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Abstract

Resumo Neste texto considero as conexões entre o medo e as políticas voltadas para o combate ao tráfico de pessoas, a partir de uma etnografia multi-situada realizada a partir de 2004 até 2015 na Espanha e até o momento atual no Brasil. Nos dois países o trabalho envolveu observação em diversos locais, situações e eventos e a interlocução com trabalhadoras sexuais, migrantes realizando serviços em diferentes setores de atividade, empreendedores da indústria do sexo e agentes vinculados a diferentes instâncias de governamentalidade. Baseando-me nessa etnografia mostro como nos regimes anti-tráfico as pessoas que deveriam ser protegidas sentem medo dos efeitos desses regimes que provocam situações percebidas como violência e considero como o medo é uma emoção central acionada na disseminação dos regimes de combate ao tráfico de pessoas. Finalmente, aponto como os objetos que provocam medo tem ido variando ao longo do tempo, explorando as relações entre essas alterações e os campos políticos dos quais esses regimes fazem parte.
DOSSIÊ
Medo e tráfico de pessoas
Adriana Piscitelli1
> piscitelliadriana@gmail.com
ORCID: 0000-0001-6436-344X
1Universidade Estadual de Campinas
Campinas, Brasil
Sexualidad, Salud y Sociedad
REVISTA LATINOAMERICANA
ISSN 1984 -64 87 / n. 38 / 2022 - e22312 / Piscitelli, A . / www.sexualidadsaludysociedad.org
http://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2022.38.e22312.a
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Resumo: Neste texto considero as conexões entre o medo e as políticas voltadas para o com-
bate ao tráfico de pessoas, a partir de uma etnografia multi-situada realizada a partir de 2004
até 2015 na Espanha e até o momento atual no Brasil. Nos dois países o trabalho envolveu
observação em diversos locais, situações e eventos e a interlocução com trabalhadoras se-
xuais, migrantes realizando serviços em diferentes setores de atividade, empreendedores da
indústria do sexo e agentes vinculados a diferentes instâncias de governamentalidade. Base-
ando-me nessa etnografia mostro como nos regimes anti-tráfico as pessoas que deveriam ser
protegidas sentem medo dos efeitos desses regimes que provocam situações percebidas como
violência e considero como o medo é uma emoção central acionada na disseminação dos re-
gimes de combate ao tráfico de pessoas. Finalmente, aponto como os objetos que provocam
medo tem ido variando ao longo do tempo, explorando as relações entre essas alterações e os
campos políticos dos quais esses regimes fazem parte.
Palavras-chave: tráfico de pessoas; emoções; medo; políticas públicas; sexualidade.
Fear and Human Trafficking
Abstract: In this article I analyse the connections between fear and policies directed towards
fighting human trafficking, considering the multi-sited ethnographic work carried since 2004,
up to 2015 in Spain and up to the present moment in Brazil. In both countries the fieldwork
involved observation in diverse places, situations and meetings and the interlocution with sex
workers, migrants working in different labour sectors, sex industry entrepreneurs and agents
connected with diverse governmentality domains. I analyse how people who should be pro-
tected by theses regimes feel fear of their effects because they provoke situations perceived as
violence and consider how fear is a central emotion mobilized element in the dissemination
of the anti-trafficking regimes. Finally, I show how the objects that incite fear have changed
along the years, exploring the relations between these alterations and the political fields that
these regimes integrate.
Keywords: human trafficking; emotions; fear; public policies; sexuality.
Miedo y trata de personas
Resumen: En este texto considero las conexiones entre el miedo y las políticas dirigidas a
enfrentar la trata de personas, a partir de una etnografía multi-situada realizada entre 2004
y 2015 en España y hasta el momento actual en Brasil. En los dos países el trabajo involucró
observación en diversos locales, situaciones y eventos y la interlocución con trabajadoras
sexuales, migrantes realizando servicios en diferentes sectores, empresarios de la industria
del sexo y agentes vinculados a diversas instancias de gobernamentalidad. A partir de esa
etnografía muestro como en los regímenes anti-trata las personas que deberían ser protegidas
sienten miedo de los efectos de esos regímenes que provocan situaciones percibidas como
violencia y considero como el miedo es una emoción central accionada en la diseminación de
los regímenes de combate a la trata de personas. Finalmente, muestro como los objetos que
provocan miedo han ido variando a lo largo del tempo, explorando las entre esas alteraciones
y los campos políticos de los que esos regímenes hacen parte.
Palabras-clave: trata de personas; emociones; miedo; políticas públicas; sexualidad.
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Medo e tráfico de pessoas
Apresentação
Neste texto considero a relação entre emoções e a formulação de políticas,
refletindo sobre as conexões entre o medo e as políticas voltadas para o combate
ao tráfico de pessoas.1 Analiso essa relação tomando como referencia o trabalho
etnográfico sobre os regimes de combate ao tráfico de pessoas que realizei na Espa-
nha e no Brasil. Refiro-me a esses regimes considerando a constelação de políticas,
normas, discursos, conhecimentos e leis sobre essa questão, formuladas no entre-
laçamento de planos supranacionais, internacionais, nacionais e locais.
Acompanhei a expansão desses regimes na Espanha entre 2004 e 2015, consi-
derando a inserção de trabalhadoras do sexo brasileiras na indústria do sexo nesse
país. Paralelamente, fui observando a conformação desses regimes no Brasil até o
momento atual. Iniciei esse percurso neste país quando começava a ser organizada
a arquitetura estatal para combater esse crime, concomitantemente com a ratifica-
ção do Protocolo de Palermo2 a principal disposição legal supranacional voltada
para o enfrentamento ao tráfico de pessoas.
As conexões que estabeleço neste artigo estão baseadas no diálogo entre pers-
pectivas acadêmicas críticas sobre os regimes de combate ao tráfico de pessoas e
material empírico. Essas perspectivas levam em conta os resultados de pesquisas
realizadas em diferentes partes do mundo a partir da década de 2000, comparan-
do os efeitos das ações anti-tráfico em lugares do mundo com diferentes políticas
migratórias, fluxos de população e modelos legais relativos à prostituição. Elas
problematizam os regimes anti-tráfico mostrando que utilizam uma linguagem de
proteção aos direitos humanos estimulando, paralelamente, ações que reprimem a
migração e a prostituição, inclusive em países nos quais ela não é ilegal, oferecen-
do pouca proteção às pessoas consideradas vítimas deste crime (Kempadoo, 2005;
Piscitelli, 2013).
1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Encontro da Associação Portuguesa de
Antropologia, 2019. Agradeço os generosos comentários e sugestões das organizadoras deste
dossiê, Maria Claudia Coelho e Iara Beleli e dos demais participantes.
2 Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transna-
cional relativo à Prevenção, repressão e Punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e
crianças, elaborado em 2000 e ratificado pelo Brasil em 2004.
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Um dos aspectos que chama a atenção nesses estudos é a continuidade, ao
longo das décadas, dos efeitos adversos dessas ações em termos de liberdades indi-
viduais e dos direitos dos migrantes, que tem sido tratados como “dano colateral”.
Refiro-me à restrição nas mobilidades; detenção de pessoas consideradas vítimas
de tráfico em centros para imigrantes; julgamento das supostas vítimas como mi-
grantes/trabalhadoras/es ilegais e inclusive sua repatriação forçada, chegando a
colocá-las em risco de vida (Global Alliance Against Traffic in Women, 2007;
Piscitelli e Lowenkron, 2015; Sharapov, Hoff e Gerasimov, 2019; Anistía Interna-
cional España, 2020).
