÊNCIAS
E SUBJETIVIDADES
ANTONIO ADALID PRADEL, ENTRE LA SODOMÍA Y LA HOMOSEXUALIDAD � � � � � � � � 151
Miguel Alonso Hernández Victoria
MÃES, FILHAS, IRMÃS E QUEENS: REFLEXÕES SOBRE REDES DE AFETO
ENTRE DRAG QUEENS � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 175
Rubens Mascarenhas Neto
ORÁCULOS DISCOTEQUE: ORIENTACIÓN SEXUAL, CLASE SOCIAL Y
VIOLENCIAS EN LA ÉPOCA DE LA GUERRA INTERNA DE EL SALVADOR � � � � � � � � � � � 203
Amaral Arévalo
ENTRE QUARTOS: HOMENS BRASILEIROS E TRABALHO SEXUAL EM LISBOA � � � 233
Guilherme R� Passamani
7
CULTURA, POLÍTICA, SEXUALIDADE
E GÊNERO NA AMÉRICA LATINA
Eliane Martins de Freitas (PPGH-MP/UFCAT)
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto (Doutorando -PPGH/UFSC)
Vinícius Zanoli (LAI/ FU-Berlin)
Desde o m do século XX, temos assistido, à ampliação e à con-
solidação dos movimentos, antes denominados homossexuais, e ago-
ra LGBTI+ em partes da América Latina (CORRALES; PECHENY,
2010; ROMERO; SIMONETTO, 2019; PINTO, 2011). O ativismo
LGBTI+ na região foi responsável por importantes conquistas para a
construção da cidadania, em geral, e destas sujeitas/es em particular,
enfrentando paradigmas sociais, culturais e políticas no que diz res-
peito às expectativas em relação a gênero e sexualidade (DEHESA;
PECHENY, 2011). Nesse sentido, ainda que de modo desigual, as-
sistimos à consolidação de algumas políticas públicas e direitos para
LGBTI em distintos países da América Latina. Tais políticas foram
fruto de intensas disputas, mas também de colaborações entre ativis-
tas e agentes estatais em distintos âmbitos (FACCHINI, 2005; ZANO-
LI, 2019; PINTO, 2021; DRUCKER, 2004).1 Além dos esforços locais,
alianças, redes e coalizões transnacionais, muito além do impacto
de Stonewall, também tiveram papel importante na consolidação
do movimento LGBTI+ na região2 (ROMERO, 2020) e dos direitos
LGBTI+ na agenda política dos Direitos Humanos, principalmente
1. Ver também capítulos de três a cinco deste volume.
2. Ver capítulo um neste volume.
8
em âmbito internacional (PATERNOTTE; SECKINELGIN, 2015;
THORESON, 2014).
Concomitantemente, em reação a estes avanços, vimos também,
o crescimento de um movimento conservador de ultradireita que
propõe uma agenda de combate à construção da cidadania destas
sujeitas/sujeites por todo o continente e pelo mundo (MACHADO;
MISKOLCI, 2019; MISKOLCI; CAMPANA, 2017; PATERNOTTE;
KUHAR, 2018; SANTANA, 2019). Esse movimento, que agrega sujei-
tos e organizações variadas e está longe de se limitar a organizações
de cunho religioso, pode colocar em xeque as poucas conquistas dos
movimentos por diversidade sexual e de gênero. Tal contexto tem co-
locado novos desaos para a circulação de debates e formulação de
políticas públicas que se apresentavam como um horizonte de conso-
lidação das cidadanias dos corpos dissidentes às normas de gênero e
sexualidades de nossa sociedade (MASCARENHAS NETO; ZANOLI,
2016; FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020).
Este livro surge como uma proposta de combate aos negacionis-
mos que têm se instalado na arena política latino-americana, mas
também nos espaços de circulação dos conhecimentos produzidos
dentro da academia. Para compreender os desaos de construção da
cidadania destas sujeitas/es, reunimos um conjunto de textos que
proporcionam um olhar reexivo deste processo histórico. Observan-
do o passado e reelaborando as questões do tempo presente, esta co-
letânea dialoga com diferentes espacialidades e corpos na tentativa de
evidenciar os desaos, as permanências e os avanços de um processo
de humanização iniciado no m do século XX.
Ademais, este livro surge do desao e do desejo de estabelecer re-
lações cada vez mais próximas com pesquisadoras e pesquisadores
de diferentes países da América Latina. Esta obra é, portanto, fruto
de um estreitamento de relações acadêmicas do Grupo de Pesquisa
ANÔMALOS com pesquisadores de diferentes países. Esta aproxi-
mação se dá a partir da necessidade, cada vez mais latente, de voltar
9
nossos olhos a processos históricos que se estabelecem nesta região,
bem como as suas especicidades. Ela é fruto também da participa-
ção de alguns dos organizadores e dos autores na Red Latinoamericana
de Archivos, Museos, Acervos e Investigadores LGBTQIA+ (AMAI LGBT-
QIA+), que atua pelo direito à memória e a história LGBT na Améri-
ca Latina, conectando ativistas, instituições e pesquisadores da região.
Tendo como foco a América Latina, este livro analisa contextos
localizados em diferentes países do continente, mas também em espa-
ços que se estabelecem a partir da fronteira e do trânsito de sujeitos.
Para dar conta deste e de outros deslocamentos – o de ideias, sujeitos,
sujeitas e epistemologias – optamos por manter uma proposta bilín-
gue. A coletânea foi dividida em duas partes: 1) Políticas e Ativismos
em Debate; 2) Sexualidades, Dissidências e Subjetividades. Estes eixos
marcam a interdisciplinaridade da obra, que contém capítulos que
utilizam diferentes chaves de análise partindo das ciências humanas
e sociais.
Introduzindo a primeira parte da coletânea, Felipe Caro apresen-
ta uma proposta de periodização da História do Movimento LGB-
TQIA+ na América Latina durante o século XX. A partir de um
contexto de renovação historiográca, o autor fornece uma inter-
pretação regional da história dos movimentos do seu início até a
atualidade. Em sua proposta, o autor cruza as especicidades e as
similaridades de diferentes contextos com o propósito de reconhe-
cer as tendências políticas, disputas ideológicas e organizativas do
movimento na região.
Em A norma do plural: notas sobre a nova homonormatividade no Bra-
sil e na Argentina do século XX-XXI, Rhanielly Pereira do Nascimento
Pinto e Jorge Luiz da Silva Alves pensam os processos de constituição
das normatividades e homonormatividades. Em diálogo com Peter
Drucker (2017), Chanter (2011) e Scott (1995), este capítulo é cons-
truído em três eixos que nos permitem pensar como é possível incor-
porar o debate de gênero e sexualidade a partir da História Global
10
tendo a Argentina e o Brasil como um exemplo de contextos locais
em conexão com o global. A nova homonormatividade, categoria uti-
lizada pelos autores, é construída a partir da relação entre estrutura e
subjetividades e, a partir deste capítulo, é analisada a formação destas
normatividades e suas relações.
Em Ativismos LGBTI em Campinas (SP): fragmentos de uma trajetória,
Vinícius Zanoli fornece uma análise sobre a trajetória de distintos
grupos de ativismo LGBT na cidade de Campinas. As trajetórias ana-
lisadas partem da fundação do primeiro coletivo, em 1995, até os dias
atuais. Zanoli apresenta os desaos e as articulações do Movimento
LGBTI campineiro, ressaltando suas particularidades frente a parte da
literatura que ainda se concentra em análises sobre as cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo. Ademais, o autor busca demonstrar como
a trajetória do ativismo campineiro foi marcada tanto pelas particu-
laridades do contexto local, quanto por contextos sociais, políticos e
culturais mais amplos.
Já Brume Dezembro, em Tensões e convergências no acesso a perma-
nência de pessoas trans* no Ensino Superior Público Brasileiro, analisa os
desaos e as tensões institucionais do acesso de pessoas trans no en-
sino superior em relação com a expansão do acesso à graduação e à
pós-graduação no Brasil. Tendo como marco inicial o processo de efe-
tivação do uso do nome social para a criação de políticas armativas,
Dezembro elenca as diculdades em acessar os dados ociais sobre
a presença de pessoas trans nestes espaços, e em denir as políticas
públicas realizadas para a população trans.
Encerrando a primeira parte da coletânea, o texto de Anahí Farji
Neer, Iniciativas de usuarios/as y activistas por la salud trans en Ar-
gentina, marca o debate pelo cumprimento da Lei 26.743 de Iden-
tidade de Gênero no âmbito da saúde. Analisando as demandas da
população trans a partir dos conceitos da biocidadania e da cidadania
biológica desde a aprovação da lei em 2012, Anahí utiliza um corpus
documental marcado por periódicos e postagens em redes sociais.
11
A intenção de seu capítulo é reetir sobre os discursos de ativistas e
usuários a partir do acesso ao sistema de saúde argentino.
Abrindo a segunda parte da coletânea, em Antonio Adalid Pradel
entre la sodomia y la homosexualidad, Miguel Alonso Hernandez apre-
senta um dos personagens fundamentais para refeletir a geração mar-
cada pelo Baile dos 41. Partindo de uma análise sobre a transição da
identidade sometica para homossexual o autor percorre a segunda
metade do século XIX e a primeira metade do século XX para com-
preender qual é a hisotricidade marcada em Pradel.
Em Mães, lhas, irmãs e queens: reexões sobre redes de afeto entre drag
queens, Rubens Mascarenhas Neto parte de uma etnograa produzida
entre 2015 e 2017 para compreender a conguração das redes familia-
res drag e sua importância para o início e a permanência na carreira
artística. A partir da análise das trajetórias de três artistas campineiras,
Mascarenhas Neto discute como as famílias oferecem um importante
suporte material e afetivo para jovens aspirantes a drag.
O trabalho de Amaral Arévalo, intitulado Oráculos Discoteque: orien-
tación sexual, clase social y violencias en la época de la Guerra Interna de El
Salvador, apresenta as disputas e os espaços de sociabilidade ocupados
por dissidentes sexuais e de gênero entre 1980 e 1992. Partindo da aná-
lise do surgimento de Oráculos Discoteque em San Salvador, este ca-
pítulo toma as bases das narrativas escritas no Nuevo Mundo, órgão
interno publicitário de Oráculos, discutindo temas como HIV/Aids, as
identidades no interior da Comunidade Gay Salvadorenha e os proces-
sos de repressão militar que participantes do Oráculos vivenciaram.
Finalizando a coletânea, em Entre quartos: brasileiros e trabalho se-
xual em Lisboa, Guilherme Passamani reete sobre o trabalho sexual
a partir de uma análise que se dá na aproximação entre o autor e in-
terlocutores. Compreendendo os quartos como elemento central na
vida cotidiana desses homens, Passamani incorpora os debates inter-
seccionais, tensionando a noção de estrangeiro, o ser/estar em uma
nova cidade/país e as relações daí advindas.
12
REFERÊNCIAS
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de Liberación Homosexual en América Latina (1967-1989). Izquierdas, n. 46, 2019,
p. 65-85.
CARO, Felipe. Más allá de Stonewall: el Movimiento de Liberación Homosexual de
Colombia y las redes de activismo internacional, 1976-1989. História Crítica, n. 75,
p. 93-114.
CORRALES, J; PECHENY, M. Introduction: The Comparative Politics of Sexuality
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burgh Press, 2010, p. 1-32.
FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e a produção de identi-
dades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
FACCHINI, Regina; Carmo, Íris Nery; Lima, Stephanie Pereira. Movimentos fe-
minista, negros e LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação &
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MACHADO, Jorge; MISKOLCI, Richard. Das jornadas de junho à cruzada moral: o
papel das redes sociais na polarização política brasileira. Sociologia & Antropologia, v.
9, n. 3, 2019, p. 945-970.
MASCARENHAS NETO, Rubens; ZANOLI, Vinícius. Escola, política, família e re-
ligião: disputas em torno da chamada ideologia de gênero. Novos Debates – Fórum de
Debates em Antropologia, v. 2, n. 2, 2016, p. 77-81.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a
genealogia de um pânico moral. Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, 2017, p. 725-747.
PATERNOTTE, David; KUHAR, Roman. Disentangling and Locating the “Global
Right”: Anti-Gender Campaigns in Europe. Politics and Governance, v. 6, n. 3, 2018,
p. 6-19.
PATERNOTTE, David; SECKINELGIN, Hakan. “Lesbian and gay rights are hu-
man rights”: Multiple Globalisations and LGBTI Activism. In: PATERNOTTE, Da-
vid; TREMBLEY, Manon (orgs.). The Ashgate Research Companion to Lesbian and Gay
Activism, London and New York: Routledge, 2015, p. 209-224.
PECHENY, Mario; DEHESA, Rafael. Sexualidades y políticas en América Latina:
un esbozo para la discusión. In: CORRÊA, Sonia; PARKER, Richard (orgs.). Sexua-
lidade e Política na América Latina: histórias, intersecções e paradoxos. Rio de Janeiro:
ABIA, 2011, p. 31-79.
13
SANTANA, Ailynn. De la marea rosa a la marea conservadora y autoritaria en
América Latina: desaos feministas. Friedrich-Ebert-Stiftung Ecuador – Instit. Latinoa-
mericano de Invest. Sociales, 2019.
THORESON, Ryan. Transnational LGBTI Rights Activism: Working for Sexual Rights
Worldwide. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.
ZANOLI, Vinícius. Mais ativista do que gestora: ativismo institucional no campo
do movimento LGBT em Campinas. Sociologia & Antropologia v. 9, n. 2, 2019. p.
495-517.
PARTE I
POLÍTICAS E ATIVISMOS
EM DEBATE
17
CREAR UNA TRADICIÓN ARCO-ÍRIS -
APUNTES SOBRE LOS ORÍGENES DE
LAS MARCHAS CONMEMORATIVAS
A LOS DISTURBIOS DE STONEWALL
EN AMÉRICA LATINA
Felipe Cesar Camilo Caro Romero3
Introducción
Uno de los elementos mas populares y reconocidos internacional-
mente del movimiento de disidencias sexuales y de género4 son las
marchas conmemorativas a los disturbios de Stonewall. Conocidas
bajo distintos nombres a través del tiempo como marchas de libera-
ción homosexual, marchas del día de la homosexualidad, marchas por
la diversidad o más recientes marchas del orgullo (traducido del inglés
pride), estas movilizaciones se han convertido en un elemento clave
del movimiento de disidencia sexual y de género en todo el mundo,
incluyendo la mayor parte de América Latina. A pesar de un creciente
número de participantes en las grandes ciudades y con la emergencia
de marchas en pequeñas zonas urbanas, el estudio de las conmemo-
raciones de Stonewall en la región es relativamente débil. Existe un
3. Historiador. Actualmente doctorando en Historia en la Katholische Universitat Eichstätt-
-Ingolstadt. Correo: fccaror@unal.edu.co
4. Se dene al movimiento de disidencia sexual como el conjunto de esfuerzos sustentados a
través del tiempo que luchan contra la norma heterosexual cisgénero hegemónica, siguiendo
la propuesta de Atilo Rubino en su crítica al menos preciso término de diversidad sexual (2019).
18
volumen considerable de investigaciones nacionales, dividida entre
monografías de grado, artículos y capítulos de libros, pero no se han
construido perspectivas transnacionales al respecto. Aunque la histo-
ria del movimiento de disidencia sexual y de género latinoamericano
ha recibido atención en la última década y algunos estudios regio-
nales han surgido tanto de manera comparativa (DE LA DEHESA,
2010; CORRALES y PECHEN, 2010) o transnacional (MOGROVEJO,
2000; FIGARI, 2009; ENCARNACIÓN, 2016; CARO y SIMONETTO,
2019), estos no han incluido un análisis sistemático de la historia de
estas movilizaciones.5 Buscando saldar esta deuda, este artículo se
centrará en la historia de los primeros intentos de conmemorar públi-
camente Stonewall, las implicaciones de estos fenómenos a nivel local
y las tendencias generales de América Latina.
Al tratarse de una conmemoración relativamente homogénea, la
historia de estas marchas nos permite entender la trayectoria del mo-
vimiento de disidencia sexual y de género en la región y su relación
con otros fenómenos globales. Debido a la emergencia pública del
movimiento en América Latina en los setentas, se ha perpetuado la
noción de que tal surgimiento es una extensión de la experiencia esta-
dounidense. Lejos de ser así, recientes investigaciones han propuesto
que la dinámica de redes de activismo que se desarrolló durante este
periodo y las necesidades de contextos especícos llevaron a la crea-
ción de muy diversas experiencias políticas que no solo incorporaron,
adaptaron o rechazaron ideas de otras partes del mundo, sino que
también crearon sus propios símbolos y estrategias de acción políti-
ca (ENCARNACIÓN, 2016, p. 5; CARO y SIMONETTO, 2019, p. 66;
PETERSON et al, 2018, p. 24). El estudio de los Orgullos (como de
ahora en adelante se denominará a estas marchas) permite ahondar
en esta noción.
5. Y en los casos donde se toca el tema se hace de manera incompleta, como en el apéndice
cronológico del libro editado por Corrales y Pecheny (2010, p. 429-436).
19
Es importante considerar que este texto interpelará en un proble-
ma historiográco: la búsqueda por el origen. El estatus fundacional
de cualquier fenómeno es un tema controversial y el caso de las con-
memoraciones de Stonewall no es la excepción, siendo en muchos
países un punto acalorado de debate entre activistas e investigadores.
Se mencionará esta discusión cuando sea necesario reconociendo
que, siendo una tradición fundamentalmente ideológica, estas mar-
chas representan una visión especíca del pasado que atiende a nece-
sidades particulares del presente (HOBSBAWN, 2000, p.4).
Este texto se dividirá en cuatro partes, delimitadas por tres perio-
dos en donde surgió la tradición de conmemorar los disturbios de
Stonewall en América Latina. La cronología propuesta en este trabajo
es el resultado del análisis de numerosas fuentes secundarias locales,
investigaciones qué estudian directa o tangencialmente las primeras
manifestaciones de todos los países latinoamericanos. Se ha decidido
desarrollar el texto de manera cronológica y no temáticamente en un
intento por presentar la historia de estar marchas de manera procesu
al, reconociendo la inuencia que unas experiencias tuvieron sobre
otras y al mismo tiempo ofreciendo una guía de ubicación espacio
temporal para quien se quiera acercar al tema. Esto es, por supuesto,
basado en una interpretación personal del material consultado, que
por lo demás siempre puede ser mayor. Como todo trabajo histórico,
por lo tanto, debe ser considerado como provisional.
La primera parte del artículo explorará los intentos más tempra-
nos de establecer estas tradiciones, cercanos a la nueva izquierda re-
gional y a la emergencia del movimiento de liberación homosexual.
Este periodo cubre las décadas de los setenta y ochenta. En la segun-
da parte se estudiará el periodo con la mayor cantidad de primeras
marchas: la década de los noventas. Este marco temporal está vincu-
lado a la relativa estabilización política de la región marcada por la
llegada de la democracia en antiguos regímenes dictatoriales y varias
reformas constitucionales. También está relacionado con un cambio
20
de dirección en el movimiento de disidencia sexual y de género, que
dejó las ideas más radicales de liberación por unas más moderadas
vinculadas con el emergente marco de derechos humanos. La terce-
ra parte corresponderá al siglo XXI. Este periodo está caracterizado
por un ambiente bastante hostil en donde quienes organizaron las
marchas se enfrentaron a una fuerte oposición alimentada por las ya
establecidas experiencias en otras partes del mundo. Finalmente se
concluirá con unas notas sobre la naturaleza transnacional y sectorial
de la protesta ritualizada, ofreciendo además posibles líneas de traba-
jo para futuras investigaciones.
La primera etapa, 1979-1989
El vínculo entre América Latina y los disturbios de Stonewall no
es obvio. Aunque hoy la mayoría de relatos que reconstruyen la his-
toria de lo que sucedió en Nueva York las noches del 28 y 29 de junio
de 1969 concuerdan en la importancia de las personas de color, es-
pecialmente de mujeres trans, el componente latino dentro de estas
narraciones está subordinada a la discusión de la estructura racista
estadounidense. A pesar de la presunción de internacionalización cos-
mopolita de la ciudad de Nueva York, los disturbios fueron un fenó-
meno bastante local (PETERSON et al, 2018, p. 18-19). Por lo tanto,
los relatos sobre lo que sucedió en Stonewall llegaron a Latinoamé-
rica de la misma manera que llegaron a países europeos, a través de
contactos personales con activistas estadounidenses. Los grupos lo-
cales afuera de este país vieron a los disturbios como un símbolo po-
tencialmente poderoso en la lucha contra la hetero-normatividad. El
eslogan de “Gay Power” y la confrontación con las autoridades resul-
taron atractivos pues, aunque en todas partes existían problemas loca-
les, la brutalidad policial y la vida clandestina eran elementos compar-
tidos por las experiencias de disidencia sexual y de género en todo el
hemisferio occidental (ADAM, 1995, p.92-93).
21
El otro componente importante para comprender la recepción
de los disturbios de Stonewall es el momento de ebullición política
que se vivía por entonces en América Latina. Al igual que en mu-
chas partes de Europa, la nueva izquierda se había convertido en una
tendencia popular entre los jóvenes durante los sesentas y setentas.
Cansados de los partidos comunistas culturalmente conservadores y
políticamente inactivos, la nueva izquierda se presentaba como una
revolución dentro de la revolución. En Latinoamérica estuvo fuerte-
mente asociada con la emergencia de guerrillas, inspiradas en el éxito
de la Revolución Cubana (ARCHILA y COTE, 2015, p. 86-87). Esta di-
vergencia táctica y estratégica del cambio social creó un ambiente fér-
til para la emergencia de nuevas ideas sobre las relaciones raciales, de
género y sexuales; las cuales no encontraban un apoyo sólido en los
partidos de izquierda ortodoxos que sobrestimaban la lucha de clase
por sobre cualquier otro conicto social. Sin embargo estas ideas tam-
bién encontraron resistencia en muchos de los proyectos guerrilleros
y fueron siendo marginadas también por la nueva izquierda, sobre
ello se hablará más adelante. Es en este nicho ideológico de ebullición
táctica y estratégica en donde surgió el movimiento de liberación ho-
mosexual (ADAM, 1995 p.84).
Las primeras organizaciones de la ola de liberación homosexual en
América Latina aparecieron tempranamente. Para 1967 ya existía una
agrupación argentina llamada Nuestro Mundo que en 1971 se unió a
otras experiencias políticas para formar el Frente de Liberación Ho-
mosexual Argentino (SIMONETTO, 2017, p.7). Y en México, en 1971
surgió el Frente de Liberación Homosexual Mexicano que, aunque
tuvo una corta vida orgánica, pavimentó el camino para nuevos gru-
pos que eventualmente organizaron la primera demostración pública
en conmemoración de los disturbios de Stonewall en América Latina.
La primera marcha conmemorativa de Stonewall en México se lle-
vó a cabo el 28 de junio de 1979 en la capital del país y fue organiza-
da por el Frente Homosexual de Acción Revolucionario Mexicano,
22
Oikabeth y el grupo Lambda (ROCHA, 2014, p. 263). Tuvo por lema
“socialismo sin sexismo” y no generó altercados violentos con las au-
toridades locales, a pesar de contar con un número considerable de
asistentes, 300 personas (GONZÁLEZ, 2005, 92). Este número rela-
tivamente alto pudo deberse al hecho de que esta no era la primera
aparición pública del movimiento de liberación homosexual en las
calles mexicanas. Algunos miembros de estas organizaciones ya ha-
bían participado públicamente en otras dos manifestaciones: una el
26 de julio de 1978 en el aniversario número 25 de la revolución cuba-
na y otra el 2 de octubre del mismo año en el décimo aniversario de la
masacre de Tlatelolco de 1968 (DE LA DEHESA, 2010, p. 101).
En Colombia, el otro país que realizó un Orgullo durante los
ochentas, la movilización surgió con la consolidación en dos ciuda-
des -Bogotá y Medellín- del Movimiento de Liberación Homosexual
de Colombia (MLHC). Esta agrupación organizó la primera conme-
moración pública de Stonewall en la capital del país el 28 de junio
de 1983 (CARO, 2020, p. 218). Al igual que la experiencia mexicana,
varios miembros del MLHC ya habían participado antes en manifes-
taciones públicas (primeros de mayo) y no eran extraños a las diná-
micas de una marcha (Caro, 2020, p.224). Pero a diferencia de lo que
sucedió en México, la marcha realizada en Bogotá no consolidó una
tradición anual por miedo a alienar a otros sectores sociales. Y aun-
que en los siguientes años los disturbios de Stonewall continuaron
siendo un punto de referencia para el movimiento, solo hasta 1995
que regresaron las marchas conmemorativas al país.
Los primeros grupos de liberación homosexual tenían un fuerte
lazo con la izquierda. La participación en la agenda de movilización
local era fundamental para consolidar un movimiento políticamente
legítimo, ya fuese a través de los desles del día de los trabajadores
o en manifestaciones apoyando a regímenes revolucionaros como
Cuba. Pero los disturbios de Stonewall fueron una oportunidad para
que los movimientos de liberación homosexual de América Latina
23
crearan una tradición radical propia, que hiciese parte de una historia
sectorial. Apoyándose en los repertorios de movilización locales, am-
bos Orgullos atravesaron famosas calles en Ciudad de México y Bogo-
tá; balanceando una presencia formal, que se consideraba importante
para que su movimiento fuese considerado relevante por otros acto-
res políticos, con una disposición de alegría y esta propia de la libe-
ración sexual (GONZÁLEZ, 2005, p. 93-94). Ambas marchas fueron
acompañadas del símbolo más común del movimiento en esos años:
el triángulo rosa, ya fuese pintado en la cara de los manifestantes o
en pancartas. Esta imagen era importante pues vinculaban la perse-
cución y acoso a gays, lesbianas y trans en sus respectivos países con
la violencia sistemática que sufrieron los homosexuales en la Alema-
nia nazi, no solo creando una narrativa histórica común sino también
haciendo su lucha mucho más empática a quién observava.
La elección de Stonewall como suceso a conmemorar no signi-
ca que no existiesen episodios de lucha social en la historia reciente
del movimiento de disidencia sexual y de género en América Latina.
Pero la mayoría de estas confrontaciones eran entonces relativamente
desconocidas afuera de sus contextos locales y solo hasta ahora han
empezado a recibir atención internacional, gracias tanto a las nuevas
investigaciones históricas como a los nuevos activismos. Un ejemplo
de ello fue un episodio ocurrido en Chile durante la presidencia de
Allende. El 22 de abril de 1973 un pequeño grupo de personas, entre
las que se resalta el liderazgo trans, protestaron en la Plaza de Armas
de Santiago contra la brutalidad policial en un plantón que terminó
en confrontación con las autoridades locales (PEÑA RUIZ, 2017, p.
26). Como se señalará más adelante actualmente esta protesta es con-
siderada un hito fundamental para el movimiento chileno, pero en
su momento fue rápidamente olvidada en parte gracias a la traumá-
tica experiencia del golpe militar de Augusto Pinochet apenas unos
cuantos meses después y la subsecuente persecución a homosexuales
durante la dictadura (PEÑA RUIZ, 2017, p. 28).
24
Otro ejemplo fue lo que sucedió en el Bar Ferro de Sao Paulo el 19
de agosto de 1983. Conocido hoy como el “Stonewall brasileño”, los
disturbios del Bar Ferro fueron el resultado de una redada policial a
dicho establecimiento, cuya clientela era en su mayoría lésbica (BAC-
CI, 2016, p. 72). La casi absoluta predominancia de mujeres durante
los disturbios fue especial no solo para la historia de las confrontacio-
nes violentas entre el movimiento y la policía, sino que también pudo
haber sido la razón por la cual el episodio fuese tan poco conocido
fuera de Brasil. Esconder el papel de las lesbianas, como el de las per-
sonas trans, era una práctica muy usual en la temprana construcción
de la historia del movimiento de disidencias sexuales y de género.6
A pesar de esta primera ola de manifestaciones, fue Stonewall el
suceso que organizaciones en varios países de la región decidieron
abanderar como eje central de movilización. En este primer periodo,
únicamente en México se consolidó anualmente una tradición de mo-
vilización. Mientras tanto en los otros países las disputas ideológicas
dentro y fuera del movimiento restringieron el tipo de unidad necesa-
ria para realizar tal hazaña, posponiendo la consolidación de las con-
memoraciones por una o dos décadas.
