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A natureza cultural do objeto: a arte do ornamento

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Abstract

Sem indícios exatos sobre a sua origem, estima-se que o surgimento do ornamento tenha sido decorrente da imitação de registros da própria natureza e de suas impressões pelo homem primitivo, em seus primeiros objetos utilitários. Como atributo decorativo incorporado a determinado objeto, o adorno não cumpre um papel essencial para sua definição funcional ou mesmo estrutural. O caráter simbólico e a sua ostensiva função de significação pertencem à essência da sua cultura material. Ao promover uma extensão valorativa por vezes maior do que a própria materialidade do objeto, a forma do ornamento sempre foi influenciada pelas técnicas disponíveis quando da época de sua fabricação. De acordo com a história das técnicas, cada época notabilizou-se por suas formas características, gradualmente identificadas em variados estilos que legaram distintas visões de mundo, da arquitetura à indumentária, passando pelas artes utilitárias e pela escultura, pintura, poesia, música e, agora, o design. Das garatujas dos povos primitivos aos conjuntos ornamentais que decoram santuários, mausoléus e túmulos, em pinturas e esculturas nos palácios através dos tempos, entre o rococó, o design contemporâneo e as decorações carnavalescas, percebe-se a importância do ornamento como elemento de mediação entre o observador e o objeto, na delimitação dos espaços e nas estruturas pictóricas que preenchem as superfícies, à sua total ausência. Todas as tradições culturais e artísticas sempre incorporaram o ornamento nas manifestações de sua cultura material. Para muito além de sua qualidade como elemento decorativo, o ornamento tornava-se um cumpridor das funções sociais, como transformador de realidades individuais particulares, não somente pelo prazer visual legado, mas também para a construção de relações de pertencimento, a fim de promover a inserção e identificação cultural dos indivíduos junto a grupos de interesse. Mitos, crenças, representações simbólicas e sociais mostram-se como um fértil campo para o estudo e desenvolvimento de elementos ornamentais. O ornamento, enquanto signo, apresenta-se como um artifício e a sua morfologia, estilo e aplicações variam de acordo com a época e o local onde foram produzidos, materializando importantes referências e fontes de informação para o estudo dos valores culturais de determinada época ou grupo social. O presente artigo traz uma reflexão sobre a natureza cultural do ornamento, que, apoiada nas teorias contemporâneas de reconhecidos pesquisadores, nos permitirá observar como o seu teor narrativo concreto ganha forma através dos materiais condicionados pelas técnicas impostas na expressão plástica e criativa de artesãos e artistas das mais diversas origens e épocas. O seu valor fundamental reside na soberania do prazer visual que advém dele; e nesse artigo poderemos observar a confluência entre a arte e o design, a partir das escolhas materiais e do tratamento morfológico dado aos ornamentos em várias culturas, reconhecendo um processo evolutivo das qualidades estéticas pelo avanço tecnológico.
A natureza cultural do objeto:
a arte do ornamento
Marcus Dohmann
This simplicity you may make as costly as you
please or can, on the other hand: you may hang
your walls with tapestry instead of whitewash or
paper; or you may cover them with mosaic, or
have them frescoed by a great painter: all this is
not luxury, if it be done for beauty's sake, and not
for show: it does not break our golden rule: have
nothing in your houses which you do not know to
be useful or believe to be beautiful.
William Morris1
A imaginação criativa do homem para a construção de objetos
sempre foi estimulada por suas necessidades e ânsia de progresso. A
superação das dificuldades, como um fator motivador necessário para
o desenvolvimento de novas alternativas na busca de melhorar a
eficácia daquilo que já era conhecido, permitiu a cada indivíduo
desenvolver suas próprias ferramentas em função dos materiais a seu
alcance.
Assim como na natureza, a evolução dos objetos materiais
também acompanhou um incessante processo de transformação das
coisas existentes, em uma constante busca pelo aprimoramento das
formas e das funções. Impressionado com as belezas da natureza, o
homem nela viu sua principal fonte de inspiração para a extensão de
seu poder. Sua trajetória está cheia da evidência de seus esforços,
entre acertos e erros, para criar ferramentas e equipamentos que
servissem a seus propósitos de controlar mais adequadamente o
ambiente em que vive. O processo de consolidação da espécie humana
nos lega um significativo inventário de objetos materiais que permitiu
informar, de maneira tangível, sobre a evolução da capacidade
1 MORRIS, W. The beauty of life in: hopes and fears for art. New York: Longmans,
Green & Co., 1905, p. 109-110.
intelectual, tecnológica, artística e social, como autênticas pegadas de
sua cultura.
