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Universidade Federal Fluminense – UFF
Departamento de Geografia
Programa de Pós-Graduação em Geografia - Doutorado
O ESTADO TERRITORIAL E A LÓGICA DA EXCEÇÃO PERMANENTE:
UMA ANÁLISE SOBRE AS MANIFESTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA
VIOLÊNCIA
Leonardo Freire Marino
Niterói, Dezembro de 2010
O ESTADO TERRITORIAL E A LÓGICA DA EXCEÇÃO PERMANENTE:
UMA ANÁLISE SOBRE AS MANIFESTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA
VIOLÊNCIA
Leonardo Freire Marino
Niterói, Dezembro de 2010
M339 Marino, Leonardo Freire
O Estado territorial e a lógica da exceção permanente: uma
análise sobre as manifestações contemporâneas da violência /
Leonardo Freire Marino. – Niterói : [s.n.], 2010.
228 f.
Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal
Fluminense, 2010.
1.Estado. 2.Violência. 3.Espaço. 4.Biopoder. 5.Apartação
territorial. 6.Rio de Janeiro (RJ). I.Título.
CDD 320.101
II
Universidade Federal Fluminense – UFF
Departamento de Geografia
Programa de Pós-Graduação em Geografia - Doutorado
O ESTADO TERRITORIAL E A LÓGICA DA EXCEÇÃO PERMANENTE:
UMA ANÁLISE SOBRE AS MANIFESTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA
VIOLÊNCIA
Leonardo Freire Marino
Tese submetida ao Corpo Docente do Departamento
de Geografia da Universidade Federal Fluminense –
UFF como requisito parcial para obtenção do grau
de Doutor em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Luiz Barbosa
Niterói, Dezembro de 2010
III
Universidade Federal Fluminense – UFF
Departamento de Geografia
Programa de Pós-Graduação em Geografia - Doutorado
O ESTADO TERRITORIAL E A LÓGICA DA EXCEÇÃO PERMANENTE:
UMA ANÁLISE SOBRE AS MANIFESTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA
VIOLÊNCIA
Leonardo Freire Marino
Tese submetida ao Corpo Docente do Departamento de Geografia da Universidade
Federal Fluminense – UFF como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em
Geografia. Banca Examinadora
Niterói, Dezembro de 2010
IV
O presente trabalho é dedicado à
memória de minha avó, Dona Odete, e
de meu tio, Paulo Roberto, que durante
o tempo de em que estiveram ao meu
lado sempre me incentivaram a lutar por
um mundo melhor e mais justo.
V
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a minha esposa, a ela, também me desculpo,
principalmente, pelas angústias compartilhadas e problemas enfrentados. Este trabalho
só foi concluído, porque você estava ao meu lado. Em segundo lugar, agradeço aos
meus familiares, sobretudo, a minha avó, meu tio (in memorian), minha mãe, e meu
irmão, que no transcurso de minha história, moldaram através da minha criação os
valores que norteiam esta pesquisa.
Ao meu orientador Jorge Luiz Barbosa, do Departamento de Geografia da UFF,
sem o qual esta pesquisa não teria sido realizada. Obrigado por compartilhar comigo
suas reflexões. Agradeço de coração a sua orientação. Os acertos da pesquisa se devem
a ele, os erros ficam por conta de minha teimosia e incompreensão.
A professora Mônica Sampaio Machado, do Departamento de Geografia da
UERJ, que me orientou em trabalhos anteriores e me incentivou a seguir nesta temática.
Ao professor Jailson de Souza e Silva que em diversos momentos formulou
críticas que me ajudaram a elaborar diversas passagens deste trabalho.
Aos professores Miguel Baldez, Sergio Verani, Esther Arantes e Gilberta
Acselrad, do Programa Cidadania e Direitos Humanos da UERJ, que tanto
enriqueceram os meus dias durante o período em que fui estagiário deste Programa.
Aos amigos Sávio Raeder, Mário Simão e Fábio Odilon, parceiros que sempre
enriqueceram os meus dias com suas questões relevantes para a compreensão das
diversas características do mundo atual.
Aos demais professores do Departamento de Geografia da UFF, em especial, a
Ivaldo Lima e Jacob Binsztok por atenderem prontamente o pedido de participação
desta banca.
Por último, agradeço aos reais personagens desta ‘história’ que se fazem
presentes diariamente nas ruas do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras.
A todos um grande abraço.
VI
RESUMO
MARINO, Leonardo Freire. O Estado territorial e a lógica da exceção permanente:
uma análise sobre as manifestações contemporâneas da violência
Orientador: Jorge Luiz Barbosa. Rio de Janeiro: UFF/Programa de Pós-Graduação em
Geografia, 2010. Tese.
O presente trabalho estuda as relações estabelecidas entre o Estado moderno territorial e
a violência urbana. Considera-se como pressuposto que no mundo atual parte da
operacionalização estatal baseia-se em uma lógica de exceção permanente, em que a
violência pauta as relações estabelecidas entre os indivíduos e o Estado.
Seu objetivo é mostrar que, atualmente, vivemos um período em que a coerção estatal se
manifesta por intermédio de uma lógica de poder baseada no controle absoluto da vida
e, sobretudo, no desprezo pela vida das camadas da população mais empobrecidas.
O quadro analítico trabalhado considera duas escalas inter-relacionadas de análise. A
primeira refere-se aos processos históricos de formação dos Estados modernos
territoriais, bem como, suas características contemporâneas comuns. A segunda, focada
no Brasil, faz referência às particularidades deste país, as características que lhe
conferem importância e singularidade, assim como, os impactos dessa dinâmica em um
de suas principais cidades, a Cidade do Rio de Janeiro.
Desta forma, pretendemos promover um diálogo entre a Geografia, os estudos sobre o
Estado e as análises sobre a violência. Porém, diferentemente do que normalmente é
realizado nas pesquisas de cunho geográfico que envolve a temática da violência, que
tem em métodos analíticos seus referencias, almejamos, neste trabalho, fazer uma
reflexão dialética sobre a questão.
Palavras-Chave: Estado, Violência, Espaço, Biopoder, Homo Sacer, Apartação
Territorial, Rio de Janeiro.
VII
ABSTRACT
MARINO, Leonardo Freire. The territorial state and the logic of permanent
exception: an analysis of the contemporary manifestations of violence.
Advisor: Jorge Luiz Barbosa. Rio de Janeiro: UFF / Graduate Program in Geography,
2010. Thesis.
This paper studies the relationship between the modern territorial state and urban
violence. It is considered as an assumption that the operational part of the current world
state based on a logic of permanent exception, where violence staff relations established
between individuals and the state.
Your goal is to show that, currently, we had a period in which state coercion is
manifested through a logic of power based on absolute control of life and, above all,
contempt for the lives of the poorest population groups.
The analytical framework considers worked two interrelated scales of analysis. The first
refers to the historical processes of formation of the modern territorial states, as well as
its contemporary characteristics in common. The second, focused on Brazil, makes
reference to the particularities of this country, the characteristics that give it importance
and uniqueness, as well as the impacts of these dynamics in one of its major cities, the
City of Rio de Janeiro.
Therefore we will promote a dialogue between geography and the studies on the state
and the analysis of violence. However, unlike what is usually done in the nature of
geographic research that involves the theme of violence, which has references on their
analytical methods, we aim in this work make a dialectic reflection on the issue.
Keywords: State, Violence, Space, Biopower, Homo Sacer, territorial apartheid, Rio de
Janeiro.
VIII
RÉSUMÉ
MARINO, Freire Leonardo. L'Etat territorial et la logique d'exception permanent:
une analyse des manifestations contemporaines de la violence.
Conseiller: Barbosa Luiz Jorge. Rio de Janeiro: UFF programme d'études supérieures /
en géographie, 2010. Thèse.
Cet article étudie la relation entre l'Etat territorial moderne et la violence urbaine. Il est
considéré comme une hypothèse que la partie opérationnelle de l'état du monde actuel,
fondé sur une logique d'exception permanent, où la violence des relations de travail
établies entre les individus et l'État.
Votre but est de montrer que, actuellement, nous avons eu une période dans laquelle
coercition de l'État se manifeste à travers une logique de puissance qui reposent sur un
contrôle absolu de la vie et, surtout, le mépris pour la vie des populations les plus
pauvres.
Le cadre d'analyse estime travaillé deux échelles d'analyse connexes. La première
renvoie aux processus historique de formation des Etats modernes territoriale, ainsi que
ses caractéristiques contemporaines en commun. La seconde, consacrée au Brésil, fait
référence à des particularités de ce pays, les caractéristiques qui lui confèrent une
importance et le caractère unique, ainsi que les impacts de ces dynamiques dans l'une de
ses grandes villes, la ville de Rio de Janeiro.
C'est pourquoi nous allons promouvoir un dialogue entre la géographie et les études sur
l'état et l'analyse de la violence. Toutefois, contrairement à ce qui se fait habituellement
dans la nature de la recherche géographique qui implique le thème de la violence, qui a
des références sur leurs méthodes d'analyse, nous visons à ce travail de faire une
réflexion dialectique sur la question.
Mots-clés: État, la violence, l'espace, Biopower, Homo Sacer, apartheid territorial, Rio
de Janeiro.
IX
LISTA DE GRÁFICOS, TABELAS E ILUSTRAÇÕES
GRÁFICOS
GRÁFICO 1 – Os dez países com os maiores números de homicídios dolosos
(2004/2005)...................................................................................................................155
GRÁFICO 2 – Os dez países com as maiores taxas de homicídios em cada grupo de
100 mil habitantes.........................................................................................................156
GRÁFICO 3 – Evolução do número de óbitos por armas de fogo no Brasil – 1979 –
2006...............................................................................................................................158
GRÁFICO 4 - Evolução das taxas de homicídios por 100.000 habitantes – capital,
baixada fluminense, interior e estado do Rio de Janeiro - 1991-2008..........................164
GRÁFICO 5 – Evolução das vítimas de homicídios dolosos e de mortes com
tipificação provisória no estado do Rio de Janeiro – 1991 – 2008................................165
GRÁFICOS 6 - Pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro – 1991-2008.....166
GRÁFICO 7 - Comparação vítimas de homicídios e pessoas desaparecidas no estado
do Rio de Janeiro – 1991-2008......................................................................................166
GRÁFICO 8 - Taxa de homicídios por 100 mil habitantes no estado e no Município do
Rio de Janeiro – 1991 – 2008........................................................................................167
GRÁFICO 9 - Taxas de homicídios dolosos por 100 mil habitantes: Rio de Janeiro
comparado a outras cidades do mundo – 2005 – 2006..................................................169
GRÁFICO 10 – Evolução do número de homicídios dolosos – Rio de Janeiro e cidades
americanas – 1985-2007................................................................................................170
GRÁFICO 11 - Taxa de homicídios dolosos por cem mil habitantes nas capitais
estaduais – 2005.............................................................................................................171
GRÁFICO 12 - Total de roubos registrados, por cem mil habitantes estado e Município
do Rio de Janeiro – 1991 – 2008...................................................................................173
GRÁFICO 13 - Registros de roubo e furto de veículos por cem mil habitantes estado e
Município do Rio de Janeiro – 1991 – 2008.................................................................173
GRÁFICO 14 - Registros de roubo a transeunte por cem mil habitantes estado e
Município do Rio de Janeiro – 1991 – 2008.................................................................173
GRÁFICO 15 - Registros de roubo em coletivo, por cem mil habitantes estado e
Município do Rio de Janeiro - 1991/2008.....................................................................174
GRÁFICO 16 – Civis mortos pela polícia (autos de resistência - número de vítimas)
estado do Rio de Janeiro – 1997 – 2008........................................................................175
GRÁFICO 17 - Registros de prisões efetuadas pela polícia estado e Município do Rio
de Janeiro – 2000-2008..................................................................................................175
TABELAS
TABELA 1 – Taxas de homicídios dolosos jovem, não jovem e total por
região/continente em cada grupo de 100 mil pessoas – 2002........................................147
TABELA 2 – Os dez países com os maiores números de homicídios - 2004/2005.....155
X
TABELA 3 – Os dez países com as maiores taxas de homicídios em cada grupo de 100
mil habitantes - 2004/2005............................................................................................156
TABELA 4 – Distribuição do número de homicídios por dia da semana – 1999.......159
TABELA 5 - Homicídios dolosos – capital, baixada fluminense, interior e estado do
Rio de Janeiro – números absolutos - 1991-2008..........................................................163
TABELA 6 – Taxas de homicídios dolosos – capital, baixada fluminense, interior e
estado do Rio de Janeiro - 1991-2008...........................................................................164
TABELA 7 - Vítimas de homicídios dolosos e de mortes com tipificação provisória no
estado do Rio de Janeiro – 1991 – 2008........................................................................165
TABELA 8 - Pessoas desaparecidas no estado e capital - Rio de Janeiro - 1991 –
2008...............................................................................................................................166
TABELA 9 - Taxas de homicídios dolosos por 100 mil habitantes: Rio de Janeiro
comparado a outras cidades do mundo – 2005 – 2006..................................................169
TABELA 10 – Capitais Brasileiras taxas e registros de homicídios dolosos – 2001 –
2005...............................................................................................................................172
TABELA 11 - Autos de Resistência – estado e Cidade do Rio de Janeiro – 1997 –
2008...............................................................................................................................175
TABELA 12 – Delegacias com os maiores e os menores registros de homicídios
dolosos – 2008...............................................................................................................177
TABELA 13 – Total de Registros de roubos por modalidade criminal – Município do
Rio de Janeiro – 2008....................................................................................................181
TABELA 14 – Delegacias com os maiores e os menores registros de roubos –
20008.............................................................................................................................182
ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 1 – Áreas integradas de segurança pública – Município do Rio de
Janeiro – 2008................................................................................................................177
ILUSTRAÇÃO 2 – Distribuição do número de homicídios dolosos na cidade do Rio de
Janeiro, segundo Delegacias de Polícia – 2004 a 2008.................................................178
ILUSTRAÇÃO 3 – Taxas de homicídios dolosos por 100 mil habitantes Município do
Rio de Janeiro - áreas integradas de segurança pública – 2008.....................................179
ILUSTRAÇÃO 4 – Pessoas desaparecidas, por delegacias policiais Município do Rio
de Janeiro - 2004 a 2008................................................................................................180
ILUSTRAÇÃO 5 - Total de roubos registrados, por delegacias policiais Município do
Rio de Janeiro - 2004 a 2008.........................................................................................182
ILUSTRAÇÃO 6 - Total de roubos de veículos, por delegacias policiais Município do
Rio de Janeiro - 2004 a 2008.........................................................................................183
ILUSTRAÇÃO 7 – Total de roubos a transeunte, por delegacias policiais Município do
Rio de Janeiro - 2004 a 2008.........................................................................................184
ILUSTRAÇÃO 8 – Total de furtos de veículos, por delegacias policiais – Município do
Rio de Janeiro - 2004 a 2008.........................................................................................185
ILUSTRAÇÃO 9 - Civis Mortos pela polícia (Autos de Resistência), por delegacias
policiais Município do Rio de Janeiro – 2004 a 2008...................................................186
XI
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................... 2
1 – A gênese do Estado moderno e o monopólio da violência ............... 10
1.1 - A ordem estatal contemporânea ......................................................................... 14
1.2 - O Estado moderno e o monopólio da violência ................................................. 23
2 - As manifestações territoriais do poder do Estado ............................ 41
2.1 - O controle territorial do espaço das cidades....................................................... 39
2.2 – As forças policiais e o controle do espaço urbano ............................................. 55
3 - O poder estatal convertido em prática da violência ......................... 62
3.1 - O Biopoder e a vida nua ..................................................................................... 67
3.1.1 - A Sociedade de Controle ............................................................................. 73
3.2 - O poder de fazer viver ou morrer ....................................................................... 77
4 - O estado de exceção dos excedentes ................................................... 87
4.1 - A Emergência de um Estado Penal .................................................................... 90
4.2 - As manifestações espaciais do controle ............................................................. 99
4.2.1 - O Campo como criação socioespacial do moderno .................................. 105
4.2.2 - Favelas: os campos do mundo contemporâneo ......................................... 109
5 - O estado de exceção brasileiro .......................................................... 115
5.1 – As manifestações do poder soberano sobre o corpo da população.................. 118
5.2 – A disciplinarização e o Brasil moderno ........................................................... 126
5.3 - O Brasil e o estado de exceção permanente ..................................................... 138
6 – As manifestações territoriais da exceção no Brasil ........................ 147
6.1 – A violência no contexto global ........................................................................ 149
6.2 – A violência no contexto latino-americano ....................................................... 153
6.3 – A violência no contexto brasileiro ................................................................... 156
6.4 – As manifestações da violência no Estado do Rio de Janeiro ........................... 163
6.5 - A Geografia da exceção na Cidade do Rio de Janeiro ..................................... 178
6.6 – A exceção como regra ..................................................................................... 190
Considerações Finais ............................................................................... 197
Referências Bibliográficas ...................................................................... 206
XII
“Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam por anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis.”