La segunda etapa 1990-2000
Durante la década de los noventas América Latina sufrió varios
cambios. El n de la Guerra Fría fue un duro golpe para la izquier-
da, pues con la disolución de la Unión Soviética se perdió uno de sus
máximos referentes internacionales. Además, surgieron nuevos con-
ictos políticos en la región, en algunos casos la caída de dictaduras y
6. Fue el caso por ejemplo de los disturbios de Stonewall, donde por mucho tiempo se des-
conoció la importancia de mujeres trans de color. Esta práctica es denunciada en el ensayo
de Max Apperoth “ The cis-washing of the Stonewall Riots- Why trans* activists can’t be
héroes” publicado en línea: https://www.academia.edu/16241721/The_cis_washing_of_
the_Stonewall_Riots_Why_trans_activists_can_t_be_heroes
25
la transición hacia la democracia, en otros casos reformas o cambios
constitucionales. Esto sumado a la apertura económica librecambista
conguró lo que algunos investigadores han llamado la “doble tran-
sición” (BULL, 2013, p.75). En medio de este agitado panorama de
cambios políticos y económicos el movimiento de disidencia sexual y
de género que se venia formando a través de un ala radical en países
como México, Colombia, Brasil, Venezuela y Perú se enfrentó a una
nueva coyuntura que exigió cambios en sus formas de organización y
movilización.
Además de la doble transición, este periodo coincide con el repun-
te de la epidemia del vih/sida. Esto cambió las prioridades de la or-
ganización política, dejando a un lado las ideas más revolucionarias y
anti-estatales de la liberación homosexual en todo el mundo. América
Latina no fue una excepción, pues la mayoría de gobiernos se rehusa-
ron a reconocer este problema como uno de salud pública. Esta epi-
demia develó la estructura moral que empezaba a implantarse con
el neoliberalismo de la doble transacción en la región a través de una
respuesta que emuló las políticas de países como Estados Unidos o
Reino Unido. Tanto allí como en America Latina la expansión del sida
fue perlada como un asunto personal y muchas veces un castigo di-
vino; evidenciando una clara percepción de la sexualidad como un
problema privado, que ameritaba poca atención por arte del gobierno
y al mismo tiempo tachando al disidencia sexual de perversión, per-
petuando valores religiosos (en su mayoría provenientes del catolicis-
mo en ese momento) que retomaban viejos prejuicios (ADAM, 1995,
p .97). Como respuesta a este ambiente hostíl, el movimiento de di-
sidencia sexual y de género empezó a tomar un rol de cuidador, for-
mando redes de información y solidaridad para apoyar a las personas
infectadas. Esto motivó a las organizaciones a luchar por un reconoci-
miento pleno de la ciudadanía, con la esperanza de acceder a diversos
servicios que pudiesen hacerle frente al virus. Y en esa búsqueda de
reconocimiento estatal, el movimiento empezó a perlar necesidades
26
especícas y diferenciadas de comunidades concretas, dando paso, en-
tre otras cosas, al uso de las siglas LGBTIQ+.7
La década inició con la conmemoración de Stonewall en Puerto
Rico. La relación cuasi-colonial de este país con Estados Unidos tuvo
un profundo efecto en la emergencia del movimiento de disidencia se-
xual y de género y por extensión de los Orgullos en la isla. Después
de los disturbios en Estados Unidos se formaron varios grupos de mi-
grantes puertorriqueños que denieron su activismo a través de len-
tes que se podrían llamar interseccionales, siendo un ejemplo el grupo
Third World Gay Revolution (QUEIROZ, 2020). Esto generó un ujo
de ideas entre la isla y Estados Unidos posible solo bajo la relación ya
mencionada, diferenciando a Puerto Rico de otros países latinoameri-
canos. Y aunque existían grupos activos desde los setenta que luchaban
contra la fuerte persecución a homosexuales basada en el Código Penal
de 1973, la primera marcha estuvo fuertemente inuenciada por el acti-
vismo estadounidense (Laureano 2016, 32). Celebrado el 23 de junio de
1991 en San José, incluyó la participación de Aids Coalition to Unleash
Power (ACT-UP), la famosa organización radical fundada en medio de
la crisis del sida para combatir la desatención del gobierno estadouni-
dense (GAMSON, 1989). También la celebración contó con el liderazgo
de Cristina Hayworth, una mujer trans puertorriqueña y veterana de
Stonewall (LAUREANO, 2016, p. 36). Este título era controversial, pues
no solo Hayworth luchó por muchos años por ese reconocimiento,
sino también porque en ese momento la interpretación tradicionales de
Stonewall habían borrado la ahora reconocida participación de mujeres
trans de color en los acontecimientos.8 En este caso, la conmemoración
7. Existen numerosas variables a la agrupación de siglas que dependen de las diversas tra-
yectorias que el movimiento de disidencia sexual y de género tiene en un lugar especíco.
Fueron también una forma de cuestionar el protagonismo masculino cisgenerico.
8. Este es aún un tema controversial. Investigadores como David Carter han sugerido que,
por ejemplo, la participación de Sylvia Rivera en los disturbios es producto de una reformula-
ción del mito del evento y de hecho ella no estuvo presente la primera noche de las jornadas.
27
de Stonewall de Puerto Rico puede verse como un inédito puente entre
el mundo estadounidense y el latinoamericano.
El mismo año Nicaragua también celebró su primer marcha. Fue
organizada en Managua con la ayuda de varias ONGs que llegaron
al país después de la perdida electoral de los sandinistas en 1990, el
primer cambio de régimen desde el triunfo de la revolución en 1979
(BABB 2010, p. 274). Aunque inicialmente los sandinistas fueron per-
cibidos como amigables a la lucha homosexual despenalizando la so-
domía, una vez en el poder el gobierno saboteó a las organizaciones
de disidencia sexual y de género y a sus actividades continuamente
(MOGROVEJO, 2000, p. 335). La primera movilización fue una res-
puesta a esta marginalización. La proyección de la película de 1988
Torch song Trilogy fue la excusa para la protesta en la que se denunció
la hostilidad del gobierno anterior (BABB, 2010, p. 283). Sin embargo,
el cambio de régimen probo ser aún más hostil a la disidencia sexual
y de género y reinstauró la ley anti-sodomítica un año después de la
conmemoración. Así, esta tradición nació en medio de un ambiente
bastante hostil, que como se señalará, va a ser una tendencia en las
experiencias centroamericanas y caribeñas.
Los países que siguieron fueron Argentina en 1992 y Uruguay en
1993. En ambos lugares las fechas coinciden con un periodo de reor-
ganización de estructuras democráticas después de regímenes dic-
tatoriales. En el caso argentino, la marcha fue la representación de
una lucha por el reconocimiento político, en contra de la brutalidad
policial en incremento y como denuncia a la actitud de pasividad del
entonces presidente Carlos Menem respecto a la crisis del sida (EN-
CARNACIÓN, 2016, p. 123). Organizada el 2 de julio, incluyó a la
mayoría de las organizaciones de disidencia sexual y de género del
país, quienes logrando reunir alrededor de quinientas personas fren-
te al Congreso Nacional en Buenos Aires. La ayuda de otros grupos,
como las Madres de la Plaza Mayo, fue fundamental para el desarrol-
lo de la jornada y se convirtió en algo usual en estas manifestaciones
28
(BROWN, 2010, p.98). Aunque se estableció así la tradición, en 1997
se cambió la fecha a noviembre a causa del frío invernal (JONES, LIB-
SON y HILLER, 2006, p.8). En Uruguay la movilización fue concebi-
da como una oportunidad de presentar la proyección política de un
emergente movimiento. El proyecto fue acogido positivamente por
numerosas organizaciones a lo largo del país y para las primeras mar-
chas se contó con la participación de aproximadamente 300 personas
en Montevideo (LAVERDI, 2015, p. 268). En 2003, la Coordinadora de
la Marcha de la Diversidad se creó para facilitar la organización de las
manifestaciones, que ganaron enorme popularidad con la llegada del
Frente Amplio a la presidencia el mismo año (SEMPOL, 2016/2017,
p. 324). También desde ese mismo año la movilización se movió a las
últimas semanas de septiembre, en parte debido al frío pero también
retomando los aniversarios de fundación de varias organizaciones lo-
cales e incluso el aniversario del nacimiento (1 de octubre) del poeta
Juan Meré, reconocido como pionero de la literatura queer uruguaya.
Con el cambio las movilizaciones empezaron a ser llamadas Marchas
de la Diversidad en un esfuerzo por transformar la percepción ori-
ginal de la marcha asociada exclusivamente a Stonewall y criticando
la idea exclusivamente identitaria del sector abrazando una postura
mucho más inclusiva.9
Brasil y Perú en 1995 representan dos casos opuestos. En Brasil
la marcha fue el último evento de una conferencia de la Internatio-
nal Lesbian and Gay Assosiation (ILGA), la primera en Suramérica.
El respaldo de una organización internacional como esta, más la lar-
ga trayectoria del movimiento de disidencia sexual y de género en
el país en medio de la renovación política de la década de los ochen-
tas, hicieron de la organización de la conmemoración pública algo
9. “¿Por qué se celebra la Marcha por la Diversidad y no del Orgullo LGBTI?” El Observador,
publicado el 28 de septiembre de 2018, consultado el 2 de noviembre de 2020. En línea: Este
artículo lo puede ver en este link: ¿Por qué se celebra la Marcha por la Diversidad y no la del
Orgullo LGBT?
29
relativamente fácil (VIANNA Y CARRARA, 2017, p. 27). En Perú, en
cambio, la presidencia de Alberto Fujimori recrudeció el conicto
interno con las guerrillas locales, especialmente desde el auto golpe
de 1992. La organización encargada de la primera manifestación, el
Movimiento Homosexual de Lima, era un pequeño grupo que sur-
gió como respuesta a la violencia homofóbica tanto del estado como
de las guerrillas Sendero Luminoso y Túpac Amaru (HERNDON,
2016, p. 11). La escala de la marcha en Rio de Janeiro, con más de
300 asistentes, fue un duro contraste con la pequeña manifestación
en Lima, en la que participaron aproximadamente 25 personas. Sin
embargo, ambas experiencias pueden ser vistas como un reejo no
solo de sus contextos políticos, pero también de diferentes tradiciones
de movilización, con la izquierda brasileña siendo bastante amigable
y la izquierda peruana bastante hostil. En Brasil la tradición de movi-
lización fue emulada después en Sao Paulo en 1997 y a partir de allí se
convirtió en una de las conmemoraciones de Stonewall más grandes
del mundo, gracias a que se mezcló con la tradición carnavalesca de
la ciudad (FACCHINI, 2003, p. 111). En Perú debido a la violencia del
conicto interno, las marchas conmemorativas a Stonewall solo re-
surgieron en el país hasta el 2002 (SENAJ, 2013, p. 43).
En 1997 la brutalidad policial fue el eje sobre el cual giraron dos
nuevas movilizaciones. La organización Entre Amigos, dedicada a
combatir el sida, decidió preparar la primera marcha en El Salvador
intentando inyectar en la manifestación una narrativa histórica local.
La justicación de la manifestación no solo fueron los disturbios de
Stonewall, sino también conmemorar el asesinato de varias muje-
res trans en 1984 a manos de las autoridades locales (MAIRE, 2020).
Con ambas narrativas como justicación el evento tuvo lugar el 28
de junio en San Salvador y contó con aproximadamente 200 perso-
nas (GÓMEZ, 2015, p.57-58). Mientras tanto en Venezuela la prime-
ra marcha conmemorativa de Stonewall tuvo lugar esa misma fecha,
pero de noche debido al miedo a la represión violenta, a lo largo del
30
Boulevard de Sabana Grande en Caracas. Organizado por el Movi-
miento de Ambiente de Venezuela (MAV), esta marcha fue una de
las muchas actividades que la organización realizó, continuando una
tradición política que se remontaba a los setentas (LOZADA y AURI,
2017, p. 165-166). Sin embargo, a pesar de la relativa fuerza del MAV y
el hecho de que ese mismo año la ley que posibilitaba el acoso policial
a la disidencia sexual y de género fue abolida, no hubo una continua-
ción de la tradición de movilización por miedo a la policía. Solo hasta
la elección de Hugo Chávez y la redacción de una nueva constitución
resurgió la tradición en 2001, esta vez a plena luz del día (LOZADA y
AURI, 2017, p. 168).
Como se señaló anteriormente el movimiento de disidencia se-
xual y de género chileno ya había contado con una experiencia de
movilización que fue interrumpida por la llegada de Pinochet en
1973. Aunque no fue sino hasta después del nal de la dictadura que
emergió la tradición de movilización en el país, durante el periodo
de transición emergieron varias organizaciones que lucharon por el
reconocimiento de las victimas LGBTI del régimen (Robles, 2008,
p. 215). La primera marcha fue organizada en Santiago en 1999 por
el Movimiento de Integración y Liberación Homosexual, una de las
primeras y más populares organizaciones que surgieron durante la
transición democrática. El evento también fue parte de una campaña
que buscaba la modicación de una ley anti-sodomítica activa desde
1875 (PEÑA, 2016, p. 26). Con el paso del tiempo a las conmemo-
raciones de Stonewall se integraron las memorias de la protesta de
1973, que adquirieron un estatus fundacional para el movimiento,
convirtiéndose en el centro de la conmemoración y desplazando la
referencia a los disturbios de Nueva York.
La década termino con tres nuevas marchas en el 2000. Estas
conmemoraciones fueron organizadas en medio de crisis políticas
y dos de ellas no se realizaron en ciudades capitales. En Bolivia, el
año coincidió con la Guerra del Agua de Cochabamba, que minó la
31
legitimidad del entonces presidente Hugo Banzer. En medio de la cri-
sis del gobierno un pequeño grupo de activistas organizaron la pri-
mera marcha el 27 de junio en la ciudad de Santa Cruz. Tenían dos
razones para no organizar el evento en La Paz. Una era el tenso clima
político de la capital que ponía en riesgo a los manifestantes. La otra
era la prohibición de personas trans en la ciudad durante el festival
del Gran Poder que se celebraba entre mayo y junio, supuestamente
debido a un inesperado beso que una mujer trans, Barbarella, le dio
a Banzer durante esas festividades en 1974 (ARUQUIPA et al, 2012,
223). El miedo a la represión por parte de los activistas probó ser bien
fundado, pues el Orgullo de Santa Cruz fue recibido con hostilidad
por parte de observadores y policías. Aunque la tradición persistió
por dos años más en la ciudad, nalmente se trasladó a la capital en
2003 (ARUQUIPA et al, 2012, 227-228).
En Ecuador la conmemoración a Stonewall fue organizada en
Guayaquil durante el periodo que siguió al golpe de enero contra la
presidencia de Jamil Mahuad. Como el caso boliviano, fue organizado
por un pequeño grupo de activistas y recibido con represión policial
(MANCERO, 2007, p. 96-98). Este ataque fue razón suciente para
considerar a la conmemoración como fallida y por algún tiempo no
fue reconocida como la primera marcha conmemorativa a los distur-
bios, siendo desplazada por una marcha realizada el siguiente año en
Quito o por un plantón llevado a cabo el 6 de diciembre de 1998 en
conmemoración del aniversario de la despenalización de la homose-
xualidad, muy en la tónica de la protesta chilena de 1973 (RAMOS,
2019, p. 111).
La tercera conmemoración del 2000 fue en Guatemala. Esta ma-
nifestación tuvo la particularidad de ser organizada y liderada en su
mayoría por lesbianas. Llevado a cabo en Ciudad de Guatemala por la
Red Regional Lésbica Centroamericana, a diferencia de las otras dos
marchas del año, no recibió agresión policial de ningún tipo (CHANT
y CRASKE, 2997, p. 279). El movimiento ya contaba con una previa
32
experiencia de movilización pública en 1997, una procesión funera-
ria convertida en protesta en honor a María Conchita, una conocida
mujer trans asesinada en la capital (SANDOVAL, 2016, p. 40). Esta ex-
periencia fue un elemento importante para la construcción de la iden-
tidad del activismo en el país y se convirtió en un punto de encuentro
importante alrededor del cual se continuó organizando los Orgullos
que hasta la década de los 2010s. La primera marcha no fue la excep-
ción, usando además el relativamente calmado lema de “somos parte
de una sociedad con iguales derechos”.
Como se mencionó previamente, los noventas fueron el periodo
con mayor emergencia de marchas conmemorativas a los disturbios
de Stonewall en América Latina, contando con un total de doce paí-
ses. Aunque aparentemente diversos, algunas regularidades o tenden-
cias pueden encontrarse en estas movilizaciones, lo que ayuda a en-
tender el desarrollo del movimiento de disidencia sexual y de género
en la región.
Por un lado, la mayoría de protestas surgieron en ciudades capita-
les. No es sorprendente que en estas ciudades se formaran la mayoría
de organizaciones de disidencia sexual y de género, pues las ventajas
de anonimato e individualidad que las grandes urbanizaciones pre-
sentaban para el desarrollo de una subcultura queer ya ha sido regis-
trada por la historiograa (ADAM, 1995, p.7-11). Sin embargo, como
la experiencia ecuatoriana y boliviana pueden mostrar, una visión ex-
tremadamente centralista del movimiento puede ser limitada.
Respecto a la representación de la protesta, las marchas mas pe-
queñas contaban con pocos elementos performativos, usando solo
carteles hechos a manos, algunas arengas y en menor medida maquil-
laje. Debido a la informalidad del evento los símbolos colectivos no
resultaban ser fundamentales aún, aunque el ocasional triangulo rosa
apareció de vez en cuando. La mayoría de objetos presentes hacían
alusión a problemas locales. La hoy popular bandera arcoíris tímida-
mente empezó a surgir después de las primeras manifestaciones más
33
masivas en lugares como Brasil, Uruguay o Argentina. Quizá más re-
levante para esta discusión, las alusiones a los disturbios de Stonewall
fueron mínimas o inexistentes en la mayoría de las protestas. Esto
puede verse también en el diverso panorama de nombres que estos
eventos tuvieron, ninguno de los cuales incluía alusión alguna a los
disturbios. Aunque la base de la manifestación era la conmemoración
de un evento, pues se escogía la fecha cercana a la de los disturbios
para realizar la movilización, estas marchas tenían poco que ver con
lo que ocurrió en Nueva York en 1969 y mucho con las realidades lo-
cales de cada país en su momento.
Este periodo representa una fractura en la historia del movimiento
de disidencia sexual y de género en América Latina. Las marchas que
emergieron durante esta década, aunque radicalizadas por la crisis del
sida, venían de diferentes inuencias ideológicas que las manifesta-
ciones del periodo anterior inuenciadas por la nueva izquierda. El
marco de los derechos humanos, popular durante las transiciones de
dictaduras a democracias en muchos países, se convirtió en una her-
ramienta útil en este nuevo escenario político y por muchos años más
continuó siendo un referente importante para el movimiento (EN-
CARNACIÓN, 2016, p.101). Atrás quedaron los reclamos radicales
por la destrucción de las estructuras opresivas y las muestras de soli-
daridad con regímenes revolucionarios.
La tercera etapa, 2001-2014
En esta última etapa se registra el establecimiento de la tradición
en el siglo veintiuno. La mayoría de estos casos emergen en comu-
nidades muy polarizadas donde el apoyo de organizaciones o insti-
tuciones extranjeras es fundamental para el establecimiento de la
tradición. La razón de esta polarización, aunque muchas veces cir-
cunstancial, se debe en parte gracias a la consolidación de la con-
memoración de los disturbios de Stonewall y el fortalecimiento del
34
movimiento de disidencia sexual y de género en América y Europa,
creando referentes tanto positivos como negativos para los movi-
mientos y las reacciones locales.
Otra característica de este periodo es que, salvo por Paraguay, to-
dos los países en donde se iniciaron tradiciones de Orgullo se encuen-
tran en América Central o el Caribe. Como algunos investigaciones
han sugerido, esta región cuenta con una fuerte oposición al movi-
miento de disidencia sexual y de género, lo que crea un ambiente
profundamente conservador que entorpece la organización (FIGARI,
2010, p. 231). Esto no signica que no existiese una fuerte reacción a
las políticas LGBTIQ en otros países latinoamericanos, pero parece
ser que hubo una particularmente dura resistencia en esta parte del
continente vinculadas a la emergencia de grupos religiosos protestan-
tes bastante conservadores (CORRALES, 2017, pp. 74-75).
La década inicia con la primera manifestación de Republica Do-
minicana. En este país la homosexualidad técnicamente no estaba
prohibida desde 1822. Sin embargo, durante la dictadura de Rafael
Trujillo se reforzaron las ideas de masculinidad reinstaurando una ley
anti-sodomítica para ociales de policía en 1959. La aplicación de di-
cha ley sobre dos agentes en 2001 dio paso al surgimiento de la orga-
nización GayLesDom (GLD) como parte de una campaña contra la
penalización (ALFY, 2017, p. 19). Ese mismo año a GLD se le denegó
un permiso por la administración local de Santo Domingo para usar
la Plaza España en la primera marcha.10 Sin embargo, esto no evitó
que los activistas marchasen afuera de las murallas de la ciudad con
lemas como “Orgullo=Poder” y “nuestro tiempo es ahora”, realizan-
do así la primera marcha del orgullo del país (Betances, 2014, p. 2).
Esta tradición, sin embargo, no se extendió al país vecino Haití. Allí la
fuerte resistencia a un movimiento de disidencia sexual y de género
10. Aunque hay registro de una previa manifestación, una caminata, el 31 de marzo de
1999 en donde por primera vez en el país se ondea públicamente la bandera arcoíris (ALFY,
2017, 19).
35
provenía de un persistente ambiente hostil. Algunos investigadores
han sugerido que esto es en parte gracias a la mezcla de viejas nocio-
nes religiosas de la sexualidad perpetuadas junto a modernos prejui-
cios homofóbicos agravados desde el terremoto de 2010 y su supuesta
relación causal con la crisis del sida que por muchos años se creyó que
se originó en este país (Migraine-Georges, 2014, p.14-15).
Regresando a Suramérica, en junio de 2004 Paraguay tuvo su pri-
mera marcha, la última del subcontinente. Esta fue el resultado de
una continua campaña abanderada por la organización Acción Gay
Lésbico-Transgénero contra la discriminación en el país que, aunque
no penalizaba la homosexualidad desde 1880, contenía visiones exclu-
yentes del matrimonio y la familia en su constitución post-dictadura
de 1992. Adicionalmente la movilización se perló como una respues-
ta a la controversial declaración del entonces presidente Herminio
Cáceres del partido Colorado, quien armó que en dicha agrupación
no se permitían homosexuales (GAG-LT, 2005, p.207). La tradición
de las marchas sin embargo cambió en 2010 a celebrarse el 30 de sep-
tiembre en lugar de junio. Esto se dio en parte debido a los fríos inver-
nales, pero también en homenaje al llamado “Maniesto de los 108”.
Este documento fue publicado en 1959 como respuesta al arresto de
108 hombres acusados de indecencia moral como respuesta al asesi-
nato del famoso locutor radial Bernardo Aranda, también sospechoso
de comportamientos homosexuales (SZOKOL, 2013, p. 38-39). Desde
entonces el número 108 se ha convertido en un símbolo en Paraguay
y tiene un rol central en a la construcción de una identidad del movi-
miento de disidencia sexual y de género nacional.
Panamá siguió a Paraguay en 2005. Para entonces la única or-
ganización pública de disidencia sexual y de género en el país era
Asociación de Hombre y Mujeres Nuevos de Panamá, debido a las
estrictas leyes de penalización de la homosexualidad. Después de
adquirir reconocimiento legal a través de un largo proceso de tres
años, HMNO decidió celebrar dicho triunfo organizando la primera
36
marcha de la disidencia sexual y de género del país llevada a cabo
en Ciudad de Panamá (SCHULENBER, 2013 p.73-89). Y aunque se
consolidó una tradición de movilización, el ambiente hostil se man-
tuvo. Solo hasta 2008 se despenalizó la homosexualidad de la mano
del decreto ejecutivo 322 presentado por el presidente Martín Torri-
jos. La oposición aprovechó la ocasión para acusarlo de ser pro-esta-
dounidense, relacionando los derechos LGBTI con el país del norte
y la invasión de 1989.
Cuba es un caso especial pues en la isla no se realizan marchas
conmemorativas a los disturbios de Stonewall. La violenta historia
entre la revolución y la disidencia sexual y de género está bien do-
cumentada y las experiencias de las Unidades Militares de Ayuda a
Producción son aún una traumática experiencia que se cierne sobre la
historia de la Revolución Cubana (ALDERETE, 2013, p.12). Solo has-
ta 1988 la homosexualidad fue despenalizada y años más tarde Fidel
Castro admitió el maltrato a los homosexuales durante la revolución,
iniciando un nuevo capítulo para el movimiento en la isla. Una nueva
visión de la disidencia sexual y de género fue cimentada en 2008 con
el derecho al cambio de nombre y género en el documento de identi-
dad, celebrado con lo que se convertió en una manifestación anual los
17 de mayo en el día internacional contra la homofobia. Esta conme-
moración diere de las marchas acá estudiadas, en tanto no referen-
cia o tiene como punto de partida al evento estadounidense y se ha
convertido en un elemento fundamental para el ala del movimiento
avalado por el gobierno de la mano del liderazgo de Mariela Castro
(HAYDULINA, 2010, p. 270)11.
11. Sin embargo, no ha estado ausente de críticas e incidentes. Aunque la marcha de 2019
fue cancelada por el nuevo presidente, mucha gente decidió salir a las calles resultando en
confrontaciones violencias con la policía. Ver: “Marcha LGBT en La Habana: las inusuales
reacciones tras los arrestos y enfrentamientos en una marcha gay en Cuba” BBC Mundo, pu-
blicado el 13 de mayo de 2019, consultado el 7 de junio de 2020. Disponible en: https://
www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-48261027.
37
Costa Rica tiene un estatus ambiguo respecto a su primera mar-
cha. Entre 2002 y 2008 en la ciudad de San José se llevaron a cabo
anualmente los Festivales del Orgullo, unos encuentros donde con
música, poesía, teatro y baile se celebraba la disidencia sexual y de
género (JIMÉNEZ, 2017, p. 72-73). Estos eventos eran estacionarios,
llevados a cabo en su mayoría en la Plaza de la Democracia y por
lo tanto no incluían marchas que interrumpieran el orden regular de
la monotonía urbana. Aunque algunes activistas señalan que el acto
principal del último festival, un besatón, fue lo sucientemente dis-
ruptivo como para ser considerado el primer Orgullo, la mayoría de
investigadores y activistas concuerdan con que la primera marcha
conmemorativa de Stonewall se llevó a cabo el 27 de Julio de 2010 (Ji-
ménez, 2017, p. 81). Esta manifestación fue parte de una campaña que
buscaba modicar la legislación sobre el matrimonio, extendiendo el
derecho a parejas del mismo género, algo que nalmente ocurrió en
2013. A pesar de la hostilidad, la movilización se ha mantenido fuerte
en el país. Además de la campaña por el matrimonio, se presionó por
un reconocimiento público de derechos logrando un decreto nacional
del día contra la homofobia sancionado por el presidente Oscar Arias
en 2008. Y el fuerte activismo durante las elecciones presidenciales de
2018 mereció un disculpa pública ofrecida por el presidente Carlos Al-
varado el mismo año respecto a la histórica exclusión de la disidencia
sexual y de género en el país.12
El último país en iniciar la tradición de las marchas conmemora-
tivas a Stonewall fue Honduras en 2014. Nuevamente existe un caso
de fecha disputada. El 28 de junio de 2009 varias organizaciones de
disidencia sexual y de género se unieron al Frente Nacional de Re-
sistencia Popular saliendo a las calles a protestar el golpe contra José
12. “Presidente Carlos Alvarado pide perdón a personas LGBTI por persecución del Estado
costarricense”, La Nación, publicado el 1 de julio de 2018, consultado el 4 de agosto de 2020.
Disponible en: https://www.nacion.com/el-pais/politica/presidente-carlos-alvarado-pide-
-perdon-a personas/FIZJFLCNFZDJ ZL CVXTRSEM3YW4/story/
38
Manuel Zelaya. Como la fecha de esta protesta coincidió con la de los
disturbios de Stonewall, para muchas personas representa la primera
manifestación sectorial del país.13 La marcha de l2014 vino después
de una ardua lucha contra una legislación conservadora que en 2005
ilegalizó el matrimonio igualitario y que solo hasta 2013 implementó
una ley antidiscriminación.14 Honduras, junto con Costa Rica y Gua-
temala han recibido presión por parte de la Corte Interamericana de
Derechos Humanos para establecer protección legal a personas LGB-
TIQ+. Aunque dichas demandas se extienden a toda América Latina,
para muchas organizaciones de esta región han sido un apoyo para
presionar por matrimonio igualitario, ley de cambio de nombre/gé-
nero y prohibición de terapias de conversión. Al mismo tiempo son
una excusa para que los discursos conservadores se organicen en con-
tra de “agendas internacionales”.
Para el desarrollo de este último periodo de las marchas en la re-
gión ya se había establecido una tradición de conmemoración de los
disturbios de Stonewall en muchos países dentro y fuera de América
Latina. Esto tuvo una fuerte inuencia en la percepción de importan-
cia de estos eventos para los movimientos de disidencia sexual y de
género locales, que usaron la creciente popularidad de la tradición
para empujar sus propias agendas, en medio de fuertes oposiciones.