Mitos, crenças, representações simbólicas e sociais mostraram
ser um fértil campo para o desenvolvimento de elementos
ornamentais. O ornamento enquanto signo apresenta-se como um
artifício e sua morfologia, estilo e aplicações variam de acordo com a
época e o local onde foram produzidos, materializando importantes
referências e fontes de informação para o estudo dos valores culturais
de determinado período ou grupo social. O ornamento caracteriza uma
expressão de cultura onipresente em todas as civilizações e em todos
os períodos da história, com padrões socioculturais definidos pela
conjugação de prazer e poder, prestígio e hierarquia, que legaram
registros materiais importantes, entre leituras e evidências específicas,
para as pesquisas antropológicas. Das teorias da antropologia ao
design, o estudo dos ornamentos promove e multiplica ensaios
transversais à história da arte que trazem reflexões sobre seu lugar no
mundo contemporâneo, situando-o entre a tradição e o contributo das
novas tecnologias.
Segundo Owen Jones (1856), as pesquisas sobre as sociedades
arcaicas mostram que os povos, mesmo nos estágios iniciais da
civilização, cultivavam o desejo pelo ornamento, como um instinto
forte, como uma marca registrada que, na proporção de seus
progressos civilizatórios, registrou um aumento crescente de sua
presença nos objetos materiais. A inegável ambição humana em criar
padrões e objetos decorativos motivou uma fenomenologia própria na
busca por uma beleza sempre renovada que pudesse realizar a
impressão de uma mente individual.
Com uma rotina diária crescentemente saturada pela
materialidade, percebemos que mesmo os objetos mais banais têm a
capacidade de simbolizar nossos anseios e aspirações no dia a dia, das
mais comuns às mais profundas. Diante do mundo artificial que
construímos à nossa volta, com toda a experiência material acumulada
ao longo dos tempos, tecemos redes de significados cada vez mais
intrincadas e complexas, a partir da nossa interação com os objetos
materiais, utilizando-os para consolidar, estabilizar e tornar visíveis
práticas sociais que, ao mesmo tempo em que imputam valores,
configuram identidades culturais.
Talvez nunca tenhamos dado conta, mas com a interminável
quantidade de objetos com os quais lidamos muitos deles foram
incorporados a nosso cotidiano como se fossem uma verdadeira
“necessidade básica”. No entanto, um olhar mais cuidadoso poderá
revelar propriedades suas inesperadas, de onde podem ser
depreendidas novas formas de lidar ou fruir as coisas e,
consequentemente, conduzir a novos contextos que, por sua vez,
podem causar reavaliações surpreendentes.
Um vaso não é apenas uma técnica e uma função
utilitária. Ele também corresponde por sua forma,
eventualmente por sua decoração a escolhas que não
são mais de ordem infraestrutural; ademais, ele pode ter
uma significação social e pode ser testemunha de um
sistema de relações econômicas (PESEZ in: LE GOFF,
2005, p. 276).
O presente artigo observa o impulso ornamental como uma
necessidade da mente, do desejo de exercer nossa fantasia como um
poderoso e inalienável instinto, como em uma “disposição feliz do
espírito”. Este estudo reflete nosso interesse, sob um olhar
diferenciado, na temática do ornamento e na natureza cultural das
coisas, não somente como um complemento material do objeto, mas
como uma personificação da própria emoção em que o adorno ganha o
foco após uma inspeção mais detalhada que o situa no campo de
tensão entre questões sociais, culturais e estéticas. O recorte em
questão — o ornamento sinaliza uma produção circulante que não
se resume somente à sua configuração material, mas também à sua
inserção em uma rede de significados e atribuições culturalmente
específica, complexa, gratificante e, por vezes, conflitante. Cabe
lembrar que as relações do indivíduo com o meio social passam
necessariamente por objetos materiais que, transformados nas
expressões mais tangíveis da presença da sociedade em seu ambiente,
sempre buscaram além da alegria de viver, um prazer para os olhos,
pois, afinal de contas, somos cercados por objetos de desejo e o
somente por objetos de uso.
Ao promover uma extensão valorativa amiúde maior do que a
própria materialidade do objeto, a forma do ornamento sempre foi
influenciada pelas técnicas e materiais disponíveis, quando da época
de sua fabricação. De acordo com a história das técnicas, cada época
notabilizou-se por suas formas características, gradualmente
identificadas em variados estilos que legaram distintas visões de
mundo, da arquitetura à indumentária, passando pelas artes utilitárias
e pela escultura, pintura, poesia, música e, agora, mais recentemente,
pelo design.
Para uma melhor compreensão sobre a natureza cultural dos
objetos, em particular acerca de seus elementos decorativos, o artigo
conta com as reflexões de Gilles Lipovetsky, Roland Barthes e
Gilberto Paim, entre outros, para a observação de como os
ornamentos, além do deleite visual e tátil, podem fazer parte da
estrutura narrativa básica do objeto. Em seu discurso material, eles
influenciam, acrescentam e indicam novos significados, traduzidos
por meio dos materiais condicionados pelas técnicas impostas na
expressão plástica e criativa de artesãos e artistas das mais diversas
origens e épocas. O ornamento participa de modos diferentes no
tempo, contado em uma história legítima nas sociedades e nos objetos
materiais, em uma trajetória sempre renovada para novos olhares,
centrada na soberania simbólica do prazer visual que advém do
artefato, na confluência entre a arte e o design, a partir das escolhas
materiais e de seu tratamento morfológico, a ser reconhecido no
processo evolutivo do avanço tecnológico.