Bertolt Brecht
1
INTRODUÇÃO
2
Introdução
“Tentar pensar o Estado é expor-se a assumir um pensamento de Estado,
a aplicar ao Estado categorias de pensamento produzidas e garantidas
pelo Estado e, portanto, a não compreender a verdade mais fundamental
do Estado”.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a Teoria da ação.
1996, p. 91.
Mesmo que Montesquieu (1996) em sua celebre obra, ´O Espirito das Leis´,
publicado originalmente em 1748, tenha afirmado que ´o ar das cidades faz bem à
gente‟, é grande o número de pessoas, em nossos dias, que veem as grandes cidades
como lugares perigosos e hostis. São inúmeros os relatos de violência nos grandes
centros urbanos. A cidade, que em sua origem, tinha por função proteger, atualmente, se
transformou em um lugar inseguro, perigoso, segmentado, repartido e múltiplo. Neste
sentido, pensar o espaço das grandes cidades leva inexoravelmente a uma imediata
reflexão sobre a violência e o medo
1
.
A insegurança e o medo representam marcas fundamentais do atual espaço
urbano: terrorismo, crime organizado, delinquência e solidão provocada pelo
apartamento do convívio social representam apenas algumas das marcas da violência
contemporânea
2
. No entanto, se as dimensões da violência são cada vez mais
perceptíveis para os cidadãos comuns, não se pode afirmar que a sua origem esteja no
em fenômenos característicos apenas do mundo atual, pelo contrário, as manifestações
da violência entre os seres humanos estão presentes nas sociedades desde os seus
1
Utilizaremos o conceito de violência proposto por Minayo (2006). “A violência não é uma, é múltipla.
De origem latina, o vocábulo vem da palavra VIS, que quer dizer força e se refere às noções de
constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro. No seu sentido material, o termo parece
neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre que eles se referem a conflito de autoridade, as
lutas pelo poder e a vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro e de seus bens. Suas
manifestações são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas segundo as normas sociais mantidas
por usos e costumes ou por aparatos legais da sociedade. Mutante, a violência designa, pois – de acordo
com épocas, locais e circunstâncias – realidades muito diferentes.” MINAYO, Maria Cecília de Souza.
2006:13.
2
“A violência não é a mesma de um período a outro. (...). Precisamente, as transformações recentes, a
partir dos anos 60 e 70, são tão consideráveis que elas justificam explorar a ideia da chegada de uma
nova era, e, assim, de um novo paradigma da violência, que caracterizaria o mundo contemporâneo.”
WIEVIORKA, Michel. 1997:5.
3
primórdios. O uso da violência, ao longo da história, tem sido uma marca do homem,
revelando-se em diversos momentos e em diferentes escalas
3
.
Em nossos dias, a dinâmica da violência não pode se resumir a uma questão
quantitativa, pelo número de pessoas atingidas, pelo contrário, a mesma deve ser
avaliada e analisada pelo seu alcance indireto, pela sua capacidade de vitimar pessoas
que não sofreram diretamente com a criminalidade ou mesmo atos de violência
4
. A
sensação de insegurança e o medo representam duas das suas principais consequências
atuais, constituindo manifestações permanentes da violência e abrangendo diferentes
estratos sociais. É esta nova face da violência que mais tem preocupado as pessoas, não
a violência direta, mas a indireta, provocada pelo medo de se tornar vítima. Nas
palavras de Milton Santos (2002), as grandes cidades de nosso tempo são lugares em
que a ética da competição e a pressão pelo status conduzem ao individualismo aberto e
possessivo, ao mesmo tempo em que a massificação materialista termina por levar à
fragmentação e à perda da individualidade. Em suas palavras, morosidade, mau humor,
hostilidades dissimuladas ou ostensivas, desordens psicológicas, violências, crimes são
sintomas diversos de uma mesma síndrome e se encontram em um mesmo lugar social,
que é o medo
5
. O maior medo é, sem dúvida, o medo da pobreza, de se tornar pobre, e o
medo dos pobres, medo alimentado por uma visão estereotipada e incorreta da relação
entre violência e pobreza. Há medos urbanos de toda natureza: objetivos e subjetivos,
individuais e coletivos, ocasionais e permanentes, medos fundados e infundados. Eles
3
Ao longo da história e com as diversas transformações ocorridas na vida em sociedade, o significado do
termo violência sofreu modificações. Com o passar do tempo foram acrescidos ao seu corpo conceitual
diversos aspectos das relações humanas que, anteriormente, não eram considerados como violência.
Assim, ocorreu uma ampliação do seu quadro conceitual e a congregação no seu corpo semântico não
apenas de ações que orbitavam a esfera criminal, mas também, as mais graves violações dos direitos do
homem, especialmente, os crimes de natureza sexual, as diversas formas de discriminação e, até mesmo,
questões sociais como a pobreza e a fome passaram a ser encaradas como formas de violência. Contudo,
neste trabalho não focalizaremos a violência na sua multiplicidade contemporânea. Não trataremos, por
exemplo, de questões como a fome e a pobreza, mesmo que tais sejam prementes no mundo atual, mas
apenas das manifestações da violência que se relacionam diretamente com o Estado, especialmente,
aquelas que justificam a atuação estatal no campo da segurança pública, ou seja, a chamada violência
criminal.
4
“(...) a violência, ato de violentar, forçar, coagir, constranger física ou moralmente uma pessoa pode
ser privada ou coletiva. A primeira gira na órbita das ações do indivíduo e pequenos grupos: é a
violência criminal do homicídio, do suicídio, do estupro e outras ações que molestam os indivíduos,
causando-lhes danos físicos ou morais, podendo por fim a própria vida. Incluem-se ai a violência
familiar e a violência entre casais. A segunda, a violência coletiva, diz respeito à violência do Estado e à
violência das instituições da sociedade civil. Esta refere-se a violência política, à violência de classes, ao
terrorismo, à guerra, à violência policial em geral, bem como à violência de instituições como escola ou
aquelas ligadas às religiões, aos esportes ou a formas de manifestações culturais contemporâneas.”
OLIVEIRA, Márcio Piñon de. 2006:175.
5
SANTOS, Milton. 2002:126-7.
4
habitam o cotidiano dos cidadãos e o envolvem em um drama. A cidade do medo
termina por criar, todos os dias novos medos
6
.
Neste cenário, as cidades se tornaram locais por excelência das ansiedades,
associando em um mesmo espaço aflição, medo e insegurança. No entanto, o espaço
citadino não é produto direto das relações atuais, mas o resultado de movimentos
pretéritos. Em outras palavras, a cidade de hoje, é o resultado cumulativo de todas das
„cidades de antes‟, transformadas, destruídas, reconstruídas, enfim produzidas pelas
transformações sociais ocorridas através dos tempos. Tal abordagem da realidade tem
por base a denominada noção de produção do espaço, na qual o espaço da cidade não é
apenas um elemento transitório da sociedade, um receptáculo das relações sociais, ou
mesmo, um pano de fundo das mesmas. As formas espaciais criadas pelos homens
expressam relações sociais vigentes de acordo com a época em que foram produzidas.
As cidades, transformadas em objetos de consumo, agregam conteúdos sociais às
formas construídas que se articulam fortemente para criar territórios urbanos. Assim, os
espaços passam a ser diferenciados por suas „formas-conteúdos‟, e não apenas por
condições variáveis da natureza e da sociedade
7
.
Entender a cidade de hoje, apreender quais processos lhe conferiram forma e
complexidade, exige uma volta ao passado, uma volta às suas origens e, ainda que de
forma simplificada e sintética, a sua longa trajetória evolutiva
8
. É preciso recuperar a
história não apenas como instrumento de reflexão sobre o urbano, mas para construir
uma Geografia que supere a simples reconstrução da paisagem. Desta forma, devermos
seguir o caminho apontado por Geiger (2003), em termos de uma História Geográfica, e
6
“O medo de sofrer uma agressão física, de ser vítima de um crime violento não é, como já disse, nada
de novo; ele se fez presente desde sempre e se faz presente, hoje, em qualquer cidade. Porém, em
algumas mais que em outras, e em algumas muito, muitíssimo mais que em outras. Uma „fobópole‟ é,
dito toscamente, uma cidade dominada pelo medo da criminalidade violenta. Mais e mais cidades vão, na
atual quadra da história, assumindo essa característica.” SOUZA: Marcelo Lopes de. 2008:9.
7
“O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço tem isto de singular: ela é
formada de momentos que foram, estando agora cristalizados como objetos geográficos atuais; essas
formas-objetos, tempo passado, são igualmente tempo presente enquanto formas que abrigam uma
essência dada pelo fracionamento da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto como
tempo, não porém como espaço; o momento passado já não é, nem voltará a ser, mas sua objetivação
não equivale totalmente ao passado, uma vez que está sempre aqui e participa da vida atual como forma
indispensável à realização social.” SANTOS, Milton. 2004:14.
8
“O espaço é a matéria trabalhada por excelência: a mais representativa das objetivações da sociedade,
pois acumula, no decurso do tempo, as marcas das práxis acumuladas.” SANTOS, Milton. 2004:33.
5
não de uma Geografia Histórica, que teria como objeto de estudo as paisagens
pretéritas
9
.
Para tanto se torna necessário comentar as estratégias praticadas pelos diversos
agenciamentos na construção dos espaços, da mesma maneira, que as formas resultantes
desse processo, pois o simples recorte temporal, sem a recuperação histórica, conduz ao
estudo de um espaço estático, de uma cidade apenas formal, ausente de vida e de
concretude humana. Assim sendo, para entendermos a dinâmica de um espaço que está
em constante estruturação, respondendo e ao mesmo tempo garantindo sustentação as
transformações engendradas pelas relações humanas, é preciso considerar as
determinantes econômicas, sociais, políticas e culturais, que ao longo do tempo,
constroem, transformam e reconstroem os espaços.
A consolidação do modo capitalista de produção, suas relações com o
crescimento das cidades e, consequentemente, o processo de urbanização resultante de
sua modernização, ocupam um lugar central no processo de construção desses espaços,
marcando profundamente a civilização contemporânea, e tornando extremamente difícil
pensar o espaço de maneira isolada. As cidades, com o capitalismo, ganharam uma
importância e uma relevância não vista anteriormente, tornando-se um processo de
expressão mundial. Todavia, o processo de desenvolvimento do capitalismo foi lento e
complexo, consolidando-se através de importantes transformações políticas, no interior
das classes e na constituição do chamado Estado moderno. O lento processo de
consolidação do capitalismo, neste sentido, é, ao mesmo tempo, o lento processo de
concretização do processo de urbanização. É inegável que o capitalismo encontrou um
„terreno firme‟ para sua solidificação político-ideológica no interior das cidades, assim
como, é inegável, que com o capitalismo, as cidades e, consequentemente, o modo de
vida urbano, se tornaram a melhor expressão da modernidade.
É sobre esse longo trajeto que o presente estudo se apresenta. Seu objeto reside
nas transformações que ocorreram, concomitantemente, no Estado, nas sociedades e no
espaço das cidades, que contribuíram decisivamente para a formação de uma expressão
territorial contemporânea, marcada pela apartação e pela diferenciação socioespacial.
O objeto de investigação ora proposto foi construído a partir de um processo de
pesquisa anterior, cujo marco inicial foi uma Dissertação de Mestrado, intitulada: “As
forças Policiais e o ordenamento territorial da Cidade do Rio de Janeiro”, e defendida
9
GEIGER, Pedro Pinchas. 2003:11.