Es importante notar que las primeras conmemoraciones de Stone-
wall de los periodos anteriores contaron con una oposición distinta,
pues el factor novedoso y desconocido de estos eventos estaba com-
pletamente ausente en estos últimos casos. La “agenda gay” y luego
la “ideología de género” se convirtieron en marco útiles para que la
13. Así lo creía el intelectual y activista gay Erick Martínez, asesinado por sus posturas ze-
layistas en 2012. Ver “Del camino amarillo a las calles de Tegucigalpa”, El Necio, publicado el
1 de mayo de 2012, consultado el 3 de agosto de 2020. Disponible en: https://estudiosdela-
mujer.wordpress.com/breve-resena-historica-del-movimiento-lgtbi-de-honduras/
14. “Resistencia LGBTI en Honduras”, DW, publicado el 31 de julio de 2014, consultado
el 8 de junio de 2020. Disponible en: https://www.dw.com/es/resistencia-lgbti-en-hondu-
ras/a-17817206
39
oposición deniera a las marchas y al movimiento de disidencia se-
xual y de género en base a experiencias externas.
Conclusiones
Como se pudo notar la mayoría de las primeras marchas conme-
morativas en América Latina surgieron en ciudades capitales, inician-
do en los países más cercanos a Estados Unidos (México y Puerto
Rico), luego en el Cono Sur, seguido del resto de Suramérica y termi-
nando en América Central y el Caribe (Ver tabla 1). Por supuesto exis-
ten matices a esta tendencia, como las marchas de Guayaquil y Santa
Cruz y la tardía experiencia paraguaya de 2004. Un estudio sistemáti-
co más profundo de las tendencias de movilización locales permitirá
explicar este orden.
Tabla No. 1
Primeras marchas conmemorativas de Stonewall en América Latina
Año País Ciudad
1979 México Ciudad de México
1983 Colombia Bogotá
1991 Puerto Rico San Juan
1991 Nicaragua Managua
1992 Argentina Buenos Aires
1993 Uruguay Montevideo
1995 Brasil Rio de Janeiro
1995 Perú Lima
1997 El Salvador San Salvador
1997 Venezuela Caracas
1999 Chile Santiago
2000 Bolivia Santa Cruz
2000 Ecuador Guayaquil
2000 Guatemala Ciudad de Guatemala
40
Año País Ciudad
2001 República Dominicana Santo Domingo
2004 Paraguay Asunción
2005 Panamá Ciudad de Panamá
2010 Costa Rica San José
2014 Honduras Tegucigalpa
Fuente: Elaboración del autor�
Como también se pudo observar, aunque la mayoría de manifes-
taciones usaron la fecha de los disturbios de Stonewall como excusa,
la alusión a este evento era mínima. Incluso rápidamente los países
del Cono Sur cambiaron su fecha de conmemoración a un momen-
to del año más cálido. En algunos casos este cambio se justicó de la
mano de la construcción de relatos históricos locales, como el caso
de Chile y Paraguay. En otros casos como México, Guatemala y Sal-
vador los relatos locales se unieron con los de Stonewall creando un
mestizaje conmemorativo que mantiene un sabor local al mismo
tiempo que continua una tendencia internacional. Por lo tanto, aun-
que existieron varias experiencias de movilización locales, fue Sto-
newall el punto de reunión de la tradición de movilización en toda
la región a excepción de Cuba.
Con el paso del tiempo muchas marchas se volvieron masivas,
pero la mayoría de primeros intentos fueron bastante limitados en
número. Algunos investigadores han intentado enmarcar a estas mo-
vilizaciones como una forma de presión política marcada por la “ló-
gica de los números” (PETERSON et al, 2018, 124) pero como se vio
las primeras conmemoraciones eran más sobre la auto-identicación
que sobre masividad. El relativamente pequeño número de partici-
pantes, entre 25 y 300, la presentación de símbolos, la narrativa histó-
rica necesaria para justicar la fecha y el riesgo físico que les activistas
tomaron al salir públicamente del closet en la calle contribuyeron a
la consolidación de una identidad de la disidencia sexual y de género,
41
siendo este el propósito y logro más grandes de estos eventos. Más
que números, estas manifestaciones fueron sobre autopercepción, ra-
bia, y no poco coraje.
Es peligroso asumir que las marchas conmemorativas de Stone-
wall son iguales a un fuerte movimiento o representan el inicio de
uno. Como se registró, muchas primeras manifestaciones emergie-
ron en ambientes bastante hostiles y no pudieron sobrevivir con el
tiempo, siendo forzados a posponerse hasta que un clima político más
favorable permitiera tales manifestaciones, como los casos de Colom-
bia, Perú y Venezuela. Por ello la particularidad de América Central
y el Caribe debe atenderse bajo estudios mucho más minuciosos que
puedan dar cuenta de la relación entre el emergente movimiento de
disidencia sexual y las concepciones de sexualidad más amplias de las
respectivas comunidades.
De igual manera la creciente popularidad de las marchas se debe
en parte a la inversión de capital privado que cada año aumenta. La
industria turística y el llamado “dinero rosa” que ha empezado a mo-
verse alrededor de diversos productos y servicios diseñados especíca-
mente para el consumo LGBTIQ+ abundan en las conmemoraciones
de Stonewall, transformando lo que antes fue un evento exclusiva-
mente político en algo distinto, aunque no completamente opuesto
aún. Una investigación rigurosa respecto a este fenómeno permitirá
un reconocimiento de la creciente diferenciación ideológica en el cen-
tro de estos eventos y los riesgos de la ritualización.
Finalmente, algo que debe quedar claro después de este repaso es
que estas manifestaciones no fueron una simple copia de una con-
memoración extranjera. La tradición de conmemorar los disturbios
de Stonewall fue usada por movimientos locales como un punto de
partida, pero no fue irreexivamente copiado. A diferencia de los pri-
meros de mayo o las movilizaciones del día internacional de la mujer
trabajadora, estas marchas no surgieron por un mandato de una vo-
luntad centralizadora que decidiera su importancia. Su emergencia
42
fue más bien espontánea fuera de Estados Unidos y en su mayoría
solo como una excusa, sin hacer alusión directa a los disturbios. Quie-
nes organizaban eran casi siempre pequeños grupos que por una ra-
zón y otra decidieron usar la fecha, una representación de una lucha,
como un punto de unión para presentar agravios locales. Las marchas
conmemorativas a los disturbios de Stonewall iniciaron como una
tradición desde abajo hacia arriba, completamente dependientes de
los esfuerzos de activistas locales y por lo tanto su continua presencia
en la esfera pública es un logro, resultado de este trabajo.
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A NORMA DO PLURAL: NOTAS SOBRE A
NOVA HOMONORMATIVIDADE NO BRASIL
E NA ARGENTINA DO SÉCULO XX-XXI
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto1
Jorge Luiz da Silva Alves2
Uma urgência global
Gênero é sem dúvida uma chave de análise ainda importante para
nossa sociedade Butler (2003), Scott (1995), Chanter (2011), no entan-
to acreditamos que a categoria não dê mais conta de abarcar todos
os corpos e vivências abjetas que circunscrevem o paralelogramo de
forças da história3. Pensar de maneira mais profunda a sexualidade
parece se tornar um caminho cada vez mais urgente para o estudo
1. Doutorando em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina. É pes-
quisador do grupo de estudos e pesquisa ANÔMALOS/CNPQ/UFCAT e editor da Revista
Anômalas. Desempenha pesquisa na área das homossexualidades masculinas na América La-
tina do século XX utilizando o queermarxismo e a perspectiva queer of color entrecruzada
com a modalidade da História Global das Sexualidades. rhanielly0884@gmail.com
2. Mestranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada
em História pela Universidade Federal de Goiás. É cofundadora do ANÔMALOS – Grupo de
pesquisas e estudos em gênero, sexualidades, classe e etnicidades/raça vinculado à Universi-
dade Federal de Catalão. É membra do IEG/UFSC – Instituto de Estudos de Gênero. Atual-
mente a pesquisadora tem se aprofundado nos debates em torno da Teoria queer, aplicativos
de pegação, homonormatividades, História Global e queermarxismo. E-mail: jorgeluizdasil-
vaalves@gmail.com
3. Hannah Arendt (2011) em seu trabalho Entre passado e o futuro descreve que os sujeitos
vivenciam um paralelo de forças em que ao mesmo tempo são empurrados do passado para
o futuro e do futuro para o passado.
48
e resistência de corpos desejantes, abjetos, subalternos, insubmissos
enm corpos dissidentes.
Desde o início deste século a comunidade LGBT global vem acu-
mulando um número considerável de vitórias. O debate sobre sexua-
lidade e gênero é hoje uma das temáticas mais comentadas nos meios
de comunicação e nas relações sociais de grande parte das socieda-
des ocidentais. E foi a partir da sistemática busca por representação
que hoje 29 dos 139 países catalogados pela ONU incorporaram em
seus códigos de leis a aprovação do casamento igualitário tendo como
exemplo o pioneirismo holandês em 2001.
Já na América Latina a primeira lei de casamento igualitário foi
protagonizada pela Argentina ainda em julho de 2010 sendo segui-
da pelo Uruguai em 2013, Brasil em 2013 e Colômbia em 2016. No
entanto, o avanço nos direitos LGBT’s não pode, nem deve ser visto
como um movimento unilateral. A primavera de ascensão quase pro-
gressiva dessa comunidade tem sido fortemente ameaçada por um
movimento conservador que sob a mesma escala, global, tem opera-
do pelo desmantelamento dos ganhos historicamente adquiridos.
As vitórias das pessoas LGBTI são reais e importantes, mas se entrelaçam, ao
mesmo tempo, às derrotas expressivas. Por terem sido conquistadas em um
mundo crescentemente desigual, polarizado e violento, elas assumiram uma
coloração perturbadora. A liberdade que gozam as pessoas LGBTI é cada vez
mais dependente de um mercado que é sobretudo acolhedor para pessoas
com dinheiro. Os resultados são uma crescente comercialização da cena gay
e um desvio à direita dos movimentos LGBTI. (DRUCKER, 2017, p.189)
O quadro aqui elencado por Drucker4 pode ser visto, por exemplo,
com a alta circulação de capitalização do turismo LGBT. Segundo a
4. Para Drucker (2015;2017) há uma identidade conformada com a possibilidade de assimila-
ção social que tem prejudicado a inserção de outros sujeitos da sopa de letrinhas a vida plena.
49
consultora Out Now5, atualmente cerca de U$ 218 bilhões de dólares
estão anualmente em circulação, essa movimentação monetária se dá
pela constante ascensão de uma dada cultura hegemonicamente gay
dentro da sopa de letrinhas. Enquanto o mercado se alimenta, o backla-
she político também se espalha pelo globo. As movimentações da ul-
tradireita têm ganhando força nos últimos anos sob diversas bandeiras,
dentre elas estão a perseguição ao debate sobre gênero e sexualidades.
Por trás desse pânico moral6 (RUBIN,2017), inscreve-se cada vez
mais a necessidade de se retomar a linha histórica. Compreender o
ponto em que nós estamos é ao mesmo tempo elencar os sucessivos
processos históricos que possibilitaram o contexto atual e de alguma
forma ampliar a nossa capacidade de leitura sobre o presente. É a par-
tir de tal empreitada que voltaremos os nossos olhos para o que acre-
ditamos ser elemento fundamental de agência deste processo.
O contexto histórico de criação, expansão e m do gueto homos-
sexual parece-nos, pelo menos inicialmente, um contexto de rearti-
culação das identidades homo pelo globo. Neste sentido, recupe-
raremos aqui as trajetórias comuns e singulares da Argentina e do
Brasil. Compreendemos que ambos os movimentos homossexuais e
LGBT’s, bem como a articulação das identidades nestes países gu-
ram, na realidade, uma espécie de sincronia que culmina numa forte
movimentação política.
Os sujeitos da nova homonormatividade são aqueles que adotam uma performance aproxima-
da da matriz heteronormativa.
5. A empresa Out Now Global é especializada em pesquisas para o segmento LGBT e lan-
çou até agora um conjunto 4 relatórios que analisam de forma quantitativa a expansão do
mercado LGBT bem como a condição de existência desses sujeitos em inúmeros países. Em
seu último relatório, o intitulado LGBT 2030 Study foram exploradas para além da discussão
de mercado, os problemas relativos ao “sair do armário” ou coming out e questionamentos
sobre segurança e união civil.
6. Originalmente publicado em 1982, o ensaio da antropóloga Thinking Sex fez uma longa
descrição sobre como foram perseguidas através do incentivo de leis sujeitos e práticas se-
xuais divergentes da normativa de gênero e sexo até a década de 1980. A primeira parte de
seu texto notadamente nominada como Guerra do Sexo parece se encaixar perfeitamente
com o cenário global do século XXI.
50
Dessa forma, recuperar o histórico desses países é uma tentativa
real de traçar como esse processo se delineou em parte da América
Latina. E em especíco, compreender estes países é também trazer
em cena que a reelaboração de tais identidades não foram frutos de
um processo hegemonicamente democrático tal como os Estados
Unidos e a Europa Ocidental no século XX. Uma História Compara-
da7 desses países podem nos auxiliar na compreensão do processo de
capitalização das homossexualidades em países que ainda sofrem pro-
fundamente com as relações provenientes da matriz de colonialidade
dos poderes8.
Argentina e Brasil: da colonialidade à mediação de identidades
Empreender uma análise sobre a História das Sexualidades na
América Latina é sobretudo um processo de revisão epistêmica sobre
a própria área dos estudos de gênero e sexualidade. Há uma especi-
cidade que a análise tradicional ainda não tem voltado seu devido
olhar. Para além da invenção, os processos de inscrição de gênero e
sexualidade são sobretudo, na América Latina, um resquício sistêmi-
co de reincorporação das relações de poder baseadas no controle da
colonialidade.
As sexualidades e os gêneros locais, foram ao longo do tempo re-
dimensionadas, repensadas, reprogramadas e a sua diversidade foi re-
duzida a uma inscrição binária naturalizada pelo processo colonial e
7. Inúmeros trabalhos têm voltado seus olhos para História Comparada e principalmente
na América Latina. Ver: PRADO, Maria Lígia Coelho. Repensando a História Comparada na
América Latina. Revista de História. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, nº153, 2º semes-
tre de 2005, p.11-34; FAUSTO, Boris; DEVOTO, J. Brasil e Argentina. Um ensaio de história
comparada (1850-2002). São Paulo: Editora 34, 2004; PEDRO, Joana Maria; Wol, Scheibe.
Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Ed.Mulheres, 2010.
8. Conforme destacam Ballestrin (2013), Mignolo (2010) e Quijano (2009) a matriz de colo-
nialidade do poder se manifesta em diversas formas que tangem a nossa organização social e
nosso modo de ser/estar e moldar o mundo.
51
mantida através da colonialidade dos poderes. A lente decolonoial nos
auxilia a desvelar ambos os processos.
As colonialidades dividem-se numa ordem do poder, do ser, e do
saber conforme nos lembra Ballestrin (2003). Este processo é sobre-
tudo um rearranjo diário de manutenção de redes de poder que or-
ganizam as sociedades, uma vez colonizadas, e também as formas de
pensar e agir. Proveniente do projeto da modernidade, até hoje uma
relação hierárquica de poder tem capturado as possibilidades de exis-
tência no mundo, seja através da economia, seja do controle sobre a
natureza, seja sobre a sexualidade (MIGNOLO; OLIVEIRA, 2017).
Se pensarmos no processo que em especíco repensa a inscrição
colonial das sexualidades e de gênero podemos dividi-lo em dois mo-
mentos distintos. Um primeiro que se estabelece através da inscrição
da ordem de gênero, e um segundo através da diferenciação da sexua-
lidade através do olhar binário hetero/homo.
Como bem menciona Gayle Rubin (2017), o processo de desen-
volvimento de um sistema sexo/gênero nas sociedades é na realidade
um processo histórico e moral. O binarismo homem/mulher pode
então ser compreendido como uma escritura9 dos corpos sexuados
baseados na ordem do pensamento, no controle e na mediação da re-
sistência destes mesmos pilares. Em ambas as Américas10 este primei-
ro processo, quando pensamos o desejo homoerótico, na nomeação,
9. O sistema sexo/gênero é retomado anos depois de sua gênese, feita por Rubin ainda na
década de 80 do último século, pelo teórico Preciado (2014). A partir de uma nova lente
teórica, o lósofo compreende que o processo de escritura se dá através de tecnologias do
sexo. Dessa forma, na lógica colonial, a aposta binária é fundamentalmente escrita através de
sosticadas tecnologias sociais heteronormativas. Em uma relação hierárquica do poder ho-
mens detêm um privilégio de poder sobre as mulheres e a heterossexualidade, força motriz
de manutenção deste primeiro, detêm poder, geralmente na forma de violência, sob outras
sexualidades possíveis. Ver: PRECIADO, Paul. B. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas
de identidade sexual. São Paulo: n1-edições, 2014.
10. Um dos processos que marcam boa parte da América Latina foi o processo da Inquisi-
ção. Ainda que menos ecaz que nas metrópoles coloniais, os julgamentos e o regime de
conssão foram fundamentais na relação de vigia e autocontrole sobre os comportamentos
sexuais. Ver: TREVISAN. João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da
52
perseguição e julgamento do pecado nefando popularmente reconhe-
cido como sodomia.
Já num segundo momento, mais próximo a nosso tempo, a inven-
ção da homossexualidade e heterossexualidade através do desenvolvi-
mento de uma gama de características já descritas por Foucault (1990)
em seu trabalho A Vontade de Saber. Aqui, o elemento decolonial per-
mite compreendermos os desenvolvimentos locais e as pontes geral-
mente construídas no sentido do Norte para o Sul global. A criação,
ainda no século XIX, de um dispositivo de sexualidade através de uma
construção médico-legal sobre o desejo homoerótico foi desenvolvi-
do na Europa para Europa.
Entretanto, o projeto da modernidade faz-se presente em ambos
os países da América Latina quando o controle sobre o saber e so-
bre o sexo se intercambiaram. Em primeiro lugar, a eleição da scientia
sexualis11 como saber possível do sexo. A linguagem, a forma de de-
codicação e interpretação do desejo compreendido como desviante
foi traduzido, tal qual para região. Dessa forma, tal qual a Europa,
os países latino-americanos reiteraram para si o mesmo sistema de
codicação. O dispositivo da sexualidade se inscreve na medida que
o pacto da colonialidade exige uma circulação e para que esta última
ocorra é necessário que se estabeleçam uma mesma linguagem.
Apesar da hegemonia binária entre homo/hetero, outras exis-
tências por vezes subverteram tal lógica e como tal ato estiveram a
margem como preço pago por sua ousadia de desmantelamento de
ordem. Episódios de subversão por vezes instauram uma relação de
colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018; BAZÁN,Osvaldo. Historia de la homose-
xualidad en la Argentina. Buenos Aires: Marea, 2010.
11. Conforme menciona Foucault (1990), enfrentar a sexualidade através de uma busca pela
verdade e pela regulação tornou-se fundamental para a construção de um modus operandi
de uma pretensão cientíca, que pela colonialidade do saber, tornou-se fundamental para
a tradução de modos hierárquicos de interpretação da sexualidade. Esta relação de hierar-
quia sexual e de verdade sobre a sexualidade estão evidentes nos trabalhos de Drucker (2015;
2017) e de Rubin (2017).
53
mediação por existência. É neste sentido que retomamos as possibi-
lidades de existências homo na Argentina e Brasil. Ainda na década
de 1950, parece-nos que um rizoma de identidades do mal sexo12 se
estabeleciam em centros de homossociabilidades frequentemente de-
nominados de guetos homossexuais, nas cidades mais populosas de
ambos os países como Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires.
Nesses centros as socialibilidades homoeróticas propiciaram dife-
renciações do sujeito homossexual. Diferente do binarismo hetero-
centrado, identidades que hoje são catalogadas desestabilizam o ar-
ranjo normativo. Em Argentina esse processo estabeleceu a partir dos
anos 50 um movimento de desenvolvimento de homossexuais distin-
tos. Entre chongos, maricas, homosexuales e por vezes pelo entendido
as ruas dos guetos homossexuais de Buenos Aires pareciam se agitar
entre 1950-1960. A condição clandestina, pautada pelo controle da
violência social e institucional, não signicou a redução e a exclusão
da circulação de tais identidades homossexuais.
O chongo13 foi construído para ser aquele homem que estabelecia
relações sexuais com os maricas14 mas não eram reconhecidos como
homossexuais (INSAUSTI, 2016). Esse quadro assemelha-se na díade
bofe/bicha, estabelecida nesse mesmo período histórico conforme
destacaram Green (2000), Trevisan (2017), Fry e MacRae (1985). Estas
identidades correspondentes foram estabelecidas pelos papeis sexuais
vinculados no gueto homossexual.
12. Gayle Rubin (2017).
13. O chongos tem sido amplamente estudado através das pesquisas ainda em desenvovli-
mento de Máximo Javier Fernandez. Uma de suas análises poder ser vista em: FERNAN-
DÉZ. Máximo Javier. Sociabilidad homoerótica en la ciudad de Buenos aires: maricas y ma-
rineros durante los sesenta y los setenta. In: D’ANTONI, Débora (org). Deseo y represión.
Sexualidad, género y Estado en la historia argentina reciente. Imago Mundi: Buenos aires.
2015. p.21-42.
14. Já os maricas foram analisados nas obras de Cutuli, Maria Soledad; Insausti, Santiago Joa-
quín. Cabarets, corsos y teatros de revista: espacios de transgresión y celebración em la me-
moria marica. In: Peralta, Jorge Luis; Merida, Rafael. (orgs). Memorias, idnetidades y expe-
riencias trans:(in)visibilidades entre Argentina y España. Biblios: Buenos Aires.2014. p.19-39.
54
Tais identidades são de maneira geral estabelecidas através dos pa-
peis sexuais pré-estabelecidos nesses guetos. O homem que desempe-
nha o papel de ativo era compreendido como chongo e bofe e respec-
tivamente não eram reconhecidos como homossexuais. Já as bichas e
maricas eram frequentemente vistas pela sua performance afeminada
bem como sua posição sexual de passivo. Nestas duas últimas identi-
dades é possível considerarmos como sendo a gura que se aproxima
a normativa do que é a identidade homossexual para o Estado e para
a sociedade heterocentrada.
A produção estético-discursiva dessa díade produziu um imagi-
nário no gueto gay em que “ a ideia de dois bichas praticando sexo
era tão repugnante para as bonecas quanto era intensão a aversão da
maioria da população ao comportamento homossexual em geral”(-
GREEN,2000, p.302).Apesar da existência predominante deste bina-
rismo homo, as identidades homossexuais devem ser encaradas, mes-
mo nesse período, como múltiplas com existência de outras formas
ainda que periféricas e pouco compreendidas como as maricas monta-
das, travestis15, transformistas e bonecas.
É ainda nesse período que as identidades homossexuais vão iniciar
um processo de profunda mudança em ambos os países. Na Argen-
tina e no Brasil, uma identidade homossexual compreendida como
entendido tornou-se a expressão de homossexuais que questionavam
a relação entre a representação de si e os papeis sexuais. Frequente-
mente a dinâmica dessa identidade estabeleceu como problemática a
relação entre passivos-afeminados.
Esse questionamento dos papeis de gênero foi fundamental para
o desenvolvimento dos primeiros movimentos homossexuais na
América Latina e sobretudo, tornou-se uma espécie de agenda sob
15. Elencamos as travestis e transformistas no Brasil e as maricas montadas em Buenos Aires
como homossexuais porque elas eram compreendidas como variações da homossexualidade
no período. Hoje, com os avanços epistemológicos sabe-se que suas identidades são construí-
das muito mais na relação de escritura do gênero como destaca Butler (2003).
55
o reconhecimento de uma espécie de homossexualidade assimilada.
Entretanto é importante ressaltar que há sob alguma medida uma di-
ferenciação entre os entendidos argentinos e brasileiros.
Em seu trabalho Insausti (2016) assume que a identidade do enten-
dido sem dúvidas uma identidade em que o recorte de classe está mais
do que evidente. Já para Green (2000;2014) apesar dos elementos cla-
ros de diferenciação das identidades estarem ligados a classe, esta não
era um fator exclusivo para a formação da identidade dos indivíduos.
Entretanto, visto a partir de um saldo histórico, o momento de rein-
venção da homossexualidade e de armação do entendido deu-se so-
bretudo através dos movimentos de liberação homossexual.
Na Argentina, em 1967, um grupo de sindicalistas provenientes do
Sindicato dos Correios e Telecomunicações se encontravam na zona
sul de Buenos Aires, após as reuniões políticas na sede do Correio Cen-
tral, e nos cafés discutiam uma intersecção que os outros camaradas ou
evitavam, ou condenavam. A homossexualidade levou a esses sujeitos
uma criação de pauta, inicialmente de convergência, aos movimentos
de esquerda na tentativa de elaboração de uma liberação sexual.
Neste ano surgia o grupo Nuestro Mundo e em 1971, em aliança
com um grupo de estudantes da Faculdade de Filosoa da Univer-
sidade de Buenos Aires, fundava-se ali um movimento denominado
de Frente de Liberação Homossexual (SIMONETTO, 2017).E anos
depois, no Brasil, a fundação de um movimento homossexual de pri-
meira onda através do ambiente propiciado pelo jornal Lampião da
Esquina (1978-1981) e a formação do pioneiro grupo de militância
paulista, Somos/SP (1978-1983). Também mergulhado dentro de um
processo profundo de violências, o grupo desenvolve uma identidade
coletiva que perpassa a gura do entendido (PINTO,2018).
Ambos os movimentos, argentino e brasileiro, apesar de possuí-
rem discursos diferentes, se utilizam de tal identidade para a tentativa
de coalização com as esquerdas. Este modus operandi político do gru-
po, frequentemente se alia a uma tentativa de assimilação social que
56
dá pontapé para um processo profundo de ressignicação das homos-
sexualidades.
Ao se utilizar do entendido como uma plataforma política criou-se
um processo de cristalização de hierarquias sexuais do mal sexo. Fre-
quentemente, o entendido era também lido como o sujeito que cami-
nhava entre os espaços públicos, ele conhecia as discussões cientícas,
políticas e culturais. Dessa forma, a supressão da feminilidade tornou-
-se um elemento fundamental para as homossexualidades brasileiras.
Apesar de não se apegar a masculinidade hegemônica como um
padrão, o comportamento do entendido passou-se ainda na década de
1980 a gurar como uma estética higiênica da homossexualidade. É a
partir daí que se traçam as dinâmicas de uma nova homonormatividade
(DRUCKER, 2015).
O processo que antes surgira como um elemento de contestação
de normas foi capitaneado pelas estruturas do sistema sexo/gênero e
sob as estraticações das práticas sexuais, como uma nova jaula das
homossexualidades. Se antes, a exclusão se dava pela total eliminação
da homossexualidade masculina dos espaços públicos e da sociedade,
agora, o gay deve seguir um determinado padrão, por vez inalcançá-
vel que intercambia a interdição e a estética heteronormativa.
A nova homonormatividade e o enfoque global
Um dos principais desaos dos estudos e pesquisas sobre a sexuali-
dade é compor um retrato panorâmico de sua polissemia, pois, mes-
mo sendo uma noção bastante conhecida, ela ainda se encontra aber-
ta a novos sentidos que variam de acordo com diferentes contextos e
situações, o que torna a pretensão de historiar ou dissecar esse tema
em sua ilimitada abrangência uma tarefa difícil (CURADO, 2015, p.
604). Apesar de ser objeto de análise frequente nas análises socioló-
gicas (HEILBORN, 2006), a sexualidade ainda possui fragilidades no
que tange sua metodologia de análise e suas aplicações. No entanto,
57
para a proposta apresentada aqui a sexualidade torna-se de suma
importância para entender as relações que estabelecem a dicotomia
homo/hetero além das dinâmicas internas das relações homo, já que
a esfera da sexualidade também tem sua política interna, desigualda-
des, e modos de opressão. (RUBIN, 2017).
A partir do panorama levantado na primeira parte deste artigo,
percebemos que durante a segunda metade do século XX um movi-
mento importante se desencadeou a respeito do homossexualismo no
Brasil e na Argentina promovendo um rearranjo das identidades ho-
moeróticas masculinas. Em um período marcado por um uxo laten-
te de novas ideias, novas palavras, novos espaços e novas identidades,
é que surge tanto no Brasil como na Argentina a gura do entendido.
Desde 1966 várias críticas foram levantadas com relação à mode-
lo bicha/bofe, o que começou a acentuar uma movimentação onde
alguns gays reivindicavam o lugar de homossexual em oposição ao
binômio constituído até então. Neste sentido, Green (2000) destaca
que segundo trabalhos produzidos principalmente na antropologia,
os entendidos rejeitavam de certa forma os termos depreciativos li-
gados ao gênero feminino, tais como louca, viado, bicha, assim como
uma performance mais vistosa e afetada.