O material empírico faz parte de um trabalho etnográfico multi-situado, de
longa duração, registrado em dezenas de diários de campo. Ele abrangeu a ob-
servação numa diversidade de locais, situações e eventos nos dois países. Contei
também com a interlocução de trabalhadoras sexuais, de migrantes que realiza-
vam serviços em diferentes setores de atividade, de empreendedores da indústria
do sexo e de agentes vinculados a diversas instâncias de governamentalidade. A
etnografia foi acompanhada por outros estudos realizados sobre a problemática
que ampliaram meus espaços de observação ao propiciar minha vinculação como
pesquisadora com instâncias do Estado brasileiro e supranacionais vinculadas às
Nações Unidas, o UNODC/ Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime e
a OIM/Organização Internacional para as Migrações. Parte do material foi colhi-
do coordenando pesquisas para o Ministério da Justiça do Brasil, em parceria com
esses organismos, e participando de eventos como integrante da Delegação Oficial
do Brasil no exterior. No momento em que elaborei a primeira versão deste texto
integrava o CONATRAP, a Comissão Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas no Brasil, ocupando uma das cadeiras destinadas à sociedade civil como
representante da Universidade.
Considerando as relações entre o medo e tráfico de pessoas levanto três pon-
tos. O primeiro remete a um aspecto paradoxal dos regimes anti-tráfico. As pes-
soas que supostamente deveriam ser protegidas por esses regimes sentem medo,
sobretudo, do perigo e as ameaças vinculadas aos efeitos dos regimes do combate
ao tráfico de pessoas, que provocam situações por elas percebidas por elas como
violência. O segundo ponto é que o medo é uma emoção central acionada na disse-
minação dos regimes de combate ao tráfico de pessoas. Finalmente, o último é que
os objetos que provocam medo não tem sido estáveis ao longo do tempo.
No período considerado, a vítima da exploração sexual continua sendo o em-
blema imaginário do tráfico de pessoas, mas coexiste com alterações que mantém
relações com modificações no campo político do qual esses regimes fazem parte.
Nesse sentido, o caso do Brasil oferece elementos “bons para pensar”. Neste país,
essas modificações estão vinculadas à alteração no foco das preocupações asso-
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ciadas à problemática, que coincide com a renovação do interesse pelas fronteiras
nacionais, principalmente a fronteira norte e uma intensificação da securitização.
Nesse processo, importantes instâncias governamentais tem combinado um dis-
curso anti-imigrante combinando o parcial abandono do marco retórico dos di-
reitos humanos com uma ressignificação dessa noção em relação ao combate ao
tráfico de pessoas.
Paradoxos
Na produção crítica sobre o tráfico de pessoas, hoje, quase 20 anos após a
formulação do Protocolo de Palermo, há uma convergência em considerar que essa
noção foi formulada na articulação entre os campos de segurança e migração e
que, embora utilize uma retórica de proteção aos direitos humanos, está sobretudo
voltado para a criminalização e repressão. Guilherme Dias Mansur (2014) observa
que a escolha de uma estrutura criminal para o tratamento de questões relaciona-
das à mobilidade humana tem reflexos no delineamento do enfoque e na aborda-
gem das políticas internacionais que tangenciam a questão migratória.
Concordo com isto, mas penso que no processo de expansão global dos regi-
mes de combate ao tráfico de pessoas as articulações entre a criminalização das
migrações e os regimes de combate ao tráfico de pessoas tem sido diferenciadas e
foram alterando-se em diferentes momentos, em função da posição geopolítica dos
países envolvidos e também do estatuto que neles foi sendo concedido aos diversos
fluxos de migração internacional. Nesse sentido, uma leitura comparativa contri-
bui para considerar as especificidades dessas alterações no Brasil.
Espanha é um dos países europeus nos quais os regimes de combate ao tráfico
de pessoas se disseminaram na imbricação entre políticas migratórias restritivas
e disposições legais voltadas para reprimir a prostituição. É um país considerado
como moderado, em termos de crimigrações (Guia e Pedroso, 2015), das políticas
nas quais leis criminais convergem com leis de imigração, com o objetivo de punir
e expulsar os imigrantes “construídos” como irregulares3. No entanto, o país está
marcado por um processo de securitização4 que não pode ser separado daquele
3 A ideia de crimigração remete à perda progressiva de direitos dos migrantes e à crescente
criminalização dos mesmos, com a aplicação simultânea da lei penal a migrantes (que não co-
meteram crimes) e da lei de imigração a condenados por crimes (com afastamento permanente
dos territórios onde estes condenados cometeram os crimes).
4 Refiro-me aos processos em que temas que, politizados passam a serem percebidos como
ameaças e questões de segurança (Viana e Silva, 2019), neste caso os fluxos de migrantes não
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que tem envolvido à União Europeia, produzindo a imigração de países pobres do
mundo como uma das principais ameaças. Nesse marco, a maior parte das “in-
frações” relativas à permanência irregular no Estado Espanhol são consideradas
graves; os migrantes irregulares estão sujeitos a multas e, além disso, podem ser
internados nos temidos Centros de Internamiento de Extranjeros/CIES, na fase
prévia à expulsão.
Nesse país, no período anterior à crise econômica que teve início em 2008/2009,
quando o país concentrava um dos mais elevados contingentes migratórios extra-
-comunitários na Europa, havia caçadas aos imigrantes irregulares em estações
de trem, rodoviárias, na saída do metro, até na porta de Igrejas. Nesse contexto,
brasileiras irregulares circulavam com medo das detenções, com pavor dos inter-
namentos nos CIES e das expulsões. Esse temor vinculado ao perigo e ao risco en-
volvido na circulação “sem papéis” era ainda mais intenso entre as brasileiras que
ofereciam serviços na indústria do sexo, em ocupações estigmatizadas e expostas,
por sua visibilidade, a maiores riscos. E observo que, nesse momento, as brasileiras
eram muito visíveis na florescente indústria do sexo desse país.
Durante a década de 2000, minhas entrevistadas percebiam a conexão entre
as detenções policiais e o seu estatuto migratório irregular. Uma mulher baiana
que oferecia serviços sexuais na rua, em Barcelona, narrava que a policia ia dia
após dia para o ponto dela, no Raval, região tradicional de prostituição no centro
dessa cidade. Segundo ela, quando os policiais calculavam que já fazia três meses
que alguma estrangeira estava ai, isto é, que o tempo legal de permanência conce-
dido aos turistas tinha expirado, a detinham, solicitando documentos. Quando a
conheci, ela já tinha sido detida, e recebido uma carta de expulsão, mas foi libera-
da. Continuava trabalhando em seu ponto de prostituição na rua, no Casco Antigo
de Barcelona, mas apavorada. Uns meses depois foi novamente detida, internada
num CIES e expulsa, sem possibilidade de levar nada com ela. A metade das bra-
sileiras que conheci nesses anos na Espanha, oferecendo serviços sexuais na rua,
foi expulsa do país.
Nesse período se considerava que 90% das prostitutas na Espanha eram mi-
grantes, a maioria delas em situação irregular. A retórica envolvendo os contro-
les em espaços voltados para a prostituição era a de proteção dessas migrantes,
expostas ao tráfico de pessoas com fins de exploração sexual. O Primeiro Plano
Espanhol de combate ao tráfico de pessoas, em vigor a partir de 2007 e as ações
policiais provocavam a impressão de que esse controle da prostituição respondia
desejados. Nesta acepção, os agentes securitizadores, atores que reivindicam a existência de
uma ameaça, podem ser o Estado, organizações, indivíduos, grupos transnacionais.
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a uma política coerente de repressão pois as supostas vítimas eram rapidamente
convertidas em migrantes irregulares a serem expulsas em processos percebidos
como extremamente violentos. Observo que penso na violência como uma catego-
ria descritiva, tomando em conta a sugestão de Veena Das (2008) de considerar o
que está em jogo quando algo é nomeado como violento. E a violência, entre essas
trabalhadoras não era vinculada aos clientes, nem às redes de tráfico de pessoas,
mas à policia. E a expulsão era para elas expressão máxima da violência.