6
no ano de 2004, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense. Neste trabalho, procurei apresentar à lógica que perpassa o Ordenamento
Territorial da Cidade do Rio de Janeiro no tocante a área de segurança pública. Em
outras palavras, procurei entender como as forças policiais, principal órgão coercitivo
do Estado, organizou e ordenou o espaço da Cidade do Rio de Janeiro.
No processo de elaboração deste trabalho pude perceber que, nos últimos anos, a
Geografia tem começado a atentar para os novos aspectos da relação entre o homem e o
espaço. Parte dessa inovação intelectual deve-se aos trabalhos desenvolvidos sobre a
distribuição da criminalidade, sobre a geografia carcerária e, especialmente, sobre a
chamada geografia do medo. A abertura desses novos campos de análise e a intensa e
Geografia, ampliando consideravelmente o seu campo de ação, e inaugurando o que se
convenciona chamar de „Geografia da Violência‟. Contudo, mesmo contando com
diversas contribuições nesta nova área de estudo, existe uma imensa dificuldade em se
estudar as manifestações estatais no campo da segurança pública pelo ponto de vista
espacial, principalmente, pela pequena tradição da Geografia em tratar de tal tema para
além do mapeamento criminal
10
. Infelizmente, a visão territorial nestes estudos tem sido
esquecida, fato que limita qualquer análise sobre o fenômeno da violência, pois
circunscreve os fenômenos espaciais a esfera quantitativa, eliminando as possibilidades
reais de qualificação de tais informações. É no território que a pobreza, a exclusão
social, a omissão do estado, a violência e as carências tornam-se mais visíveis, mais
presentes e escapam das máscaras que as abordagens setoriais lhe imprimem. Devemos
não apenas buscar identificar os locais de concentração das dinâmicas criminais, mas
revelar quais são as reais vítimas destes processos
11
.
Por não contar com uma metodologia de investigação consagrada e coerente
com as questões espaciais, procuramos estabelecer uma análise transdisciplinar, uma
análise que permitisse entender o fenômeno focado não apenas como um objeto de
estudo da Geografia, mas, sobretudo, como um problema de interesse geral, de todos os
10
“A tradição da produção geográfica no assunto se restringe à preocupação com a espacialização do
fenômeno, isto é, localizar as ocorrências criminosas no espaço urbano e correlacioná-las às condições
do local onde acontecem. Muitas vezes essas condições, que favorecem a ocorrência, são confundidas
com a própria causa das mesmas. A espacialidade é uma categoria geográfica usada por todos os ramos
do conhecimento como uma primeira apreensão do fenômeno na busca de sua explicação pelas
diferentes especialidades. A espacialização das ocorrências permite aos órgãos de segurança pública
vigiar e punir crimes, mas não é suficiente para combater a onda de violência que assola nossas cidades
porque não chega às suas raízes.” FERREIRA, Ignez Costa Barbosa; PENNA, Nelba Azevedo. 2005:
156.
11
Neste sentido, seguimos a linha de pensamento de Lefebvre (2008) de que o espaço é político.
7
indivíduos interessados na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Desta
forma, para além de seu conteúdo e suas pretensões teóricas, o presente trabalho se
apoia em pesquisas empíricas conduzidas pelo próprio autor. Assim, nas análises
expostas, em alguns momentos, o foco de interpretação do objeto se afastará das
tradicionais leituras espaciais, porém, o espaço sempre estará presente, pois representa a
arena de construção de todas as relações humanas, por isso inerente aos conflitos
sociais. Pretendemos deste modo, evidenciar que a „questão espacial‟ é parte integrante
dos conflitos e interesses da sociedade como um todo, não apenas de geógrafos
12
.
Durante o Curso de Doutorado, realizado na Universidade Federal Fluminense,
foram incorporados à discussão algumas questões referentes à formação dos Estados
Nacionais e das Forças Policiais em todo o mundo. Elementos que contribuíram para a
formulação e ampliação das questões pensadas inicialmente. Neste sentido, a presente
pesquisa apresenta como seus objetivos responder às seguintes questões: Qual o papel
da coerção estatal no mundo atual? Como o Estado trata em nossos dias as diferentes
classes sociais? Quais seriam os impactos desses processos no espaço das cidades? Qual
a especificidade do Brasil e do Rio de Janeiro frente a este cenário?
Buscando responder a esses questionamentos, o presente trabalho estará
organizado em seis capítulos:
O primeiro capítulo, intitulado „A gênese do Estado moderno e o monopólio da
violência‟, tem como objetivo discutir os principais processos associados à construção
do Estado moderno. Nesta parte da pesquisa, pretende-se analisar os pressupostos
estatais e sua relação com o chamado monopólio da violência. O segundo capítulo, cujo
título é „As manifestações territoriais do poder do Estado‟, assentasse em uma análise
do poder estatal concretizado sobre os territórios. Seu objetivo reside em apresentar de
forma sucinta como o poder do Estado tem-se concretizado espacialmente por meio de
estruturas coercitivas como as forças policiais, que procuram controlar o espaço das
cidades e, sobretudo, as camadas mais pobres da população. Posteriormente, no terceiro
capítulo, nomeado como „O poder estatal convertido em prática da violência‟, será
apresentado o processo de conversão das práticas do poder territorial em práticas
cotidianas de violência. Neste capítulo focalizaremos as manifestações do poder do
12
“Nas sociedades em que a riqueza se configura como uma imensa acumulação de mercadorias (Marx),
nos marcos das relações sociais que as consubstanciam, „o espaço tornou-se instrumental. Lugar e meio
onde se desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam, o espaço deixou de ser neutro, geográfica e
geometricamente, há muito tempo‟. Portanto, ele nada tem de inocente ou inofensivo. Tem sido
instrumentalizado para vários fins.” MARTINS, Sérgio in LEFEBVRE, Henri. 2008:8
8
Estado sobre o corpo dos indivíduos. O quarto capítulo, cujo título é „O estado de
exceção dos excedentes‟, apoia sua análise nas discussões que envolvem o
estabelecimento do que será caracterizado como estado de exceção e que na prática
representa a atuação do Estado acima dos preceitos Democráticos e de Direitos. Nesta
parte da pesquisa analisaremos como o Estado, por intermédio de práticas cada vez mais
violentas, tem tratado as camadas mais empobrecidas da população de forma arbitrária,
discricionária e despótica. O quinto capítulo, intitulado como „O Estado de exceção
brasileiro‟ tem como objetivo entender os desdobramentos desse processo de
modernização do Estado no Brasil. Seu foco de análise será a contextualização da
construção dos aparatos repressivos do Estado brasileiro ao longo do tempo. Para tanto,
teremos como ponto de partida a chegada da Família Real a Cidade do Rio de Janeiro
em 1808, marco de criação das forças policiais brasileiras. O sexto e último capítulo,
nomeado como „As manifestações do estado de exceção no Brasil‟, pretende
exemplificar as consequências da construção de um estado de exceção permanente no
território brasileiro. Neste capítulo, como exemplificação da dinâmica espacial
utilizaremos como recorte a Cidade do Rio de Janeiro.
Desta forma, esperamos contribuir decisivamente para o entendimento dos
processos que contribuem para o crescimento da violência estatal em diversas partes do
planeta e, sobretudo, na cidade do Rio de Janeiro. E, assim, estabelecer uma leitura
geográfica do problema da violência condizente com a realidade que nos cerca.
9
CAPÍTULO I
10
1 – A gênese do Estado moderno e o monopólio da violência
“As formações históricas só o interessam porque assinalam de onde
saímos, o que nos cerca, aquilo que estamos em vias de romper para
encontrar novas relações que nos expressem.”
DELEUZE, Gilles. Conversações. 1992:131
Em nossos dias, temos a sensação de que a violência atinge patamares cada vez
mais elevados
13
. Tal impressão, reforçada pelas notícias veiculadas em diferentes meios
de comunicação, parece nos levar a um quadro de barbárie e de violência generalizada.
Porém, não se trata de uma violência entre Estados, de uma violência provocada por
guerras, mas, principalmente, de uma violência comum, que ocorre cotidianamente no
espaço das grandes cidades.
A violência comum, sobretudo, associada à criminalidade cotidiana dos grandes
aglomerados humanos, assusta cada vez mais os cidadãos, que acuados, passam a
modificar seus hábitos de vida e a cobrar das autoridades uma maior atuação na
promoção da segurança pública
14
. Ao mesmo tempo em que ficamos assustados com o
aparente crescimento da violência, passamos a viver em ambientes cada vez mais
vigiados e controlados, onde as câmeras e aparatos de segurança são uma constante.
Somos firmemente vigiados e, muitas vezes, entendemos que a vigilância permanente é
necessária para garantir nossa segurança. Vivemos um paradoxo, pois ao passo que as
relações humanas contemporâneas atingiram uma escala de liberdade sem precedentes,
especialmente, no tocante a locomoção e a comunicação planetária, somos cada vez
mais observados, cadastrados e controlados
15
. Vivemos em um mundo em que
esperamos por uma segurança integral, que os riscos de vitimização desapareçam e que
13
Como mencionado, o termo violência tem origem latina, decorrente da palavra vil (força), cujo
significado se refere às noções de constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro. Suas
manifestações são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas segundo as normas sociais mantidas por
usos e costumes ou por aparatos legais da sociedade. Mutante, a violência designa, pois – de acordo com
épocas, locais e circunstâncias – realidades muito diferentes.
14
“Paradoxalmente, as cidades, que na origem foram construídas com o intuito de dar segurança a todos
os seus habitantes, hoje estão cada vez mais associadas ao perigo.” BAUMAN, Zygmunt. 2009:16.
15
“O mundo de hoje – e não somente fora da Europa – está cheio de aparelhos policiais que estão
convencidos de que, independentemente do que os governos e a imprensa digam em público, não é o
estado de direito e sim a força (e, se necessário for, a violência) o que assegura a manutenção da ordem,
e também de que essa atitude tem o apoio pelo menos tácito tanto dos governos quanto da opinião
pública.” HOSBAWM, Eric. 2007:147-148.
11
possamos viver permanentemente protegidos. A aguda e crônica sensação de
insegurança e de medo é um efeito colateral da convicção de que, com as capacidades
adequadas e os esforços necessários, é possível uma segurança completa, permanente e
integral
16
.
O mundo habitado pelo medo tem suas origens associadas, principalmente, ao
medo de se tornar vítima de alguma forma de violência. As seguranças concretas das
pessoas são gradativamente dissolvidas, o que gera uma „insegurança difusa‟, que não
tem onde se apoiar: há medo da fome, da guerra, de perder o emprego, de desastres
ecológicos e da violência. A disseminação do medo pela sociedade leva a produção de
manifestações culturais cada vez mais balizadas pela emoção, pela banalização da
violência. Tudo isso, tem levado, ao que se convencionou chamar de „cultura do medo‟,
em outras palavras, de um medo que deixa de ser individual e passa a ser socialmente
compartilhado
17
.
Os índices de criminalidade violenta, mas do que produzirem vítimas diretas,
produzem um gigantesco contingente de vítimas indiretas, vítimas que encontram nas
taxas criminais, em conversas informais e nos meios de comunicação as bases para o
cálculo subjetivo de probabilidades de vitimização
18
. Curiosamente, a sensação de
insegurança e o medo de ser vitima não guardam uma relação direta com a incidência
criminal, uma vez que o cálculo subjetivo de probabilidades de vitimização exacerba o
sentimento de insegurança acirrando padrões de conduta defensiva
19
. Os números, na
16
“A insegurança moderna não deriva da perda da segurança, mas da nebulosidade (ombre portée) de
seu objetivo, num mundo social que foi organizado em função da contínua e laboriosa busca de proteção
e segurança. A aguda e crônica experiência da insegurança é um efeito colateral da convicção de que,
com as capacidades adequadas e os esforços necessários, é possível obter uma segurança completa. (...)
Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo
dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou
não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana.” BAUMAN,
Zygmunt. 2009:2.
17
O termo „Cultura do Medo‟ é o título do livro de Barry Glassner, publicado no Brasil em 2003. Nesta
obra o autor alerta que as notícias relacionadas à criminalidade passam por um alarmismo generalizado
que não se comprovariam na realidade, uma vez que em diversos países o número de crimes tem
diminuído e o de notícias aumentado. De outra forma, para ele, é a nossa percepção do perigo que tem
aumentado, e não o nível real de risco.
18
“Os medos agora são difusos, eles se espalham. É difícil definir e localizar as raízes desses medos, já
que os sentimos, mas os vemos. É isso que faz com que os medos contemporâneos sejam tão terrivelmente
fortes, e os seus efeitos sejam difíceis de amenizar. Eles emanam virtualmente em todos os lugares. (...)
Os medos são muitos e diferentes, mas eles alimentam uns aos outros. A combinação desses medos cria
um estado na mente e nos sentimentos que só pode ser descrito como ambiente de insegurança. Nós nos
sentimos inseguros, ameaçados, e não sabemos exatamente de onde vem esta ansiedade nem como
proceder.” BAUMAN, Zygmunt. 2010:73-74.
19
“Nos últimos anos, sobretudo na Europa e em suas ramificações no ultramar, a forte tendência a sentir
medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras. Por si só, isso já é
12
maior parte das vezes, desmentem a sensação de insegurança, pois em muitos casos, os
locais de ocorrência de crimes não correspondem aos locais mais vigiados, controlados
ou indicados pelos cidadãos como pontos de maior presença estatal
20
. Este é o caso, por
exemplo, de diversos bairros destinados às populações mais abastadas que apesar de
apresentarem, em sua maioria, índices de violência inferiores ao seu entorno, contam
com aparatos cada vez mais eficientes de segurança e controle.