Nesse sentido, é imperioso para nós pensarmos a articulação en-
tre essas vozes dissidentes e a evolução política vivenciada deste en-
tão. Juntamente com esse rearranjo das identidades homoeróticas é
desenvolvido um debate político sobre a situação de variados países,
regimes políticos, movimentos sociais dentre outros acontecimentos
que se desenvolviam de certa maneira pelo globo. Logo, é perceptível
que a gura do entendido emerge juntamente com um apelo político
e social mais evidente por parte da sexualidade dissidente.
É a partir desse ponto que propomos perceber a gura do enten-
dido como o protótipo da nova homonormatividade. Pensando a
partir do interior da lógica capitalista, percebemos que o entendido
será a gênese do processo apontado por Drucker (2015) como a nova
58
homonormatividade, que segundo o autor marca a experiência LGBTI
de maneira distinta em diferentes partes do globo na contemporanei-
dade. Ao propormos a percepção da nova homonormatividade como
uma reatualização do entendido, buscamos a partir da interação entre
estrutura e evento, compreender o processo paradoxal em que os gays
adentraram na estrutura do capital enquanto consumidores, mas não
alcançaram boa parte dos direitos políticos pelos quais lutaram tanto.
Nos últimos 50 anos, os movimentos de lésbicas/gays/bissexuais/ trans-
gêneros/intersexos (LGBTI) em boa parte do mundo obtiveram uma
série de vitórias. Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas aprovou, por maioria de votos, a proteção às minorias sexuais. O
direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi apenas con-
quistado na África do Sul, Argentina e nos Estados Unidos, mas também
tem sido considerado no Nepal e no Vietnã. (DRUCKER, 2017, p. 198).
Nesse contexto, onde o conservadorismo cresce de maneira assom-
brosa negando cada vez mais as “minorias” é que situamos o que Druc-
ker (2017) chama, a partir de um prisma global e eurocêntrico, de nova
homonormatividade. Segundo o autor, em países onde os movimentos
parecem ter sido mais bem-sucedidos as vidas LGBT+ estão cada vez
mais circunscritas por uma política de reconciliação com o neolibera-
lismo, que Lisa Duggan (2002) (apud Drucker, 2017) chamou de “nova
homonormatividade”: uma mentalidade que não “contesta as suposi-
ções e instituições heteronormativas dominantes, mas que as apoia e
sustenta” (DUGGAN, 2002 apud DRUCKER, 2017, p.199).
O autor desenvolve seu trabalho a partir do alinhamento de três
seções onde busca contribuir com o que ele chama de política queer
de transformação anticapitalista ou Queer Marxism16. Primeiro o autor
16. O marxismo queer tem fundado uma episteme que sintetiza conceitos marxistas como
classe, reicação e totalidade juntamente com conceitos de outros paradigmas, principal-
mente queer, como a performatividade, o homonacionalismo e a interseccionalidade. Para
59
situa a questão da liberação lésbica/gay, de 1968 a 1973, que ocorre
no cerne da história mais ampla das sexualidades entre pessoas do
mesmo sexo. Em segundo, o autor pondera como, por volta dos anos
1990, a normalidade gay, quase imperceptivelmente, comprimiu o
potencial dos libertadores lésbicos/gays. Em terceiro, o autor esque-
matiza cinco particularidades do novo padrão hegemônico da nor-
malidade gay: a auto denição da comunidade lésbica/gay como uma
minoria estável; uma crescente conformidade de gênero; a margina-
lização das pessoas trans e de outras minorias no interior da minoria;
a cada vez maior integração à nação; e a formação de novas famílias
lésbicas/gays normalizadas (DRUCKER, 2017, p. 200). Para o autor
esses cinco traços delinearam uma nova ordem hegemônica de mes-
mo sexo.
Entender os processos identitários, individuais e coletivos, que se
formaram a partir da atuação do movimento homossexual que se-
gundo Drucker (2017) fazem parte do motor de partida do processo
de constituição da nova homonormatividade se torna cada vez mais
imperioso. Para tanto, é preciso compreender especicamente os pro-
cessos identitários resultantes de uma possível renegociação do espa-
ço ocupado pelos homossexuais na pirâmide social, negociação esta
que segundo Drucker (2015; 2017) ocorrera no alvorecer dos movi-
mentos homossexuais e no fortalecimento do neoliberalismo.
Abordar a gura do entendido tanto no Brasil como na Argentina
como o protótipo da nova homonormatividade se congura de suma
importância para entendermos melhor a cristalização dessa normali-
dade gay vivenciada na atualidade. Assim colocamos a gura do en-
tendido como a transição da homonormatividade gay17 a nova homo-
um detalhamento maior ver: Alan Sears (2000), Kevin Floyd (1998) Peter Drucker (2015),
Holly Lewis (2016) e Petrus Liu (2015).
17. Consideramos que a homonormatividade é um processo de mediação entre representa-
ção e identidade. Dentro do primeiro modelo de representação da homossexualidade os ele-
mentos, performance, que caracterizam essa normativa se intercambiam entre a hegemonia
60
normatividade gay. Esta última marcada por um processo de extrema
negociação com a direita e com a ordem heteronormativa, além de
estar intimamente ligada ao neoliberalismo e a um processo de glo-
balização contínuo. É a partir dessa percepção que apontamos neste
trabalho tanto a decolonialidade discutida na primeira seção, quanto
a História Global como possíveis caminhos para uma percepção mais
abrangente e não eurocêntrica a respeito das sexualidades dissidentes
no Brasil e na América Latina.
Muito tem-se discutido a respeito das possibilidades, limites, abor-
dagens e perigos de uma História Global como abordagem histórica
que vem crescendo cada vez mais ao redor do globo. Segundo Mar-
quese (2019) a reordenação geopolítica e econômica que se seguiu ao
término da Guerra Fria, as lutas emancipatórias de diferentes grupos
ao redor do planeta, a revolução nas formas de comunicação trazida
pela disseminação da internet, a magnitude das crises recentes do ca-
pitalismo mundial, os uxos internacionais de trabalho e de capital e
a correspondente tensão entre a abertura e o fechamento de frontei-
ras são fatores que pressionam para a construção de uma abordagem
historiográca mais abrangente. (MARQUESE, 2019, p. 16)
É sabido que o debate em torno da história global enquanto
abordagem historiográca é imenso. Uma abordagem mais abran-
gente, não signica apenas uma expansão geográca, ou mesmo
bloquear conitos, contradições e acrescentaríamos aqui também
sujeitos. Uma das grandes críticas feitas a esta abordagem, tem sido
a de a mesma parecer ser o retorno de uma macro-história, ou até
mesmo uma redução da história a um processo de globalização que
já se encontra de certo modo desgastada. Sebastian Conrad (2016)
da gura das bichas/maricas e a produção de sentido da ordem heterocentrada. Já a nova
homonormatividade é um processo de deslocamento do sujeito mediador e receptor do sen-
tido de representação, ela caracteriza uma escolha consciente de elementos e performances
que se alinham a heteronormatividade, mas que não correspondem a ela de forma direta.
Ela é sobretudo uma identidade que organiza de forma hierarquizada as outras homosse-
xualidades.
61
em um texto que tem sido tomado como uma das produções mais
esclarecedoras a respeito desta abordagem historiográca, realiza
várias acepções importantes principalmente a respeito de indaga-
ções caras aos historiadores, que segundo Gary Wilder (2012) desde
a virada linguística tem se atentado a eventos locais e suas manifes-
tações locais ou o que o autor irá chamar de uma saída da ótica a
tópica. Conrad (2016) aborda a história global como algo necessário
para se pensar e repensar uma perspectiva do passado que seja mais
inclusiva, menos estritamente nacional, e que aliado a um debate
histórico mundializado alterou/altera a forma de se pensar e produ-
zir História no século XXI.
Sandra Kuntz Ficker (2014) realizou um dos trabalhos que tem
tomado a cena também no centro das discussões acerca da história
global. Com o objetivo de claricar o campo, a autora mostrou o uso
indistinto da terminologia na literatura atual e identicou uma das
origens dos estudos em história global. Discutindo a diferença entre
história global, mundial e universal, a autora fez um dilatado levan-
tamento de obras historiográcas e de ciências sociais publicadas en-
tre a década de 1960 e o começo do século XXI contendo a palavra
“global” no título além de apontar as obras de Braudel e Wallerstein
como precursoras de certa forma da abordagem.
Giovanni Levi (2018) apontou também vários pontos que precisam
ser pensados e repensados com relação a história global. No entanto,
Levi além de deferir sérios ataques a alguns pontos da abordagem glo-
bal, realizou uma comparação teórica metodológica entre a história
global e a micro história. Com certeza o debate em torno dessa com-
paração é absurdamente interessante, no entanto o que nos interessa
é entender como a micro história pode se congurar como uma lente
de aumento para a história global em um mundo mais conectado,
porém também mais fragmentado e diverso. Logo, a micro história
utiliza um microscópio que identica aspectos importantes invisíveis
a uma olhada e uma leitura de grandes dimensões.
62
Nesse sentido, o texto de Giovanni Levi apesar de construir críticas
fortes em relação a história global, parece apontar uma interação que
se realizada da maneira correta pode gerar resultados promissores
para uma interação entre estruturas e indivíduos. Segundo Henrique
Espada Lima (2018) é preciso reconhecer que é uma tarefa essencial
da História não abandonar a ambição de levar os atores sociais a sé-
rio, pois só dessa maneira será possível a criação de antídotos para
uma operação cara a história global que em um processo paradoxal
celebra o capitalismo e a globalização mesmo quando os mesmos são
os objetos criticados. Para Lima (2018)
Relacionado a isso, me parece revelador que um dos resultados imedia-
tamente reconhecíveis em algumas dessas histórias “globais” e a nova
narrativa da história do capitalismo, por exemplo, é que ela também
parece dispensar algumas das abordagens que julgávamos que tivessem
sido incorporadas de uma vez por todas em nosso questionário de pes-
quisa e campo de investigação. Um exemplo disso é a dinâmica do gêne-
ro e da sexualidade, que trouxe contribuições formidáveis, mas que nes-
ses estudos parece retornar à periferia dessa “grande” história, ameaçada
de ser vítima da “enorme condescendência” do presente “globalizado”
(LIMA, 2018, p. 65).
É perceptível que as críticas a história global são contundentes e pos-
suem uma matriz bem justicada. No entanto, acreditamos que não
podemos descartar todas as possibilidades que a mesma oferece como
abordagem historiográca. Nos parece que o retorno a estrutura é ex-
tremamente negativo e perigoso a ponto de nos levar de volta a uma
história macroestrutural, porém acreditamos que este retorno será rea-
lizado à medida em que as estruturas forem percebidas como estáticas.
Nesse sentido, nos parece necessário que antes de descartarmos a
história global como uma abordagem historiográca profícua é neces-
sário rediscutir a partir de um processo dialético o papel das estruturas
63
e suas agências em interação com os sujeitos e suas agências. É preciso
promover a interação entre estruturas e sujeitos visando construir uma
perspectiva que seja capaz de contemplar diferentes dimensões tempo-
rais e espaciais, variando escalas de observação, articulando estruturas,
eventos e sujeitos tomando cuidados devidos com relação a etnocen-
trismos, determinismos e sobreposições de todo tipo.
Assim nós apontamos aqui tanto a decolonialidade discutida na
primeira seção deste texto quanto a micro história como possíveis
chaves de abordagem para pensar a sexualidade e as homossexualida-
des no prisma da história global. Como Henrique Espada Lima (2018)
apontou as discussões sobre gênero e sexualidades são periféricas
dentro da episteme global, no entanto propomos uma tomada des-
ta abordagem com vistas a uma possível interação entre estruturas e
sujeitos sem sobreposições, mas uma dialética entre as agências. Lem-
brando do texto de Spivak (2010) pode um subalterno falar? Salientamos
que aqui não colocamos os estudos sobre gênero e sexualidades no
local de subalternidade, mas chamamos estes para ocuparem o lugar
de insubmissos dentro de uma perspectiva global.
REFERÊNCIAS
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67
ATIVISMOS LGBT EM CAMPINAS (SP):
FRAGMENTOS DE UMA TRAJETÓRIA
Vinícius Zanoli1
INTRODUÇÃO
Este capítulo tem como objetivo recuperar fragmentos da trajetó-
ria dos ativismos LGBT (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e tran-
sexuais)2 em Campinas. A cidade se situa no interior de São Paulo,
distando cerca de cem quilômetros da capital estadual3. Com pouco
mais de 1,2 milhões de habitantes, Campinas é sede de uma região
metropolitana composta por vinte municípios. Na cidade, atuam ou
atuaram distintas organizações que, além de realizarem atividades
1. É pesquisador no Instituto de Estudos Latino-Americanos (Lateinamerika-Institut) da Uni-
versidade Livre de Berlim (Freie Universität Berlin), onde atua como pós-doutorando na área
de Antropologia Social e Cultural, com nanciamento da Agência de Pesquisa Alemã (Deuts-
che Forschungsgemeinschaft – DFG). Atua também como pesquisador associado ao Núcleo de
Estudos Néstor Perlongher – Cidade, Geração e Sexualidade, da Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul (NENP/UFMS). É Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Antropologia
Social e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
E-mail: vzanoli@gmail.com.
2. Apesar de saber que formas mais atuais da sigla no Brasil têm adotado mais categorias
identitárias, optei pela manutenção de LGBT por não ter, durante a realização da pesquisa,
encontrado grupos compostos por pessoas que se denem ou são denidas como intersexo
(I) ou queer (Q), por exemplo.
3. Esse texto se baseia em investigações que ocorreram entre 2010 e 2019. Todas focaram-
-se na relação da política LGBT local com processos mais amplos e nas particularidades do
ativismo LGBTI em Campinas. Os métodos empregados foram: observação participante,
análise documental e entrevistas em profundidade.
68
locais, estão ou estiveram engajados na política LGBTI em distintos
níveis. Além disso, por meio de alianças com outros coletivos, os ati-
vistas da cidade fazem ou zeram parte de redes nacionais e trans-
nacionais, incluindo a criação da primeira rede de LGBT jovens do
Brasil, que contava com uma sucursal campineira (TOMIZAKI; DA-
NILIAUSKAS, 2018).
Campinas é espaço de análise deste texto por sua singularidade e
importância para o movimento LGBTI no país. A cidade sediou, em
2003, a criação da primeira política pública brasileira a oferecer as-
sistência social, jurídica e psicológica a LGBT, o Centro de Referên-
cia (CR) LGBT de Campinas (ZANOLI, 2015; 2019). Tal política foi
conquistada a partir da interlocução entre ativistas e executivo mu-
nicipal. Ademais, o município foi a casa de um dos primeiros grupos
organizados de transexuais do Brasil, o Movimento Transexual de
Campinas, fundado em 1997 e já extinto (CARVALHO; CARRARA,
2013). Ainda, Campinas é conhecida, principalmente, no interior de
São Paulo, como uma “cidade gay”4. Mesmo assim, poucos estudos
sobre movimento LGBT, ou mesmo sobre gênero, sexualidade e so-
ciabilidade, se focam na cidade5.
O município conta com diferentes coletivos LGBT, incluindo
aqueles de caráter universitário. Parte deles teve vida curta. Outros
extrapolaram os muros da universidade. Aqui, considerando o escopo
original das pesquisas, o foco recai sobre aqueles que não tinham ou
não têm a universidade como foco de sua atuação. O objetivo é ana-
lisar formas de ativismos mais usuais do período, como grupos que
4. Quanto à origem do título de cidade gay, uma das teorias mais aceitas entre ativistas
com quem tive contato aponta para a gura de Carlito Maia (1924-2002), lho de Orosimbo
Maia (1861-1939), que foi prefeito e vereador de Campinas. Carlito era ator de radionovelas e
carnavalesco. Boêmio e, segundo alguns ativistas, gay, Carlito cou conhecido por organizar
excursões para o carnaval carioca, o que teria inuenciado a fama do município.
5. Essa realidade tem se modicado lentamente. Para trabalhos sobre a cidade, cf. capítulo
de Mascarenhas Neto nesta obra, bem como Mascarenhas Neto (2020), Pelúcio e Duque
(2013), Santos (2010) e Cilento, Garcia e Freitas (2020).
69
atuam por meio de parcerias com o Estado6. Considerando que não
é objetivo do trabalho abarcar todas as organizações ou iniciativas,
recupero aqui fragmentos da história do ativismo LGBT da cidade,
que ainda está por ser feita7.
As análises acadêmicas com foco no movimento LGBT têm privi-
legiado as capitais estaduais, concentrando-se em cidades como Rio
de Janeiro e São Paulo. Por isso, pouco tem sido produzido sobre mu-
nicípios do interior. Dadas suas proporções, Campinas não costuma
ser pensada como interiorana. Ainda assim, ao analisar a trajetória do
ativismo LGBT campineiro, busco diversicar a produção de conheci-
mento sobre essa forma de ação política a partir da análise de dinâmicas
locais e especicidades de municípios que cam às margens de análises
centradas, supostamente, em ações coletivas em âmbito nacional.
Assim, nas páginas que seguem, recupero a trajetória do ativismo
LGBT campineiro. O foco recai sobre as formas organizativas dos
grupos, seus modos de atuar, as relações entre ativistas e as relações
com o Estado. Para tanto, na seção seguinte, apresento uma breve
contextualização acerca da história do ativismo LGBTI8 no Brasil. Nas
posteriores, exploro fragmentos da trajetória de alguns grupos em
Campinas, ressaltando suas especicidades e conexões com processos
sociais e políticos mais amplos. Na conclusão, apresento dois impor-
tantes momentos de interlocução entre as organizações locais. Além
disso, retomo os principais argumentos do capítulo e apresento, de
maneira sucinta, os atuais desaos dos ativistas na cidade.
6. Para um trabalho sobre Campinas que versa sobre organizações universitárias, cf. Falcão
(2017). Já Iazzetti (2021), analisa, dentre outras coisas, a atuação política de ativistas trans* na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e para além dela.
7. Ressalto que é possível encontrar o acervo do Identidade e do Mo.Le.Ca. no Arquivo
Edgard Leuenroth, da Unicamp. O restante do material documental se encontra espalhado
pelas casas e arquivos de diferentes grupos ativistas.
8. Optei por utilizar a sigla que inclui pessoas intersexo (LGBTI) para me referir ao movi-
mento nacional, considerando que essa é a sigla que tem sido mais utilizada por ativistas no
Brasil.
70
Percursos do movimento LGBTI no Brasil
A literatura sobre movimento LGBTI no Brasil ressalta o surgi-
mento do Somos de São Paulo e do jornal Lampião da Esquina, em
1978, como marcos do nascimento dessa forma de ativismo (FAC-
CHINI, 2005; MACRAE, 1990). Essa forma de ação coletiva, em seu
início, era chamada de Movimento Homossexual Brasileiro (MHB).
Isso ocorria, pois se compreendia que a categoria “homossexual”
seria abrangente o suciente para denir os sujeitos políticos que a
compunham. Apesar disso, tensões internas existiam e sujeitos po-
líticos, como as mulheres lésbicas, lutaram para que sua identidade
fosse inserida na sigla do movimento (MACRAE, 1990), que é instável
e está em constante transformação (FACCHINI, 2005, 2018). O MHB
passou a ser chamado de Movimento de Gays e Lésbicas e, mais re-
centemente, de LGBTI.
Com o m do Lampião e do Somos, os anos 1980 marcam o início
de uma nova fase do movimento, caracterizada pela redução numéri-
ca dos grupos ativistas, pelo combate à epidemia de HIV/Aids e pelo
início da institucionalização de algumas das organizações (FACCHI-
NI, 2005). Uma das mais reconhecidas organizações desse período foi
o Triângulo Rosa do Rio de Janeiro, que cou conhecida por liderar
a campanha pela inclusão da não discriminação por orientação sexual
na Constituição de 1988 (CÂMARA, 2002). Apesar da falta de êxito,
essa tentativa foi uma das primeiras experiências de participação polí-
tica do movimento LGBTI.
O novo regime democrático brasileiro e o processo de enfrenta-
mento da epidemia de HIV/Aids colaboraram para a intensicação
das relações entre o movimento LGBTI e o Estado. Tais relações, por
sua vez, impulsionaram o processo de institucionalização dos grupos
ativistas (FEITOSA, 2018). Isso fez com que o movimento LGBTI bra-
sileiro crescesse e se tornasse um dos mais visíveis no cenário nacional
(FACCHINI; FRANÇA, 2009). Durante esse período, foram imple-
mentadas ferramentas de participação política nas quais a sociedade
71
civil tinha a possibilidade de propor, avaliar e scalizar políticas pú-
blicas (HEREDIA; BARREIRA; BEZERRA et al., 2012; LOPES; HE-
REDIA, 2014). Além desses espaços, diferentes formas de ação cole-
tiva criaram ou estreitaram seus laços com agências governamentais,
passando a atuar em Conselhos e Conferências de Direitos Humanos
(LOPES; HEREDIA, 2014). Alguns deles chegaram a ocupar postos
nomeados, principalmente no executivo, em distintos níveis (FAC-
CHINI; CARMO; LIMA, 2020; GOMES, 2017; ZANOLI, 2015).
Isso está ligado a uma série de fatores da política nacional. Com
a eleição do Presidente Luís Inácio “Lula” da Silva (Partido dos Tra-
balhadores – PT) em 2002 e o início de seu mandato em 2003, as in-
terações entre ativistas e o Estado se modicaram. Tais interações já
estavam presentes desde pelo menos a ditadura militar (RECH; SIL-
VA, 2016). É impossível não reconhecer, contudo, que, com a nova
gestão do PT, sujeitos que militavam em diversas formas de ação co-
letiva estreitaram seus laços com o Estado. Isso se deu por meio de
distintas políticas participativas no período que Feitosa (2018) chama
de “tsunami da participação”. Isso fez com que o movimento passas-
se por um processo de “reconhecimento” de suas demandas (FAC-
CHINI, 2018), bem como, por aquilo que Carrara (2016) chama de
“cidadanização”.
Segundo Carrara (2016), a cidadanização é um projeto de incor-
poração social e política de categorias sociais marginalizadas que
visa legitimar os direitos de sujeitos que se compreendem ou são
compreendidos a partir dessas categorias. Tal processo foi essencial
na constituição dos LGBT enquanto sujeitos de direito no Brasil
(AGUIÃO, 2018) e foi acompanhado do reconhecimento estatal das
demandas de diversas formas de ativismo (FACCHINI, 2020), como
os movimentos LGBT, feministas e negros, por exemplo (FACCHI-
NI; CARMO; LIMA, 2020; GOMES, 2017; RIOS, 2014). É verdade que
esse reconhecimento aconteceu de modo parcial, sempre com sua
legitimidade contestada por alguns sujeitos e por meio de políticas
72
públicas frágeis, que foram, em sua maioria, descontinuadas ou su-
cateadas (MELLO; AVELAR; MAROJA, 2012; ZANOLI; FALCÃO,
2015). Ainda assim, o movimento passou a estreitar seus laços com o
Estado (AGUIÃO, 2020; FEITOSA, 2018).
Outra característica do período foram os processos que a literatu-
ra sobre ativismo LGBTI chamou de multiplicação e especicação do
sujeito político do movimento. A multiplicação pode ser representa-
da pela metáfora da “sopa de letrinhas”, que se refere à proliferação
de orientações sexuais e identidades de gênero representadas na sigla
do movimento (FACCHINI, 2005). Já a especicação diz respeito à
formulação de sujeitos políticos que não estão associados apenas às
orientações sexuais e identidades de gênero, mas a outras marcas de
diferença, como raça, gênero e sexualidade.
O termo “especicação”, que tem sido utilizado pela literatura
brasileira sobre ativismo LGBTI, deriva do discurso de ativistas.
Tais ativistas apontam que suas questões especícas como mulheres
ou como negros, por exemplo, são deixadas de lado ou pouco dis-
cutidas no que chamam de movimento hegemônico. Em meus tra-
balhos mais atuais (ZANOLI, 2020a; 2020b), tomo o que tem sido
denominado de especicação como processos por meio dos quais
se produzem “ativismos interseccionais”. Isto é, formas de atuação
política que não estão restritas apenas a “um movimento social”,
mas à relação entre o que a literatura tem analisado como distintas
formas de ativismo, como os movimentos feministas, negros e LGB-
TI, por exemplo.
Em contexto nacional, o processo de cidadanização dos LGBT no
Brasil parece perder sua força a partir da gestão petista de Dilma Rou-
sse (2011-2016). Por um lado, temos o avanço das ofensivas antigê-
nero (CORRÊA; KALIL, 2020; MISKOLCI; CAMAPANA, 2017), uma
articulação política entre distintos atores contrários a direitos sexuais
e reprodutivos, incluindo aí os direitos de pessoas LGBTI. Por outro,
com a ascensão desses sujeitos na esfera pública e por pressão deles,
73
o governo Dilma, aos poucos, foi se fechando ao movimento LGB-
TI, buscando dissociar sua imagem de tal forma de ativismo. Além
do cancelamento de políticas públicas, como um kit educativo para
combater a homofobia nas escolas, ressalto a ausência de Rousse na
solenidade de abertura da II Conferência Nacional de Políticas Públi-
cas para LGBT em dezembro de 2011 como marcas dessa dissociação
(AGUIÃO, 2018).
Até aqui, abordamos a periodização da trajetória do movimento
LGBTI no Brasil até meados de 2016, ano em que o início da crise de-
mocrática foi marcado pelo impeachment da Presidenta Dilma Rou-
sse (PT). O período atual, caracterizado pelo avanço do autorita-
rismo, tem sido debatido acaloradamente por acadêmicos. Contudo,
devido à intensa instabilidade política, pesquisadores têm evitado ti-
rar conclusões precipitadas. Ainda assim, a maioria deles ressalta que
estamos vivendo um momento não apenas de crise democrática, mas
de ascensão de contra-movimentos de caráter conservador, por vezes
religioso, que se opõem à agenda dos direitos humanos e aos direi-
tos recém conquistados por algumas “minorias” e que culminou na
eleição do atual Presidente da República (AGUIÃO, 2020; FACCHINI,
2018, 2020; FEITOSA, 2018). No entanto, abordaremos o contexto
atual nas considerações nais, depois de retomar a trajetória dos ati-
vistas LGBTI em Campinas.
O movimento LGBT em Campinas
O primeiro coletivo político homossexual de que se tem notícia
em Campinas, o Expressão, surgiu entre 1995 e 1997. Esse grupo inte-
gra, assim, o processo de crescimento, expansão territorial e interiori-
zação do movimento que caracteriza o período denominado por Fac-
chini (2005) de “terceira onda” do movimento LGBTI brasileiro. O
Expressão era responsável pela edição de um jornal, “O Babado”, que
circulava em espaços de sociabilidade homossexual da cidade. Seus
74
fundadores frequentavam um grupo de vivência9 no âmbito do Progra-
ma Municipal de DST/AIDS, o Conviver (SANTOS, 2010). Segundo
interlocutores, em outubro de 1995, depois de uma palestra oferecida
na Unicamp por Luiz Mott, antropólogo e fundador do Grupo Gay
da Bahia (GGB), frequentadores do Conviver decidiram fundar um
grupo ativista. Entretanto, segundo Paulo Reis dos Santos (2010), o
grupo teria sido fundado em 1997.
É importante salientar o papel dos programas de prevenção de
DST/Aids na “terceira onda” do movimento, pois ele foi um dos
principais canais de interlocução entre ativistas e governo federal.
Ademais, o programa foi importante fomentador de novos coletivos
(FACCHINI, 2005). No caso campineiro, o Conviver colaborou com
o surgimento do primeiro grupo ativista LGBTI da cidade, demons-
trando assim o impacto das políticas de Aids na expansão do movi-
mento LGBTI. A inuência de políticas públicas focalizadas na cria-
ção de novas organizações não está ligada apenas àquelas de combate
ao HIV. Trabalhos mais recentes, como o de Aguião (2018), ressaltam
que ferramentas participativas como conferências de políticas públi-
cas e programas de governo, acabam também fomentando a orga-
nização e a participação política de LGBT. A autora demonstra isso
a partir do caso do Programa Brasil sem Homofobia (2004), que fo-
mentou o surgimento de grupos no Rio de Janeiro.
Identidade
A fundação do Identidade está ligada à edição do jornal “O
Babado”. Um setor do Expressão, considerando que deveria dia-
logar mais com as lésbicas, decidiu que a capa de março de 1998
deveria estampar um casal de mulheres. Entretanto, contrariando
9. Optei pelo uso de itálicos para ressaltar categorias êmicas durante o texto. Categorias
êmicas são aquelas categorias que assumem sentido especíco em meio a um grupo de in-
terlocutores.