Na metade da década de 2000, registros de organizações não governamentais,
no Brasil e na Espanha, descreviam episódios referendando essas percepções. Em
2005, a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventu-
de (ASBRAD), uma ONG que colaborava na recepção de pessoas deportadas em
Guarulhos, registrou queixas de maus tratos de brasileiras que foram “pegas” pela
policia espanhola quando estavam trabalhando como prostitutas. De acordo com
uma delas: “Ao ser encaminhada para a delegacia, sem dinheiro, foi espancada por
três pessoas, dois homens e uma mulher. Algemada, teve inclusive a cabeça pisada
por eles. Fizeram oferta para que ela cooperasse, mas ela já tinha conhecimento de
que outras mulheres que colaboraram foram deportadas”. 5
Minhas interlocutoras viam a violenta movimentação anti-tráfico como parte
de uma política para detectar e expulsar migrantes irregulares e para dificultar o
trabalho na prostituição. Ao mesmo tempo, consideravam que a policia não prote-
gia as mulheres que eram realmente “escravas”, categoria que associavam sobretu-
do a nigerianas e a algumas nacionalidades do Leste Europeu.
ONGs na Espanha afirmavam que não havia proteção do governo para aque-
las mulheres que, em grave situação de privação da liberdade, entravam em contato
com elas dispostas a denunciar os traficantes.6 E agentes da polícia de estrangeiros
explicavam as expulsões afirmando que só podiam tratar as pessoas como vítimas
de tráfico e, portanto, protegê-las, quando elas denunciavam os traficantes7. Entre-
tanto, elas deviam denunciar “redes organizadas”, pois a lei que podia interromper
a expulsão8 referia-se à “colaboração contra redes organizadas. Já nesse momento
5 Trecho de relatório baseado em depoimento de deportada brasileira atendida pela organiza-
ção não governamental ASBRAD em Guarulhos, 13/06/2005. Agradeço a Dalila Figueiredo
ter me facilitado esse material.
6 Comunicação de AMBIT DONA, organização não governamental que apoia trabalhadoras
do sexo em Barcelona, em entrevista realizada em setembro de 2005.
7 Comunicação pessoal de agente vinculado à polícia de Espanha, durante o Seminário de For-
mação em Combate ao Tráfico Internacional de Seres Humanos. Auditório do Cedim, 27 de
junho de 2005, Rio de Janeiro.
8 Lei Orgánica 4, artigo 59, de 2000.
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estava claro que parte significativa desses movimentos migratórios era realizada
através de redes informais e não de redes criminosas organizadas. E o recente re-
latório de Anistia Internacional da Espanha (2020)9 sobre o combate ao tráfico de
pessoas nesse país impressiona por assinalar continuidades com as características
desse enfrentamento que apontei dez anos antes estudando a situação de brasilei-
ras migrantes nesse país. Acho, porém, que o Brasil oferece um contraponto mar-
cado por descontinuidades.
Uma leitura de como tem operado os regimes de combate ao tráfico de pessoas
em países europeus, sugere que esses regimes foram engendrados, no âmbito das
Nações Unidas, numa articulação com medidas de securitização e se expandiram
articulados à criminalização das migrações. Mas, acompanhar o desenvolvimento
destes regimes em países fora da Europa mostra que eles seguiram caminhos diver-
sificados e nem sempre vinculados à repressão à imigração irregular. Esse é o caso
de Argentina, na América Latina, no qual o combate ao tráfico de pessoas tem es-
tado inteiramente voltado para uma cruel repressão à prostituição e, recentemente,
para o controle da circulação dos jovens dentro do país, a partir de relações esta-
belecidas no debate público entre tráfico de pessoas e desaparições (Varela, 2013).
Nesse sentido, o caso do Brasil mostra aspectos diferenciados. Neste país a
agenda do tráfico de pessoas foi engendrada de fora para dentro, num processo
estimulado por demandas externas, supranacionais e internacionais, a partir do
Escritório de Nações Unidas para Drogas e Crime, a Organização dos Estados
Americanos, a Organização Internacional do Trabalho, e o governo dos Estados
Unidos. A partir da ratificação do Protocolo de Palermo, a agenda pública de com-
bate ao tráfico de pessoas tem estado marcada por uma heterogeneidade de noções
e posições, vinculada, em parte à participação de diferentes grupos de interesse
que foram envolvendo-se no debate, por diversas compreensões da problemática
do tráfico de pessoas e diferentes atuações estatais que foram variando ao longo
do tempo.
A intensificação do debate sobre o tema coincidiu com uma fase de incremento
da emigração brasileira para nações “ricas”10. Nesse momento adquiriram visibili-
dade os deslocamentos para trabalhar na indústria do sexo no exterior, principal-
9 O relatório denuncia que as autoridades espanholas priorizam o controle da imigração e não
a atenção às vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, que elas são vistas como provas
para a investigação e não como pessoas que precisam de proteção. Também assinala que das
75.000 pessoas que, segundo o governo, estavam em risco de tráfico para exploração sexual
entre 2013 e 2019, apenas 1000 foram identificadas como vítimas, isto é, como pessoas com
direito a proteção.
10 Em termos do tráfico interno, ou doméstico, a principal preocupação estava voltada para o
tráfico associado à exploração sexual de crianças e adolescentes.
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mente na Europa. A maior parte das estratégias políticas nacionais anti-tráfico foi
desenvolvida a partir de projetos de cooperação internacional voltados sobretudo
para a prevenção e o controle da emigração de brasileiras/os para o exterior pro-
movidos e, em grande parte, financiados por agências multilaterais e organizações
internacionais dos países do Norte11. Nesse marco, nesse período, ações policiais
“preventivas” incluíram medidas que interferiram na mobilidade de brasileiras
consideradas pobres, racializadas, e tidas como potenciais prostitutas ao exterior.
Essas ações sugerem que, acionando a retórica de proteção das vítimas brasileiras,
o país estava respondendo a demandas de processos de securitização externos,
visando a defender as fronteiras europeias. Essas atuações policiais foram acompa-
nhadas por intensas ações repressivas à prostituição no país (Blanchette, Murray
e Luvolo, 2014).
Esse processo foi legitimado e alimentado acionando uma dimensão coletiva
e cíclica (Delumeau, 2012) do medo. Evocando os perigos associados ao tráfico de
mulheres, no passado, em outro período marcado pela intensificação da migração,
(Schetini, 2006), esse medo esteve associado, sobretudo, aos riscos envolvendo as
mulheres tidas como vulneráveis ao tráfico com fins de exploração sexual.
Medo e sensibilização em relação às vítimas de tráfico de pessoas
Em 2004, quando o Brasil ratificou o Protocolo de Palermo, estava em curso
uma importante fase em termos da conformação dos regimes anti-tráfico no país.
Nela foi organizada a arquitetura estatal voltada para o combate a esse crime. O
Ministério de Justiça e diversos estados criaram unidades anti-tráfico. Foi formula-
da a Política Nacional de Enfrentamento ao Tfico de pessoas e preparados os pri-
meiros planos de trabalho. Paralelamente foram estabelecidas parcerias com agên-
cias multilaterais e com a sociedade civil. Nesse processo, diversas instâncias de
governamentalidade foram gradualmente integrando-se nos regimes anti-tráfico,
incluindo organizações não governamentais e articulações religiosas, católicas e
evangélicas. Nesse âmbito, houve um substantivo investimento em eventos, cursos
e campanhas voltados para a disseminação da preocupação sobre a problemática.
