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Intuito
A atividade prossional de um profes-
sor de música tem a sala de aula como
palco de atuação, onde os alunos não
são o único público pois toda a socie-
dade assiste ativamente, avaliando o
seu desempenho. Assim como a exe-
cução que um artista exibe em públi-
co não acontece por acaso, a atuação
do professor na sala, diante dos alu-
nos, também é fruto de um rigoroso
trabalho prévio. Mesmo aqueles que
vão ‘improvisar’ para o palco sabem
que é preciso muitas horas, dias, me-
ses e anos de trabalho para que a su-
posta ‘improvisação’ aconteça. Uma
aula improvisada, sem qualquer pre-
paração nem guião prévio, pode ser
muito estimulante para os alunos se o
professor é portador de uma vasta for-
mação e experiência, caso contrário
perder-se-á o tempo na sala.
Há professores que vão para a sala
de aula reproduzir aquilo que viven-
ciaram durante o período estudantil,
como se a sociedade estivesse profun-
damente adormecida. Há professores
possuidores da ‘única’ verdade pe-
dagógica e culpam os alunos do seu
insucesso, porque o mundo é que tem
de se adaptar a eles. Há professores,
mesmo com habilitação prossional
para a docência e até com canudos de
doutoramento, possuidores de uma
supina ignorância social, ética, pe-
dagógica e até musical. Um famoso
aforismo de José de Letamendi, re-
produzido no pedestal da estátua de
Abel Salazar no Instituto Biológico do
Porto, reza: O médico que só sabe me-
dicina, nem medicina sabe. Aplicado
ao professor de música, que só sabe
duma minúscula área da imensidade
sonora, resulta ludibrioso.
Um professor de música, para além
de ser competente na sua área, deve
estar integrado na sociedade que
atua para acompanhar as evoluções
dos alunos e potenciar as suas capa-
cidades, porque ninguém nasce mú-
sico, faz-se. Assim, pois, a atividade
prossional de um professor de mú-
sica desenvolve-se maioritariamen-
te fora da sala de aula. Só quando
apreendeu a essência, o contexto e o
mundo cultural que envolve os alu-
nos da disciplina é que pode ir para
o palco representar o seu papel, por-
que o que acontece na sala de aula é
só a minúscula ponta do seu iceber-
gue prossional.
Para lecionar História da Música,
Análise e Técnicas de Composição ou
Acústica, disciplinas para as quais fui
legalmente habilitado, é preciso vis-
lumbrar e interligar um sem-m de co-
nhecimentos, e não só musicais. Essa
reexão submergida do icebergue é a
que contextualiza a experiência pro-
ssional. Edgar Morin arma, numa
entrevista de 2014: “A transdisciplina-
ridade é o que possibilita, através das
disciplinas, a transmissão de uma vi-
são de mundo mais complexa”1.
As bases da reexão que se expõe
nestes artigos são fruto do percurso
de uma vida inteira dedicada à músi-
ca como compositor, ativista, editor,
pedagogo, e mais que não necessito
enumerar. Esse longo périplo de vida
produziu inúmeras reexões, que al-
gumas vezes foram escritas em prosa
e outras transformaram-se em parti-
turas do meu catálogo. Nos últimos
anos, fui recuperando da memória,
ordenando e fundamentando, mui-
tas dessas reexões de experiência
prossional que são relevantes para
o melhor desempenho do ofício de
compositor e de professor de música;
mas quando trabalhamos com a me-
mória, o passado torna-se uma cons-
trução do presente porque, no agora,
é impossível saber como seria verba-
lizado aquele passado, se na altura
não cou documentado.
No constructo teórico e argumental
do passado não se pretende apagar
partes da experiência de vida, mas
sim de apurar os contributos ao co-
nhecimento atual. “Cada um de nós
transporta consigo padrões de pen-
samento, de sentimentos e de ação
potencial, que são resultado de uma
aprendizagem contínua. Uma boa
parte foi adquirida no decurso da in-
fância, período do desenvolvimento
onde somos mais suscetíveis à apren-
dizagem e à assimilação”2.
A infância é o fundamento de todo
o indivíduo, a referência que nos
marca, seja para conuir ou diver-
gir, pois temos tendência a observar
os outros, nomeadamente os alunos,
através do ltro da nossa própria vi-
vência. “Quando certos padrões de
pensamento, sentimentos e compor-
tamentos se instalam na mente de
cada um, torna-se necessário desa-
prender, antes de aprender algo dife-
rente, e desaprender é mais difícil do
que aprender pela primeira vez”3.
Ao longo da minha vida prossional
desaprendi quase tanto como apren-
di porque, o que ontem era válido,
nomeadamente durante o pós-mo-
dernismo, hoje pode ser errado ou
insignicante. Manter-se prossio-
nalmente ativo exige uma constante
atualização crítica dos padrões de
pensamento. É a sobrevivência num
mundo que “coloca os indivíduos pe-
rante a absurda alternativa entre sa-
cricar a vida ao trabalho e sofrer as
consequências de não ter trabalho”4.
O que realmente me move tem mais a
ver com praticar uma criação musical
e uma pedagogia dignas desse nome
e isso não é quixotismo retórico, for-
ma parte de uma nova sensibilidade
moral que desponta neste neomoder-
nismo sem dominações e que assiste
ao surgimento de exigências como
a de comer alimentos dignos de tal
designação. E com este intuito segui-
mos em frente.
11JAN’23
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre em
Educação Artística e Ensino de Música
1 Morin, E.: A educação não pode ignorar
a curiosidade das crianças.
O Globo.
(17 de
agosto de 2014). Obtido em 19 de dezem-
bro de 2022, de http://oglobo.globo.com/
sociedade/educacao/a-educacao-nao-
-pode-ignorar-curiosidade-das-criancas-
-diz-edgar-morin-13631748
2 Hofstede, G. (2003).
Culturas e Organiza-
ções. Compreender a nossa programação
mental.
Lisboa: Sílabo, 2003, p. 18.
3
Ibid
.: p. 18.
4 Jappe, A.:
As aventuas da mercadoria
para uma nova crítica do valor.
Lisboa:
Antígona, 2013, p. 12.
A Equação de Einstein na música