75
negociações prévias, o conteúdo do jornal fora modicado sem
aviso, minimizando o enfoque dado às lésbicas, o que causou um
desgaste entre os integrantes do grupo. Em decorrência desse epi-
sódio, os membros do setor que propôs a edição voltada para lés-
bicas noticaram os demais membros de sua saída. Em 19 de maio
de 1998, o estatuto foi registrado em cartório e o Identidade passou
então a existir ocialmente.
O evento que deu origem ao Identidade não foi um momento iso-
lado. Os ativistas que deixaram o grupo armavam que o Expressão
era pouco político. Vemos que esse evento expressa uma tensão pré-
-existente que diz respeito à própria concepção de política de duas par-
celas da organização militante. Desse modo, o Identidade foi fundado
em decorrência de divergências na concepção do que seria o papel de
um movimento social.
Como muitos outros coletivos que surgiram no m dos anos 1990,
o Identidade se estruturou, por muito tempo, como uma organiza-
ção não governamental (ONG). Ainda assim, no período em que as
pesquisas foram realizadas (entre 2009 e 2019), seus ativistas eram crí-
ticos a esse formato e se consideravam como parte de um movimen-
to social. Essas características aparecem nos discursos dos militantes
como antagônicas. Enquanto o papel de um movimento social seria
contestar o Estado e cobrar dele, uma ONG funcionaria mais com um
braço do Estado que cumpre funções que são deixadas de lado pelos
órgãos estatais (ZANOLI, 2019).
Essa ideia de que o papel do movimento social é contestar o Estado
está ligada à ideia de autonomia. Ativistas do Identidade ressaltaram
que, ao executarem políticas públicas com nanciamento estatal, tor-
navam-se um braço do Estado, o que poderia afetar as possibilidades de
críticas. Além disso, armaram que existia uma demanda por pros-
sionalização e um direcionamento das ações para projetos nancia-
dos. Isso acabava por impossibilitar a realização de outras atividades
consideradas relevantes.
76
Essa é uma reclamação recorrente. Uma líder do Mo.Le.Ca., coleti-
vo lésbico da cidade que será apresentado mais adiante, ressaltou que o
trabalho burocrático resultante da atuação nanciada por projetos era
complexo e tomava muito tempo, impedindo-as de realizar outras ati-
vidades. Militantes do Aos Brados, coletivo que também será apresen-
tado posteriormente, ressaltaram problemas semelhantes no que diz
respeito à participação no conselho do Orçamento Participativo.
Em pesquisa sobre o Conselho Nacional de Promoção da Igualda-
de Racial (CNPIR), Sonia Maria Giacomini e Paulo Terra (2014) de-
monstram as diculdades encontradas por ativistas quando buscam
se adaptar aos canais de participação. De maneira análoga ao que
ocorreu em Campinas, exigia-se que ativistas se comportassem como
funcionários do governo e que se adequassem ao formato dos conse-
lhos e à linguagem estatal. Desse modo, muitos grupos abandonaram
essa via por não se adequarem às demandas ou por acreditarem que
seus objetivos seriam colocados em segundo plano devido a tal ade-
quação (GIACOMINI; TERRA, 2014).
Voltando ao Identidade, apesar de ser crítico ao formato de ONG,
o grupo possuiu caráter institucionalizado. Isso se expressa por seu
registro em cartório, pelas reuniões periódicas e pela elaboração de
projetos para concorrer em editais públicos. Essa característica, no
entanto, se modicou nos últimos anos. Um dos primeiros aconteci-
mentos que demonstram a desinstitucionalização do grupo foi a per-
da da sede, que, até meados de 2012, se localizava no centro da cida-
de. A partir de então, os ativistas passaram a se encontrar em espaços
de organizações parceiras, como sindicatos, cursinhos populares, en-
tre outros. Isso impactou também a periodicidade das reuniões, que
passaram a ser menos frequentes.
Outra característica presente no movimento no período é a vincu-
lação a redes nacionais, o que também acontecia com o Identidade.
Apesar das críticas, o grupo foi liado à ABGLT, associação nacional de
organizações LGBT criada em 1995. O coletivo também inuenciou o
77
movimento nacional e teve papel importante na criação do Fórum Pau-
lista LGBT, a mais antiga rede ativista do estado de São Paulo.
Como demonstra Facchini (2005), cisões motivadas por diferenças
e desigualdades estão presentes desde o surgimento do ativismo LGB-
TI. Um traço que aproxima o Identidade do que a literatura registra
acerca de seu período de atuação diz respeito a tensões relacionadas a
relações de poder no interior do movimento que resultaram na cisão
do grupo e no surgimento do primeiro coletivo formado por mulhe-
res lésbicas e bissexuais de Campinas.
O Movimento Lésbico de Campinas
Apenas dois anos após sua fundação, em 2000, uma cisão no Iden-
tidade deu origem ao Mo.Le.Ca. (Movimento Lésbico de Campinas).
Parte das fundadoras frequentava o Identidade e buscava um espaço
onde as discussões fossem voltadas para sua especicidade enquanto
lésbicas e bissexuais. Composto majoritariamente por mulheres cisgê-
nero, durante seu período de atuação, entre 2000 e 201010, o Mo.Le.
Ca. operou a partir de Campinas, construindo parcerias com grupos
locais, regionais e nacionais e adquirindo nanciamentos públicos e
privados advindos de fontes nacionais e internacionais. Até conquis-
tarem sua sede própria por meio de nanciamentos em meados de
2002, as ativistas se encontravam semanalmente no Museu da Ci-
dade11, localizado na região central, próximo a uma antiga estação
10. Considerando o argumento de Cilento, Garcia e Freitas (2020), tomo o período denido
pelas autoras de “existência do grupo” enquanto o período em que atuou até sua fusão com
o Identidade. Contudo, como veremos, a fusão não implicou exatamente na extinção da or-
ganização lésbica.
11. Segundo informações disponíveis na página na internet da Prefeitura Municipal de Cam-
pinas, “inaugurado em 3 de abril de 1992, no edifício da empresa Lidgerwood Manufacturing
& Co., [na Avenida Andrade Neves, n.33, no Centro de Campinas], [o Museu da Cidade (MC)
é um] exemplar emblemático da industrialização propiciada pela economia cafeeira, funcio-
nou no local até 2016. [O MC] Resultou da fusão entre os museus Histórico, do Índio e do
Folclore, que funcionavam no Bosque dos Jequitibás, a partir de concepções museológicas
78
ferroviária, que abriga, atualmente, uma série de eventos culturais
(CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020).
Referências ao grupo na mídia nacional, incluindo uma menção na
série de televisão “Os Normais”, transmitida pela Rede Globo, contri-
buíram com sua visibilidade (CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020).
Dentre as atividades que realizava, destacam-se as mostras de arte lés-
bica e exibições de lmes. Ademais, as ativistas realizaram cursos de
formação voltados aos direitos de mulheres lésbicas. O Mo.Le.Ca. foi,
ainda, membro atuante na antiga Associação da Parada do Orgulho
LGBT de Campinas e esteve envolvido nas dinâmicas políticas locais
que resultaram na implementação do Centro de Referência LGBT de
Campinas (CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020; ZANOLI, 2019). Ain-
da, após a dissolução do grupo, parte das mulheres que compunham o
Mo.Le.Ca. se manteve organizando a Parada do Orgulho LGBT.
O grupo esteve envolvido, também, em eventos e articulações da
primeira rede de mulheres lésbicas do Brasil, a Liga Brasileira de Lésbi-
cas (LBL) (SILVA, 2017). Para Maria Célia Orlato Selem (2007) o surgi-
mento da Liga Brasileira de Lésbicas se deu, no início dos anos 2000, em
um contexto de crescimento e proliferação de grupos de lésbicas em
âmbito nacional. Ademais, para ela, o Fórum Social Mundial (FSM)12,
em sua edição de 2003, foi importante na criação da LBL por ter propi-
ciado o encontro de mulheres lésbicas de diversas regiões do país.
A LBL é fruto de uma ocina intitulada Visibilidade Lésbica, um espa-
ço proposto e autogerido por mulheres lésbicas e bissexuais que lutaram,
desde a organização do Primeiro FSM, para conseguir um espaço políti-
co para lésbicas no Fórum. Essa atividade aconteceu no Espaço Arco-Íris,
mais contemporâneas, dinâmicas e integradoras, voltadas para a valorização da diversida-
de cultural. Disponível em: <https://www.campinas.sp.gov.br/governo/cultura/museus/
muci/>. Acesso em 09.10.2021.
12. O primeiro Fórum Social Mundial foi realizado entre 25 e 30 de janeiro de 2001 em Porto
Alegre. Esse encontro surgiu como contraposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos.
Sua criação foi uma ideia brasileira com o objetivo de avançar na resistência contra o neoli-
beralismo (LEITE, 2003).
79
organizado pelo movimento LGBT (SILVA, 2017). De acordo com Se-
lem (2007), o surgimento da LBL é visto por algumas de suas fundadoras
como uma resposta à atuação política de redes nacionais como a ABGLT
(Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
xuais), que, na visão dessas fundadoras, acabava por apagar bandeiras e
questões lésbicas e por reforçar a hegemonia dos gays no movimento.
Além da LBL, o grupo se envolveu ativamente em duas edições
do Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), mais precisamente, da
quinta e da sexta edições, que ocorreram em 2003 e 2006 respectiva-
mente. Atualmente, o SENALE é denominado SENALESBI, Seminá-
rio Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais (CILENTO; GARCIA;
FREITAS, 2020). O quinto SENALE aconteceu em 2003, na capital pau-
lista, e foi um importante momento de mobilização para distintos gru-
pos em Campinas, incluindo não apenas o Mo.Le.Ca., como também o
Aos Brados, coletivo sobre o qual discutiremos na seção seguinte.
Em entrevistas e conversas informais, ativistas do Aos Brados – gru-
po misto liderado por mulheres lésbicas no período – ressaltaram sua
participação em diversas reuniões em Campinas e São Paulo com o ob-
jetivo de organizar o SENALE de São Paulo. Isso demonstra que, mes-
mo ocorrendo na capital do estado, o seminário impactou o ativismo
campineiro, fortalecendo discussões sobre ativismo de lésbicas, inclu-
sive em grupos mistos como o Aos Brados. Durante levantamento de
documentos sobre o Aos Brados para minha investigação doutorado,
encontrei também materiais de pelo menos quatro reuniões prepara-
tórias realizadas em Campinas para articular a participação de lésbicas
e bissexuais campineiras no SENALE de São Paulo (ZANOLI, 2020a).
No m de sua trajetória de atuação, o Mo.Le.Ca. logrou obter -
nanciamento por meio do Programa Pontos de Cultura do Governo
Federal13. Se, por um lado, isso signicou autonomia nanceira para
13. Segundo a página do Ministério da Cultura, o referido programa promove o estímulo
às iniciativas culturais da sociedade civil já existentes por meio da consecução de convênios
80
realizar suas atividades, por outro, gerou tensões que acabaram por di-
minuir o número de ativistas: uma parcela das militantes que não con-
cordava com a transformação em um Ponto de Cultura deixou o grupo
(CILENTO; GARCIA; FREITAS, 2020). Essa drástica redução de ativis-
tas acabou inuenciando na reaproximação com o Identidade.
Depois da fundação do grupo de lésbicas, Identidade e Mo.Le.
Ca se distanciaram. Contudo, ainda na primeira década de 2000, as
duas organizações se reaproximaram. No m do período de atuação
do Mo.Le.Ca, ambos passaram a dividir a mesma sede no centro de
Campinas. Em meados de 2010, a coordenadora do coletivo lésbico e
única fundadora que ainda permanecia nele solicitou apoio das mu-
lheres que integravam o Identidade para ocupar vagas remanescentes
na direção. Isso ocorreu também, pois a existência formal do Mo.Le.
Ca. estava ameaçada pela falta de quadros. Naquele ano, as duas orga-
nizações passaram a compartilhar a sede e alguns integrantes. O ter-
mo reabsorção foi utilizado para denir esse processo. Ao olhar para
o ocorrido, cabe lembrar que as próprias relações entre Mo.Le.Ca. e
Identidade estavam pautadas pelo contexto da “terceira onda” do mo-
vimento. Para explicar tal armação, recorro a uma fala de Mateus14,
membro do Identidade:
É... e como a gente tinha uma militância feminina, ou de mulheres, é...
no Identidade, e a gente já tava com um discurso bem tranquilo, prática
aí de dois três anos de aproximação sem conitos, grandes conitos, foi
celebrados após a realização de chamada pública. Disponível em: <http://www.cultura.gov.
br/pontos-de-cultura1>. Acesso em 21.mar.2014.
14. A maioria dos nomes utilizados aqui são pseudônimos. O único nome real é o de Lúcia
Castro, pois esse era seu desejo quando realizei as pesquisas com o Aos Brados (2015-2019),
grupo no qual Lúcia atua. Os demais, quando entrevistados, optaram pelo uso de nomes
ctícios. Concordo que, em se tratando de um capítulo que visa recuperar a trajetória dos
ativistas da cidade, seria interessante citá-los nominalmente (NEWTON, 1993). Contudo,
mantenho os pseudônimos em decorrência dos procedimentos em ética de pesquisa que de-
vem ser seguidos.
81
fácil a gente chegar na conclusão de: “vamos dividir a sede”, “vamos nos
ajudar”. Elas tinham dinheiro, tinham nanciamento, conseguiam se
manter, a gente tava precisando (entrevista com Mateus, julho de 2011).
Além da possibilidade de interlocução ser baseada, segundo Ma-
teus, em um discurso harmonizado, ela mobiliza também a importân-
cia dos nanciamentos do Mo.Le.Ca. para o Identidade. Este último
realizou algumas parcerias com Programas de DST/Aids em diferen-
tes âmbitos – municipal, estadual e federal. Apesar disso, como vi-
mos, em um desses projetos, o grupo teve diculdades relacionadas à
prestação de contas. Por isso, seus membros já não podiam concorrer
em processos seletivos para realização de novos projetos. Uma das
fundadoras do Mo.Le.Ca. ressalta a importância do CNPJ limpo para
o Identidade:
Teve uma época que o Identidade tava com problema no CNPJ (...) e eu
falei assim: “Olha, o Mo.Le.Ca. tem um CNPJ que por enquanto ainda
está ordem, né. Não sei até quando que vai durar isso aí, né. Então é
interessante vocês assumirem essa... a herança do Mo.Le.Ca.”. Porque
você vê lá, os móveis, os bens, os computadores. As coisas que estão lá,
a maior parte, ou grande parte, ou pelo menos metade das coisas que
estão lá [na sede] são do Mo.Le.Ca. (Entrevista com Ana, junho de 2011).
Como boa parte dos grupos que existiram no período denomina-
do por Facchini (2005) de “terceira onda” do movimento, o Identida-
de possuía caráter institucionalizado, com registro de pessoa jurídica.
Uma vez que esse registro se encontrava com algumas pendências,
poder utilizar o registro de outro grupo poderia ser de fundamental
importância para que o Identidade pudesse realizar algumas ações.
O Mo.Le.Ca. foi fundado a partir da ideia de que lésbicas e bisse-
xuais necessitavam de um espaço especíco para discutir suas questões.
Denúncias de desrespeito ou de falta de atenção às especicidades não
82
são provenientes apenas de pessoas que se compreendem a partir de
uma das siglas referentes às orientações sexuais e identidades de gêne-
ro que compõem o movimento LGBTI. Além disso, o processo de es-
pecicação dos sujeitos políticos do movimento em Campinas passou
a considerar também outros marcadores sociais da diferença como
raça, classe e geração, como veremos nas seções a seguir.
Aos Brados
Assim como se passava em âmbito nacional, discussões referen-
tes a articulações entre diferenças, desigualdade e relações de poder
no movimento deram origem a coletivos que pautam sua identidade
política para além das orientações sexuais e identidade de gênero que
compõem a sigla LGBT, baseando-se, também, em outras marcas da
diferença, como raça, classe e geração, como no caso do Aos Brados
e do E-Jovem. O primeiro será tema desta seção. O segundo será dis-
cutido na seguinte.
O Aos Brados surgiu em 1998, a partir de desavenças de alguns
militantes que faziam parte do Identidade. Liderados por duas mili-
tantes lésbicas, Lúcia e sua companheira na época, os dissidentes do
Identidade se organizaram em torno da publicação do Jornal Aos Bra-
dos (JAB), criado como uma crítica ao modo de atuação do Identida-
de. A criação do JAB estaria ligada ao foco do Identidade na utilização
da rede mundial de computadores para se comunicar com ativistas
nacionais e internacionais. Para os fundadores do Aos Brados, isso
excluía os LGBTI periféricos que tinham pouco ou nenhum acesso a
internet. Assim, ao romperem com o Identidade, criaram uma publi-
cação com o objetivo de alcançar esses sujeitos.
O periódico era distribuído pelos membros do coletivo em comu-
nidades carentes. Além de contar com matérias sobre direitos LGBTI,
discutia questões ligadas a direitos trabalhistas, a movimentos de
moradia, dentre outros. O conteúdo do jornal demonstrava, assim,
83
a forte ligação entre o grupo e esses movimentos, incluindo a parti-
cipação do Aos Brados em uma série de manifestações e atividades
ligadas aos movimentos referidos acima, bem como ao Partido dos
Trabalhadores (PT).
Apesar de conceber, na atualidade, como um coletivo LGBTI, ne-
gro e periférico, em seus primeiros anos de atuação, o Aos Brados não
se denia a partir da negritude, mas como um grupo LGBTI periférico.
Entretanto, isso não signica que a discussão racial não estivesse pre-
sente. Na verdade, desde seu surgimento, a ampla maioria dos partici-
pantes e fundadores era composta por LGBTI negros. Contudo, havia
a ideia entre eles, de que a categoria periferia abarcava também discus-
sões sobre racismo. O grupo chegou, inclusive, a realizar eventos de
formação com foco em cultura e tradição negra antes de ter conta-
to com o que chamam de movimento cultural negro. Entretanto, esses
eventos sempre pensavam a cultura e tradição negra mais associada à
ideia de periferia, a partir da qual construíram sua identidade política.
O trabalho de produção do jornal uniu mais pessoas em torno do
Aos Brados, o que as levou a buscar um lugar para seus encontros. Mo-
bilizando suas redes de ativismo ligadas aos movimentos de moradia e
ao PT, as fundadoras conseguiram uma sala na sede da Central Única
dos Trabalhadores (CUT) de Campinas. As relações com a CUT e o
PT, bem como a atuação no Orçamento Participativo de Campinas15,
em 2002, são ressaltadas pelos interlocutores como impulsionadores
da busca pela institucionalização, bem como pela diversicação de sua
atuação. Naquele momento, além de publicar o jornal, o grupo passou
a realizar também intervenções em comunidades periféricas, as atividades
sociais. Essas intervenções consistiam principalmente em debates sobre
direitos LGBTI, denominadas de Brados Papo. Como reitero alhures
(ZANOLI, 2020b), assim como acontece na atualidade com a relação
15. Lúcia foi a primeira conselheira a representar os homossexuais na temática da cidadania no
Conselho do Orçamento Participativo (OP) de Campinas. Segundo o Jornal Aos Brados, tra-
ta-se da primeira vez que o movimento LGBTI organizado participou de um conselho de OP.
84
do coletivo com o movimento negro, os repertórios de atuação16 com
foco na periferia tinham inuência dos sindicatos, dos movimentos de
moradia e dos movimentos periféricos.
Em 2008, o grupo estabeleceu alianças com o ativismo cultural ne-
gro. Essa categoria êmica – ativismo cultural negro – é utilizada por
meus interlocutores para se referir a uma série de organizações que
atuam em torno da salvaguarda e da difusão da história, da memória
e de práticas culturais afro-brasileiras. Inuenciado por essas relações,
o Aos Brados repensou algumas de suas atividades, passando a atuar
principalmente através do que seus ativistas denominam de atividades
culturais. Além disso, o grupo, que até então se via como periférico,
passou a se autodenominar como LGBTI, negro e periférico.
A partir daí, o Aos Brados passou a ser responsável pela criação de
diversas atividades culturais. As principais foram a Feijoada da Diversi-
dade e o Pedal@ Bicha, ambas com foco em apresentações que sinte-
tizam o que o grupo compreende como cultura LGBTI, negra e periféri-
ca. O mais consolidado dentre os eventos é a feijoada, que aconteceu
entre 2013 e 2019 e teve sua realização afetada pela pandemia de Co-
vid-19. Já o Pedal@ Bicha, foi organizado como parte das comemo-
rações do Mês da Diversidade Sexual de Campinas entre 2011 e 2016.
De modo geral, a maior parte das atividades culturais faz uso de
apresentações artísticas, congregando música, dança e performances
de drag queens. A discussão acerca da necessidade de sua realização
se baseia em argumentos ligados à falta de representatividade, termo
importante em distintas formas de ativismo contemporâneas. Tanto
16. Segundo Tilly (1993, p. 264, tradução minha), “a palavra repertório identica um conjun-
to limitado de rotinas que é aprendido, compartilhado e traduzido em ações por meio de um
processo relativamente deliberado de escolhas”. De maneira mais simples, podemos tomar
repertórios como modos de atuar. O importante dessa concepção é compreender que esses
modos de atuar são social e culturalmente construídos e que, muitas vezes, eles circulam
entre redes que costumamos conceber como ativismos distintos (ZANOLI, 2020a). Ademais,
como reitera Tilly, repertórios podem ser aprendidos e adaptados de acordo com os objetivos
de um movimento.
85
a de sujeitos LGBTI, negros e periféricos em espaços tidos como de
cultura LGBTI, quanto da falta de representatividade LGBTI em espa-
ços de cultura negra e periférica. O combate a distintas formas de opres-
são se daria não apenas a partir da denúncia da falta de representati-
vidade, mas também da ocupação desses espaços por sujeitos LGBTI,
negros e periféricos. Ou seja, lutando para que esses sujeitos fossem,
de fato, representados. Ademais, as relações com o movimento negro
têm levado o grupo a adotar gramáticas que circulam no campo das
políticas culturais, principalmente aquelas voltadas às comunidades tra-
dicionais e comunidades negras. Assim, na escrita de pedidos de apoio,
reitera-se a promoção da tradição e da cultura negra e do encontro de
jovens LGBTI, negros e periféricos com suas raízes e tradições.
Na construção de suas atividades, o Aos Brados opera a partir da
junção de repertórios de atuação característicos de dois dos movi-
mentos em que atua: o LGBTI e o negro. A inuência deste último
não está apenas na adesão de um discurso ligado à cultura, mas nas
próprias formas de atuar e na identidade política do coletivo. Ou seja,
além de valorizar a cultura como política, o Aos Brados passou a repen-
sar certas atividades como culturais, como é o caso das apresentações
de drag queens, que já eram realizadas desde seu surgimento. Não
obstante, o contato com o movimento negro foi central em proces-
sos subjetivos a partir dos quais alguns dos integrantes do grupo pas-
saram a se compreender também enquanto negros. Ademais, vemos
também um forte investimento na estética como forma especíca de
combater o racismo em meio a LGBTI e a LGBTIfobia em meio aos
demais sujeitos políticos com os quais se relaciona. Portanto, podemos
dizer que existe um aprendizado mútuo. Isto é, o grupo, ao “empres-
tar” certos repertórios do movimento negro, os remodela com o ob-
jetivo também de “ensinar” esse movimento discussões provenientes
do movimento LGBTI. Houve também adesão a repertórios e lingua-
gens advindas do movimento LGBTI por parte de alguns coletivos que
compõem o ativismo cultural negro campineiro (ZANOLI, 2020a).
86
E-Jovem
Diferentemente das iniciativas citadas até aqui, o E-Jovem não re-
sulta de uma cisão de um coletivo anterior. Não se trata também
de um grupo, como as demais organizações ativistas campineiras,
mas de uma rede, que, segundo Tomizaki e Daniliauskas (2018), é
a primeira de seu tipo no Brasil. Nesta seção, trato da sucursal cam-
pineira da rede, que era liderada por um casal gay, Leandro e Lauro.
Lauro é drag queen e trabalhou em casas noturnas campineiras. Além
disso, foi presidente do E-Jovem. Leandro é seu marido e um dos
fundadores da rede.
O E-Jovem surgiu como um website voltado para jovens LGBT
para, posteriormente, se rmar enquanto uma rede que congrega
grupos ativistas (os E-grupos) em diversas cidades do país. Segundo
Leandro, sua frequência em fóruns e bate-papos LGBT na internet
o levou a indagar sobre a falta de informações acerca da homosse-
xualidade na adolescência e na juventude. A percepção da carência
de informações levou-o a administrar, junto com outros amigos, o
ejovem.com, criado em 2001.
Além do site, os criadores e usuários passaram a se comunicar
por uma lista de e-mails. Segundo Leandro, em 2002, a lista chegou
a ter mais de cinco mil pessoas de todas as partes do Brasil. Essa
interação deu origem à produção de um curta-metragem intitulado
“Meu Cachorro Gay”. As discussões para a criação do roteiro fo-
ram feitas por meio da internet, apenas as gravações aconteceram
o-line. Segundo Leandro, o encontro para escolha dos atores e o
seguinte, para gravação do lme, foram as primeiras oportunidades
de contato presencial dos usuários e idealizadores do ejovem.com.
Apesar da importância da página, o baixo acesso da população bra-
sileira à internet, naquele período, levou os futuros ativistas a pen-
sar em alternativas de atuação o-line. Quando começaram a discu-
tir a formação de um grupo, perceberam que isso não seria possível,
uma vez que as pessoas interessadas estavam distribuídas nas mais
87
diversas regiões do país. Então, decidiram formalizar a rede entre
2003 e 200417.
O E-Jovem se denia como uma rede de adolescentes e jovens ati-
vistas no combate à homofobia e à hebifobia, o preconceito contra
jovens. Pouco menos de um ano depois de sua fundação, já conta-
va com vinte E-grupos espalhados pelo Brasil. Havia regras para for-
malizar a existência de um grupo. Dentre elas, gurava a exigência
de realizar encontros nacionais para escolha da presidência da rede.
O primeiro desses encontros ocorreu em 2004 (TOMIZAKI; DANI-
LIAUKAS, 2018).
O E-grupo de Campinas era o E-Camp. Lauro foi, por algum tem-
po, presidente do E-Camp e do E-Jovem. Campinas também foi a
sede nacional da rede durante a realização das pesquisas. Esses fatos
apontam para a centralidade do E-Camp na rede. Entretanto, a sucur-
sal campineira deixou de existir em 2014, quando Leandro e Lauro se
mudaram para São Paulo.
No que tange à relação do E-Jovem com outros atores sociais,
Leandro elenca principalmente o Conselho Nacional da Juventude,
do qual Lauro fora conselheiro, a União da Juventude Socialista (UJS)
e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Como de-
monstro em minha dissertação de mestrado (ZANOLI, 2015), exis-
tia também uma intensa inuência do pertencimento de Leandro ao
Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Não apenas no discurso políti-
co de membros do E-Camp, mas também em parte do material publi-
cado no antigo website da rede. Destaco textos nos quais, a partir de
um diálogo com Karl Marx e Friedrich Engels, Leandro demonstrava
como as opressões relacionadas a gênero e sexualidade estariam in-
trinsecamente ligadas a ideias de família, de posse e de herança.
17. Em artigo sobre a trajetória da rede, Tomizaki e Daniliaukas (2018) apontam 2004 como
o ano de sua formalização. Quando realizei pesquisa com o grupo, em entrevista, fui infor-
mado de que 2003 teria sido o ano da formalização. Por esse motivo, armo que ela teria
ocorrido entre 2003 e 2004.
88
Dentre as ações do E-Camp, ressalto a Escola Jovem LGBT, nan-
ciada, assim como as atividades do Mo.Le.Ca., através do programa
Pontos de Cultura. A Escola tinha como objetivo combater a homo-
fobia e as altas taxas de suicídio entre jovens e adolescentes gays. Os
cursos oferecidos variavam entre: Sociologia da Homossexualidade,
WebTV, Dança, Música, Criação de Fanzines, Criação de Revistas,
Teatro, Literatura, Cinema e Drag Queens. Tomizaki e Daniliauskas
(2018) destacam ainda outros projetos realizados pelo E-Jovem em
âmbito nacional. Um desses projetos visava incentivar atividades de
combate a homofobia em escolas, o outro era baseado no formato es-
tadunidense das Gay-Straight Alliances, ou Alianças entre gays e hete-
rossexuais em tradução livre. Trata-se de grupos formados por jovens
LGBTI e seus “aliados” com o objetivo de combater a LGBTIfobia.
O foco do grupo na educação passou a ser mais latente, segundo
Leandro, no período posterior à realização de uma série de Conferên-
cias Livres. Essas conferências faziam parte das etapas locais da I Con-
ferência Nacional LGBT e podiam tratar de temas especícos. Então,
o E-Jovem decidiu que seria importante realizar a discussão em torno
da juventude LGBT. A principal demanda levantada pelos participan-
tes teria sido a sobrevivência na escola, o que levou a direção da rede a
pensar em iniciativas educacionais.