11 Como o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC) e a organização
europeia ICMPD (International Centre for Migration Policy Development). Um dos princi-
pais financiadores destes projetos é a Comissão Europeia, uma das principais instituições da
União Europeia. O recente interesse desses financiadores nas fronteiras brasileiras e as linhas
dos projetos que apoiam sugerem, porém, que há um crescente interesse nessas políticas no
ingresso de imigrantes estrangeiros.
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O termo utilizado para referir-se a essas campanhas no âmbito público foi
“sensibilização”, uma palavra que remete à ativação de afetos e valores. Esse entre-
laçamento, de acordo com Fassin (2014), acompanha a expansão do discurso dos
direitos humanos como questão moral nas sociedades contemporâneas. Trata-se
de uma questão configurada por diversas camadas de significado, na convergência
entre preocupações éticas e imagens, termos e palavras recorrentes. Blanchette e
da Silva (2018) chamam a atenção para a relevância da mídia nesse processo, no
Brasil. De acordo com os autores, nesse momento, com poucos casos revelados, o
tráfico parece ter sido socialmente construído como fenômeno midiático.
Nesse movimento, o tráfico com fins de exploração sexual adquiriu particular
relevância. O crime de tráfico de pessoas, de acordo com o Protocolo de Palermo
e, a partir de 2016, com a nova lei de tráfico brasileira12, envolve o deslocamento
mediante ameaça, coação, fraude ou abuso com fins de exploração em diferentes
atividades, em regime de servidão, trabalho em condições análogas à escravidão,
exploração sexual, além da extração de órgãos e adoção ilegal. A partir dessa
formulação, no Brasil, o elevado número de casos de trabalho em condições análo-
gas à de escravo envolvendo sobretudo homens, vem modificando os dados sobre
o sexo das vítimas. Entre 2018 e 2020, os dados da Polícia Federal indicam que
63,5% das vítimas eram homens, 20,6% mulheres e16% crianças (MJSP, 2021).
No entanto, a mulher vítima de exploração sexual tem mantido um lugar estável
como emblema imaginário desse crime. Uma imagem em uma matéria da mídia
publicada em 2022, mostrando as pernas de uma mulher de saltos altos e acor-
rentada nos tornozelos, aludindo a trabalho em condições análogas à escravidão
de homens contratados mediante fraude no Maranhão para trabalharem como
carpinteiros no Rio Grande do Sul oferece um exemplo.13
A centralidade dessa imagem nas campanhas no Brasil replica a relevância a
ela concedida no plano internacional (Sharapov, Hoff e Gerasimov, 2019). Talvez
porque, como em campanhas voltadas para outros crimes vinculados à violência
sexual, acione uma ideia de vulnerabilidade eficaz em termos do acionamento das
emoções que viabilizam a constituição de uma causa social (Lowenkron, 2015).
Nas emoções acionadas no combate ao tráfico de pessoas, o medo adquire um
lugar de destaque.
12 Lei 13.344, sancionada em outubro de 2016.
13 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-02/pf-deflagra-operacao-fal-
sas-promessas-para-combater-trafico-de-pessoas#:~:text=Publicado%20em%20
09%2F02%2F2022,no%20Rio%20Grande%20do%20Sul.&text=Para%20enganar%20
as%20v%C3%ADtimas%2C%20os,contrato%20ainda%20em%20solo%20maranhense,
consultado em 10 de fevereiro, 2022.
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Em seu belo livro sobre a invenção dos direitos humanos Hunt (2009), ressalta
que a expansão desse ideário está vinculada a uma educação sentimental, iniciada
em países europeus na segunda metade do século XVIII com a difusão dos roman-
ces. Essa educação suscitaria empatia, uma prática cultural incorporada em dimen-
sões físicas e emocionais, permitindo imaginar que outra pessoa é como nós. Nesse
ponto vale considerar as reflexões de Rorty (1995) sobre a relação entre a “cultura
eurocêntrica dos direitos humanos” e a educação associada à escuta de narrativas
tristes e sentimentais. Para o autor promover essa educação sentimental é impor-
tante para expandir o ideário dos direitos humanos no momento atual, porque ela
contribui para dotar os “outros” de humanidade. Ela possibilitaria que as pessoas
acreditem que aqueles percebidos como diferentes são seres humanos, semelhantes.
Essas narrativas manipulariam os sentimentos de maneira que ao ouvir essas histó-
rias fosse possível imaginar estar na pele dos menosprezados e oprimidos.
Essa proposta foi amplamente acionada nas campanhas pedagógicas de sen-
sibilização em relação ao tráfico de pessoas no Brasil. Nesse movimento, o medo
aparece de maneira evidente nas alusões ao tráfico com fins de exploração sexual,
associado a noções de perigo e risco (Rezende e Coelho, 2010) que ameaçam so-
bretudo às mulheres e é materializado na imagem da vítima desse crime. Várias
análises foram realizadas sobre as imagens mediante as quais essa figura é difun-
dida, utilizadas principalmente em campanhas preventivas, com o duplo objetivo
de sensibilizar a população para esse drama e de alertá-la para o perigo que ele
apresenta (Blanchette e Silva, 2018).
Na história recente da constituição dos regimes de combate ao tráfico de pessoas
no Brasil, há imagens aludindo a esse crime anteriores à criação da arquitetura es-
tatal para combate-lo. Uma primeira série foi produzida por ONGs feministas. São
imagens racializadas que acompanham histórias com o fim de alertar as mulheres
envolvidas no turismo sexual dos perigos de tráfico de pessoas presentes nos relacio-
namentos com estrangeiros. No entanto, esse perigo é destacado de maneira lúdica.
Imagem produzida por uma ONG do Nordeste na década de 1990
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O teor das imagens passou por alterações radicais no âmbito da conformação
e consolidação do que Blanchette e da Silva (2018) chamam de campo político
anti-tráfico. A partir de 2004/2005 e até a metade da década de 2010, parte das
imagens que tem circulado no Brasil, produzidas no país e no exterior, apresen-
tam aspectos reiterativos14, o que faz sentido considerando, como afirmam esses
autores, que muitas dessas imagens são recicladas por várias organizações desse
campo. Trata-se de imagens de corpos feminilizados que evocam a ideia de prisão,
escravização, mercantilização, impotência, desamparo e incapacidade de reagir.
Pode ser uma mulher amordaçada, prisioneira dentro de uma mala, atrás de grades
ou amarrada com correntes ou a imagem de uma mulher de tamanho minúscu-
lo, sendo vendida como um produto de super-mercado. O corpo feminino, como
objeto semiótico, aciona a capacidade generalizada que o corpo tem de suscitar
identificação com outros corpos que, segundo French (1994), o torna um poderoso
instrumento de identificação. A sensibilização é intensificada pelas alusões à impo-
tência e ao medo sentido pelas vítimas, que se evidencia nas posturas corporais, na
expressão dos rostos e à dor, visível em suas lágrimas.
14 A partir desse período as imagens produzidas pelo Ministério da Justiça se tornaram mais
diversificadas em termos de gênero e se distanciam dessas características, no entanto, ima-
gens análogas às descritas continuam sendo produzidas por outras instâncias governamen-
tais. Para uma análise detalhada dessas imagens no Brasil ver: Blanchette e Da Silva, 2018.
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Essa feminilização, porém, tem sido muitas vezes produzida através de uma sig-
nificativa sexualização dos corpos, um procedimento visível no âmbito global. Uma
análise interessante sobre essas figuras foi realizada por Rutvica Andrijasevic que,
considerando as técnicas utilizadas nas campanhas da Organização Internacional
das Migrações no leste de Europa no início da década de 2000, identifica estratégias
representacionais e elementos comuns que, observo, são reiterados até hoje.
A autora chama a atenção para como construções altamente estereotipadas
de feminilidade acompanham uma intensa erotização dos corpos femininos. Seu
argumento é que as representações da violência são violentas em si mesmas pois,
apresentando uma ideia de feminino vinculada a um objeto passivo, confirmam os
estereótipos existentes sobre as mulheres do Leste Europeu. Além disso, separam
os corpos dos contextos históricos nos quais o tráfico tem lugar.