Coletivamente instituído, o medo, tende a se personificar em atores e grupos
sociais específicos, o que faz com que determinados estereótipos sejam construídos e
aceitos por vastos contingentes populacionais. Sobre olhares estereotipados, diversos
indivíduos, especialmente, os inseridos em grupos mais pauperizados, passam a ser
encarados como a fonte de diversos males sociais e a serem vítimas das ações que
buscam solucionar tais problemas
21
. Este cenário parece reeditar a figura das „classes
perigosas‟, que assombraram as elites europeias no século XIX
22
. Contudo,
diferentemente das „classes perigosas originais‟, constituídas por indivíduos
considerados como excedentes, as „novas classes perigosas‟ são formadas por pessoas
incapacitadas para a reintegração e classificadas, nas palavras de Bauman (2009), como
um mistério. Afinal, como assinala Robert Castel em sua perspicaz análise das atuais angústias
alimentadas pela insegurança, „nós, pelo menos nos países que se dizem avançados, vivemos em
sociedades que sem dúvida estão entre as mais seguras (sures) que já existiram‟. No entanto, em
contraste com essa „evidência objetiva‟, o mimado e paparicado „nós‟ sente-se inseguro, ameaçado e
amedrontado, mais inclinado ao pânico e mais interessado em qualquer coisa que tenha a ver com
tranquilidade e segurança que os integrantes da maior parte das outras sociedades que conhecemos.”
BAUMAN, Zygmunt. 2009:1.
20
Neste sentido, importantes são as considerações realizadas pela chamada Geografia da Percepção, pois
a mesma procura fazer uma distinção entre o percebido (que reflete como as coisas aparentam ser ao
indivíduo) e o ambiente objetivamente observado (que reflete as coisas como elas são). Esta diferença, ou
inconsistência, chamada de dissonância cognitiva, indicaria o desencontro entre aquilo que é percebido
pelo indivíduo e a realidade.
21
“São abundantes os casos em que jovens e adolescentes são tomados como „ameaça à sociedade‟ ou
„vítimas dela‟, porque, estando em formação, seriam mais facilmente influenciáveis, inclusive – e aqui
haveria um grande perigo – pelo mundo do crime. Ouvimos, diversas vezes de diferentes profissionais, de
policiais a assistentes sociais, passando por sociólogos e psicólogos, formando um contraditório
conjunto, que jovens delinquentes são mais perigosos do que os não-jovens, porque „são muito
influenciáveis‟, „ficam muito mais nervosos‟, „nada tem a perder‟ ou „são frios‟, como se tais atributos
fossem naturais à idade.” MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. S/D:6.
22
“A expressão „classes perigosas‟ (dangerous classes), no sentido de um conjunto social formado à
margem da sociedade civil, surgiu na primeira metade do século XIX, num período em que a
superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva, segundo a acepção de Marx, atingia
proporções extremas na Inglaterra, quando esse país vivia a fase „juvenil‟ da Revolução Industrial. (...)
Na conceituação de Mary Carpenter, as classes perigosas eram formadas pelas pessoas que houvessem
passado pela prisão ou as que por ela não tendo passado, já vivessem notoriamente da pilhagem e que se
tivessem convencido de que poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais praticando
furtos do que trabalhando.” GUIMARAES, Alberto Passos. 2008:20.
13
não assimiláveis, indesejados, vidas desperdiçadas, ou, nas palavras de Agamben (2004
e 2002) como indivíduos matáveis.
A violência neste cenário teria um papel de causa e efeito, pois ao mesmo
tempo, seria um dos principais motivos do medo, e uma das formas de intervenção, de
solução, mais empregadas. O medo generalizado, obsessivo e a insegurança difusa, que
podem ser encontrados em qualquer lugar e em todos os estratos sociais, permanecem
em constante simbiose, em um processo de auto alimentação, de causa e efeito. Ao
passo que a violência assusta a todos os cidadãos, ela é encarada como solução para as
tensões provenientes da generalização do medo pelos gestores públicos.
São sobre as relações estabelecidas entre o Estado, os aparatos institucionais, os
diferentes estratos sociais e o espaço que a presente pesquisa se assentará. Para tanto,
perseguiremos, ao longo de todo o texto, as soluções encontradas e empregadas pelo
Estado para „conter e controlar o medo‟
23
. Falaremos constantemente da violência e
deste sentimento, mesmo que não se trate de um trabalho sobre esses temas, mas sobre o
Estado. Apesar disso, antes de iniciarmos uma análise focada na atuação do Estado em
nossos dias, faz-se necessário um pequeno retorno ao passado e a construção de um
quadro conceitual capaz de demonstrar as origens de muitas características do Estado
contemporâneo
24
. Assim, pretendemos evidenciar qual a concepção de Estado que
utilizaremos e qual seu desdobramento no tocante a violência e ao medo.
Neste sentido, o presente capítulo estará dividido em duas partes. Na primeira,
intitulada, „A ordem estatal contemporânea‟, procuraremos esclarecer as características
do Estado atual e suas manifestações territoriais, para tanto realizaremos uma pequena
remontagem do passado, especialmente, do processo de gênese do Estado territorial
moderno. A segunda parte, nomeada como „O Estado moderno territorial e o
monopólio da violência‟, discorreremos sobre o processo de construção do chamado
monopólio da violência estatal. Neste momento, pretendemos demonstrar como, em
paralelo com a concreção do Estado moderno, ocorreu um processo de centralização dos
aparatos coercitivos nas estruturas estatais.
23
Desde as suas origens, o Estado moderno apresentou como uma de suas tarefas a administração do
medo, tal fato é ilustrado por Zygmunt Bauman em sua obra „Confiança e medo na cidade‟, publicada no
Brasil em 2009.
24
“(...) não se pode compreender a época contemporânea sem uma análise das profundas modificações
ocasionadas, nas sociedades do mundo inteiro, pelo desenvolvimento do capitalismo.” BEAUD, Michel.
2004:13.
14
1.1 - A ordem estatal contemporânea
“Mais do que em qualquer época anterior, os homens vivem hoje à
sombra do Estado. Aquilo que eles pretendem obter, individualmente ou
em grupos, depende agora fundamentalmente da sanção e o apoio do
Estado. (...) É possível não estar interessado naquilo que o Estado faz,
mas não é possível deixar de ser afetado por isso.”
MILIBAND, Ralph. O Estado na Sociedade Capitalista. 1972. p.11.
O processo de formação do Estado moderno tem suas origens ligadas aos
acontecimentos que ocorreram em solo europeu a partir do século XI. Neste momento,
segundo Beaud (2004), a sociedade feudal encontrava-se plenamente constituída e é
justamente neste momento que tem início o processo que leva ao seu colapso e
decomposição. A degeneração do sistema feudal, segundo este autor, ocorreu devido ao
processo de consolidação do Capitalismo, ilustrativamente, nomeado por ele como
„longa marcha‟
25
. A longa marcha do capitalismo, entre outras consequências, imbricou
no processo de formação de uma nova classe social, a burguesia, na afirmação do
sentimento de nacionalismo e na constituição dos Estados modernos
26
.
No campo das normas de convivência social, este período marcou o fim do
chamado „Direito Divino‟, que no mundo medieval concebia sentido ao poder
27
. Até
esse momento, a mobilidade social era reduzida e a nobreza contava com direitos
estabelecidos por nascimento, especialmente, no tocante aos privilégios de sua classe,
enquanto que os estratos sociais mais baixos, nascidos fora da aristocracia, contavam
com poucos direitos e muitos deveres. Com o passar do tempo, o „Direito Divino‟ foi,
aos poucos, sendo substituído pelo chamado „Direito Natural‟. Diferentemente do
período anterior, com a consolidação das normas de convivência social, pautadas nesta
nova visão do Direito, a equidade entre os homens no ato de nascimento passou a
25
BEAUD, Michel. 2004:18-19.
26
“As lutas entre a nobreza, a Igreja e os príncipes por suas respectivas parcelas no controle e produção
da terra prolongaram-se durante toda a Idade Média. Nos séculos XII e XIII, emerge mais grupo como
participante nesse entrechoque de forças: os privilegiados moradores das cidades, a „burguesia‟.”
ELIAS, Norbert. 1993:15.
27
“As monarquias de direito divino baseavam-se na idéia de que Deus havia designado e predestinado
uma família para exercer o poder soberano, hereditariamente em seu nome. Assim, os únicos limites a
que o poder do monarca tinha de obedecer eram aqueles estabelecidos pelas leis divinas, de modo que,
nas palavras de Carré de Malberg, „humanamente falando, o monarca era isento de toda
responsabilidade para com o seu povo‟.” MATIAS, Eduardo Felipe P. 2005:40.
15
constituir uma expressão ordenadora da sociedade. Por meio desta concepção, a posição
social de uma pessoa não seria produto de seu nascimento, mas das capacidades de
ascensão social do indivíduo. Em outras palavras, a nova concepção do Direito
estabelecia a norma segundo a qual todos os homens nascem iguais
28
.
Esta perspectiva fundamentou o Direito Civil da Igualdade perante a lei, do
direito à vida, ao próprio corpo, a propriedade individual e a participação dos indivíduos
na formulação das leis
29
. Contudo, cabe ressaltar que inicialmente, o termo igualdade
não abrangia a todas as pessoas, mas apenas aos cidadãos que tivessem renda e não
fossem analfabetos
30
. Porém, mesmo restrito, é inegável que o estabelecimento do
estatuto da igualdade provocou profundas mudanças nas sociedades, sobretudo, no
tocante a mobilidade social. Fato, fundamental, para determinar o fim dos privilégios
feudais, base de sustentação do antigo sistema.
No campo político, o colapso do sistema feudal, definiu o marco de uma nova
centralidade institucional do poder, balizado, fundamentalmente, pela consolidação do
Estado moderno
31
. Neste processo, o território estatal, de espaço de dominação, tornou-
se, progressivamente, um espaço político por excelência, o „locus‟ de uma vontade
comum, de um poder moral aceito contratualmente por todos a partir de instrumentos de
28
Ligados à natureza humana, esses direitos não poderiam ser limitados ou enquadrados pela lei, sendo
considerados como anteriores à „lei positiva‟ que é colocada sob a responsabilidade do soberano. Podem-
se distinguir três direitos principais: o direito à existência, que supõe que nenhum indivíduo seja
inquietado em sua integridade física; a liberdade, que consiste em poder fazer tudo o que não entrava a
liberdade dos outros; a propriedade, que o direito de deter um bem. Estes direitos concernem os homens
no seu estado natural, antes de se associarem para formar uma sociedade. Aplicam-se a eles pelo simples
fato de serem humanos. São direitos „pré-políticos‟, na medida em que concerne a todo ser humano e não
só ao cidadão.
29
Conforme podemos perceber, respectivamente, no Artigo 6 da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789. “A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer,
pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja
para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a
todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que
não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.”
30
“A arrumada lógica de um Estado que se apresentava como fiel depositário da soberania não passa de
um sofisma cruel: com a prestidigitação da representatividade excluiu os não-proprietários da
participação efetiva no poder. Por um passe de mágica tantas vezes denunciado, a soberania de todos se
transforma em poder de alguns.” MARÉS, Carlos Frederico. In. NOVAES, Adauto. 2003:236.
31
“Falar do problema das origens do Estado quando se trata de imaginar o que na mais remota das
sociedades humanas puderam ser os primórdios de um Poder que nem sequer podemos denominar
político (...) é dar azo a uma intolerável ideia. As origens do Estado devem ser consideradas somente
quando começa a existir um organismo que, aos homens (...), mostrou-se bastante novo para que eles
sentissem a necessidade de dotá-lo de um nome: um nome que os povos, na mesma época, passaram
rapidamente um para o outro.” FEBVRE, Lucién citado por BURDEAU, George. 2005:13.
16
legitimação que ele dispunha
32
. Diferentemente dos arranjos políticos anteriores, o
Estado moderno se diferencia pela existência de um caráter socioespacial soberano, em
que as normas e leis são comuns para todos que vivem naquele território, entendido
como um ambiente político, como uma arena de luta
33
.
No transcurso deste processo, ocorreram, concomitantemente, diversas
transformações no campo das ideias, com destaque para a necessidade de um
ordenamento jurídico-territorial unitário, capaz de conceber segurança ao comércio e ao
poder político estabelecido; a secularização das ideias políticas que tornaram
independente o poder político do poder eclesiástico; a despersonalização do poder que
transmutou o poder do governante em uma entidade organizada e impessoal, fato que
garantiu a permanência e a continuidade do aparelho estatal.
Neste sentido, desde os seus processos iniciais, o Estado moderno, apresenta três
elementos que o diferenciam dos arranjos político-sociais anteriores: a sua plena
autonomia, a distinção entre a esfera pública e a privada e o reconhecimento das
propriedades individuais separadas do Estado. A primeira diferenciação, a plena
autonomia, em essência representaria a soberania estatal, que formalmente não permite
que sua autoridade dependa de nenhuma outra instância política, interna ou externa
34
. A
segunda, a distinção entre a esfera pública e privada, ocorreria pela diferenciação entre a
32
Na base deste processo reside o conceito de território como arena da vida humana, como espaço por
natureza das relações políticas, como evidencia Milton Santos (2002): “O território não é apenas o
conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido
como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A
identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho,
o lugar de residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. O território em si não é
uma categoria de análise em disciplinas históricas, como a Geografia. É o território usado que é uma
categoria de análise. Aliás, a própria ideia de nação, e depois a ideia de Estado Nacional, decorrem
dessa relação profunda, porque um faz o outro.” SANTOS, Milton. 2002:10.
33
“Se pensarmos o „território‟ como um conceito que supõe o exercício do poder e que implica um
processo de apropriação, de delimitação e de controle, estamos enfatizando, sem dúvida, sua dimensão
política. E se, além disso, pensamos na legitimidade desse poder e, portanto, na ideia de soberania,
estamos cada vez mais próximos de sua dimensão jurídica. Por sua vez, a dimensão político-jurídica do
território está associada à existência do „Estado‟ como instituição que detém o poder de soberania, ou
seja, controle exclusivo de um âmbito geográfico definido.” ARROYO, Mônica. 2004:49. “La definición
de Estado se concentra en su naturaleza institucional, territorial, centralizada. Ésta es la tercera y más
importante precondición del poder estatal. Como se ha remarcado, el Estado no posee un específico
medio de poder independiente de, y análogo a, el poder económico, militar e ideológico. Los medios
utilizados por el Estado son sólo una combinación de éstos, que son también los medios de poder
utilizados en todas las relaciones sociales. Sin embargo, el poder del Estado es irreductible en un sentido
bastante distinto, socioespacial y organizativo. Solamente el Estado está inherentemente centralizado
sobre un territorio delimitado sobre el que tiene poder autoritario.” MANN, Michael. 2006:19.