O anúncio da criação da Escola não aconteceu sem alguma polê-
mica. Entre os boatos, um dos mais fortes era de que se tratava de
uma escola de ensino médio exclusiva para LGBT, em uma espécie
de modelo segregacionista. O projeto chamou atenção também dos
veículos de comunicação. Além de receber destaques em grandes jor-
nais do país e na mídia especializada, a Escola chegou a ser tema de
programas humorísticos, sofrendo com esquetes LGBTIfóbicas.
O projeto teve início em 2010 e foi nalizado em 2013. Seu térmi-
no ocorreu por dois motivos. O primeiro foi o m do nanciamento.
O segundo, a mudança de Laura e Leandro para São Paulo, o que
acarretou também no m do E-Camp. Parte dos jovens que atuavam
89
no E-Camp buscou se aproximar de outros espaços e grupos políti-
cos LGBTI, como a Associação da Parada do Orgulho LGBT (APOL-
GBT) de Campinas e o Aos Brados. Este último, segundo militantes
das duas organizações, era o coletivo que mais tinha proximidade
com o E-Camp.
Considerações Finais
Neste trabalho, busquei recuperar a trajetória de parcela dos co-
letivos LGBTI de Campinas. Dentre os analisados, apenas dois con-
tinuam a existir durante o processo de escrita deste capítulo: o Iden-
tidade e o Aos Brados. Além disso, quatro deles podem ser pensados
como contemporâneos entre si: Identidade, Mo.Le.Ca., Aos Brados e
E-Jovem. Os ativistas que atuam ou atuaram nesses grupos mantive-
ram relações em distintas ocasiões. Dentre elas, as reuniões da APOL-
GBT de Campinas e o Orçamento Participativo (OP).
A organização da Parada em Campinas foi inuenciada pelo envol-
vimento dos ativistas campineiros na organização da Parada do Or-
gulho LGBT de São Paulo. Já o OP, foi implementado em Campinas
em 2001 por uma administração petista inuenciada por experiências
participativas anteriores. O OP é uma ferramenta de gestão participa-
tiva que se baseia em conselhos que scalizam e propõem destino aos
gastos públicos (HEREDIA et al., 2012; WAMPLER, 2008). No mode-
lo campineiro, o OP seria composto por um conselho com represen-
tantes divididos em eixos temáticos e regionais. Os eixos temáticos
eram: saúde; assistência; cidadania; cultura e esporte; desenvolvimento eco-
nômico; e educação e gestão.
Apesar de ser uma política participativa pautada nos movimen-
tos sociais, um deles havia cado de fora, o movimento LGBTI. Em
decorrência disso, os ativistas deram início a uma intensa mobiliza-
ção local para participarem do OP. A denominada luta pela inclusão
dos homossexuais no OP teve êxito e se deu a partir do eixo temático
90
dedicado a questões de cidadania. Dessa maneira, os homossexuais
dividiam esse eixo com negros, idosos, jovens, portadores de deciência
e mulheres. Cada um desses grupos escolhia seu representante para
compor o conselho da cidadania do OP. A partir de sua atuação no
OP, os ativistas da cidade implementaram uma série de projetos,
medidas e políticas públicas. Destaco aqui o CRLGBT de Campinas,
inaugurado em 2003 como o primeiro serviço público brasileiro a
ofertar assistência social, jurídica e psicológica a LGBT, e um serviço
municipal de acolhimento de denúncias de homofobia, o Disque-De-
fesa Homossexual (DDH), implementado em 2002.
É importante ressaltar esse momento particular da história de
Campinas, não apenas porque ele retrata ocasiões de interlocução en-
tre os grupos, mas também porque demonstra como a cidade, apesar
de menos central nos circuitos ativistas e na literatura sobre a temá-
tica, conta com um movimento LGBT atuante e pioneiro. A imple-
mentação das políticas citadas é importante também, pois, a partir da
promulgação do Programa Brasil sem Homofobia, em 2004, serviços
de estilo semelhante ao DDH e ao CR passaram a ser uma tendência
nacional. Entretanto, muitos desses serviços não foram implementa-
dos como em Campinas. O CR campineiro, apesar de seus problemas
e suas diculdades (ZANOLI; FALCÃO, 2015; ZANOLI, 2019), é um
serviço gerido pela prefeitura municipal, enquanto muitos dos CR
implementados posteriormente foram instalados a partir de parcerias
público-privadas envolvendo ONGs e distintos níveis governamentais
(AGUIÃO, 2018; FEITOSA, 2019).
Ao recuperar a trajetória dos ativistas de Campinas, parti de uma
perspectiva que privilegia as relações estabelecidas entre os grupos
ativistas da cidade e entre estes e outros atores políticos – como sindi-
catos, partidos e outros movimentos sociais –, bem como sobre aque-
las que se dão entre ativistas e gestores estatais relacionados às políti-
cas LGBT. Apesar da ênfase no nível local, não se trata de pensar este
campo como algo desconectado de uma rede mais ampla de relações
91
ou de compreendê-lo sem referência a um contexto mais abrangente,
que se estende para os âmbitos estadual, regional, nacional e, por ve-
zes, internacional.
Dentre as tendências a nível nacional, dois processos inter-relacio-
nados destacados pela literatura estão presentes nas trajetórias aqui
abordadas. O primeiro diz respeito à maior participação de militantes
na elaboração e avaliação de políticas públicas, bem como no impacto
dessa aproximação com o Estado na institucionalização e nas expecta-
tivas de prossionalização ativista, principalmente na primeira década
dos anos 2000. O segundo está relacionado à produção de identidades
coletivas. Nele, parece se aprofundar um processo de especicação de
sujeitos políticos inuenciado por atores que circulam em mais de um
movimento social, mas também em partidos e outras organizações.
O contexto local aqui analisado é diverso do encontrado por
Aguião (2018) ao se atentar à implementação de políticas para LGB-
TI no Rio de Janeiro. Em Campinas, a despeito da criatividade e do
pioneirismo dos ativistas, nota-se considerável precariedade na imple-
mentação das políticas. Diferentemente dos poucos casos de organi-
zações LGBT brasileiras que conseguiram sobreviver a partir da dupla
promessa de institucionalização de prossionalização de ativistas, os
coletivos campineiros que seguiram a trilha dos projetos tiveram des-
tinos distantes das expectativas que guiaram o “reorescimento” do
movimento (FACCHINI, 2005). O primeiro deles foi a diculdade em
manter os procedimentos administrativos de prestação de contas, o
que resultou na interdição da contratação de novos convênios e até
em fusões entre grupos, como foi o caso do Identidade e do Mo.Le.
Ca. para garantir a sobrevivência institucional de ambos. O segundo,
foi uma constante tensão entre a necessidade de apoio nanceiro para
tocar atividades tidas como estratégicas e fundamentais para o movi-
mento e a possibilidade de perder a autonomia perante o Estado.
O contexto descrito acima é o que marca a emergência dos “ati-
vistas-gestores” que, em alguns casos, podem também se congurar
92
como “gestores-ativistas”. Buscando fazer algo a mais em prol dos
seus e sobreviver da atuação política, ativistas migraram para a ges-
tão. No caso campineiro, ressalto também a presença de gestores que,
inuenciados por suas relações com o movimento, pelo caráter po-
lítico do trabalho que exercem e pela situação de “desmanche” nas
políticas públicas municipais (ZANOLI; FALCÃO, 2015), acabaram
também passando a se compreender enquanto ativistas (ZANOLI,
2019). É também o contexto em que, dada a inviabilidade de manter-
-se atuante pela via de projetos, ganham importância tanto a aliança
com partidos e com movimentos mais consolidados – que apenas se
fortalecem, dado que já existiam anteriormente – quanto a participa-
ção nos espaços de controle social.
Para nalizar, é possível apontar que essas singularidades de Cam-
pinas em relação a outros contextos foram se tornando tendências.
Se alguns dos grupos da cidade preferiam não concorrer em editais
públicos, como era o caso do Aos Brados, outros optaram por aban-
donar essa forma de atuar, como o Identidade. Contudo, quando es-
tes mesmos grupos passaram a buscar se relacionar novamente com
agências estatais, principalmente durante as gestões federais de Dilma
Rousse, uma nova conjuntura política passaria a se formar. Nela,
o Executivo estaria menos aberto a atender as demandas do movi-
mento. Esse fenômeno está também ligado às crises políticas que cul-
minaram no impeachment de Dilma Rousse e na eleição do atual
presidente, o que modicou as relações dos ativistas com o Estado.
Esse novo momento, como demonstra Facchini (2020), não é apenas
de crise democrática e de combate aos direitos de LGBTI por con-
tra-movimentos, mas também de forte luta e de interlocução entre
movimentos tidos como minoritários (FACCHINI; CARMO; LIMA,
2020; ZANOLI, 2020a).
Além do contexto político pouco favorável, a pandemia de Co-
vid-19 tem colocado uma série de desaos aos ativistas. No caso cam-
pineiro, além do surgimento de novas organizações e de novas formas
93
de atuar, os ativistas do Identidade e do Aos Brados têm buscado in-
vestir nas redes sociais. Eles têm também, sempre que possível, es-
treitado seus laços e atuado em conjunto. Ainda, principalmente no
caso do Aos Brados, novas articulações com distintas organizações do
movimento LGBTI e do movimento negro têm inuenciado a grupo
a se institucionalizar a partir das políticas culturais por meio de apoio
e reconhecimento nacional e internacional.
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97
POLÍTICAS INSTITUCIONAIS VOLTADAS
À POPULAÇÃO TRANS* NO ENSINO
SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO E
ALGUNS DE SEUS LIMITES E DESAFIOS1
Brume Dezembro Iazzetti2
Introdução3
Este artigo traz alguns dos resultados de pesquisa de graduação e
pós-graduação4 junto a estudantes trans*5 em universidades públicas
brasileiras, com ênfase nas universidades paulistas. Tendo como foco
as questões de acesso e permanência e os modos como a universidade
se abre (ou não) a presença desses novos sujeitos de conhecimento,
1. Uma primeira versão desse artigo foi apresentada no “VI Congreso de la Asociación Lati-
noamericana de Antropología”, realizado em novembro de 2020 de modo remoto.
2. Mestra em Antropologia Social (UNICAMP), mestranda em History in the Public Sphe-
re (HIPS) (Erasmus Mundus) e pesquisadora discente do Núcleo de Estudos de Gênero –
PAGU/Unicamp. É associada ao IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação) e atua em
diversas ONGs e coletivos no campo da educação e dos direitos LGBTQIAP+ sob uma pers-
pectiva interseccional. E-mail: brume.dezembro@gmail.com.
3. Agradeço à Profa Dra Regina Facchini, minha orientadora de mestrado, e a Profa Dra Isa-
dora Lins França, orientadora de minha primeira pesquisa de iniciação cientíca. Agradeço
também a Profa Carla Higashi pela cuidadosa revisão dos resumos em português e espanhol.
4. As pesquisas de graduação tiveram apoio do PIBIC/CNPq e a pesquisa de mestrado, apoio
da FAPESP e da CAPES. Ressalto que aspectos da permanência universitária de estudantes
trans* são melhores desenvolvidos nessa segunda pesquisa, intitulada “Existe ‘universidade’ em
pajubá?: Transições e interseccionalidades no acesso e permanência de pessoas trans*”.
5. O termo trans* (com asterisco) tem sido utilizado por intelectuais trans* de modo a en-
globar diferentes identidades (travesti, mulher/homem trans, pessoas não-binárias...), consi-
derando que muitas pessoas trans* se armam e se entendem enquanto tais, e também com
algum/ns desses termos. Exemplos de seu uso na bibliograa latino-americana incluem Blas
Radi (2019) e Viviane Vergueiro (2018).
98
foram realizadas vinte entrevistas semiestruturadas com estudantes
e docentes trans*, aliadas com o acompanhamento de eventos orga-
nizados por/para pessoas trans* nas universidades e seus arredores,
além do mapeamento a nível nacional de políticas armativas volta-
das a essa população no país, no âmbito da educação pública.
Segundo dados produzidos pelo GEMAA (Grupo de Estudos Mul-
tidisciplinares em Ações Armativas) (PORTELA & FERES JÚNIOR,
2021) a partir de dados coletados em pesquisa nacional da ANDIFES
(Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensi-
no Superior), o número absoluto de estudantes trans* nas universida-
des federais brasileiras gira em torno de 0,3%, em relação ao núme-
ro total, com 2924 estudantes trans*. Esse número se assemelha aos
dados obtidos, em minha pesquisa de mestrado, a partir dos dados
relativos ao uso do nome social em universidades federais, quando
comparadas ao número total de estudantes dessas instituições de en-
sino superior (IES) (IAZZETTI, 2021b). Dado uma estimativa que o
total percentual de uma população trans* no Brasil, em relação à po-
pulação como um todo, gira em torno de 2% (SPIZZIRRI et al, 2021),
percebe-se uma desigualdade marcante no que se refere a um eixo de
identidade de gênero no acesso a esses espaços.
Esses dados atravessam uma série de violências sociais, econômi-
cas e políticas que atravessam e excedem o campo da educação públi-
ca (IBTE, 2019). Os casos de violência extrema se concentram no en-
trecruzamento de eixos de desigualdade estrutural. Entre os números
relativos aos assassinatos cometidos no Brasil contra uma população
trans*, por exemplo, mulheres trans e travestis negras (82%), prossio-
nais do sexo (67%) e jovens entre 15 e 29 anos (59,2%) são as que mais
sofrem esses crimes (ANTRA, 2020). Ainda, segundo a mesma Associa-
ção, estima-se que, em média, pessoas trans* no país, principalmente
travestis, são expulsas de casa por suas famílias aos 13 anos de idade. Já
em relação aos suicídios, temos que 85,7% dos homens trans e trans-
masculinos já pensaram em suicídio ou tentaram cometê-lo (NÚCLEO
99
DE CIDADANIA E DIREITOS LGBT, 2016), principalmente homens
trans e transmasculinos negros e de baixa renda, entrecruzados em de-
sigualdades sociais e econômicas. Assassinatos e suicídios são os exem-
plos extremos da violência sofrida por pessoas trans* como um todo
no Brasil, que inclui, ainda, para além das violências verbais e físicas
explícitas, violências simbólicas e institucionais.
Embora haja uma profundidade de violências estruturais e suas
raízes históricas, notam-se mudanças marcantes nos últimos anos ao
pensarmos no acesso e permanência de pessoas trans* no ensino su-
perior público brasileiro. Duas frentes legais estão associadas a esse
movimento, descritas nesse artigo sob uma breve perspectiva crono-
lógica: o espraiamento do nome social e o advento de políticas ar-
mativas em programas de graduação e pós-graduação (chamadas
informalmente de “cotas trans”). Ao mesmo tempo, tais mudanças
são atravessadas por limites e desaos, tendo em vista a continuidade
de casos de violência e guinadas conservadoras na política institucio-
nal brasileira. Ao longo desse artigo, também verso sobre a ausência
histórica de dados ociais sobre uma população trans* no Brasil, as-
sim como esboço algumas aproximações com a realidade de pessoas
trans* em outros países latino-americanos, trabalhando com aborda-
gens teóricas que propõem a atenção às particularidades desse con-
texto e sua historicidade sem encerrá-los em si mesmo.
Espraiamento do uso do nome social no Brasil
A primeira dessas duas frentes legais envolve o espraiamento da
possibilidade de uso do nome social em IES brasileiras ao longo dos
anos 2010. O nome social surgiu como uma demanda histórica do
movimento trans* brasileiro frente a então diculdade de alterar o
registro civil, o que gerava situações vexatórias em âmbitos adminis-
trativos e era um elemento catalisador da exclusão de pessoas trans*
em espaços institucionais (incluindo o espaço educacional formal).
100
A demanda por uma política de reconhecimento legal do nome de
pessoas trans* data desde a década de 90 no movimento social prota-
gonizado por travestis no Brasil (ARAÚJO, 2020), mas passa a ser as-
segurado e implementado legalmente apenas ao nal dos anos 2000,
inicialmente no Sistema Único de Saúde (SUS).
Até 2018, a alteração do registro civil era possibilitada apenas ju-
dicialmente, e exigia a apresentação de laudos médicos e, muitas ve-
zes, a comprovação de determinadas cirurgias, além de ser morosa e
ambígua em seus processos legais (BESEN, 2018). Ao mesmo tempo,
pessoas cisgêneras (não-trans) podiam alterar seus nomes legalmente
através da justicativa de reconhecimento social de seu uso e/ou por
constrangimentos causados pelo nome dado ao nascer, congurando
a desburocratização da reticação do registro civil no Brasil como um
dos principais eixos do chamado movimento de despatologização das
identidades trans*.
Embora a reticação do registro civil tenha sido facilitada a par-
tir de 2018 via decisão do Supremo Tribunal Federal (RE 670.422), o
nome social permanece um direito fundamental no acesso e perma-
nência estudantil, sendo utilizado por menores de idade no âmbito
escolar e universitário6 e, por vezes, como um meio de experimen-
tação inicial anterior ao processo de reticação, conforme observei
nas entrevistas junto à estudantes trans*. Além disso, alterar os docu-
mentos no registro civil não é desejado por todas as pessoas trans*,
e pode haver empecilhos práticos em sua efetivação – por exemplo,
a demanda econômica para embolsar esse processo, ou a existências
de conitos familiares que impossibilitam o processo de reticação
civil. O nome social permanece amplamente utilizado por estudantes
trans* de universidades públicas – assim, embora haja a possibilidade
6. Apenas pessoas maiores de idade podem realizar a alteração em cartórios. Para menores
de idade a decisão ainda passa pelas vias judiciais. Mesmo assim, o uso do nome social entre
menores de idade é por vezes conituoso, como, a depender da instituição de ensino, é exigi-
da a aprovação dos pais do pedido.
101
de reticação civil, o nome social congura ainda um direito funda-
mental a essa população, nesse âmbito (IAZZETTI, 2021b).
Em universidades públicas o primeiro registro de possibilidade de
uso do nome social foi dado na UNIFAP (Universidade Federal do
Amapá) em 2009. A universidade é uma das únicas cinco7 que assegu-
raram o direito de uso do nome social antes da criação da portaria no
1612 do Ministério da Educação (MEC), de 2011, e da portaria no 333,
de maio de 2010, no âmbito da administração pública federal (DAL-
LAPICULA & FONSECA, 2016).
Paralelo a esse movimento, resoluções estaduais passam a se
expandir pelo país. Iniciada por uma primeira resolução estadual
no Pará, outros estados da federação passaram a estabelecer de-
cretos que garantem e regulamentam o uso do nome social. Em
São Paulo, onde minha pesquisa etnográfica se concentra, o de-
creto no55588 foi promulgado em 17 de março de 2010. Quase
cinco anos mais tarde, em janeiro de 2015, são estabelecidos os
primeiros parâmetros a nível nacional para a implementação do
nome social, através da Resolução CNCD/LGBT no 12, do Con-
selho Nacional de Combate à Discriminação/LGBT. A resolução
traz orientações quanto ao reconhecimento institucional da iden-
tidade de gênero e sua operacionalização. A regulamentação é rea-
lizada pouco tempo após sua implementação no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), maior exame para ingresso no ensino
superior no Brasil, em 2014 – que configura um importante marco
do espraiamento da possibilidade de uso do nome social no âmbi-
to da educação formal.
A inserção no ENEM e a criação da resolução do CNCD/LGBT
vem alguns meses antes do decreto federal no 8727, de 28 de abril de
7. Nominalmente, além da própria UNIFAP, IFSC (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Santa Catarina), IFC (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Ca-
tarinense), UFABC (Universidade Federal do ABC) e UFMT (Universidade Federal do Mato
Grosso).
102
2016, que nalmente possibilita o uso do nome social a nível federal.
O decreto é curto, sendo escrito em sete artigos, e apresenta algu-
mas ambiguidades possíveis em sua leitura – por exemplo, o que é
considerado enquanto “estritamente necessário” e como é realizado
o acompanhamento entre nome civil e nome de registro (previstos
no decreto, nesses termos), abrindo margem para diferentes leituras
possíveis, a depender de cada setor ou mesmo de cada agente ad-
ministrativo, no interior de universidades e outras instituições públi-
cas8. Dito isso, o direito ao próprio nome – e a possibilidade de uso
do nome social, visando o m de situações vexatórias – permanece
em disputa no interior dessas instituições.
Nome social e as possibilidades de uma “contra-produção” de
dados
Outro efeito importante da implementação do uso do nome
social é a possibilidade de expansão da produção de dados ociais.
Conforme aponta Thiago Coacci (2018), há uma histórica ausência
de estatísticas ociais sobre uma população trans* no Brasil. O au-
tor traz como ONGs protagonizadas por pessoas trans*, particular-
mente travestis (como a já citada Associação Nacional de Travestis
e Transexuais – ANTRA), têm produzido dados quantitativos como
resposta à ausência de estatísticas produzidas pelo Estado e pela aca-
demia. Ao mesmo tempo, embora, de modo geral, haja uma ausência
de dados ociais sobre pessoas trans*, havendo o risco de subnotica-
ção, vale destacar que essa ausência é ainda mais marcante nos dados
sobre transmasculinidades – o que também tem levado a criação de
8. Em meu trabalho de campo em universidades públicas brasileiras, há, por vezes, con-
itos entre as leituras do decreto feitas pelo corpo discente, de um lado, e de órgãos admi-
nistrativos e burocráticos, de outro. Outro ponto de tensão está em sua implementação em
instituições privadas, como grande parte dos decretos (tanto o decreto federal quanto os
decretos estaduais e municipais) se referem exclusivamente a instituições públicas.
103
iniciativas, no interior de organizações e coletivos, de produção des-
ses dados até então ausentes ou incompletos.
Esse foi um caminho inesperado no desenrolar de minha pró-
pria dissertação de mestrado, que teve como um de seus eixos uma
“contra-produção” de dados referentes à presença de iniciativas
relativas a uma população trans* no ensino superior público (IAZ-
ZETTI, 2021b). A produção de uma historização de processos legais
(a partir do nome social) e de um mapeamento de políticas arma-
tivas voltadas a pessoas trans* em IES brasileiras foi algo que não
havia sido feito até então na bibliograa que tive contato, inserida
em um ciclo mais amplo onde a ausência histórica de dados gera
uma diculdade de criação e fomento de políticas públicas, e vice-
-versa, além de re/produzir uma lógica de invisibilidade, ou mesmo
de ininteligibilidade.
Além de resultado de uma importante luta e ainda de notável re-
levância no dia-a-dia de estudantes trans*, é necessário destacar ainda
que o nome social possibilita a produção de algum tipo de dado sobre
o ingresso e sobre a presença de pessoas trans* nas universidades, em
diferentes escalas. É a partir de sua implementação que sabemos, por
exemplo, que o uso do nome social salta de 95 pedidos, em 2014, para
431, dois anos depois, e 2184, em 20209. Tal expansão também pode
ser percebida no ensino básico em diversos estados do país: no estado
de Pernambuco, por exemplo, o número de alunos utilizando o nome
social duplicou em quatro anos, subindo de 78 em 2017 para 151 em
201910. Já no estado de São Paulo os pedidos aumentaram em quatro
vezes entre 2017 e 2019, somando 755 estudantes11.
9. Fonte: FERREIRA, Lola. Uso de nome social no Enem salta 450% em relação a 2019. Car-
ta Capital, 29 de janeiro de 2021.
10. Fonte: TEIXEIRA, Marcionila. Aumenta número de estudantes trans e travestis usando
nome social nas escolas estaduais. Diário de Pernambuco, 25 de janeiro de 2020.
11. Fonte: LEÃO, Ana Letícia. Alunos com nome social quadruplicaram em cinco anos em
São Paulo. O Globo, 30 de novembro de 2019.
104
Em minha própria pesquisa, solicitei informações relativas ao
nome social para 60 universidades federais brasileiras. Em todas, o
nome social havia sido implementado na instituição e já havia pelo
menos um pedido de nome social vigente, indicando a presença de ao
menos uma pessoa trans* em, virtualmente, todas as universidades
federais brasileiras, em uma ampla gama de cursos e áreas de forma-
ção. Essa implementação ocorreu, em grande medida, entre os anos
2015 e 2017, em consonância com a periodicidade dos decretos aqui
citados (IAZZETTI, 2021b).
Vale ressaltar, no entanto, que os números são ainda tímidos frente
aos números globais – a última edição do ENEM teve mais de cinco
milhões de inscrições, por exemplo. Além disso, sua implementação
prática passa por diculdades, conforme visto anteriormente, tais
como empecilhos gerados pela burocracia e administração de concur-
sos públicos e no interior de IES, incluindo casos em que estudantes
trans* tem suas solicitações de nome social negadas pelas instituições
(IAZZETTI, 2021b).
É também a partir dos anos 2010 que temos os primeiros re-
gistros de defesas de dissertações e teses de pessoas que utilizam
ou utilizavam o nome social, muitas vezes re/conhecidas como as
“primeiras”, ou algumas das primeiras, pessoas trans* a adentrar
esse espaço. Novamente, há uma precariedade (COACCI, 2018)
na produção desses dados – conforme observado em campo, há
pessoas trans* que ingressaram e se graduaram antes dessa atual
geração – mas sua visibilidade é importante em termos de cons-
tituição de um marco histórico. Indica-se, ainda, a partir desses
dados, as áreas de concentração, e também de ausência, de uma
população trans* (e quem é, afinal, essa população trans*) no âm-
bito da universidade.
Além disso, nesse mesmo período, temos também as assim re/
conhecidas “primeiras” pessoas trans* ingressando no ensino supe-
rior público nacional utilizando o nome social, após a admissão em
105
exames vestibulares – ou seja, que já haviam se armado enquanto
pessoas trans* no ensino básico. Esse ingresso se dá nos mais varia-
dos cursos, que por vezes extrapolam as áreas de formação. Mes-
mo assim, podemos observar um número elevado de gargalos nas
áreas das engenharias, ciências da saúde e ciências sociais aplicadas,
quando comparada a cursos de ciências exatas e da terra, ciências
biológicas, ciências agrárias e, principalmente, ciências humanas e
linguística e letras e artes (IAZZETTI, 2021b; PORTELA & FERES
JÚNIOR, 2021).
Vale destacar, no entanto, que foi observado que o número de
estudantes trans* cai drasticamente em cursos de pós-graduação
em praticamente todas as áreas de formação (IAZZETTI, 2021b).
Ao mesmo tempo, os dados sobre evasão são reduzidos, o que in-
dica que estudantes trans* estão hoje concentrados na graduação
(de modo amplo, embora existam gargalos) e que, possivelmente
e potencialmente, tais estudantes se formarão nos próximos anos e
ingressarão no mercado de trabalho ou na própria academia.
Por m, reforço que, embora devam ser reconhecidos os riscos de
traçar essa história a partir desse tipo de marcos legais, é necessário
levar em consideração o impacto desse reconhecimento institucio-
nal no que tange à produção de algum tipo de mapeamento, mesmo
que ainda precário, das presenças e ausências de pessoas trans* no
ensino superior público brasileiro, compilar (e, efetivamente, produ-
zir) estatísticas se torna um meio de produzir engajamentos, ou, dito
de outro modo, um modo de criação de um arcabouço estratégico
politicamente, na mobilização dessas demandas em diferentes insti-
tuições, principalmente no fomento de políticas públicas. Também
envolve a criação de um aparato epistemológico, no sentido que se
torna inteligível, possível, portanto, que pessoas trans* adentrem es-
ses espaços de produção de conhecimento e que ali produzam por si
próprias (VERGUEIRO, 2015).
106
Advento de políticas armativas e algumas considerações a
partir de seu mapeamento
Não por acaso, dada essa linearidade de acesso à graduação, o nal
dos anos 2010 acompanha um desdobramento desses primeiros mo-
vimentos de reconhecimento institucional, com pessoas trans* que
entraram na graduação se formando e ingressando em programas de
pós-graduação, além de estudantes trans* que retornam à escola e a
universidade nesse novo cenário12.
A bibliograa sobre ações e políticas armativas no Brasil, assim
como produções sobre sua constituição e implementação em diferen-
tes universidades e sob diferentes recortes em termos de uma popu-
lação-alvo (pessoas negras, indígenas, quilombolas e com deciência)
é extensa e se emaranha com as particularidades de cada uma dessas
historicidades. Caminhando dos anos 2000 até os anos 2010 têm-se
importantes passagens na adoção de ações armativas. Primeiro, seu
perl se altera, inicialmente concentradas em universidades estaduais,
passando a se concentrar em universidades federais. Segundo, sua
base legal também sofre transformações: originalmente difusa e he-
terogênea em sua implementação efetiva, baseada em leis estaduais,
há um marco legal a nível federal com o advento da Lei de Cotas em
2012 (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013; KAWAKAMI &
JODAS, 2013). Outros marcos históricos nesse percurso são dados em
meados de 2010, com a centralização do ingresso no ensino superior
via ENEM e com a criação de novas universidades federais por meio
do ReUni (programa de Reestruturação e Expansão das Universida-
des Federais). Tais passagens nos indicam o contexto de implementa-
ção de ações armativas para uma população trans*.