Um ponto a ser destacado é que na tentativa de produzir medo alertando
para o perigo, essas imagens apresentam um aspecto recorrente na construção de
causas que utilizam de alguma maneira a pornografia para provocar um impacto
emotivo através da utilização de imagens (Lowenkron, 2015). O paradoxal é que
a obscenidade que se busca controlar e reprimir e que dota as imagens de certa
ambiguidade, se torna a principal estratégia de sensibilização para a causa. No
caso do combate ao tráfico de pessoas com fins de exploração sexual essas imagens
circulam em um campo político que aciona o sofrimento para suscitar compaixão
e indignação, promovendo a construção da causa. E a evocação de corpos mudos,
indefesos e violados apela, nos termos de Sabsay (2016) a respostas afetivas.
Nesse sentido, o episódio que presenciei em um seminário governamental15 em
Goiânia em 2012 é significativo. Desde o início foi anunciado ao público que na
plateia estava presente o pai de uma mulher considerada uma das primeiras brasi-
leiras assassinadas na Espanha pelas redes de tráfico, 20 anos antes, num hospital
15 Simpósio Internacional sobre Tráfico de Pessoas, Auditório da Associação dos Magistrados
do Estado de Goiás (Asmego), Goiânia, 18/05/2012.
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de Bilbao, segundo o laudo, por overdose de medicamentos. Na parte final do
evento, o senhor, um músico então com 77 anos foi chamado ao microfone. Com
voz trêmula, narrou detalhadamente a história de enganos e maus tratos aos quais
foi submetida a filha.
Ele perguntou: “Por que minha filha sofreu tanto? E acionando noções de fe-
minilidade relacionais tidas como positivas comentou: “Todo dia nossas meninas,
filhas e mães, seguem sendo maltratadas e abandonadas no exterior; enquanto
aqui recebemos as pessoas de fora tão bem! Nossas meninas são mães, são filhas,
e nasceram para serem companheiras dos homens, não para serem humilhadas”.
O acionamento desses atributos é significativo considerando, como observam Re-
zende e Coelho (2010)16, que a lógica regendo o dar e receber compaixão em certos
contextos segue o critério da responsabilidade pelo infortúnio e cria fronteiras
morais entre aqueles representados como merecedores de compaixão e os conside-
rados como responsáveis por suas desventuras.
Quando a plateia já estava bastante comovida, o senhor pediu licença para
cantar uma música em homenagem à filha. Era uma música popular brasileira que
repetia o nome de uma mulher. Ele cantava trocando esse nome pelo da filha. E
cada vez que tentava dizê-lo, a voz quebrava, arrancando lágrimas de muitas das
pessoas que lá estavam ouvindo. Uma das organizadoras do evento comentou que
ao chegar nessa parte ela sempre se emocionava, aludindo à reiteração dessa per-
formance emocional e, simultaneamente, à sua eficácia.
Este relato remete à importância adquirida pelo testemunho pessoal que, se-
gundo Jimeno (2010), numa linguagem eminentemente emocional, cria laços entre
pessoas diversas. Ele teria efeitos políticos, como mediador simbólico entre expe-
riência subjetiva e generalização social. Na disseminação dos regimes de combate
ao tráfico de pessoas, principalmente do tráfico com fins de exploração sexual,
esse efeito é produzido acionando o medo, que faz parte de uma trama de emoções
mais ampla, em uma pedagogia política dos sentimentos.
Trabalhos recentes apontam para a ineficácia dessas narrativas em termos de
evitar ou diminuir o tráfico de pessoas (Sharapov, Hoff e Gerasimov, 2019). Os
motivos são diversos. Esses relatos, disseminados também em filmes e até em jogos
de computador (O’Brien e Berent, 2019), tendem a ser simplificados e universali-
zantes, apresentando apenas um tipo de tráfico, com fins de exploração sexual,
uma única situação, de aprisionamento, e um modelo de vítima, feminina, estere-
otipada e carente de agência. Paralelamente, a linguagem da compaixão obscurece
as circunstâncias materiais e as estruturas de poder que envolvem a problemática
16 Seguindo as formulações de Candace Clark.
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(French, 1994). Finalmente, os relatos que suscitam indignação, dividindo os pro-
tagonistas em vítimas e algozes, estão distantes de mostrar que o tráfico humano
é, antes que nada, um problema vinculado à (in)justiça social e econômica e aos
direitos humanos, profundamente ancorado no passado colonial. E, no momento
atual, está sustentado por estruturas neoliberais de exploração e por pesadas e
violentas restrições nas liberdades individuais.
Nesse ponto, Sharapov, Hoff e Gerasimov (2019), dão o exemplo da imagem
de mulheres e meninas amarradas no assento traseiro de um carro, com as bocas
tampadas, utilizada para consolidar o imaginário público de uma emergência na-
cional na fronteira entre Estados Unidos e México. Os autores chamam a atenção
para a importância de perceber como essas narrativas são produzidas e manipu-
ladas por agentes com posições de poder político e econômico para desenhar a
agenda de combate a esse crime. Nesse caso, o objetivo seria garantir apoio públi-
co e fundos para erigir o muro na fronteira, protegendo o país de uma invasão de
migrantes da América Latina em busca de asilo.
Securitização
O período recente apresenta no Brasil um quadro particular, no qual vemos
acionar outra dimensão do medo no combate ao tráfico de pessoas, vinculado
à securitização no plano nacional. Ao longo dos anos, no Brasil, os regimes de
combate ao tráfico de pessoas tem acionado uma constante repressão ao sexo co-
mercial e, a partir da formulação da nova lei do tráfico, vinculando-o ao trabalho
em condições análogas à escravidão. Paralelamente, esses regimes se disseminaram
chegando até lugares considerados remotos e respondendo cada vez mais a lógicas
locais e aos interesses de diferentes agentes, em processos nos quais a linguagem
do tráfico foi sendo apropriada de maneiras diversificadas. Nesse processo, um
dos traços marcantes dessa disseminação, a partir da década de 2010, é a vin-
culação desse crime com a migração chegando ao Brasil. Essa inquietação esteve
voltada sobretudo para os riscos apresentados por migrantes originários de partes
“pobres” do mundo com destaque, em certo momento, para o Haiti e depois para
Venezuela. Nesse contexto, o controle das fronteiras foi adquirindo crescente rele-
vância em planos locais (Olivar, 2015) e estatais.
A reelaboração do interesse nas fronteiras tornou-se visível em novos esforços
estatais voltados para a gestão de circulação e trânsito entre países vizinhos, par-
ticularmente na região amazónica, por onde tem chegado fluxos de migrantes não
desejados, marcada por um discurso que considera a suposta ausência do Estado
um fator que torna as populações locais mais vulneráveis ao tráfico de pessoas. Isto
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se acentuou no momento de migração massiva de venezuelanos, fugindo da crise
em seu país. Cidades no Norte do Brasil, como Boa Vista, passaram a ser conside-
radas como em emergência social, devido ao elevado número de venezuelanos e ao
crescimento de demandas em saúde e apoio social. E a mídia alimentou a xenofobia
destacando que muitos se tornavam sem-teto, e alguns “recorreriam a crimes, como
a prostituição, acrescentando problemas com a lei aos desafios sociais17.