34
“(...) os Estados territoriais definem-se em termos de um „dentro‟ e de um „fora‟: por um lado,
relacionam-se com a sociedade civil e as atividades econômico-sociais existentes dentro de seu âmbito;
por outro, cuidam das relações com o resto do sistema interestatal.” Taylor, Peter citado por ARROYO,
Mônica. 2004:50.
17
instância do Estado, encarada como esfera pública, e a sociedade civil, consideradas
como esfera privada. E, por último, o reconhecimento das propriedades individuais
separadas do Estado ocorreria pelo reconhecimento da propriedade privada, sentido
contrário do que ocorria no período medieval, momento que o Senhor Feudal era dono
do território e de tudo que se encontrasse nele, homens e bens
35
. Simplificadamente,
estas transformações permitiram que o Estado se tornasse uma instituição,
concomitantemente, pública e privada. Pública, no sentido de que suas ações atingem a
todos os cidadãos, são coletivizadas, visam à universalidade. E privada, no sentido de
que emanam de uma estrutura burocrática própria, de uma instância de governo,
formada por poucos membros da sociedade.
Inicialmente, o primeiro modelo de poder político territorialmente centralizado
foi o Estado Absolutista europeu. Nesta organização estatal, existia uma identificação
direta entre o Estado e o monarca, e a isonomia ainda não tinha sido instituída
36
. O
Estado era definido como propriedade do monarca. Em diversos países da Europa, o
Estado absolutista foi à forma política exigida para governar simultaneamente as
arcaicas relações sociais feudais e as incipientes relações econômicas de produção. O
que ocorreu pela imposição de leis, pela centralização burocrática da administração e
pela uniformização das estruturas sociais, tais como, língua, moeda, pesos e medidas
37
.
Foi por meio da concentração do poder e unificação dos Estados que as fronteiras
territoriais passaram a coincidir crescentemente com uma ordem jurídica uniforme e
novos mecanismos de produção e execução de leis foram criados. A administração
fiscal, antes dispersa, passou a ser centralizada e desenvolvida. Tais fatores, além de
favorecerem a consolidação do poder soberano do monarca, foram essenciais para a
consolidação dos interesses mercantilistas da burguesia. Esse quadro de mudanças e
35
“A propriedade feudal teve de ser delegada, e seu uso concedido de acordo com os graus de divisão
social de poder, da mesma forma que níveis de administração teriam de ser delegados em séculos
subsequentes. A propriedade feudal era parte do corpo do monarca, assim como, se olharmos para o
domínio metafísico, o corpo monárquico soberano era parte do corpo de Deus.” HARDT, Michael e
NEGRI, Antonio. 2001:112.
36
O que pode ser ilustrado pela célebre frase atribuída a Luís XIV: “L‟État c‟est moi” (O Estado sou eu).
37
“A efígie do rei é difundida por todo o reino através da moeda e de medalhas, do mesmo modo que são
multiplicados os sinais e os símbolos da monarquia nos lugares públicos e nos edifícios régios (coroa,
flor de lis, brasão, cetro…). A partir do século XIII, os deslocamentos do rei no reino são objeto de um
cerimonial cada vez mais exigente que evoca a grandeza da monarquia e a obediência devida a ela. É
todo o papel do ritual que acompanha as „entradas régias‟ nas cidades. Inicialmente simples, a
encenação do „cortejo régio‟ se torna, com o correr dos séculos, cada vez mais elaborado: tudo é
pensado para mostrar a preeminência do rei sobre a nobreza feudal, sua autoridade sobre os „corpos
constituídos‟ da cidade, sua riqueza, sua potência e seu poder benfeitor ”. NAY, Olivier. 2007:143.
18
transformações sociais foi fundamental para a superação da fragmentação territorial
característica do período feudal, uma vez que permitiram uma maior mobilidade do
mercado e o predomínio da vida nas cidades
38
.
No século XVI, as bases feudais do poder absolutista estavam gradativamente
mirrando e os processos de acumulação primitiva do capital impunham novas condições
a todas as estruturas de poder. Entretanto, a lógica absolutista do poder do Estado
permaneceu
39
. O poder estatal que, incialmente, se configurava como um desígnio
divino passou a se transfigurar em uma soberania territorial absoluta, noção presente até
os nossos dias. O território físico e a população que anteriormente representavam
apenas as bases materiais do poder estatal passaram a conceber significância a
existência do Estado que, progressivamente, passou a ser identificado com a nação.
Desta forma, o nacionalismo e as ideologias de identidade passaram a constituir os
fundamentos dos Estados nacionais, que, gradativamente, irão superpor o Estado
moderno, formando um híbrido em que as bases do Estado moderno territorial, serão
legitimadas pelo sentimento de pertencimento
40
.
O arcabouço ideológico-nacionalista, elaborado com o auxílio da História e da
Geografia como disciplinas, tornou-se um recurso simbólico necessário à consolidação
do Estado como instituição territorializada e legitimada pela sociedade
41
. Nas palavras
38
“No século XIII, as principais formas da cidade medieval já estavam fixas: o que se seguiu foi uma
elaboração de detalhes. Todavia, as novas instituições que começaram a dominar a cidade reduziram a
antiga influência da abadia e do castelo e o tema dos três séculos seguintes não foi o isolamento, a
autoridade e a segurança, mas a liberdade, o envolvimento, o desafio, a aventura”. MUNFORD, Lewis.
1998:326. “O que parece inegável é que, desde o fim da Idade Média, o desenvolvimento da tecnologia
comercial e das transações era pouco compatível com o fracionamento dos poderes locais. É no fim do
Século XIV que nasce um complexo institucional dotado de poder próprio (os primeiros exércitos
profissionais aparecem no final do Século XIII), encarregado de garantir a segurança e a justiça, e que
se arroga o monopólio da determinação dos direitos e deveres de cada um.” LEBRUN, Gerárd. 1998:11
39
“A nobreza perdeu poder social com a expansão do setor monetário da economia, enquanto aumentava
o poder das classes burguesas. Mas, de modo geral, nenhum dos dois estados mostrou ser forte o
suficiente para obter a predominância por um período prolongado. Tensões constantes em toda parte
irrompiam em lutas ocasionais. As frentes de batalha eram complicadas e variavam muito de caso a
caso. Ocorreram alianças ocasionais entre grupos da nobreza e da burguesia e também formas
transitórias e mesmo fusões entre subgrupos dos dois estados. Mas, como quer que fosse, a ascensão e o
poder absoluto da instituição central invariavelmente dependiam da existência contínua de tal tensão
entre nobreza e burguesia.” ELIAS, Norbert. 1993:22.
40
“O recurso à identidade do passado histórico, à identidade cultural e à identidade linguística é
condição essencial do nacionalismo. Deve ser observado que a substância da nação, no sentido de
comunidade de destino, resultou da estratégia política de apropriar-se do sentido identitário contido na
ideia de povo e coloca-lo à organização política comandada pelo Estado. O povo passou a ser o corpo
da nação e, portanto, confundido com ela e submetido à centralidade territorial do poder político.”
CASTRO, Iná Elias de. 2005:114.
41
É seguro que o saber geográfico moderno, pelo menos desde o Renascimento mantém uma relação
íntima com a constituição dos Estados modernos. Neste sentido, pode-se até mesmo admitir que aquilo
19
de Hardt e Negri (2001), o conceito moderno de nação herdou o corpo patrimonial do
Estado monárquico e o reinventou com outra forma
42
. Essa nova totalidade do poder foi
estruturada em parte pelos novos processos capitalistas produtivos de um lado, e pelas
velhas redes de administração absolutista de outro. Não obstante, embora esse processo
tenha preservado a materialidade da relação com o soberano, à ordem feudal do súdito
cedeu vez à ordem disciplinar e normatizadora do cidadão. O poder do estado se
converteu em práticas territoriais de controle efetivo das populações, e seus objetivos se
alinharam aos interesses das classes mais abastadas, associadas aos processos de
produção.
A história do Estado moderno e, posteriormente, do Estado-Nação, podem ser
contadas pela submissão dos territórios e de suas elites ao poder político centralizado do
„Príncipe‟
43
. Desde o final da Idade Média e, consequentemente, início da Idade
Moderna, percebe-se que o processo de concreção do Estado se fez através de guerras,
de alianças, do domínio e do controle de forças políticas dispersas, que representavam
interesses dominantes em territórios particulares. Os Estados capitalistas europeus se
formaram, em sua maioria, pela pacificação de territórios devastados pelas guerras
feudais
44
. Assim, os governos expressaram organizações voltadas para o poder, que
utilizaram a guerra, a força e os procedimentos jurídicos, suplementados por apelos aos
sentimentos morais de pertencimento e de história comum, como meios característicos
que os geógrafos vão tomar como seu objeto de estudo, a organização do espaço geográfico, se inscreve
como uma das atribuições do Estado, organizar o espaço.
42
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. 2001:113.
43
“O desenvolvimento concreto dessa luta constante, e as relações de poder entre os adversários, variam
profundamente conforme os países. O resultado dos conflitos, porém, é, em sua estrutura, quase sempre o
mesmo: em todos os maiores países da Europa Continental, e ocasionalmente também na Inglaterra, os
príncipes ou seus representantes terminam por acumular uma concentração de poder ao qual não se
comparam os demais estados. A autarquia da maioria, e a parcela de poder dos estados, vão sendo
reduzidas passo a passo, enquanto se consolida o poder ditatorial, ou „absoluto‟, de uma única figura
suprema, por maior ou menor período.” ELIAS, Norbert. 1993:15. “A construção do Estado no Ocidente
é inseparável do Ascenso da potência monárquica. O processo histórico de concentração do poder em
benefício do rei conduz, de fato, durante vários séculos, à edificação de instituições políticas centrais de
onde sairão os primeiros fundamentos do Estado moderno.” NAY, Olivier. 2007:136.
44
“Portugal e Espanha haviam inaugurado, ainda no final da Idade Média, a ideia moderno-colonial de
estado territorial soberano que, mais tarde, em 1648, seria consagrado em Westfália. (...) A „limpeza
religiosa‟ dos territórios de Portugal e Espanha nos dá conta da intolerância que esteve subjacentes à
constituição desse primeiros estados territoriais e, de certa forma, se fará presente enquanto
colonialidade do saber e do poder na conformação dos mais diferentes estados territoriais. (...) A ideia
de uma mesma língua nacional, de um mesmo sistema de pesos e medidas, e de uma mesma religião
oficial dá conta do projeto de homogeneização em curso na constituição do Estado territorial moderno
que, assim, se mostra também colonial em suas fronteiras internas.” PORTO-GONÇALVES, Carlos
Walter. 2006:46.
20
de atingir seus objetivos
45
. Com a produção social da crença de uma comunidade de
destino, respaldada pelo direito histórico à posse de um território, muitas guerras e
disputas foram e continuaram sendo travadas
46
.
Neste processo histórico, a consolidação do Estado moderno, como instituição
inovadora, como forma de poder político territorialmente centralizado, só foi possível
pela submissão e pelo controle dos territórios. Contudo, a progressiva organização da
sociedade civil e sua participação na vida política dos incipientes Estados territoriais
levaram a busca pela ampliação dos Direitos Legais. Fato que determinou uma série de
conflitos e convulsões sociais e, consequentemente, a diversas mudanças nas estruturais
sociais e estatais.
O ápice desse processo ocorreu com as revoluções burguesas, especialmente, a
Revolução Francesa (1789-1799)
47
. A Revolução Francesa inaugurou a época
contemporânea, ampliou a participação da sociedade civil, estabelecendo os
fundamentos da expressão política de uma vontade comum e da solidariedade social
estabelecida pelas regras do chamado „Contrato Social‟, que servem para legitimar os
limites territoriais
48
. A solidariedade social ocorreu, pela primeira vez na história, com o
recurso a ideia de nação, tendo sido definido os conteúdos do discurso sobre a
45
“O Estado buscava a obediência de seus indivíduos representando-se como a concretização do futuro
da nação e a garantia de continuidade. Por outro lado, uma nação sem Estado estaria destinada a ser
insegura sobre o seu passado, incerta sobre o seu presente e duvidosa de seu futuro, e assim fadada a
uma existência precária. Não fosse o poder do Estado de definir, classificar, segregar, separar e
selecionar, o agregado de tradições, dialetos, leis consuetudinárias e modos de vida locais, dificilmente
seria remodelado em algo como os requisitos de unidade e coesão da comunidade nacional. Se o Estado
era a concretização do futuro da nação, era também uma condição necessária para haver uma nação,
proclamando – em voz alta, confiante e de modo eficaz – um destino compartilhado. A regra cuiús régio,
eius natio (quem governa decide a nacionalidade) é de mão dupla.” BAUMAN, Zygmunt. 2005-a:27.
46
Em Estados em que a submissão a um éthos nacional não foi consolidada continuam acontecendo
ameaças de ruptura, como por exemplo, em países como o Canadá, a Espanha e a Rússia. Em que
movimentos nacionalistas procuram a independência territorial.
47
“Até a era das três grandes revoluções burguesas (a inglesa, a americana e a francesa), não havia
alternativa política que pudesse opor a esse modelo com êxito. O modelo absolutista e patrimonial
sobreviveu nesse período apenas com o apoio de um compromisso especifico de forças políticas, e sua
substância estava sofrendo erosão interna, basicamente por conta do surgimento de novas forças
produtivas.” HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. 2001:112.
48
No contrato social se estabeleceriam as regras necessárias ao convívio social e a subordinação política
que substituiriam o estado natural, no qual não haveria qualquer tipo de poder centralizado ou de
organização. Desta maneira, a origem do Estado estaria na própria vontade individual e seus fins seriam
determinados pelo consenso dos indivíduos. O Estado, neste sentido, representaria a manifestação
máxima do desejo de liberdade e de igualdade de todos. O Estado para Hobbes (2003) seria então um
Leviatã, um „Deus Mortal‟, nada menos que „um homem artificial, embora de maior estatura e força do
que o homem natural, para cuja defesa e proteção foi projetado‟. O Estado como os contratualistas
imaginavam possuiria uma soberania absoluta, pois apenas um poder incontestável, seria capaz de
impedir que os indivíduos exercessem seu direito de natureza pondo em marcha o „mecanismo infernal da
violência individual‟.