Anos mais tarde, em 2021, temos 34 instituições públicas com po-
líticas armativas para uma população trans* no ensino superior – a
12. Vale pontuar que há um número elevado de estudantes trans*, quando comparado aos
ensinos fundamental/médio/superior, nas escolas de jovens, adultos e idosos (EJAI) (SAN-
TOS, 2020).
107
grande maioria em programas de pós-graduação, embora haja seis ini-
ciativas na graduação13. Muitas dessas universidades, criadas via ReUni,
contam já amplos programas de políticas armativas, propostas peda-
gógicas interdisciplinares e, por vezes, a presença de docentes trans*.
Entre essas 34 instituições, 3 se localizam no Centro-Oeste, 13 no
Nordeste, 5 no Norte, 8 no Sudeste e 5 no Sul:
O estado com número mais elevado de instituições com ações armati-
vas para pessoas trans* é a Bahia, com 6 iniciativas. Além disso, as duas
universidades com campi multiestaduais tem um campus localizado no
estado – e 4 das 6 universidades com políticas armativas na gradua-
ção estão na Bahia. Como um todo, as iniciativas incluem os estados de
Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e
Tocantins, além do Distrito Federal. Se incluirmos ainda as universida-
des multiestaduais, temos ainda a entrada de Ceará e Piauí. Dito isso,
apenas 5 dos 26 estados da federação brasileira – Acre, Paraíba, Ron-
dônia, Roraima e Sergipe – não contam com políticas armativas para
pessoas trans* no mapeamento aqui realizado, o que indica a expansão
espacial dessas iniciativas pelo país. (IAZZETTI, 2021b, p.91)
Em relação aos cursos, nota-se, ainda a partir da distinção entre
áreas da CAPES (Tabela de Áreas de Conhecimento) uma prevalência
de iniciativas nas áreas das ciências humanas e no campo de linguísti-
ca, letras e artes, cursos especícos nas áreas das ciências humanas e
no campo de linguística, letras e artes, além das áreas das ciências da
saúde (com destaque para a saúde coletiva) e ciências sociais aplicadas
13. São elas a Universidade Federal do ABC (UFABC), a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e a Universidade do Estado do
Amapá (UEAP).
108
(com destaque para comunicação e serviço social). Não há casos de
iniciativas do tipo nas áreas de ciências exatas e da terra e das enge-
nharias, além de exemplos pontuais nas áreas de ciências biológicas e
ciências agrárias. Como um todo, acompanha-se uma tendência da
existência de políticas armativas onde estudantes trans* já estão pre-
sentes na graduação, ao mesmo tempo em que esses dados acompa-
nham o fato de que a existência de ações armativas no país, a partir
de decisões internas de cada programa, se concentram nas áreas das
humanidades ou campos multidisciplinares, seguido das ciências bio-
lógicas, ciências agrárias, ciências da saúde e, por m, engenharias
(VENTURINI, 2019).
Grande parte dessas universidades utilizam o modelo de reserva de
vagas suplementares, ou seja, são criadas vagas adicionais para o alo-
camento de estudantes trans*, tanto na graduação quanto na pós-gra-
duação – ou, por vezes, há uma reserva de vagas remanescentes. Na
pós-graduação a presença desse tipo de política ainda é, em algumas ins-
tituições, restrita a poucos programas – como é o caso de universidades
estaduais paulistas, enquanto, em determinadas universidades federais
na região Norte/Nordeste, ela é amplamente distribuída, com todos os
programas de pós-graduação contando com esse tipo de iniciativa.
Ao mesmo tempo, sua efetividade é variada, e sua existência am-
pla no interior de uma universidade não necessariamente acompanha
um efetivo impacto social. Por vezes, tais políticas armativas apre-
sentam tamanha diculdade prática (restritas a uma pequeníssima
parcela de vagas remanescentes, e com regras relativas à renda, for-
mação escolar ou mesmo desempenho acadêmico) que elas material-
mente não impactam na realidade de pessoas trans* e permanecem
ociosas. Além disso, em muitas instituições, as políticas armativas
para pessoas trans* são dadas de modo conjunto a outras populações
historicamente marginalizadas, o que faz perder sua especicidade e
diculta a criação de medidas e políticas direcionadas às necessidades
concretas dessa população (IAZZETTI, 2021b).
109
Em outras universidades, no entanto, sua implementação tem
mostrado resultados positivos na presença constante de matrículas
e ingressos de estudantes trans*. Conforme visto anteriormente, há
um contingente amplo de estudantes trans* egressos da graduação,
ou que irão se formar nos próximos anos, o que indica a necessidade
de uma abertura efetiva dos cursos de pós-graduação e, com isso, o
aprimoramento dessas políticas armativas, compreendidas enquan-
to um processo em andamento e não um m em si mesmo. Assim,
o não-preenchimento dessas vagas indica menos um desinteresse
de estudantes trans* pelo ingresso na pós-graduação e mais uma in-
completude dessas políticas armativas, além de ser indicativo, mui-
tas vezes, dos elementos de violência estrutural que acompanham a
trajetória de estudantes trans* desde a educação básica, apontando a
necessidade de ações mais amplas, tais como a criação de cursinhos
comunitários pelas IES.
Embora ainda recentes, os poucos dados existentes referentes ao
ingresso de estudantes trans* via políticas armativas é provocativo
na atenção a seus limites e desaos. Conforme observado a partir do
trabalho de campo, nota-se que grande parte das pessoas trans* na
universidade se armam assim publicamente já inseridas nesse espa-
ço, relatando em entrevistas as diculdades enfrentadas na escola e
no ambiente familiar (IAZZETTI, 2021b). Por sua vez, segundo re-
latório do Instituto Brasileiro Trans de Educação (2019), temos que
grande parte do corpo discente trans* parou em algum momento os
estudos, e cerca da metade estudam e trabalham, o que reforça um
eixo especíco de classe e o impacto do apoio (ou não) familiar nessas
trajetórias. Esses dados resultam de desigualdades estruturais, prin-
cipalmente de raça e classe, que afetam diferentemente e desigual-
mente pessoas trans* – assim, “a” população-alvo dessas políticas se
torna “uma” população, na medida em que seu acesso efetivo per-
passa por uma dimensão interseccional de diferenças e desigualdades
(IAZZETTI, 2021b). Dito isso, é necessário reetir e atuar sobre a
110
implementação de políticas públicas e armativas dentro das universi-
dades como o estopim de uma mudança substantiva de várias frentes,
inclusive para além do espaço da universidade e da educação formal.
Traçando histórias e conexões nos (e além dos) direitos con-
quistados
Entre outubro de 2018 e setembro de 2019 foram cometidos 130
assassinatos contra pessoas trans* no Brasil, que segue na liderança
como o país com o maior número absoluto de homicídios contra pes-
soas trans*. Segundo informações do TGEU (Transgender Europe),
dos 2982 casos de assassinatos computados no mundo entre janeiro
de 2008 e setembro de 2018, cerca de 40% (1238) ocorreram no país.
No segundo lugar mundial dos assassinatos entre 2018 e 2019 está o
México, com 63, seguido dos Estados Unidos da América, com 31.
Embora o Brasil lidere em absoluto essa lista, percebe-se a presença
de diversos países latino-americanas entre os mais violentos contra
pessoas trans*.
Perspectivas teórico-políticas têm procurado se atentar às parti-
cularidades da constituição de identidades de gênero nesse contexto,
compreendendo os modos como já no período colonial havia imposi-
ções violentas contra pessoas que destoavam da binaridade de gênero
em certo padrão europeu e colonial (VERGUEIRO, 2015). No Brasil,
seu marco estaria, nessa leitura, no assassinato de Xica Manicongo
ainda no século XVI, uma congolesa escravizada morta a mando da
Inquisição por vestir roupas “do sexo oposto”, crime equivalente à
lesa a majestade (JESUS, 2019).
A história brasileira – o que também, em certa medida, se aplica
a outros países latino-americanos que passaram por períodos ditato-
riais recentes – é permeada pela aberta perseguição policial contra
pessoas trans* e gênero-dissidentes, principalmente contra travestis.
Autoras como Cavalcanti, Barbosa e Bicalho (2018) enfatizam, nesse
111
percurso histórico, a chamada “Operação Tarântula”, vigente no Re-
gime Militar nos anos 80 na cidade de São Paulo, ação civil-estatal de
perseguição a travestis, tidas como centro da então epidemia de HIV/
AIDS, ao mesmo tempo em que ações semelhantes foram realizadas
em todo o país (ARAÚJO, 2020)14. Não por acaso, se nos atentarmos
aos primórdios do que viria a ser o movimento trans* organizado no
país, ainda na década de 90 – naquele momento centrado nas travestis
– temos que sua principal reivindicação, para além das demandas de
prevenção contra o HIV/AIDS e outras ISTs (infecções sexualmente
transmissíveis), era o m da violência policial (CARVALHO, 2011).
Anos mais tarde, foi em resposta a mesma epidemia que travestis
foram reconhecidas legalmente em seu combate no âmbito da saúde
no Brasil. Foi inicialmente no campo da saúde que direitos como o do
nome social foram implementados inicialmente (CARRARA, 2010,
2015), ainda na década de 2010 se expandindo para o campo da educa-
ção, que hoje surge como um eixo central da constituição de direitos
da população trans* no país.
Ao mesmo tempo, esses processos acompanham o surgimento de
pânicos morais e de propostas de lei diretamente contrárias à uma
população trans*, particularmente no que é enquadrado enquanto
uma “ideologia de gênero” (ROSADO-NUNES, 2015). Um marco im-
portante, aqui, é o veto do governo federal do projeto “Escola sem
homofobia”, em 2011 (ARAÚJO, 2020) – ainda revivido, uma década
mais tarde (no que viria a ser chamado posteriormente de “Kit gay”),
em mobilizações contrárias ao advento de direitos de uma popula-
ção trans*. Ao mesmo tempo, pessoas trans* surgem no epicentro
de uma continuidade de controvérsias públicas no que é por vezes
14. Os meandros da história e suas re/memórias no espaço e discurso público, particular-
mente no período ditatorial latino-americano, tem sido o tema de meu novo projeto de
mestrado, “Between tarantulas and travestis”, com apoio da Erasmus Mundus Joint Masters.
Também trabalharei com aproximações do contexto brasileiro com outros países latino-a-
mericanos.
112
descrito enquanto uma ameaça aos valores tradicionais da nação (IA-
ZZETTI, 2021a) – sua própria existência é tida como uma espécie de
ideologia encarnada, gerando, em determinados grupos sociais rea-
cionários, pânicos morais sobre temas que vão da presença de pessoas
trans* em competições esportivas a banheiros públicos.
Caminhando ao nal dos anos 2010 tem-se ainda uma intensicação
da precarização do investimento na educação pública brasileira, incluin-
do no ensino superior, afetando principalmente universidades federais.
Se tomarmos como exemplo a UFSB (Universidade Federal do Sul da
Bahia), a primeira universidade do país a adotar reserva de vagas para
pessoas trans* na graduação, temos uma ameaça constante de seu fe-
chamento denitivo. A universidade cou conhecida nacionalmente
como a mais afetada pelos cortes federais nesse período. Em maio de
2019, a reitoria da universidade anunciou que havia sido bloqueado
38% do orçamento de custeio e capital, afetando recursos básicos da
universidade (como água e luz), além de bolsas de pesquisa e o paga-
mento de funcionários. Outro ponto importante, enfatizado na mesma
nota, é o fato de a universidade ter sido recentemente criada, exigindo
o bloqueio de investimentos e o congelamento de planos de expansão15.
Além disso, guinadas conservadoras no âmbito da política estatal
têm nas políticas armativas para pessoas trans* um ponto de ataque.
Em julho de 2019, a UNILAB (Universidade da Integração Internacio-
nal da Lusofonia Afro-Brasileira) atrelou um programa de ação ar-
mativa para as vagas remanescentes de seu processo seletivo. O pro-
cesso seletivo incluía um vestibular especíco para uma população
trans* e intersexo, onde as pessoas candidatas poderiam versar sobre
sua história de vida. O MEC interveio no edital, armando que ele
iria de encontro a Lei de Cotas, que não preveria a reserva de vagas
para pessoas trans*, vetando o vestibular. Inicialmente, a UNILAB de-
clarou que as vagas seriam ociosas do Sisu e que, por isso, não seriam
15. Fonte: UFSB. Nota ocial sobre cortes no orçamento da UFSB. UFSB, 3 de maio de 2019.
113
cotas ou reserva de vagas. O caso incluiu o pronunciamento, via rede
social, do presidente da república, Jair Bolsonaro, de que o MEC ha-
via sido acionado e o vestibular seria suspenso imediatamente. No
dia 17 de julho, a UNILAB anulou ocialmente o edital. Críticos da
decisão judicial apontam que a interferência do MEC fere o princípio
de autonomia universitária, e temem que a decisão possa criar cená-
rios de jurisprudência na anulação de outros editais16. O caso da UNI-
LAB surge na sequência de um ocorrido no ano anterior, em abril, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde um edital com
reserva de vagas para pessoas trans* foi suspenso após uma ação po-
pular movida por um pastor evangélico17. Tempo depois, no mesmo
ano, o mesmo pastor moveu mais uma ação – dessa vez contra a UFF
(Universidade Federal Fluminense) – mas perdeu na Justiça.
Embora esses sejam casos explícitos de oposição, se não persegui-
ção, ao advento desse tipo de iniciativa nas universidades públicas (se
não as universidades públicas em si mesmas, em sua existência con-
creta), vale destacar que o advento de tais medidas tem avançado no
país ao longo dos anos 2010. Mesmo assim, observar tais controvér-
sias é necessário para, em sua densidade, adensar uma história linear
desses direitos e, especicamente, da existência e da efetividade des-
sas ações armativas.
Mesmo com o advento desses direitos, dados relativos à violência
extrema contra pessoas trans* tem crescido a cada ano no Brasil. Mes-
mo no período de isolamento social frente à pandemia do COVID-19,
os assassinatos subiram em 13% em relação ao ano anterior, segundo
dados da ANTRA. Os dados sobre transfeminicídio – e seus eixos de
raça, classe e trabalho – devem ser pensados junto ao aumento nas
taxas de feminicídio no Brasil como um todo (e, em grande medida,
16. Fonte: VILELA, Pedro Rafael. Bolsonaro diz que vestibular especíco para transgêneros
será anulado. Agência Brasil, 16 de julho de 2019.
17. A ação está disponível em: https://sarawagneryork.medium.com/despacho-decis%-
C3%A3o-contra-cotas-para-trans-c83ddb6bb286
114
na América Latina), embora haja particularidades no transfeminicí-
dio, comumente acompanhado de requintes de crueldade (83%), sem
relação direta com as vítimas (80%) e ocorrido nas ruas (64%) (AN-
TRA, 2020).
Outro dado importante de ser entrecruzado está no aumento do
suicídio entre homens jovens, principalmente entre a população jo-
vem negra e indígena. Enquanto a taxa entre adolescentes brancos
se manteve entre 2018 e 2019, houve um aumento de 12% entre
adolescentes negros, que, no total, é 45% maior que a de adoles-
centes brancos18. Entre indígenas, a taxa é três vezes superior à mé-
dia do país tanto para homens (onde estão concentrados os casos)
quanto para mulheres19.
O número de assassinatos e de suicídios se entrecruza com outros
dados de violência extrema no Brasil e na América Latina, tais como
os dados de encarceramento em massa, genocídio da população ne-
gra, letalidade policial e a destruição e invasão de terras indígenas. A
partir dessas estatísticas podemos tensionar processos de re/conhe-
cimento estatal e certa história baseada em marcos legais – ou seja,
tensionar certa narrativa de progresso e a centralidade da leitura do
Estado em sua esfera legal. Podemos questionar em que medida as
passagens entre governos, por exemplo, representam mudanças efe-
tivas nessas estatísticas e nas vidas que procuram visibilizar e, efetiva-
mente, impactar, para além do âmbito estritamente legal.
Por m, pontuo que o espraiamento do uso do nome social e o ad-
vento de políticas armativas no ensino superior público atravessam
particularidades da história brasileira e latino-americana, mas devem
ser levados em conta, também, a partir de um contexto internacional
mais amplo, tais como a convenção de Yogyakarta, realizada em 2006,
18. Fonte: FIGUEIREDO, Patrícia. Índice de suicídio entre jovens e adolescentes negros
cresce e é 45% maior do que entre brancos. Geledés, 25 de maio de 2019.
19. Fonte: CAMPELO, Lilian. Taxa de suicídios entre indígenas é três vezes superior à média
do País. Brasil de Fato, 24 de setembro de 2018.
115
que aplica a legislação internacional de direitos humanos em relação à
identidade de gênero, mesmo que permeado de disputas e tensões, nas
relações entre nacional/internacional, local/global (BARBOSA, 2015).
Embora casos de violência sejam também comuns em países vizi-
nhos, países como o Uruguai criaram leis direcionadas a uma popu-
lação trans* nos últimos anos que se conguram como algumas das
mais bem-trabalhadas do mundo, se atentando às violências históri-
cas contra essa população (principalmente contra travestis) e medidas
reparatórias não apenas na educação, mas também no ambiente de
trabalho e em cargos políticos. Em 2009 é aprovada no Uruguai a lei
de identidade de gênero, possibilitando a alteração no registro civil
(inclusive de menores de idade, mediante autorização dos pais), em-
bora ainda restrita a mediação e autorização judicial. Nove anos mais
tarde, em 2018, é aprovada a Lei Integral para Pessoas Trans (Ley In-
tegral para Personas Trans), que possibilita a alteração do registro ci-
vil pela via administrativa. A Lei reconhece ainda a violência histórica
contra pessoas trans* no país, particularmente no período ditatorial,
seguindo o princípio de reparação histórica, incluindo a garantia de
restituição nanceira a vítimas. Arma como responsabilidade do Es-
tado a garantia de acesso psicológico, social, nanceiro e educacional
e o acesso a cultura e a saúde, e, por m, reserva postos de trabalho
e vagas em projetos de formação e capacitação para pessoas trans*.
Lei semelhante surge, em 2021, na Argentina – em sequência a outros
marcos legais anteriores – onde há a reserva de 1% dos cargos públi-
cos para pessoas trans*, além de incentivos scais à iniciativa privada.
Considerações Finais
Ao longo do artigo, atravessei duas frentes legais relacionadas à
presença de pessoas trans* no ensino superior público brasileiro a
partir dos anos 2010: o espraiamento do nome social no âmbito edu-
cacional formal e o advento de políticas armativas ao nal dessa
116
década. Pontuei, ainda, em meio a esse percurso histórico, os mo-
dos como o nome social permite algum tipo de “contra-produção”
de dados quantitativos sobre a presença de pessoas trans* no ensino
superior público, tendo em vista um processo histórico de ausência
de dados produzidos pelo Estado e pela academia e seu consequente
impacto na criação e fomento de políticas públicas. Trouxe, a partir
do nome social e dos dados sobre políticas armativas para uma po-
pulação trans*, dados sobre sua presença no ensino superior público
brasileiro, indicando também limites e desaos.
Na sequência, trouxe algumas considerações sobre a história e a
contemporaneidade brasileira e latino-americana, principalmente
em seus adventos legais (criação de políticas armativas no ensino
superior brasileira e a expansão de direitos à uma população trans*
a partir do âmbito da saúde) e nos dados sobre violência extrema
em seus eixos de gênero, raça, classe e trabalho. Trouxe, com isso,
alguns tensionamentos em uma leitura a partir de marcos legais e
institucionais, indicando, por m, certa limitação das leis brasileiras
quando comparadas a outras leis vigentes na América Latina (tra-
zendo o exemplo uruguaio). Nesse momento nal, também esbocei
aproximações com aparatos teóricos que se atentam as particularida-
des desse contexto (sem se limitar estritamente a ele), seja na aten-
ção a processos outros de re/conhecimento estatal através de políti-
cas de fazer morrer, seja no retorno a um período colonial que, nessa
leitura, haveria aqui ncado estruturas de desigualdade em profun-
das raízes históricas. Reforço, por m, dois pontos que permearam,
direta e indiretamente, esse artigo.
Uma primeira consideração nal importante de ser destacada é a
compreensão de que a educação está sempre enredada com relações
familiares, acesso ao serviço de saúde, segurança nas ruas, e assim
em diante – e que pensar e atuar sobre o ensino superior, necessaria-
mente, é pensar e atuar sobre o ensino básico. Reetir sobre o aces-
so e permanência de pessoas trans* na educação, e particularmente
117
no ensino superior público, implica em uma reexão e uma atuação
coletiva mais ampla, dentro e fora desses espaços – o que, enquanto
fundamentação teórica e política, nos exige uma atenção cuidadosa a
suas fronteiras.
Relacionado a esse primeiro elemento está um segundo fato, da
necessidade de adotarmos uma perspectiva que se atente as interco-
nexões de desigualdades sociais (que podemos, em diálogo com a bi-
bliograa e movimentos sociais, denominar de “interseccional”), de
modo a reconhecer limites estruturais e tomá-los como desaos, le-
vando a sério os modos como desigualdades, tais como gênero, raça
e classe, emergem nessas relações. Isso não implica em hierarquizar
essas violências e opressões, mas pensar em estratégias – ou seja, em
pensar em como reetir e agir sobre os efeitos dessas diferentes desi-
gualdades e suas interconexões, sempre atentando-se ao fato de que
pessoas trans* não são “apenas” pessoas trans. Não só porque essa
experiência de vida não se reduz a uma “transição de gênero”, mas
porque elas estão imbricadas em eixos de desigualdade que implicam
em diferentes acessos e permanências no ensino superior público.
Compreender isso não apenas nos permite uma leitura teórica re-
nada, mas nos possibilita estabelecer alianças políticas e atuar efe-
tivamente na composição de ações e transformações coletivas que
sejam de fato efetivas.
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121
DESPATOLOGIZACIÓN, INTEGRALIDAD
Y AUTOGESTIÓN: DEMANDAS E
INICIATIVAS POR LA SALUD TRANS
EN ARGENTINA (2012-2019)
Anahí Farji Neer1
Introducción2
En este trabajo abordo las iniciativas de activistas y usuarixs trans
del sistema de salud argentino para garantizar el cumplimiento de la
Ley 26.743 de Identidad de Género en el ámbito sanitario. Analizo
dichas iniciativas a la luz de los conceptos de biociudadanía y ciuda-
danía biológica. El corpus se compone de entrevistas en profundidad
a referentes de organizaciones trans de Argentina, notas periodísti-
cas publicadas en medios grácos impresos y digitales, posteos en
redes sociales y contenidos de sitios web elaborados por activistas y
usuarixs trans del sistema de salud entre 2012 y 2019 para socializar
experiencias, recursos e información con el n de promover el cum-
plimiento de sus derechos. El análisis de dicho corpus busca abordar
los discursos y acciones de activistas y usuarixs trans del sistema de
salud argentino para garantizar el acceso a su salud en el marco de un
1. Doctora de la Universidad de Buenos Aires en Ciencias Sociales. Investigadora Asistente
del Consejo Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas con lugar de trabajo en el
Instituto de Estudios Sociales en Contextos de Desigualdades de la Universidad Nacional de
José C. Paz. anahi.farji@gmail.com
2. Una versión parcial de este trabajo fue publicada en Farji Neer (2019).
122
proceso global de transformación del rol de lxs pacientes y crítica a la
autoridad médica.
La Ley 26.743 de Identidad de Género argentina fue sancionada
el 9 de mayo de 2012. La misma regula el cambio de nombre y sexo
registral y el acceso a intervenciones y tratamientos médicos para
construir una imagen corporal acorde a la identidad de género. Para
mayores de edad, el trámite de cambio de nombre y sexo registral
requiere presentarse en una sede del registro civil con la partida de
nacimiento y completar una declaración jurada en la que se manies-
te el pedido. No requiere ninguna instancia de evaluación ni la pre-
sentación de material probatorio de ninguna índole. Para menores de
edad, la Ley establece que el trámite sea realizado por intermedio de
sus representantes legales con la expresa conformidad de la persona
solicitante y la asistencia de un “abogado del niño”, conforme lo esti-
pula la Ley 26.061 de protección integral de los derechos de las niñas,
niños y adolescentes (Ley 26.743, Art. 5°). El artículo 11º de la Ley de
Identidad de Género establece que quienes así lo deseen puedan acce-
der a intervenciones quirúrgicas y/o tratamientos hormonales para
“adecuar su cuerpo, incluida su genitalidad, a su identidad de género”
(Ley 26.743, Art. 11°). Dispone que dichos tratamientos sean cubier-
tos por los efectores de los tres subsistemas de salud (público, privado
y obras sociales) sin necesidad de autorización judicial o administrati-
va. La normativa establece que para mayores de edad el único requi-
sito para acceder a los mismos es la rma de un consentimiento infor-
mado. Para menores de edad que soliciten intervenciones quirúrgicas
sí es requisito contar con una autorización judicial.
La Ley de Identidad de Género presenta dos innovaciones respecto
a los criterios legales anteriormente vigentes en Argentina. En pri-
mer lugar, la autorización judicial y las pericias médicas de evaluación
diagnóstica dejan de constituirse como requisitos legales para acceder
al cambio de nombre y sexo registral. Al no existir instancia evaluado-
ra que indague en la corporalidad de las personas, la identidad legal
123
se separa de la apariencia corporal. La Ley desarticula los criterios
médico-legales de asignación sexo-genérica basados en la genitalidad
anteriormente vigentes: no es necesario tener vagina para que una
persona sea legalmente asignada al sexo femenino ni pene para que
sea asignada al masculino. En segundo lugar, legaliza las intervencio-
nes quirúrgicas genitales voluntarias anteriormente ilegales en virtud
de lo dispuesto por la Ley 17.132 de Ejercicio de la Medicina. Hasta
la sanción de la Ley de Identidad de Género, la justicia ocupaba el rol
de árbitro y evaluador frente a las solicitudes de realización de las mis-
mas (CABRAL, 2007; LITARDO, 2010; FARJI NEER, 2017).
La sanción de la Ley de Identidad de Género fue resultado de la de-
manda sostenida de las organizaciones de travestis, transexuales, transgé-
neros y trans de Argentina. Desde su aparición en el espacio público en la
década de 1990, estas organizaciones reclamaron el cese de la persecución
y discriminación social e institucional. Frente al campo médico, deman-
daron el acceso a una atención de calidad sin prácticas discriminatorias,
ya que las burlas y el desconocimiento de la propia identidad eran mo-
neda corriente en su tránsito por las instituciones de salud (BERKINS Y
FERNÁNDEZ, 2005; BERKINS, 2007; MINISTERIO PÚBLICO DE LA
DEFENSA DE LA CIUDAD AUTÓNOMA DE BUENOS AIRES, 2017).
En el presente trabajo abordo las iniciativas de activistas y usuarixs
trans del sistema de salud para garantizar el cumplimiento de la Ley
de Identidad de Género en el ámbito sanitario en dos momentos. Por
un lado, analizo los debates suscitados al interior del activismo trans
en el período abierto entre la sanción de la Ley en 2012 y la reglamen-
tación de su artículo 11° en 2015. Por otro, abordo las iniciativas e
intervenciones desplegadas ante el inminente desabastecimiento de
medicación hormonal en los efectores del sistema público de salud en
octubre de 2019. Propongo conceptualizar dichas acciones y discur-
sos como iniciativas que adquieren las características de la “ciudada-
nía biológica” o “biociudadanía” (RABINOW, 1996; ROSE y NOVAS,
2005; NOVAS, 2006; ROSE, 2012).
124
Metodología
En el presente trabajo desarrollo un enfoque cualitativo basado
en la realización y análisis de entrevistas en profundidad a activistas
trans, así como en el relevamiento y análisis de notas periodísticas en
medios grácos impresos y digitales de Argentina, posteos en redes
sociales y contenidos de sitios web elaborados por activistas y usua-
rixs trans del sistema de salud. En el marco de mi investigación doc-
toral, entre 2014 y 2015 entrevisté cinco referentes de organizaciones
trans de Argentina que participaron activamente de la demanda de
la Ley de Identidad de Género y que llevaron adelante actividades o
iniciativas para su cumplimiento en el ámbito sanitario (FARJI NEER,
2020). La muestra estuvo compuesta por referentes de organizacio-
nes de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, la provincia de Buenos
Aires y la provincia de Córdoba. Entrevisté una mujer trans y cuatro
activistas que se identicaban con distintas categorías vinculadas a
las masculinidades trans. El criterio de selección de las personas en-
trevistadas fue de tipo intencional. Entrevisté a quienes tuvieron una
presencia activa en actividades públicas, eventos activistas e interven-
ciones en medios de comunicación solicitando la reglamentación del
artículo 11º de la Ley de Identidad de Género y la despatologización
de las identidades trans en los ámbitos de salud. En las entrevistas
indagué en sus trayectorias activistas, sus percepciones sobre los lí-
mites y posibilidades para la implementación de la Ley en el ámbi-
to sanitario y sus experiencias en el marco de tratamientos médicos
para construir una imagen corporal acorde a su identidad de géne-
ro. Las entrevistas tuvieron una duración aproximada de cuarenta y
cinco minutos, fueron grabadas con previo consentimiento oral y a
lo largo del presente artículo resguardo la condencialidad de los da-
tos de las personas entrevistadas. Las grabaciones fueron trascriptas,
codicadas y analizadas manualmente. A su vez, relevé notas perio-
dísticas de medios grácos impresos y digitales (Página/12, Tiem-
po Argentino y Comunicar Igualdad) publicadas entre 2012 y 2015.