Nesse contexto, o debate sobre tráfico de pessoas continuou se disseminando
a partir de setores do Estado18 envolvidos em medidas e planos para o fortaleci-
mento da prevenção, do controle, da fiscalização e da repressão aos delitos
transfronteiriços.19 Levando em conta que a preocupação pela ameaça migratória
é muitas vezes associada a linhas de extrema direita (Brown, 2020), é importante
assinalar que no Brasil a re-elaboração da preocupação pelas fronteiras foi mate-
rializada no governo da presidenta eleita Dilma Roussef, do Partido dos Trabalha-
dores, na implantação do Programa de Estratégia Nacional de Segurança Pública
nas Fronteiras/ENAFRON, em 201120, operacionalizado nos 11 estados brasileiros
que fazem fronteira com países de América do Sul21.
O decreto de instituição desse programa alude aos delitos transfronteiriços e
praticados na faixa de fronteira brasileira, sem mencionar nenhum deles de manei-
ra específica22. No entanto, o combate ao tráfico de pessoas em regiões de frontei-
ra, uma antiga reivindicação de organizações governamentais e de instâncias do
17 ESPECIAL-Onda de imigrantes da Venezuela pode gerar crise humanitária em Roraima,
11/12/2015, in : https://www.terra.com.br/noticias/mundo/especial-onda-de-imigrantes-da-
venezuela-pode-gerar-crise-humanitaria-em-roraima,7aa52e6c403185aabae4a38c8b3617c9
8oyyfg1o.html
18 Ver declarações de Alexandre de Morais, na Istoé 16/11/2016
19 Nesse contexto, reapareceram com força as instâncias supra-nacionais para reforçar a atua-
ção do governo brasileiro no combate ao tráfico de pessoas. Em abril de 2017, foi lançada a
Ação Global para Prevenir e Combater o Tráfico de Pessoas e o Contrabando de Migrantes,
a GLO.ACT, que é uma iniciativa conjunta da União Europeia e do Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), em parceria com a Organização Internacional para
as Migrações (OIM) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e que visa a
reforçar a resposta da justiça penal em 13 países de África, Ásia, Europa Oriental e na Améri-
ca Latina, no Brasil e na Colômbia, Bielorrússia, Brasil, Colômbia, Egito, Quirguistão, Mali,
Marrocos, Nepal, Nigéria, Paquistão, República Democrática Popular do Laos e Ucrânia.
20 DECRETO Nº 7.496, DE 8 DE JUNHO DE 2011. Esse Programa foi substituído no atual
governo pelo Programa de Proteção Integrada de Fronteiras DECRETO Nº 8.903, DE 16 DE
NOVEMBRO DE 2016
21 Argentina, Paraguai e Uruguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e
Guiana Francesa.
22 O Programa refere-se especificamente à prevenção, controle, fiscalização e repressão dos de-
litos transfronteiriços e dos delitos praticados na faixa de fronteira brasileira.
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governo vinculadas à defesa dos direitos humanos, adquiriu relevância no âmbito
desse programa. Ele se tornou objeto de um projeto pedagógico específico23, que é
interessante mostrando como, na implantação do ENAFRON, a securitização se
articulou com os empreendimentos humanitários.
Esses empreendimentos tem sido questionados considerando que demandam
ajuda para compensar a penúria e violência às quais estão sujeitas certas popula-
ções, mas contribuem de maneira indireta para a perpetuação de um ciclo vicioso.
Nos termos de Sabsay (2016), isto acontece porque o humanitarismo não questiona
as causas que produzem distribuições diferenciadas de vulnerabilidades. No lugar
de questionar essas distribuições em termos políticos, ele moraliza as demandas de
ajuda através do apelo ao sofrimento das vítimas. O efeito é despolitizar situações
de potencial demanda por direitos, transformando-as em necessidades humanas que
requerem gestos de caridade e bem feitores. E, o que é mais grave, o humanitarismo
pode participar na expansão do poder exercido sobre as populações declaradas em
necessidade de proteção, porque a vulnerabilidade atribuída a essas populações se
torno o terreno de sua regulação e controle. Este último ponto se torna evidente
quando o problema em termos de securitização é a ameaça migratória.
O projeto pedagógico vinculado ao ENAFRON oferece carne empírica para
mostrar essa ambiguidade que marca a articulação entre securitização e humanita-
rismo. A lógica da securitização alimenta o projeto, no qual o tráfico de pessoas é
apresentado como um dos “conflitos” inerentes às fronteiras. Conjuntamente com
o tráfico de drogas e de armas e o contrabando de pessoas, conformaria as “vul-
nerabilidades” inseparáveis das fronteiras em um contexto de migrações regidas
pela lógica do processo de globalização. Para responder a essas vulnerabilidades, o
projeto apresenta traços humanitários, na medida em que está voltado para reco-
nhecer, identificar e encaminhar vítimas e potenciais vítimas do tráfico de pessoas.
A questão é que, embora se reconheça as vítimas como sujeitos de direitos, o pro-
jeto está voltado para as necessidades da segurança pública, como a identificação
dos crimes conexos ao tráfico de pessoas, para a consideração dos requisitos legais
que tornam os testemunhos de valor probatório e para as técnicas especiais de in-
teligência aplicadas na investigação de organizações criminosas.
No período pós-impeachment da presidenta Dilma, foi implementado um
novo programa integrado de proteção das fronteiras,24 para fortalecer a preven-
23 Ver: Projeto pedagógico de curso de enfrentamento ao tráfico de pessoas para o Plano Nacio-
nal de Fronteira – ENAFRON, Brasília, 2013, in: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-
-protecao/trafico-de-pessoas/formacao-em-etp/anexos/proj-pedag-enafron.pdf, consultado
em março de 2022.
24 DECRETO Nº-8.903, DE 16 DE NOVEMBRO DE 2016
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ção, o controle e a repressão de crimes transfronteiriços25. Um ponto importante
é que ele não aparece vinculado às preocupações de proteção das vítimas de seres
humanos que permearam a versão anterior. Nesse contexto, o discurso público go-
vernamental sobre tráfico de pessoas centrado nas fronteiras foi tomando distancia
da retórica dos direitos humanos diluindo as ambiguidades entre securitização e
humanitarismo, em um procedimento no qual a securitização tende a operar como
termo inteiramente englobante.
Alguns exemplos dessa diluição são oferecidos pela apresentação, no discurso
público de certas entidades do Estado, da luta contra os crimes na fronteira como
o principal aspecto vinculado ao tráfico de seres humanos no país. Nesse senti-
do, o discurso público governamental das ações dos Programas nas fronteiras é
sugestivo. Uns anos atrás, instâncias do governo brasileiro afirmavam o caráter
humanitário e de defesa dos direitos humanos das vítimas presente nas políticas
do combate ao tráfico de pessoas no país, contrastando positivamente essas polí-
ticas em relação às dos países do Norte Global. Mas, ao tratar da segurança nas
fronteiras, as apresentações públicas dos discursos governamentais e as imagens
que acompanham esses textos remetem sobretudo à ideia de combate, de guerra.
Escolhi uma, entre as muitas matérias da mídia digital relacionadas ao Pro-
grama de Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (Enafron) que
remetem a diferentes ações das unidades especializadas de Fronteira no país. 26. Ela
se refere à 11ª. versão da Operação Ágata na Amazônia brasileira, realizada em
junho de 201627. Segundo a matéria à qual ela está vinculada, essa versão teve a
particularidade de integrar, além das Forças Armadas brasileiras, as forças milita-
res da Guiana Inglesa e da Venezuela. De acordo com ela, o comandante Militar
da Amazônia destacou a importância da parceria e o fortalecimento das ações de
fiscalização nas áreas de fronteira afirmando que: “O ilícito, o crime e o mal não
tem bandeira”. 28 E a imagem mostra diversos policiais armados rendendo um civil
sem camisa.
25 Ver declarações de Alexandre de Morais, na Istoé 16/11/2016
26 Essas capacitações são desenvolvidas pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp),
através do Programa Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (Enafron), com
apoio do Departamento de Pesquisa, Análise de Informação e Desenvolvimento de Pessoal em
Segurança Pública.