21
responsabilidade comum, embasadas no local de nascimento e na noção de
pertencimento a uma comunidade de destino
49
.
O Estado territorial moderno, politicamente republicano e organizacionalmente
impessoal, universalista e cívico representa um produto do pensamento iluminista de
racionalidade, liberdade e igualdade. Este modelo, oriundo das condições históricas do
Ocidente Capitalista, individualista e liberal, difundiu-se pelo globo terrestre, levando
consigo os ideais de progresso, de civilização e de desenvolvimento como percursos
essenciais para alcançar aquilo que no centro do sistema, era representado como marco
civilizatório
50
. Contudo, se como modelo abstrato o Estado moderno pode ser pensado a
partir de categorias filosóficas, a perspectiva histórica e geográfica obriga a pensá-lo
como instituição fortemente ancorada nos tempos e nos espaços sociais. A expansão do
modelo estatal moderno europeu para a totalidade do planeta e o processo de
incorporação dos nacionalismos, fundamental para a constituição do Estado-Nação,
resultaram de situações muito diferentes, que mais do que negar, confirmam a
territorialidade e a historicidade do Estado. Desta maneira, pode-se afirmar que o Estado
é na realidade uma instituição e como tal está inscrito nos tempos do território e da
sociedade. E é desta inscrição que resulta o processo de transformação a que ele se
encontra frequentemente submetido
51
.
A partir da Europa Ocidental, esta instituição espalhou-se pelo mundo,
moldando a história de diversas sociedades do século XVI até os nossos dias
52
.
49
“o pacto legitimador do Estado moderno se faz a partir da articulação de vetores externos – a
soberania conferida por outros Estados, inaugurada no Tratado de Westfália – e de vetores internos – a
soberania das normas centralizadoras, garantida pela obediência civil. Não é possível, portanto,
compreender essa instituição sem considerar esta dupla dimensão fundadora: o pacto externo
legitimador da sua soberania e o „contrato social‟ interno, legitimador da centralidade territorial de
obediência às suas normas. O Estado moderno tem, pois, evoluído, no tempo e no espaço, como
resultado da interação dinâmica dessas forças, externas e internas.” CASTRO, Iná Elias de. 2005:117.
50
“El aumento de la población urbana, com el consiguiente nacimiento de una sociedade de masas, el
progressivo aumento de la fuerza del proletariado y la aparición de grupos intermédios (sindicatos,
partidos políticos) como expresión del pluralismo político-social son los factores sociológicos
determinantes de las transformaciones del Estado liberal que conducirán a las estructuras de los
actuales Estados democráticos. Desde finales del siglo XIX, se trata, pues, de conseguir una
armonización entre la libertad y la igualdad. Se dará una progressiva extensión del sufrágio, se
modificará la representación parlamentaria, se consolidarán los partidos políticos y sindicatos y las
masas obreras lograrán algunas conquistas, todo ello dentro de los esquemas de un Estado liberal de
Derecho que descansa en bases capitalistas.” AGUDO, Miguel. 2007:39-40
51
“Como a relação entre a forma institucional Estado e a forma instituinte sociedade civil é dialética, o
Estado, por princípio incorpora a dinâmica das mudanças, mesmo que nele elas sejam mais lentas do
que aquelas que ocorrem na sociedade.” CASTRO, Iná Elias de. 2005:118.
52
“As palavras são testemunhas que muitas vezes falam mais alto que os documentos. Consideremos
algumas palavras que foram inventadas, ou ganharam significados modernos, substancialmente no
período de 60 anos de que trata este livro. Palavras como indústria, industrial, fábrica, classe média,
22
Atualmente, a superfície da Terra está dividida em Estados nacionais de dimensões
variadas, e a experiência da sua existência faz parte da vida cotidiana da população
mundial
53
. O Estado é certamente uma das instituições mais importantes da
modernidade, responsável pela delimitação do território para o exercício do mando e da
obediência, segundo normas e leis estabelecidas e reconhecidas como legítimas
54
.
Contudo, no Estado moderno, a centralidade do poder só foi possível pela submissão e
pelo controle do território. O controle sobre o território e seus conteúdos, pessoas e
bens, é uma questão fundadora para todas as sociedades com organizações sociais e
políticas
55
. A existência de uma classe dirigente, destacada das tarefas de produção e
com funções de administração só foi possível pela organização de um aparato extrativo,
isto é, de uma organização capaz de extrair excedentes suficientes para manter uma
classe não produtiva e de garantir, por meios simbólicos, a legitimação da extração e,
por meios materiais, o exercício da coerção
56
.
classe trabalhadora, capitalismo e socialismo. (...) Imaginar o mundo moderno sem estas palavras (isto
é, sem as coisas e conceitos a que dão nomes) é medir a profundidade da revolução que eclodiu entre
1789 e 1848, e que constitui a maior transformação da história humana desde os tempos remotos quando
o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado. (...) Mas não seria
exagerado considerarmos esta dupla revolução – a francesa, bem mais política, e a industrial (inglesa) –
não tanto como uma coisa que pertença à história dos dois países que foram seus principais suportes e
símbolos, mas sim como a cratera gêmea de um vulcão regional bem maior.” HOBSBAWM, Eric.
2003:15-16.
53
Por mais diferentes que sejam estas experiências, há múltiplas formas de manifestação do Estado, como
por exemplo, atravessar uma fronteira, confrontar-se com um policial, possuir um diploma, ocupar um
posto de trabalho na estrutura estatal ou pagar impostos. Esta dualidade reflete as duas escalas de ação do
Estado: o „lócus‟ primário de um poder mundial e o organizador e fiador da ordem territorial interna.
54
“Força e marca se confundem nesta tradição, porque a cultura que a encerra, exatamente por
acreditar ser a verdade revelada, única, tem propósitos expansionistas que dois séculos bastaram para
que todo o mundo fosse dividido em Estados nacionais submetidos cada um a sua própria Constituição,
revelando a força dominante da ideia. Não há um único pedaço da terra que não esteja sob a jurisdição
de um Estado, mesmo as mais inóspitas e inabitadas regiões e, quando se descobre uma nova
possibilidade de território, rapidamente se distribui entre os Estados existentes, como a Antártida.”
MARÉS, Carlos Frederico. In. NOVAES, Adauto. 2003:234.
55
“Esta, portanto, sempre foi uma questão central para todos os impérios, desde a Antiguidade, e as
soluções, embora com variações, tinham em comum um formato que assegurava nos territórios
representantes fiéis ao poder central investidos de autoridade para extrair renda e fazer cumprirem-se as
leis. Na China Imperial, o controle do vasto território era tarefa de uma classe superior de intelectuais-
funcionários a serviço do imperador, que se consolidou progressivamente e que, em troca da segurança
dos direitos de propriedade dos súditos, forçava a cobranças das rendas em espécie ou em dinheiro. No
Império Romano, um sistema mais complexo e descentralizado de partilha territorial das divisões
administrativas e de funções afiançava a presença da autoridade central nas localidades, mesmo as mais
distantes, para a cobrança de impostos e execução de leis.” CASTRO, Iná Elias de. 2005:125.
56
A coerção, conceitualmente, representa a atuação sobre indivíduos ou grupos humanos de mecanismos
de punição, vigilância, controle e correção sobre um comportamento, crime ou infração. Em outras
palavras, a coerção seria a manifestação direta do poder sobre os comportamentos ou atos indesejados de
um indivíduo ou grupo social por outro indivíduo ou grupo social que detêm o poder. A coerção, em
essência, representaria as estratégias destinadas a corrigir ações ou comportamento considerados
indesejados ou inadequados a um determinado período.
23
Formada por um corpo qualificado de funcionários, a estrutura administrativa do
Estado moderno respaldou a criação de uma rede conectiva, única e unitária, que
modelou a estrutura organizativa formal da vida associada, transformando-se em
autêntico aparelho de gestão do poder sobre a sociedade e sobre o território. Tal
aparelho, com o tempo, tornou-se cada vez mais operacional em processos definidos de
acordo com objetivos concretos, como por exemplo, a manutenção da ordem interna, a
eliminação de conflitos sociais e a normatização das relações de força através do
exercício monopolístico do poder
57
.
A seguir será discutido o chamado monopólio estatal da violência. Seu objetivo
reside em entender como o Estado, por intermédio de sua máquina administrativa
assumiu o papel de resolução de conflitos e, principalmente, de organizador da vida
social.
1.2 - O Estado moderno e o monopólio da violência
“Na urgência, é preciso não se apressar. Ao menos para afirmar, de
encontro ao que proclama os zumbis no poder, cegos por uma ideologia
securitária e mortífera, que os „vândalos‟ e outros bárbaros urbanos não
representam um verdadeiro risco para a vida social. É verdade, como diz
Augusto Comte, „ que os mortos governam os vivos‟; talvez por isso
convém lembrar que a violência mais perigosa é a das instituições e do
Estado que lhes dá sustentação. De tanto investir na assepsia, eliminam-se
as capacidades de resistência de um corpo social. Assim, as formas de
vitalidade, tão repentinas quanto explosivas, só podem deixar
desamparados os responsáveis e os moralistas de todos os tipos,
ignorantes do que é, na efervescência em que uma comunidade fortalece o
sentimento de si mesma”.
MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária. 2001:17.
Como apontado, o Estado moderno floresceu no contexto da transição do
Feudalismo para o Capitalismo, ocorrido entre os séculos XI e XVIII, em solo
57
“A cada Estado corresponde um certo número de missões: assegurar a ordem no interior e a paz civil
pelo exercício da violência legitima (Max Weber), assegurar sua soberania e sua legitimidade em
relação aos outros Estados, seus parceiros no diálogo internacional. Para executar suas missões, ele
dispõe de instrumentos dos quais tem o monopólio: a justiça, a polícia, o exército, a diplomacia (...).
Cada Estado, com seu território, constitui uma unidade homogeneizada pelas regras que o administram e
forma uma unidade econômica.” DOLLFUS, Olivier. 1997: 92.
24
europeu
58
. Neste processo aconteceram profundas mudanças na economia, na sociedade,
nas organizações políticas e na cultura, o que resultou na construção de um „novo
mundo‟, pautado por novos valores e novas formas de organização social
59
. Ao passo
que o Estado moderno ganhava concretude e expandia sua esfera de atuação ocorria, em
paralelo, transformações em diversas partes do planeta, cujos resultados mais evidentes
foram à imposição de uma estrutura organizacional das sociedades baseadas em valores
europeus. Neste processo, vastas regiões da América, da Ásia, da África e da Oceania
passaram a fazer parte do „mundo europeu‟, sendo incorporadas e submetidas aos
interesses desses Estados e, consequentemente, de uma estrutura capitalista que se
mundializava
60
. No berço do processo de concreção do mundo contemporâneo, de
expansão do modelo estatal de cunho territorial, residiu a submissão de diversos povos a
uma visão eurocêntrica, capitalista e civilizacional
61
.
No transcurso da expansão do modelo estatal pelo mundo e da submissão de
diversos povos ao modelo civilizacional europeu, as sociedades teriam domesticado,
progressivamente, a violência, tornando-se mais pacíficas e menos tolerantes com a
violência, que passou a ser considerada como arcaica, selvagem e animal. Desde então,
os atos de barbárie representariam resíduos de épocas remotas, acontecimentos
58
Adota-se como elemento de diferenciação entre o capitalismo e o feudalismo a expressão mencionada
por Rodney Hilton (2004): “sua característica essencial é a divisão de classes entre assalariados sem
propriedade e empresários que possuem capital, em contraste com a organização característica medieval
da indústria e da agricultura com base no pequeno produtor que possuía seus próprios meios de
produção.” HILTON, Rodney. 2004:183.
59
“O que distingue a economia medieval da economia capitalista é que, em parte considerável, a
primeira – estática – fazia das riquezas excedentes um consumo improdutivo, ao passo que a segunda
acumula e determina um crescimento dinâmico do aparelho de produção. (...) A sociedade, no
pensamento da Idade Média, era um corpo composto, como todo organismo vivo, de partes não
homogêneas.” BATAILLE, George. 1975: 149.
60
“Em parte alguma, com exceção da Europa, esses componentes do capitalismo fundiram-se na
poderosa mescla que impeliu as nações europeias à conquista territorial no mundo à formação de uma
economia mundial capitalista poderosíssima e verdadeiramente global. (...) o aspecto mais importante
dessa transição é a fusão singular do Estado com o capital, que em parte alguma se realizou de maneira
mais favorável do que na Europa. (...) No princípio, as redes de acumulação de capital estavam
inteiramente inseridas em redes de poder e lhes eram subordinadas. Nessas condições, para terem
sucesso na busca do lucro, era necessário que as organizações empresariais fossem Estados poderosos.”
ARRIGHI, Giovanni. 1996:11-88.
61
“Até 1453-92, não se podia falar de mundo no mesmo sentido que falamos hoje, até porque a ideia de
que vivíamos em um planeta, com a forma que viríamos a chamar de um globo, não era disseminada. Os
europeus nos ensinaram a chamar de geografia de então de „mundo conhecido‟, esquecendo de alertar-
nos que era o mundo conhecido por eles, europeus e, diga-se de passagem, por um segmento específico –
a nobreza, o clero e uma nascente burguesia mercantil. Daí ser mais preciso falar que fazemos parte de
um mundo de singularidades e não de regiões que pressupõem um todo.” HAESBAERT, Rogério;
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. 2006:15.
25
condenados a desparecer com o inexorável progresso da humanidade
62
. O progresso da
humanidade, caracterizado por Elias (1994 e 1993) como um „Processo Civilizador‟,
teria ocorrido de maneira não planejada, posto em movimento pela dinâmica autônoma
de uma rede de relacionamentos e de mudanças na forma de convivência social a partir
da Idade Média
63
. Neste processo, a civilização não representaria apenas um estado,
uma situação, mas uma ação contínua que teve início na transição do Feudalismo para o
Capitalismo, mas que prossegue até os nossos dias
64
.