125
Seleccioné aquellas notas en las que se plasmaron los debates acer-
ca de las distintas estrategias y discursos delineados por activistas y
usuarixs trans del sistema de salud en pos de lograr la reglamentación
del artículo 11° de la Ley de Identidad de Género. Posteriormente,
relevé notas periodísticas publicadas en medios grácos impresos y
digitales, así como en portales de noticias online (Filo.news, Agencia
presentes, Revista Cítrica, La Izquierda Diario y Agencia de Noticias
REDacción), posteos en la red social Facebook y entradas del sitio
web Recursero Trans* publicadas entre octubre y diciembre de 2019
que referían a las demandas y reivindicaciones de la Asamblea Trans
Trava No Binarie por la salud integral frente a la noticia del inminente
desabastecimiento de medicación hormonal en los efectores del siste-
ma público de salud. Para el análisis del corpus utilicé la técnica del
análisis de contenido cualitativo (ANDRÉU ABELA, 1998/2003). Las
notas periodísticas y los posteos en redes sociales y sitios de internet
fueron codicados y analizados manualmente de manera individual.
Posteriormente, la totalidad del material recabado fue codicado y
analizado de manera global.
A continuación, repongo los debates teóricos que nutren este trabajo
y que focalizan en las transformaciones del campo médico desde la dé-
cada de 1980. Hago especial hincapié en los desarrollos que abordan los
procesos por medio de los cuales lxs pacientes se reposicionaron como
usuarixs activxs del sistema de salud para luego ponerlos en juego en el
análisis de la relación entre lxs usuarixs trans y el sistema de salud argen-
tino posterior a la aprobación de la Ley de Identidad de Género.
El rol de lxs pacientes en el orden biopolítico contemporáneo
Siguiendo a Peter Conrad (2007), a partir de la década de 1980
se dieron cambios a escala global en la organización de la medici-
na que alteraron el régimen biopolítico vigente. Es decir, el modo
en que la regulación de lo biológico se constituye como eje de las
126
tecnologías y dispositivos de poder. Conrad (2007) destacó tres
aspectos de este proceso: la erosión de la autoridad médica, la
mercantilización de la atención y la incorporación de los avances
cientíco-tecnológicos al campo de la salud. En lo que reere a la
reconguración de la autoridad médica, armó que si bien lxs pro-
fesionales de la medicina mantuvieron su dominio y soberanía en el
campo de la salud, nuevos actores reconguraron su rol: la industria
farmacéutica y lxs pacientes. Estxs últimxs comenzaron a tomar un
rol activo en la búsqueda de tratamientos, profesionales y servicios
en base a sus deseos, necesidades y posibilidades (CONRAD, 2007).
De este modo, lxs pacientes –categoría social que remite a la expe-
riencia sistemática de la espera, la paciencia y la perseverancia (AU-
YERO, 2012)- dejaron de ocupar un lugar pasivo para posicionarse
como usuarixs activxs del sistema de salud.
Muchos de estos cambios fueron subsidiarios de los avances en la
investigación médica y la tecnicación de los tratamientos. Para Adele
Clarke, Janet Shim, Laura Mamo, Jennifer Fosket y Jennifer Fishman
(2003) la integración de las tecnociencias al campo de la salud pro-
movió el pasaje de la medicalización a la biomedicalización. Los dis-
positivos médicos de producción, control y regulación de las subjeti-
vidades propios de la modernidad se vieron modicados frente a los
cambios del estatus de la materialidad biológica y sus posibilidades de
transformación en base a los avances tecnocientícos. Estos procesos
tuvieron efectos en la subjetividad, en las formas de colectividad y
sociabilidad, en la relación médicx-paciente y en las políticas públicas.
Para Carlos Novas (2006), que lxs pacientes del sistema de salud ha-
yan tomado un rol activo en la producción y avance del conocimiento
transformó las reglas del juego de la biomedicina. Otrxs autoxs pro-
fundizaron esta idea y armaron que dicha participación reconguró
el concepto mismo de ciudadanía. Nikolas Rose (2012) sostuvo que
todo proyecto de Estado Nación delimita la ciudadanía en térmi-
nos somáticos. Su concepto de “ciudadanía biológica” apuntó a las
127
creencias, representaciones, actitudes y prácticas cotidianas desar-
rolladas por los sujetos frente a sí mismos, frente a otrxs y frente a
las instituciones, bajo los términos de una denición somática de la
identidad basada en las nociones de riesgo, sufrimiento y vulnerabili-
dad. En sintonía con estas reexiones, Paul Rabinow (1996) utilizó el
término “biociudadanía” para describir el proceso de conformación
de grupos y asociaciones que tenían por objeto demandar políticas
públicas al Estado. Nikolas Rose y Carlos Novas (2005) armaron que
estos grupos podían ampararse en categorías médicas para llevar ade-
lante sus reclamos o bien enfrentarse a ellas y discutirlas en la arena
pública. Señalaron que sus integrantes se vinculaban entre sí a través
del conocimiento e identicación de una condición somática común.
En base a categorías y procesos de vulnerabilidad corporal, sufrimien-
to o riesgo, conformaron espacios de sociabilidad cuyo objetivo podía
ser la demanda de políticas públicas especícas, investigaciones médi-
cas y/o la elaboración de campañas para promover que el resto de la
población conozca las características de sus necesidades de salud. Re-
clamaban tener una participación activa en el desarrollo de sus trata-
mientos, movilizaban demandas y podían colaborar en la producción
y avance del conocimiento médico (ROSE y NOVAS, 2005).
Todos estos desarrollos ofrecen aristas analíticas para compren-
der el proceso de conformación de la Red Internacional por la Des-
patologización Trans y su Campaña Stop Trans Pathologization 2012
lanzada en octubre de 2007 en la ciudad de Barcelona, España. La
misma fue creada con el n de criticar la vigencia de categorías diag-
nósticas que patologizaban las formas de vida trans. Por medio de
movilizaciones y acciones públicas desarrolladas de manera coor-
dinada en distintas ciudades del mundo, la campaña reclamaba eli-
minar la categoría de “Trastorno de la Identidad sexual o de géne-
ro” de la quinta versión del Manual Diagnóstico y Estadístico de los
Trastornos Mentales (DSM) de la Asociación Americana de Psiquia-
tría a editarse originalmente en 2012 y acceder a los tratamientos
128
hormonales, cirugías y otras tecnologías médicas de modicación
corporal por fuera de evaluaciones diagnósticas. A su vez, sus accio-
nes tenían por objetivo concientizar a la comunidad médica sobre
la importancia de otorgar un rol activo a las personas trans en sus
tratamientos y respetar su autonomía de decisión (COLL-PLANAS,
2010). Las consignas de la Campaña Stop Trans Pathologization 2012
fueron retomadas por el activismo travesti, transexual, transgénero
y trans de Argentina al demandar la aprobación de una Ley de Iden-
tidad de Género (FARJI NEER, 2020). Las tensiones entre el sistema
médico y la población trans dieron un nuevo giro tras la sanción de
la Ley de Identidad de Género en 2012 y la demora en la reglamen-
tación del artículo 11º que legalizó e incorporó al Plan Médico Obli-
gatorio los tratamientos e intervenciones de modicación corporal.
Es posible armar que los discursos y acciones desarrolladas por un
sector del activismo y la comunidad trans frente al campo médico
adquirieron las características de la biociudadanía ya que reivindi-
caron el ejercicio de la autonomía de decisión en el marco de los
tratamientos y demandaron una atención de calidad por parte de
los equipos de salud.
Teniendo en cuenta estos desarrollos, a continuación abordo las
principales demandas y críticas elaboradas por parte de activistas
y usuarixs trans del sistema de salud hacia los equipos de salud y
las políticas de salud en dos momentos. Primero, analizo el período
transcurrido entre la aprobación de la Ley de Identidad de Género
en 2012 y la reglamentación del artículo 11° de dicha normativa
en 2015. Luego, indago en los reclamos articulados entre octubre
y diciembre de 2019 cuando se llevaron a cabo distintas asambleas
autoconvocadas para reclamar por el faltante de hormonas para los
tratamientos de construcción corporal trans. Armo que este con-
junto de demandas y críticas son el terreno en el cual se asientan
acciones individuales y redes comunitarias que asumen las caracte-
rísticas de la biociudadanía.
129
Momento 1: las demandas por la reglamentación del artículo
11º de la Ley de Identidad de Género
Tras la aprobación de la Ley 26.743 de Identidad de Género, orga-
nizaciones trans y usuarixs trans del sistema de salud se acercaron a
distintos servicios de salud para solicitar atención. Se encontraron con
profesionales que en algunos casos no estaban al tanto de la sanción de
la Ley ni de las características de los tratamientos de construcción cor-
poral requeridos. A través de notas periodísticas, exposiciones y char-
las públicas, distintxs activistas trans denunciaron que en algunos casos
los equipos de salud seguían exigiendo un diagnóstico como requisito
obligatorio para el ingreso a los tratamientos. En ese marco, sus expec-
tativas eran que la reglamentación del artículo 11° de la Ley avanzara
en los siguientes aspectos: disponer nanciamiento público para cubrir
medicación, prótesis y recursos hospitalarios, capacitar profesionales a
escala federal y asegurar la cobertura de los tratamientos e interven-
ciones por parte de obras sociales y empresas de medicina prepaga sin
imponer requisitos patologizantes. También reclamaban que la regla-
mentación incluyera la elaboración de un protocolo o guía de atención
que unicara los criterios de acceso y tratamiento frente a la hetero-
geneidad de perspectivas. Así lo expresaba un activista entrevistado al
comparar la atención en dos hospitales en la provincia de Córdoba:
Bueno, la atención es totalmente distinta en los dos hospitales. En el hos-
pital “A” no hemos tenido ningún tipo de inconveniente. Nos dan los
medicamentos gratuitos, nos hacen los controles, el tratamiento psico-
lógico es optativo como establece la Ley. Uno puede ir a tratamiento
psicológico no por cuestiones trans, sino por lo que sea. En cambio, en
el Hospital “B” el consultorio de sexología es sumamente patologizante
(…) Al no haber protocolo, se bajan protocolos de otros países: lo que
dice la (Ex) Asociación (Internacional Harry Benjamin) o el DSM y noso-
tros nos quedamos sin ese derecho y estiran las terapias (con) el psicoa-
nálisis (Diego, entrevista personal, enero de 2015).
130
La vigencia de la Ley de Identidad de Género no impedía a los
equipos de salud elaborar sus propios criterios clínicos de atención
y solicitar la evaluación psicoterapéutica de modo obligatorio para
ingresar a los tratamientos hormonales y quirúrgicos en caso de
considerarlo necesario. Por ello, lxs activistas aspiraban a que la re-
glamentación estableciera explícitamente la no obligatoriedad de la
evaluación psicológica para acceder a los tratamientos.
Otra dimensión de los reclamos públicos dirigidos al campo mé-
dico hacía hincapié en recibir una atención de calidad y conocer ple-
namente los riesgos y contraindicaciones de los tratamientos. En lo
que reere a los tratamientos hormonales, sus expectativas giraban
en torno a las siguientes dimensiones:
Que exista un protocolo previo al tratamiento hormonal (…) y que los
propios servicios de salud puedan empezar a hacer un seguimiento so-
bre qué pasa… por ejemplo, un pibe trans diabético, que es que el pán-
creas no le re conoce el azúcar ¿no? En el caso de tomar testosterona, el
páncreas trabaja dos o tres veces más forzado ¿qué pasa con eso? Una
pregunta que me hago ¿Se entiende? No sabemos qué pasa con todo
eso. Entonces, el protocolo lo que va a poder es escribir y dejar en cla-
ro determinadas cosas. Alguien que tiene problemas cardíacos no puede
hacer un tratamiento hormonal, como de la misma forma un médico
no va a intervenir a alguien que tenga las defensas más bajas (…) bue-
no, todo bien, vos podés querer tener más barba, ahora, previo a eso, la
responsabilidad del médico es informarte que vas a tener un problema
de salud. (…) Muchos médicos no saben ni siquiera todos esos cambios
(Germán, entrevista personal, septiembre 2014).
Frente a estas experiencias y debates, una parte del activismo trans
se focalizó en promover la importancia del autocuidado y la participa-
ción activa en las decisiones respecto a los tratamientos. La concien-
tización sobre los riesgos y posibles consecuencias no deseadas de los
131
tratamientos e intervenciones se desarrolló a través de redes sociales y
en notas en medios grácos impresos y digitales. Un activista trans di-
fundió en una nota periodística la existencia de un grupo de hombres
trans usuarios del sistema de salud creado en la red social Facebook tras
la sanción de la Ley de Identidad de Género. Rerió que allí compartían
dudas y información sobre los tratamientos. Para conocer las caracterís-
ticas de los procedimientos no recurrían a profesionales sino a sus pro-
pios pares, valiéndose de las posibilidades ofrecidas por las redes sociales:
Si sos un trans masculino/hombre trans, podés buscar información en
un grupo de Facebook que se llama “data de cirugías/ tratamientos
hormonales para chicos trans de Argentina”. Esta página fue creada por
Francisco, un compañero de la provincia de Santiago del Estero que vio
y entendió la necesidad de estar más informados sobre lo que está pasan-
do con las operaciones y los tratamientos, la necesidad de colectivizar la
información, de compartir fotos de cómo van evolucionando las opera-
ciones, qué equipo médico las realizó, experiencias y opiniones de cosas
a tener en cuenta previo a realizarse una cirugía o un tratamiento, ya
que muchas personas han expresado disconformidad luego de la inter-
vención médica porque no les dijeron qué técnica iban a utilizar, cuán-
to tiempo iba a llevarles el posoperatorio, cómo iba a quedar el pecho,
cuánto tiempo tarda en desinamar, cómo iba a ser reconstruida la tetil-
la, en qué lugar, entre otra innidad de cosas que debemos y tenemos el
derecho de saber (PRIETO, 2014).
Siguiendo a Rose y Novas (2005), el ejercicio de la ciudadanía bio-
lógica suele implicar la adquisición de conocimiento experto y su difu-
sión entre pares. Las herramientas virtuales, tales como listas de correo,
comunidades virtuales, redes sociales y sitios web favorecen el contacto
entre individuos con las mismas inquietudes, deseos y necesidades cor-
porales. Este proceso es caracterizado por los autores como “biociuda-
danía digital”. Como arman Petracci y Pecheny (2007):
132
Los ámbitos de sociabilidad de las redes constituyen también espacios
privilegiados para obtener información y multiplicar sus conocimientos
tanto sobre los aspectos médicos de la enfermedad como sobre los dere-
chos de los pacientes. De esta manera, la participación en redes posicio-
na a los pacientes de otra manera ante el médico y ante las dicultades
de la vida diaria (PETRACCI y PECHENY, 2007, p. 212).
Estas acciones tenían como destinatarixs a lxs usuarixs trans de
los servicios de salud. Otros materiales y actividades se dirigían a los
equipos de salud. En 2013, la organización Capicúa elaboró una Guía
denominada “Aportes para pensar la salud de las personas trans. Ac-
tualizando el paradigma de derechos humanos en salud” (Capicúa Di-
versidad, 2014)”. Uno de los integrantes de la organización describió
los objetivos de estas iniciativas del siguiente modo:
Hay que generar sensibilización en todo el servicio, en todo el equipo
médico, desde la persona que te atiende en la mesa de entrada, el de
seguridad, (…) servicio de maestranza, enfermeros, médicos, todo el
mundo. Porque vos caíste internada porque tuviste un accidente ¿Dónde
caés? En la guardia. Y cuando estás en la guardia ¿Cuál es el relato de
muchas compañeras y compañeros trans? Que sos el chiste, que vienen
a mirarte y a ver qué hay ahí y pasás a ser el circo (Germán, entrevista
personal, septiembre de 2014).
En 2014, la organización Hombres Trans Argentinos de la provin-
cia de Córdoba elaboró la campaña “Normatrón” con el objetivo de
concientizar a los equipos de salud sobre la perspectiva despatologi-
zante de la Ley de Identidad de Género. En palabras de un entrevis-
tado, la campaña tenía como n realizar un “trabajo cultural” para
promover que revisaran sus prácticas y concepciones en torno a las
necesidades sanitarias de la población trans. La actividad se desar-
rollaba en los pasillos de los hospitales y consistía en la entrega de
133
un envase similar al de un medicamento, denominado “Normatrón”
(MENDIETA, 2014). La distribución de este medicamento apócrifo,
que contenía un prospecto similar al de un medicamento y un conte
mentolado simulando un comprimido, era una oportunidad para el
diálogo entre profesionales y activistas trans.
En el período transcurrido entre la aprobación de la Ley de Identi-
dad de Género y la reglamentación de su artículo 11º, organizaciones
y usuarixs trans del sistema de salud tomaron en sus manos la imple-
mentación por carriles informales y autogestionados: contactaron a
los equipos de salud para que comenzaran a formarse en los trata-
mientos, realizaron campañas de concientización al interior de las ins-
tituciones de salud sobre el contenido de la Ley y la perspectiva despa-
tologizante, denunciaron la vigencia de mecanismos patologizantes
en las instituciones de salud y pusieron a circular información entre
sus pares. Esta reconguración del rol de lxs usuarixs trans del siste-
ma de salud frente al campo médico puede ser inscrita en un mapa
más amplio de transformaciones en el orden biopolítico contempo-
ráneo en el que se asiste a mutaciones en los discursos de verdad so-
bre el carácter biológico de los seres humanos, las formas de producir
conocimiento, la regulación e intervención sobre esa materialidad y
modos especícos de formación de subjetividades (ROSE, 2012).
El 20 de mayo de 2015, el artículo 11º de la Ley de Identidad de
Género fue reglamentado por medio del Decreto 903/2015 del Poder
Ejecutivo Nacional. El mismo incluyó un listado orientativo de pres-
taciones y tratamientos a ser cubiertos por parte del sistema público
de salud, obras sociales y empresas de medicina prepaga. Determinó
la puesta en marcha de un programa de capacitación, actualización
y sensibilización de profesionales de la salud del sector público, así
como de campañas de información a n de promover la salud integral
de la población trans en los tres subsistemas de salud. En junio de
ese mismo año, el Programa Nacional de Salud Sexual y Procreación
Responsable del Ministerio de Salud elaboró el documento “Atención
134
de la salud integral de personas trans. Guía para los equipos de salud”
(MINISTERIO DE SALUD DE LA NACIÓN, 2015), cuyo contenido
contempló algunas de las demandas anteriormente expuestas. En
2020, el contenido de la guía fue actualizado y se incorporaron as-
pectos vinculados a la atención de la salud de travestis y personas no
binarias (MINISTERIO DE SALUD DE LA NACIÓN, 2020).
Momento 2: La Asamblea trans trava no binarie por la salud
integral
En octubre de 2019, cuatro años después de la reglamentación del
artículo 11° de la Ley de Identidad de Género, se dio a conocer la
noticia de un inminente desabastecimiento de medicación hormonal
(principalmente testosterona) en el sistema público de salud causado
por el incumplimiento de los compromisos del laboratorio que había
ganado la licitación. Esta noticia se dio en un contexto de retracción
del gasto público y con posterioridad a la unicación de los Ministe-
rios de Salud y Desarrollo social, medida que implicó la devaluación
del Ministerio de salud a Secretaría. El Laboratorio que había ganado
la licitación para proveer de “Androlone” (Testosterona 1% en gel) a
los efectores del sistema público de salud incumplía sus compromisos
asumidos frente a la reducción de sus márgenes de ganancia debido a
la devaluación de la moneda nacional. La noticia, que circuló rápida-
mente en las redes sociales, activó la alarma entre lxs usuarixs trans
del sistema de salud, quienes se autoconvocaron de forma inmediata
frente al Ministerio de Salud y Desarrollo Social ubicado en el centro
administrativo de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires.
A partir de la realización de la primera asamblea autoconvocada
el 18 de octubre de 2019, la “Asamblea Trans Trava No Binarie por
la salud integral” se reunió sucesivas veces bajo la consigna “Nues-
tras Hormonas No Se Recortan” con el objetivo demandar la in-
mediata restitución de la provisión de hormonas. El alto nivel de
135
convocatoria que tuvieron las asambleas desarrolladas desde octu-
bre de 2019 permite deducir que luego de siete años de la sanción
de la Ley 26.743 de Identidad de Género muchas personas se encon-
traban accediendo a los efectores de salud del sistema público para
realizar sus procesos de construcción corporal en el marco de lo
dispuesto por la Ley. Sin embargo, el sostenimiento de dichos trata-
mientos peligraba frente a un ejercicio precario y decitario de las
políticas públicas en materia de salud.
La organización suscitada a partir de los faltantes de hormonas
permitió articular discursos acerca de la forma de entender el carác-
ter integral de la salud en el marco de la “atención transespecíca”
(RECURSERO TRANS*, s.f.-a), la importancia del acceso a la medica-
ción hormonal para las personas trans que la solicitaban y la respon-
sabilidad del Estado en ese proceso. Esos discursos se plasmaron en
notas periodísticas y entrevistas publicadas en diarios de circulación
nacional, medios digitales alternativos y redes sociales, en especial la
red social Facebook a través de la página Resistencia Transs cuya des-
cripción reza “Visibilización de eventos de la comunidad TTNB por
la Asamblea TTNB por la Salud Integral - Argentina” (RESISTEN-
CIA TRANSS, s.f.). Los ejes discursivos articulados en dichos soportes
pueden ser desdoblados analíticamente en dos dimensiones: a) la con-
ceptualización del carácter integral de la salud en el marco de la aten-
ción transespecíca y b) el contexto político-ideológico más amplio
en el que se desplegaron acciones estatales que impedían el acceso a
la salud integral por parte de la población trans.
En lo que reere al primero de los ejes, en los distintos posicio-
namientos discursivos plasmados en notas periodísticas y posteos en
redes sociales se expresaron las diferentes dimensiones que compo-
nían la integralidad de la salud en el marco de la atención transespe-
cíca. En principio se destacó un componente subjetivo vinculado al
ejercicio de la autonomía corporal y la posibilidad de tener una ex-
periencia positiva del propio cuerpo en base a las transformaciones
136
posibilitadas por las tecnologías biomédicas. Así lo expresaba el soció-
logo, futbolista y activista deportivo Moyi Schwartzer al relatar sus
experiencias en el marco de su tratamiento hormonal:
Nunca me sentí tan contento con mi raquítica musculatura, con la pe-
lusa que crece cortita y suave pero a paso constante por la ladera de mi
cara que cada vez está más cuadrada. Lo que más me gusta de todo es
eso, que se me puso más cuadrada la cara, siempre quise tener cara cua-
drada (…) Siento que siempre estuve ahí, que la tinta por n se ve grue-
sa, que ahora es más nítida mi sombra. Esto puedo decir de lo que signi-
ca hoy para mí acceder a las hormonas. Son pocas de hora de vuelo en
este viaje, pero ya tan fundamentales (RESISTENCIA TRANSS, 2019b).
En otra entrevista, el mismo activista sostenía:
Estoy en un encuentro conmigo mismo que me fortalece en un mon-
tón de circunstancias y si me dijeran ahora que no puedo seguir ponién-
dome el gel a la mañana, me derrumbaría emocionalmente. No puedo
imaginarlo en este momento. Preero pensar que eso no va a suceder
porque creo en la capacidad de organizarnos como comunidad y encon-
trar soluciones (ZANI, 2019).
El conicto originado por la inminente falta de medicación hor-
monal habilitó la puesta en discurso de la celebración de los cuer-
pos trans y el modo en que los tratamientos hormonales permitían
el reencuentro con el propio cuerpo desde una óptica de disfrute.
Frente a la posibilidad de que esos procesos se vieran interrumpidos
abruptamente, la organización colectiva fue vislumbrada como el ca-
mino para sostener los tratamientos hormonales. A su vez, se destacó
el carácter múltiple y plural de los modos de experimentar el trata-
miento hormonal entre las personas que lo transitaban, marcando
distancia de la mirada homogeneizadora y totalizante de los discursos
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patologizantes. Así lo expresaba Juan Duncan, integrante del Movi-
miento de Juventudes Trans, en una entrevista periodística:
Hay gente para la cual hormonarse significa estabilidad psicológica
y emocional, para otros es fundamental por temas de salud (como los
que se realizaron la histerectomía), y también hay gente que lo ve como
una cuestión de autonomía corporal, me hormono porque así lo decido.
También, mucha gente, por A o por B, en algún momento decide inter-
rumpir el tratamiento, lo cual es personal. Cada experiencia en hormo-
nas es única (ZANI, 2019).
También se destacaba la dimensión somática y material de la aten-
ción transespecíca. En este sentido, el activista trans masculino Ese
Montenegro, armaba:
No es lo mismo interrumpir un tratamiento a una persona que tiene
hecha una histerectomía que a una persona que no. No es lo mismo la
afectación a una persona que cuenta con una contención afectiva y eco-
nómica que a una que no (FILO.NEWS, 2019).
El conicto no solo visibilizó las disímiles vivencias subjetivas de
los tratamientos hormonales. También articuló críticas a las políticas
de salud vigentes en ese momento que dicultaban u obstaculizaban
el acceso a la salud de la población trans. La falta de medicación hor-
monal en los efectores en los que lxs usuarixs trans y no binaries se
atendían regularmente lxs llevó a buscar atención en efectores que
aún disponían un remanente. Ello promovió un inusitado aumento
en la demanda de atención en algunos centros de salud. Así lo descri-
bía Montenegro en otra nota periodística:
hay compañeras travestis y trans a las que ya les están cambiando la me-
dicación y nos enteramos que la semana pasada a una de ellas le dieron
138
un diurético en vez de hormonas. El Estado se ausentó, hace meses
dijo que esto iba a pasar, y no salió a licitar de nuevo. En el dispensario
en donde me atiendo yo, que es en La Matanza, me dijeron que desde
hace dos meses les está entrando una demanda de un montón de gente
de capital. Esto genera que vamos a explotar los recursos de otra pro-
vincia que debería estar garantizada por el Estado Nacional por Ley
(ZANI, 2019).
En lo que reere al segundo de los ejes discursivos, se identicaron
como causas del conicto el avance del conservadurismo religioso y
las medidas de ajuste económico articuladas con lógicas estructurales
transfóbicas y cisexistas:
El faltante de hormonas y bloqueadores responde a una política del
actual gobierno, quien apuesta directa e indirectamente a nuestro ex-
terminio. Esta política cuenta con el aval de amplios sectores de la so-
ciedad, quienes nos quieren imponer permanentemente su régimen
de género. Es evidente que el avance de las iglesias evangélicas en la
región, un gobierno neoliberal que considera la salud pública como un
gasto (y por demás prescindible), el conservadurismo católico y colo-
nial que se mantiene potente en Latinoamérica y los medios de comu-
nicación que continúan criminalizando a travestis y trans*, nos siguen
empujando a la precariedad y los márgenes. Sin embargo, hay dentro
de nuestros espacios discursos más sutiles que también le hacen el jue-
go a estos frentes conservadores a través de otras herramientas como
la patologización o la crítica impune sobre la autonomía corporal del
colectivo trans*/trava, poniendo el foco en nuestros cuerpos y no en el
ajuste neoliberal (MONTENEGRO, 2019).
Este diagnóstico permitió establecer articulaciones con las luchas de
otros colectivos que venían denunciando la obstaculización de su ac-
ceso a la salud, como el colectivo de personas viviendo con VIH. En el
139
marco de la Asamblea también se reivindicó la sanción de una Ley que
legalizara la interrupción voluntaria del embarazo como parte de fun-
damental del derecho a la salud. En este sentido, Montenegro sostenía:
Espero que con el cambio de Gobierno volvamos a tener un Ministerio
de Salud a nivel nacional que repare todo lo que venimos denunciando
con nuestras luchas. Hormonas, retrovirales, aborto legal, seguro y gra-
tuito. Todo. La salud es una de las formas en la que la Justicia Social se