27 http://www.amazonianarede.com.br/exercito-brasileiro-faz-mais-uma-operacao-agata-nas-
-fronteiras/14/06/2016
28 Forças Armadas ocupam Amazônia durante a Operação Ágata 11 | Cotidiano | Acritica.com
| Amazônia – Amazonas – Manaus, 18/06/2016
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Operação Ágata na Amazônia brasileira, junho de 2016
A tendência a desvincular a retórica da proteção dos direitos humanos do
combate aos ilícitos transfronteirizos intensificou-se no atual governo, acentuan-
do-se durante a pandemia de COVID-19, no âmbito do Programa Nacional de Se-
gurança nas Fronteiras e Divisas (VIGIA). Trata-se de um dos projetos estratégicos
do Ministério da Justiça e Segurança Pública, instaurado em abril de 2019, com
o fim de reduzir a vitalidade financeira das organizações criminosas. Ele mostra
como, desde março de 2020 o processo de securitização articulou oficialmente
preocupações sanitárias, uma vez que a retórica do enfrentamento à disseminação
do novo coronavírus envolveu barreiras sanitárias em cidades fronteiriças, com
restrições de entradas no país29.
As apresentações públicas dos discursos governamentais sobre as fronteiras
continuam marcadas pela ideia de guerra, com militares vestindo roupas verdes
de camuflagem e portando armas de maneira ostensiva. Trata-se dos registros de
ações contra o crime organizado, especialmente contra o tráfico de entorpecentes,
percebido com intensificando-se durante a pandemia. De acordo com um dos mi-
litares entrevistados em uma matéria sobre o tema: “mula não faz quarentena.30
Essa ideia é referendada pela segunda imagem que escolhi, mostrando duas
pessoas camufladas e armadas, apontando para um alvo. Ela acompanha uma
29 Ministério de Justiça e Segurança Pública: Vigia: Programa Nacional de Segurança nas Fron-
teiras e Divisas complete um ano de atuação com resultados expressivos, 14/04/2020. In: v.br/
mj/pt-br/assuntos/noticias/vigia-programa-nacional-de-seguranca-nas-fronteiras-e-divisas-
-completa-um-ano-de-atuacao-com-resultados-expressivos-1
30 Fábio Pontes. “Questões da fronteira. Mula não faz quarentena” Em tempos de epidemia,
fronteira fechada no Acre reduz,mas não interrompe tráfico de drogas. Piauí. 28/04/2020, in:
https://piaui.folha.uol.com.br/mula-nao-faz-quarentena/ consultado em agosto de 2020.
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matéria disseminada pela Secretaria de Segurança Pública do Paraná anunciando
o encerramento de um ciclo de cursos pelo Batalhão de Polícia de Fronteira em
novembro de 2020. Esse treinamento constante seria necessário por conta da re-
gião ser um ponto de constantes operações contra crimes transfronteirizos31.
Nesse destaque à repressão ao crime, a retórica humanitária não tem desapa-
recido completamente. Ela aparece na proposta de combater ao tráfico de pessoas
nas fronteiras, apoiada pelo Escritório de Nações Unidas contra as Drogas e o
Crime, apresentada como forma de repressão à exploração de venezuelanos32. E é
também registrada aludindo à ação militar na Operação Acolhida, que organiza
a chegada de venezuelanos pela fronteira de Pacaraima, no estado de Roraima e a
interiorização desses migrantes e é coordenada pelo governo federal, com apoio de
entidades sociais (Vasconcelos, 2020). Apesar disso, a forte marca da noção de di-
reitos humanos no combate ao tráfico de pessoas parece dissolver-se gradualmente
em um contexto político no qual, como observa Gabriel Feltran (2020), a disputa
pela hegemonia da extrema direita no país envolve o ataque a direitos, inclusive
básicos. E esse ataque coexiste com uma exacerbação do caráter problemático atri-
buído aos estrangeiros de regiões “pobres”.
31 Secretaria de Segurança Pública, Polícia Militar. BPFron conclui ciclo de capacitações com en-
cerramento da 8 a edição da INC-FRON. 10/11/2020https://www.seguranca.pr.gov.br/Noti-
cia/BPFron-conclui-ciclo-de-capacitacoes-com-encerramento-da-8a-edicao-da-INC-FRON
32 UNODC: Programa TRACK4TIP, iniciativa de combate ao tráfico de pessoas, in: http://
www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/programa-track4tip.html, consultado em
novembro, 2020.
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O sugestivo destas imagens, quando comparadas com as das vítimas de tráfico
com fins de exploração sexual é que elas acionam uma dimensão do medo distan-
ciada das vítimas e inteiramente vinculada aos invasores, aos “outros” que che-
gam através da fronteira, que devem ser controlados mediante a guerra. Vale aqui
pensar no medo, nos termos de Sara Ahmed, como uma política afetiva que visa
“preservar” através do anúncio de uma ameaça à vida, não já daquelas “meninas
vulneráveis, mas da nação, e que possibilita perceber como as narrativas sobre a
crise operam para acionar as normas sociais. Sara Ahmed está pensando de ma-
neira específica na figura do terrorista internacional, mas poderíamos pensar na
figura dos indesejados invasores estrangeiros que chegam do país vizinho.
Considerações Finais
Neste texto mostrei como o medo, indissociavelmente vinculado ao contex-
to político de progressiva desestabilização de direitos, que aparece dissociado da
compaixão, parece operar como um indicador de uma virada política. Se até certo
momento o discurso público do Estado e os dos movimentos sociais convergiram,
nesse novo contexto político de progressiva desestabilização de direitos, que se
agudizou durante o atual governo, esses discursos divergem e o do Estado nos
conduz a perguntas diferentes das que teríamos colocados anos atrás. Quero dizer,
agora devemos nos perguntar quais serão os efeitos da operacionalização da luta
contra o tráfico de pessoas em um momento no qual, em certos âmbitos governa-
mentais, essa luta parece adquirir o significado principal de combater o crime nas
fronteiras, fora do parâmetro ambíguo da defesa dos direitos humanos.
No Brasil, como em outros países, pesquisadores críticos da expansão dos re-
gimes de combate ao tráfico de pessoas tem considerado os problemas vinculados
não apenas a esses regimes mas ao marco dos direitos humanos no mundo contem-
porâneo. A ideia é que, como observa Elizabeth Bernstein (2010), ele opera como
manifestação de um sistema de controle, disparado para reproduzir formas de
violência e no caso do tráfico de seres humanos, frequentemente traduzido como
prostituição, particularmente contra as mulheres e os seres feminilizados.
Até pouco tempo atrás, questionávamos a relação entre humanitarismo e se-
curitização, e a aliança entre o governo brasileiro e outros governos de “países
ricos”, tendo como referencia a violência a qual estavam sujeitas pessoas brasilei-
ras, ao serem impossibilitadas de embarcar para o exterior no Brasil e também ao
serem detidas por serem “vítimas” do tráfico de pessoas no exterior, como no caso
da Espanha, encarceradas, às vezes fisicamente maltratadas e depois deportadas.
No caso das regiões de fronteira, nos impressionava a escassa atenção gover-
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namental para as diversas dimensões de violência, marcada por gênero, etnicidade,
idade e nacionalidade. Uma violência que, na forma de estupro, se voltava para
meninas indígenas que se deslocavam às cidades e, na forma de violência obstétri-
ca, torturava estrangeiras, principalmente peruanas na fronteira Norte do Brasil,
que acudiam ao sistema único de saúde brasileiro.
Se a ênfase no tráfico de pessoas revestida de humanitarismo mostrou ter con-
tribuído para intensificar a violência em vários desses deslocamentos, a pergunta
é como operarão os regimes anti-tráfico alimentados por esta nova dimensão do
medo, distanciados dessa retórica, quando, em âmbitos estratégicos, esta luta pa-
rece adquirir o principal sentido de lutar contra o crime nas fronteiras, em conjun-
ção com os ataques dirigidos à nova lei de migração?