No transcurso desse processo, o Estado moderno apresentou uma função central,
pois representou a principal instância encarregada por controlar os processos de
individualização e de ordenamento do cotidiano, qualificando, classificando e
enumerando os indivíduos e diversos equipamentos sociais. Contudo, como mostrado,
foi por meio de lentas mudanças nas estruturas medievais que o Estado moderno e o
Capitalismo começaram a se enraizar nas sociedades europeias
65
. Foram necessários
mais de dois séculos para que os Reis expandissem seu poder, as instituições da
monarquia adquirissem importância e a burguesia ascendesse como classe social.
62
“(...) nossa sociedade teria domesticado progressivamente a violência a partir da Idade Média ou do
fim das conquistas coloniais, tornando-se uma civilização contra-a-violência, na qual a violência seria
considerada arcaica, selvagem e animal. Os atos de barbárie cometidos desde então – guerras,
pilhagens, extermínios, genocídios, guerras civis, guerrilhas, revoluções, deportações, assassinatos
políticos, mortes passionais, violências domésticas, incestos, pedofilia, campos de concentração,
terrorismos, penas de morte, máfias, tráficos, corrupções, segregações, explorações, exclusões, sadismos
– seriam resíduos de épocas remotas, condenados a desaparecer com o progresso moral da
humanidade.” PEDRAZZINI, Yves. 2006:19-20.
63
“Na verdade, nada na história indica que essa mudança tenha sido realizada „racionalmente‟, através
de qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou de grupos. A coisa aconteceu, de maneira
geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo especifico de ordem. (...) planos e ações,
impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso e
hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos de ações isolados, pode dar origem a mudanças e
modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa independência de pessoas surge uma
ordem sui generis, uma ordem mais irreversível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas
isoladas que a compõem. (...) A civilização não é „razoável‟, nem „racional‟ como também não é
„irracional‟. É posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma de uma
rede de relacionamentos, por mudanças especificas na maneira como as pessoas se veem obrigadas a
conviver.” ELIAS, Norbert. 1993:193-195.
64
“O conceito de „civilização‟ refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo
de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
Pode se referir ao tipo de habitações ou a maneira como os homens e mulheres vivem juntos, à forma de
punição determinada pelo sistema judiciário ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente
falando, nada há que não possa ser feito de forma „civilizada‟ ou „incivilizada‟. Daí ser sempre difícil
sumariar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como civilização.” ELIAS, Norbert.
1994:23.
65
O aumento da capacidade administrativa do Estado e, consequentemente, de seu aparato burocrático,
levou o Estado moderno a assumir funções anteriormente delegadas a aparelhos privados, como por
exemplo, a Igreja Católica que, até esse momento, estava encarregada pelos registros de nascimentos.
26
Como resultado direto da construção do Estado moderno e de consolidação das
relações capitalistas, as sociedades adquiriram uma maior complexidade, com novos
estratos sociais e novas funções entre os indivíduos. Com o poder político
institucionalizado na figura do Rei e por sua natureza centralizadora, o Estado passou a
deter o chamado „monopólio da violência física‟. Neste novo cenário, o controle social
passou a ser exercido pelo Estado e pela instauração de uma série de medidas
coercitivas. Com o passar do tempo, os padrões de agressividade instituídos sofreram
modificações e determinados atos de violência, praticados cotidianamente nas
sociedades, passaram a não serem mais aceitos, tornando-se objetos de repúdios,
censuras e punições.
Durante o período medieval, alguns padrões de comportamento, permitiam ao
indivíduo a libração das emoções por meio da violência. Explosões de crueldade não
excluíam ninguém da vida social, seus autores não eram banidos. Pelo contrário,
durante a Idade Média, o prazer de matar e torturar eram grande e socialmente
permitidos
66
. Os homens medievais não amavam a violência, mas viviam inseridos nela.
Não havia um poder central capaz de obrigar este ou aquele comportamento. A única
ameaça, o único perigo que podia sugerir o medo e impedir que a violência se
apresentasse como forma de resolução de conflitos era o de ser vencido em uma
batalha
67
. Neste cenário, a guerra, a vingança e as rixas não somente eram permitidas,
mas, até certo ponto, faziam parte dos „prazeres da vida‟
68
.
Com a modernidade, no entanto, nas circunstâncias do que se convencionou
encarar como normalidade, a agressividade passou a ser menos utilizada. A violência
física, até então presente no cotidiano repleto de rixas e guerras, passou a ser confinada
aos quartéis, de onde irromperia apenas em casos extremos, em tempos de guerras ou
66
“O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiro? Era pouco o dinheiro nessa sociedade. Se os
prisioneiros podiam pagar e, além disso, eram membros da mesma classe do vitorioso, exercia-se certo
grau de contenção. Mas, os outros? Conservá-los vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava
aumentar a riqueza e o poder do inimigo. Isto porque os súditos (...) faziam parte da riqueza da classe
governante daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão mutilados que
não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho.” ELIAS, Norbert. 1994:193.
67
ELIAS, Norbert. 1994:192.
68
Norbert Elias (1994) nos mostra exemplos de como era comum e tolerável esse padrão de
comportamento entre várias camadas sociais ao descrever um conflito entre pintores: “Por exemplo,
pintores se acusam mutuamente de roubos; depois um deles, auxiliado por parentes, esfaqueia e mata o
outro na rua. (...). As autoridades urbanas tentam, sem resultado, acabar com essas brigas entre
famílias. Os magistrados convocam os contentores, ordenam a cessação da luta, emitem decretos e
mandados. Durante algum tempo, tudo corre bem. Em seguida, uma nova rixa surge e outra se
reacende.” ELIAS, Norbert. 1994:197.
27
insurreições. Com o monopólio da força física passado a autoridades centrais, a
resolução de conflitos e problemas sociais tornava-se uma responsabilidade dos agentes
estatais
69
. O que levou o Estado moderno a ser encarado como a instância encarregada
pela paz social. O objetivo primordial do Estado passou a ser o de assegurar a segurança
dos indivíduos e garantir a paz pública. Não obstante, para que tal finalidade fosse
alcançada, os órgãos executores do Estado deveriam impor a sociedade uma série de
normas, atos disciplinares e formas de conduta, além de instituir sansões para quem as
descumprissem. Assim, tem início o estabelecimento de uma visão do Direito como
sistema de limites ao homem e o Estado como instituição capaz de fazer cumprir a lei
70
.
A partir desse momento, o Estado passou a ser encarado como o órgão capaz de
assegurar três grandes valores socialmente relevantes: a paz, a liberdade e a justiça.
A justificativa para que o Estado centralizasse a violência e impedisse a sua
utilização por indivíduos e grupos não autorizados residia na visão de que se destinava
ao „bem comum‟. O Estado representaria uma instância social isenta capaz de impedir as
arbitrariedades que a utilização da força por indivíduos ou grupos permitia. Portanto, se
em um primeiro momento, a violência foi utilizada para defender o trono e o altar,
posteriormente, passou a ser utilizada para defender os valores oriundos da revolução
burguesa, das unidades nacionais e até mesmo das ditaduras mais sangrentas, em nossos
dias.
O „bem comum‟ representou o grande trunfo dos grupos dominante para
justificar a repressão e a necessidade da violência legalmente instituída. No entanto,
convém ressaltar que além de garantir a proteção dos indivíduos contra agressões e
arbitrariedades cometidas por outros indivíduos em seu território, o Estado, no
transcurso do processo histórico que lhe deu forma, ao incorporar os sentimentos de
pertencimento, passou a servir também como abrigo contra agressões externas. Na
consciência de seus membros, o Estado tem a função de „unidade de sobrevivência‟ e
serve, para os indivíduos que compõem a sua população, como protetor contra atos de
violência externos e internos. Assim, o Estado evoluiu de forma que a defesa das
liberdades fundamentais do indivíduo se tornou uma de suas missões essenciais.
69
“Uma vez tivesse o monopólio da força física passado a autoridades centrais, nem todos os homens
fortes podiam se dar ao prazer do ataque físico. Isto passava nesse instante a ser reservado aos poucos
legitimados pela autoridade central (como por exemplo, a polícia contra criminosos) e a números
maiores apenas em tempos excepcionais de guerra ou revolução, na luta socialmente legitimada contra
inimigos internos ou externos.” ELIAS, Norbert. 1994:199.
70
A norma jurídica é a realização do direito e só há direito a partir de uma norma que o preveja. A norma
só é obedecida se trouxer uma sanção para quem a descumpra.
28
Se a garantia da segurança e da liberdade dos indivíduos pode ser vista como
função essencial do Estado, a justiça sempre foi considerada como inseparável dessa
missão. Ao assegurar o bom funcionamento da justiça, o Estado assegurava a paz e a
segurança individual, visto que as pessoas poderiam contar com um órgão que decidisse
e punisse de maneira imparcial os indivíduos que violassem as leis e os direitos dos
demais cidadãos. A justiça, tanto o princípio quanto o aparato a serviço de tal princípio,
sempre foi considerada essencial ao próprio conceito de Estado. Com efeito, a lei, longe
de constituir um conceito antagônico à violência, passou a ser parte integrante da ordem
repressiva e da organização da coação, exercida por todo o aparelho estatal
71
. Assim,
neste contexto, os aparatos legais atuam como organizadores da repressão e da violência
física organizada, em funções que podem ser encaradas como positivas ou negativas.
Desta forma, ao estruturar o funcionamento da repressão física a lei passa a
constituir um „código de violência organizada‟. Assim, a lei nos sistemas sociais
modernos não intervém contra a violência ou o terror estatal. Pelo contrário, ela
funciona como organizadora do exercício da violência, considerando-se possíveis
resistências por parte de parcelas da população. O Estado moderno, valendo-se da lei
como instrumento de organização da força, aprofundou o uso que dela fizeram os
arranjos políticos que o antecederam, especialmente, por monopolizar e centralizar o
poder de guerra e de morte
72
.
Apesar de toda organização de um sistema jurídico apoiado em sanções que
forçam os indivíduos a cumprirem as leis do Estado, essa organização monopolista da
violência física também atua sobre os indivíduos de forma indireta, especialmente, por
meio de formas de autocontrole absorvidas por todas as pessoas. Segundo Elias (1994 e
1993), os indivíduos passam a ser condicionados desde a infância a controlar suas
emoções. Exige-se o controle incessantemente dos impulsos emocionais momentâneos,
tendo em vista os efeitos, em longo prazo, sobre o comportamento. Desta maneira, o
indivíduo passa a sofrer um autocontrole, passa ser condicionado, treinado, e,
71
“(...) o simples fato dos meios de realização da violência física legitima estarem concentrados nas
mãos do Estado não foi condição suficiente para assegurar a pacificação dos costumes e hábitos
enraizados da sociedade desde tempos imemoriais. Daí a necessidade de um Direito Positivo, fruto da
vontade racional dos homens, voltado, por um lado, para restringir e regular o uso da força e, por outro
lado, para mediar os contenciosos dos indivíduos em si.” ADORNO, Sérgio. S/D:6.
72
“Como bem demonstrou Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência não é
mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e
centralizada pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo
civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica
concentrada nas mãos do poder político.” LOWY, Michael. 2002:1.
29
sobretudo, a prever os resultados de comportamentos inadequados. Este autocontrole é
tão profundamente plantado que desenvolve uma supervisão automática das paixões e
dos impulsos violentos, que passam a ser confinados e domados por inumeráveis regras
e proibições. É o autocontrole que envolve toda a conduta dos indivíduos de acordo com
as normas sociais
73
.
Por outro lado, além do monopólio do exercício da força, o Estado, por
intermédio de seu aparato administrativo, também exerceria a prestação de serviços
públicos
74
. O que permitiria uma atuação estatal para além do poder coercitivo
75
. O
Estado é, sobretudo, um produto da sociedade e, desta forma, produto das contradições
que lhe são inerentes. Assim, o Estado moderno não apresentaria uma estrutura material
isenta e afastada dos conflitos de classe oriundos do modo de produção capitalista, mas
reflexo direto das disputas travadas entre as diferentes classes sociais
76
. O processo de
organização do Estado capitalista não seria o resultado da existência prévia de uma
burguesia consolidada como classe dominante, o que reduziria o Estado como um
73
“A estabilidade peculiar do aparato de autocontrole mental que emerge como traço decisivo, embutido
nos hábitos de todo ser humano „civilizado‟, mantém a relação mais estreita possível com a
monopolização da força física e a crescente estabilidade dos órgãos centrais da sociedade. Só com a
formação desse tipo relativamente estável de monopólios é que as sociedades adquirem realmente essas
características, em decorrência das quais indivíduos que as compõem sintonizam-se, desde a infância,
com um padrão altamente regulado e diferenciado de autocontrole.” ELIAS, Norbert. 1993:197.
74
“Max Weber, viu no processo de formação do Estado Moderno um fenômeno de expropriação por
parte do poder público dos meios de serviço como as armas, fenômeno que caminha lado a lado com o
processo de expropriação dos meios de produção possuídos pelos artesãos por parte de possuidores de
capitais. Desta observação deriva a concepção weberiana, hoje tornada „communis opinio‟, do Estado
moderno definido mediante dois elementos constitutivos: a presença de um aparato administrativo com a
função de prover à preservação de serviços públicos e o monopólio legítimo da força”. BOBBIO,
Norberto, 1987:69.
75
“Para Weber, o Estado só se deixa definir pelo meio especifico que lhe é peculiar, tal como é peculiar
a todo outro agrupamento político, ou seja, o uso da coação física. Em outras palavras, o Estado define-
se como a estrutura ou o agrupamento político que reivindica, com êxito, o monopólio do
constrangimento físico legítimo. A esse caráter específico do Estado, acrescentam-se outros traços: de
um lado, comporta uma racionalização do Direito com as consequências que são a especialização dos
poderes legislativo e judiciário, bem como a instituição de uma polícia encarregada de proteger a
segurança dos indivíduos e de assegurar a ordem pública; de outro lado, apoia-se em uma administração
racional baseada em regulamentos explícitos que lhe permitem intervir nos domínios os mais diversos,
desde a educação até a saúde, a economia e mesmo a cultura. Enfim, dispõe de uma força militar, por
assim dizer, permanente.” MALISKA, Marcos Augusto. 2006:20-21.