Recebido: 09/05/2022
Aceito para publicação: 17/08/2022
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... A nivel regional, la literatura reconoce la influencia de organismos internacionales como la Organización de Estados Americanos -OEA, Naciones Unidas, el gobierno de Estados Unidos y otros países del norte global en las políticas contra la trata de personas y tráfico de migrantes en América Latina (Montenegro 2021;Mansur 2015;Domenech 2013). Incluso se habla de agendas estatales construidas de afuera hacia adentro (Piscitelli 2022;Ruíz y Álvarez 2016). En esa tónica, en Ecuador los lineamientos de Palermo han trazado la ruta de políticas nacionales anti trata y tráfico y las leyes que las sustentan, según se aprecia en el Gráfico 1. ...
Chapter
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El Capítulo 2 refleja los resultado de la investigación cualitativa sobre la respuesta institucional ante la trata y tráfico de personas afectadas por el desplazamiento- PAPED en las ciudades de Cuenca y Guayaquil, en la cual se identifica y analiza las amenazas, factores de riesgo y dinámicas, que provocan o facilitan la vulneración de derechos y el delito de trata y tráfico de personas afectadas por el desplazamiento, particularmente en cuanto a la normativa y mecanismos de protección institucionales en los dos territorios de estudio. Se aplicó una metodología cualitativa que, entre otras herramientas aplica entrevistas en profundidad semiestructuradas dirigidas hacia funcionarias y funcionarios públicos locales encargados de atender la problemática —tanto a nivel de gestión como de persecución del delito— así como en análisis de la normativa local, políticas, planes y programas, y los datos cuantitativos disponibles. Los hallazgos fueron compartidos con investigadoras del IDEHPUC Perú, quienes desarrollaron la metodología base y ejecutaron el mismo estudio en el lado peruano. Entre los intercambios más interesantes se mencionan las similitudes en los dos estudios, en cuanto a la transferencia a terceros de tareas y responsabilidades de los Estados de Ecuador y Perú en la política de atención y protección a víctimas. En Ecuador las diferencias entre Cuenca y Guayaquil, se distinguen los contextos particulares de cada localidad de estudio, tanto en la manera cómo se entienden y producen la trata de personas y el tráfico de migrantes; así como en la forma que se implementa la política nacional en estas problemáticas a nivel local.
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The dominant anti-trafficking model operates within a criminal justice framework grounded in a rigid victim-perpetrator binary. This approach effectively absolves the state of any responsibility for the structural inequalities that undermine the rights and well-being of children and adolescents. This article examines the conditions that drive highly vulnerable girls and adolescents to see trafficking into prostitution as their only available option. These “most vulnerable victims” are exploited not only by traffickers—who profit from their abuse—but also by authorities, who often mistreat them for failing to embody the idealized image of an agencyless victim. Using a qualitative methodology based on in-depth interviews and chain-referral sampling, the study draws on the testimonies of 77 Central American migrant women who were trafficked as minors and exploited in the U.S. sex trade for an average of nearly seven years. Most were eventually freed through police raids. Paradoxically, many of these women described the authorities who rescued them as abusive and dehumanizing, while referring to the traffickers and club owners who exploited them as kind or humane. The findings suggest that age intersects with gender, class, national origin, and immigration status to shape how migrant girls and adolescents experience sexual exploitation. In many cases, this exploitation became—however paradoxically—a means of pursuing greater autonomy. As such, the current anti-trafficking framework fails to capture or address the complex realities faced by many underage migrant girls within the sex industry.
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In recent years, digital games have emerged as a new tool in human trafficking awareness-raising. These games reflect a trend towards ‘virtual humanitarianism’, utilising digital technologies to convey narratives of suffering with the aim of raising awareness about humanitarian issues. The creation of these games raises questions about whether new technologies will depict humanitarian problems in new ways, or simply perpetuate problematic stereotypes. This article examines three online games released in the last five years for the purpose of raising awareness about human trafficking. In analysing these games, we argue that the persistent tropes of ideal victims lacking in agency continue to dominate the narrative, with a focus on individualised problems rather than structural causes of human trafficking. However, the differing approaches taken by the games demonstrate the potential for complexity and nuance in storytelling through digital games.
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The focus of this issue of the Anti-Trafficking Review—public perceptions and responses to human trafficking—reflects the growing unease and disagreements among anti-trafficking practitioners and scholars about the current state of public awareness of human trafficking: how and by whom such awareness is produced and manipulated, whom it is targeting, and whether it leads, or can lead, to any meaningful anti-trafficking action. A central assumption in the anti-trafficking field is that the general public still lacks sufficient knowledge about human trafficking, and that creating more knowledge and awareness will lead to its reduction. However, there neither exists a common understanding of who should know what in order to achieve this goal, nor is there sufficient information available about the awareness of the general public or, especially, the impact of this awareness.
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O presente artigo analisa as imagens do tráfico de pessoas apresentadas pelas principais campanhas do Estado brasileiro e alguns de seus aliados mais importantes da sociedade civil, buscando entender como elas representam vítimas, algozes e a situação de tráfico em si, em suas tentativas de inculcar na sociedade brasileira uma cultura de “resistência à escravidão moderna” (termo émico constantemente empregado no campo antitráfico como sinônimo de tráfico), cujo componente mais importante tem sido a denúncia anônima de “pessoas suspeitas”. Criaremos uma tipografia ideal dessas imagens, dividindo-as em cinco iconografias e comparando-as com imagens semelhantes produzidas em contextos europeus e norte-americanos. Olharemos para as mudanças e permanências que aparecem nas campanhas brasileiras dos últimos anos, e analisaremos algumas das características específicas das campanhas brasileiras. Concluiremos nosso texto com uma breve discussão sobre os possíveis resultados colaterais de campanhas que se baseiam nesses tipos de iconografia.
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A condição jurídica de “Irregular” dos imigrantes na entrada e na permanência, em determinado país, é uma decisão de cada um dos Estados, que escolhem entre criminalizar e proibir esses comportamentos ou os integrar e “regularizar”, permitindo o seu acesso a (alguns) direitos dos nacionais. Nos últimos anos vários Estados dos EUA enveredaram por uma política pública de “crimigração” fazendo convergir a lei criminal com a lei de imigração com o objetivo de punir e expulsar os imigrantes “construídos” como irregulares. Na Europa também têm sido implementadas recentemente políticas, direito e práticas “crimigratórias” transplantadas dos EUA. No entanto, países como Portugal acolhem moderadamente essa tendência, continuando a optar preferencialmente pela inclusão e por uma legislação de “regularização permanente” dos imigrantes.
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This text focuses on the cultural construction of the category of victim as an affirmation of civility. Over the last few years Colombia has seen the emergence of a genre of language dedicated to narrating experiences of suffering in the form of personal testimony. This highly emotive language creates bonds between different members of 'civil society' who find common ground in sharing 'the truth' concerning the acts of violence perpetrated in recent years. I argue that the idiom of personal testimony produces political effects since it creates a shared version of the violent events occurring over the last decade. Moreover it opens the way for an ethics based on the recognition of demands for reparation by providing a symbolic mediation between subjective experience and the society at large. I examine the social construction of the category of victim in three different settings: the mobilization of the indigenous community in response to violent acts; the massive protests held in 2008 against these acts; and the campaign for approval of the Victims Law. I also highlight the crucial role played by women and indigenous peoples in testifying publicly about this violence as a way of arriving at the truth, a process leading to the construction of a shared narrative and to the generalization of moral principles vis-à-vis acts of violence perpetrated in the name of 'politics'.