76
“Contrariamente ao economicismo tradicional que leva diretamente ao tecnicismo e que vê apenas nas
relações de produção a simples cristalização-envoltório-reflexo de um processo tecnológico das forças
produtivas como tais (assim, sendo importante na origem do processo de produção a concepção das
relações entre base e superestrutura reflexo), é o primado das relações de produção sobre as forças
produtivas que dá à sua articulação a forma de processo de produção e reprodução. Embora as forças
produtivas possuam uma materialidade própria que não se pode ignorar, elas se organizam, contudo,
segundo relações de produção dadas (o que não exclui nem as contradições entre elas, nem seu
desenvolvimento desigual no seio de um processo que é consequência deste primado).” POULANTZAS,
Nicos. 2000:24-25.
30
apêndice do exercício de dominação, ou, um simples instrumento de ascendência da
burguesia sobre as demais classes sociais. A organização do Estado seria parte
constitutiva do estabelecimento de relações de produção capitalistas emanadas de um
processo histórico especifico, que seria a luta de classes.
É em decorrência dessa premissa que tem origem a visão de que o Estado é
produto de uma relação. Entender o Estado como relação permite compreender as
funções diferenciadas que ele desempenha no que diz respeito às classes dominantes e
às classes dominadas
77
. O que ocorreria de maneira sutil, através de grupos de pressão
que agiriam sobre o Estado ou por meio das engenhosas e sinuosas estratégias que se
propagariam nas malhas do poder e que se moldariam aos dispositivos estatais
78
.
A maior presença das classes dominantes nas estruturas do Estado não implicaria
no desaparecimento das contradições que permeiam as relações entre as classes e
frações dominantes. Neste sentido, o nível de correlação de forças em cada formação
social concreta e em cada conjuntura específica, indicaria o grau de contradição
presente na organização interna do Estado. Porém, o Estado condensaria não apenas a
relação de forças entre os grupos hegemônicos, mas também a relação de forças entre as
classes dominantes e as classes dominadas. Deste modo, ao mesmo tempo em que as
amarras do Estado utilizam os mecanismos coercitivos e de submissão buscam a adesão
dos diferentes grupos sociais ao projeto dominante. O que ocorre, especialmente, pela
absorção e aceitação de demandas reais. Considerar como únicas categorias do Estado à
repressão/interdito e a ideologia/encobrimento leva forçosamente a subjetivar as razões
do consentimento e a situa-las na ideologia e no desejo de repressão, ou mesmo no amor
ao senhor ou ao líder
79
.
77
A visão relacional do Estado se expressa no entendimento do bloco hegemônico não como um bloco
monolítico, mas como unidade conflitual entre classes e frações de classes sob a hegemonia e direção de
uma classe ou fração hegemônica. O que segundo Poulantzas (2000), é possível porque o Estado deteria
uma autonomia relativa em relação às classes e frações de classes particulares, representando o interesse
político de longo prazo da burguesia em seu conjunto, em outras palavras, do capitalista coletivo, embora
o faça sob a direção de uma dessas classes ou frações.
78
“O Estado e o poder seriam constituídos de um núcleo inicial impenetrável e de um „resto‟, que as
classes dominantes, agindo por fora, poderiam influenciar ou no qual poderiam se introduzir. É, no
fundo, tomar a imagem renovada do Estado pela de Jano ou melhor ainda, pela que já obcecava
Maquiavel: Poder-Centauro – metade-homem, metade-fera. O que muda de um autor a outro é que ora a
face-homem, ora a face-fera se coloca do lado das classes. Quando não vejamos: se assim fosse, como
explicar, senão como por ataque de cegueira, o que constatamos cotidianamente, não como filósofos,
mas como simples cidadãos? É cada dia mais evidente que estamos enredados nas práticas de um Estado
que, nos mínimos detalhes, manifesta sua relação com interesses particulares e, consequentemente, bem
precisos.” POULANTZAS, Nicos. 2000:10.
79
“mesmo o fascismo foi obrigado a tomar uma série de medidas positivas para as massas (reabsorção
do desemprego, manutenção e às vezes melhoria do poder real de compra de certas categorias
31
Em nossos dias, no entanto, a relação entre o Estado e a violência é
particularmente íntima. Com efeito, é próprio de nossa época, não reconhecer, em
relação a qualquer outro grupo humano ou indivíduo, o direito de fazer uso da violência,
a não ser nos casos em que o Estado a tolere. O Estado se transformou, por conseguinte,
na única fonte do „Direito à violência‟. Devemos reconhecer, no entanto, que, cinco
séculos após o início da era da civilização, a violência segue intrinsecamente ligada a
inúmeros atos humanos
80
. Atualmente, a manutenção da ordem pública parece não
depender de uma conjunção entre autoridade, confiança e inteligência, mas,
principalmente, do uso da força. O que nos leva a apontar para o reverso do processo
civilizacional e do monopólio da força física estatal, o formidável potencial de violência
acumulada no Estado
81
.
A eficácia do processo de pacificação se relacionou muito mais com a
capacidade coatora do Estado face aqueles que descumprissem as normas e regras
estabelecidas, do que com um grau voluntário de autocontenção dos indivíduos. O
Estado, com o transcurso da modernidade, e, sobretudo, após a Revolução Francesa,
passou a utilizar o recurso da violência ou à ameaça de seu emprego para consolidar
entre os indivíduos os desígnios e interesses inerentes a sua atuação. Um dos aspectos
essenciais deste cenário, condição de sua instauração e manutenção, é a ameaça sobre os
corpos, à ameaça mortífera
82
. Nada impede que a sustentação do Estado seja sempre a
marca constrangedora sobre os corpos por meios físicos, a manipulação e a „devoração‟
populares, legislação dita social), o que não exclui, bem ao contrário, o aumento na exploração das
massas. (...) Um fato de aparência paradoxal é que tudo, ou quase tudo que a burguesia e o poder
realmente fizeram, foi dito, declarado, catalogado publicamente em algum lugar por um dos discursos do
Estado, mesmo incompreendido na época. Hitler jamais escondeu o desígnio de exterminar os judeus.”
POULANTZAS, Nicos. 2000:30-32.
80
Mesmo que a violência ainda permaneça como um elemento presente nas relações humanas, é inegável
que o grau de violência intrínseco as sociedades apresentou uma sensível redução e, principalmente,
passou a ser encarada como algo negativo.
81
“Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele podia escrever, ainda em 1939: "Comparada
ao furor do combate abissínio (...) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a agressividade
das nações mais belicosas do mundo civilizado parece moderada (...); ela só se manifesta em sua força
brutal e sem limites em sonho e em alguns fenômenos que nós qualificamos de „patológicos‟". Alguns
meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma guerra entre nações "civilizadas" cuja
"força brutal e sem limites" é simplesmente impossível de comparar com o pobre "furor" dos
combatentes etíopes, tamanha é a desproporção. O lado sinistro do "processo civilizador" e da
monopolização estatal da violência se manifestou em toda sua terrível potência. (...) Se o processo
civilizador significa, antes de tudo, a monopolização pelo estado da violência – como o mostram, depois
de Hobbes, tanto Weber quanto Elias – é necessário reconhecer que a violência do Estado está na
origem de todos os genocídios do século XX.” LOWY, Michael. 2002:1-3.
82
O corpo não é uma simples naturalidade biológica, mas uma instituição política, as relações de poder
com o corpo são muito mais complexas e extensas do que as relações com a repressão.
32
dos corpos. Essa sustentação ocorre de duas formas: primeiro, pelas instituições que
atualizam a sujeição corporal e a ameaça permanente de mutilação – prisão, exército e
polícia; segundo, pela instauração por parte do Estado de uma ordem corporal, que ao
mesmo tempo institui e gera corpos, dando-lhes forma, dobrando-os e encerrando-os
nas instituições e aparelhos.
O domínio do Estado moderno sobre a vida humana não se realiza apenas no
discurso parlamentar ou nas enunciações dos antigos monarcas, mais na aplicação diária
da administração, necessária e inevitavelmente nas mãos do funcionalismo, seja militar
ou civil. As regras e as características da atuação estatal têm sido extremamente
variadas, diferenciando-se de acordo com a escala nacional e internacional, ou entre
aspectos econômicos, ideológicos e militares. Todavia, destaca-se como uma de suas
principais atribuições, a manutenção da ordem interna com a utilização de mecanismos
violentos, arbitrários e discricionários
83
. Assim, o Estado moderno é capaz, em sua
materialidade, de introduzir na própria corporalidade dos súditos-objetos a violência do
Estado
84
. Em decorrência desse processo, o Estado moderno é justamente a comunidade
política que expropria dos grupos particulares o direito de recorrer à violência como
forma de resolução de seus conflitos. Na sociedade moderna, não há, por conseguinte,
qualquer outro grupo particular ou comunidade humana com „Direito ao recurso da
violência‟.
De maneira sucinta, podemos afirmar que na natureza do Estado moderno está
concentrada a violência. O que pode ser observado por meio de uma análise sobre as
diversas formas de violência que servem para a execução das finalidades do Estado. As
finalidades do Estado vinculariam interesses gerais à manutenção de interesses
particulares. Neste sentido, as palavras de Marx, no Manifesto Comunista, são
esclarecedoras: „a moderna violência do Estado não passa de um rebotalho, que
83
Destacam-se como características centrais do poder coercitivo dos Estados: a manutenção da ordem
interna, característica que na maioria das vezes protege das usurpações sociais e econômicas as classes
mais poderosas, contudo, a principal vantagem é a de proteger as relações de propriedade existentes da
massa de despossuídos; a dissuasão contra agressões militares externas, sobretudo, quando associados às
alianças e acordos entre nações espacialmente próximas; redistribuição econômica, distribuição
autoritária de recursos materiais escassos entre diferentes zonas ecológicas, grupos de idade, sexo, região,
classe social etc. Muitas das redistribuições ocorrem de forma unilateral, ou seja, sem que o Estado leve
em consideração os interesses dos grupos alijados do poder estatal.
84
“Se não se pode falar de mortificação corporal por parte do Estado – o que levaria à imagem de um
corpo primeiro naturalmente livre e em seguida corrompido politicamente, quando só existe corpo
político -, existe, contudo, nesta ordem corporal, um efetivo adestramento e arregimentação dos corpos,
operados por dispositivos físicos apropriados.” POULANTZAS, Nicos. 2000:28.
33
administra os negócios gerais de toda a classe burguesa‟
85
. Não se trata, no entanto, de
uma violência comum, objeto de realização de qualquer indivíduo, mas de uma
„violência política‟, de uma violência organizada. Neste sentido, as palavras de Barbosa
(2004) são esclarecedoras, ao afirmar que política da classe dominante em relação aos
trabalhadores sempre foi conduzida como „ato de polícia‟, foram sempre por meio de
golpes militares e uso da violência física que os dominantes silenciaram e
transformaram a diferença e a divergência em consenso imposto
86
.
Desta forma, podemos concluir que as bases no Estado se concentram
fundamentalmente na chamada „violência organizada‟ voltada para a dominação
política
87
. Contudo, não podemos reduzir à atuação do Estado a dominação política. O
Estado apresenta uma estrutura própria que não pode de maneira alguma ser reduzida à
simples dominação de classe. No interior do Estado coexistem outras estruturas,
voltadas para outras finalidades e funções. Mas, não é por isso, que a dominação
política, está constitutivamente menos marcada no seu funcionamento
88
. Concluir que o
poder e o domínio modernos não mais se baseiam na violência física é uma mera ilusão.
Mesmo que esta violência não transpareça no exercício cotidiano do poder, como no
passado, ela é mais do que nunca determinante. Sua monopolização pelo Estado induz a
uma forma de domínio no qual os múltiplos procedimentos de coerção, submissão e
consentimento desempenham papéis centrais.
Se o poder, enquanto essência da capacidade para fazer ou para obter algo não
está restrito à lógica e ao aparato estatal, o poder político territorialmente centralizado
está. Porém, devemos ultrapassar os limites de modelos explicativos estruturais, que
encaram o Estado, ator institucional, e a sociedade civil, ator social, em separado.
Ambos definem fenômenos políticos que recortam o espaço de forma diferenciada e
85
BORNHEIM, Gerd. In. NOVAES, Adauto. 2003:222.
86
BARBOSA, Jorge Luiz. 2004:156.
87
“Assim, contrariamente a toda concepção de aparência libertaria que se alimenta de ilusões, o Estado
tem um papel constitutivo nas relações de produção e nos poderes que elas exercem, e no conjunto das
ligações a toda concepção estatal, desde Max Weber, que já via nos aparelhos/instituições o lugar
original e o campo primeiro de constituição das relações de poder, até o caloroso momento atual, são as
lutas, campo primeiro das relações de poder, que sempre detêm a primazia do Estado. Isso se refere não
somente as lutas econômicas como também ao conjunto das lutas e inclusive às lutas políticas e
ideológicas.” POULANTZAS, Nicos. 2000:43.
88
Utilizando as palavras de Nicos Poulantzas (2000), podemos afirmar que o poder do Estado não se
esgota no Estado, ou seja, a dominação política está inscrita em sua materialidade funcional, porém, não é
produto do mesmo, como se este fosse um sujeito da história.
34
impõem uma realidade complexa que não pode ser compreendida em sua plenitude sem
levarmos em conta a relação estabelecida entre ambos. Portanto, é preciso tomar como
ponto de partida que um dos traços importantes da natureza do fato político é utilizar os
meios colocados a sua disposição para preservar tudo aquilo que lhe é favorável,
incluindo-se ai o território, as instituições e as normas que estruturam a organização das
sociedades no espaço.
Como apresentando, ao longo da história de formação do Estado moderno, a
coerção, a sanção social e o controle de comportamentos assumiram um papel destacado
entre as suas funções. A coerção, por meio de sua lógica de atuação, penetra todas as
partes da sociedade, perpassando diversas instâncias e espaços sociais. Em sua
composição, a coerção assume duas características distintas. A primeira seria a atuação
por meio de mecanismos sutis, quase imperceptíveis, como no caso dos hábitos,
costumes e normas estabelecidas. A segunda seria a sua manifestação por meio de
mecanismos facilmente identificáveis, como no caso das forças polícias, das prisões,
dos asilos, dos manicômios e das escolas
89
.
O contexto capitalista criou um conjunto de técnicas que transformaram o corpo
e o tempo dos homens em tempo e força de trabalho, nã