Conceito e evolução do ornamento
Sem indícios exatos sobre sua origem, estima-se que o
surgimento do ornamento tenha sido decorrente da imitação de
registros da própria natureza e de suas impressões pelo homem
primitivo, utilizando seu próprio corpo como suporte. Durante dezenas
de milênios, a vida coletiva se desenvolveu com mudanças sensíveis
no que tange a curiosidade e o gosto pelas realidades exteriores.
Embora o adorno não cumpra um papel determinante como um
atributo decorativo, para sua definição funcional ou mesmo estrutural,
o caráter simbólico e sua ostensiva função de significação pertencem à
essência das culturas humanas, desde tempos imemoriais.
O ornamento, como uma das primeiras expressões da arte
humana, estabeleceu a relação do homem com seu entorno, a partir do
progressivo condicionamento da rica e exuberante natureza que o
cercava, pela extração dos substratos minerais, animais e vegetais
existentes. Os ornamentos, antes mesmo da preocupação com as
vestimentas, penas, ossos, pedras e fibras, entre outros materiais
naturais, compunham o acervo de enfeites corporais que tinham como
função a expressão do círculo pessoal e social do homem primitivo, a
fim de estabelecer vínculos e traduzir experiências vivenciadas.
A preocupação com a estética observada nos povos primitivos
indicava sua função, ainda que instintiva, para a diferenciação e a
comunicação entre os primeiros grupos sociais. Com uma
preocupação certamente maior do que com a vestimenta, a tendência a
enfeitar-se conduzia a uma expressão de importância do próprio
indivíduo sobre o outro. Atualmente, consegue-se entender melhor a
função do ornamento nas sociedades arcaicas, a partir dos valores
simbólicos e do reconhecimento de diferentes razões para sua
elaboração, do pertencimento e hierarquia nos grupos sociais ao
surgimento de crenças e mitos, em uma verdadeira linguagem não
verbal. O caráter mágico e a proteção espiritual dos amuletos
atestaram, durante milênios, entre funções e significações, a
incorporação dos ornamentos na experiência material cotidiana dos
indivíduos como verdadeiros códigos sociais.
Um exame mais cuidadoso na etimologia das palavras
“ornamento”, “ornamentação” e “ornamental” reforça a ideia de um
código social. Como derivações do verbo latino ornare, que, na
acepção latina original, significa “adornar” ou “equipar”, o termo
propõe o entendimento de que “ornar” não se limita a uma simples
adição de artefatos supérfluos e sim, porém, a um claro sinal de
incremento de qualidade a uma valoração pessoal e social (GOLA,
2008, p. 18). A materialidade, a técnica e o desenho das formas,
imprimiram na ornamentação do objeto a história dos povos, em
narrativas que permitiram aos pesquisadores o entendimento das
maneiras de agir e pensar em diferentes épocas pelas leituras de seus
códigos sociais. Como exemplo disso, a riqueza de culturas ancestrais,
como a egípcia, a grega e a romana, através do simbolismo de suas
crenças e mitologias em todas as suas fases, refletiu diretamente na
produção de ornamentos, deixando um vasto legado de elementos
marcantes e característicos na distinção de suas civilizações no mundo
antigo.
Levando adiante os novos preceitos que se consolidaram nos
séculos iniciais da era cristã, com a necessidade criada em torno do
sofrimento para a redenção dos pecados, a idade média seguia com
seus dogmas incontestáveis do cristianismo como uma religião
dominante, gravando seus adornos em igrejas, monumentos, painéis e
códices que iluminavam as mensagens da história sagrada para a
exaltação de Deus como centro do universo humano, comportando
ornamentações de diferenciados significados, realizadas em técnicas
diversas, de acordo com os materiais utilizados e seus objetos de
suporte. Somente em seu final foi possível reconhecer a renovação das
formas como um valor mundano no qual a fantasia exibia seus
artifícios e exageros através da sociedade dominante, pela profusão
das ornamentações como uma regra permanente. Das iluminuras e
caligrafias ornamentais dos códices às esculturas e pinturas de grande
qualidade figurativa, no declínio da idade antiga, ao âmbito das
mudanças históricas do século XVI, com o surgimento do ideal
renascentista de universalidade, que pregava o conhecimento nas
diversas áreas, identificou-se, das artes às ciências, o surgimento de
novos artefatos oferecidos a todos os segmentos sociais, em
transformações que afetaram a extensão cultural com novas formas de
consumo em uma passagem gradativa do consumo familiar para um
novo tipo mais individualizado.
Fig. 01 Detalhe de manuscrito iluminado do final do século
XII, de Institutionum grammaticarum Libri, de Priscien,
pergaminho de 24,0 x 15,8 cm, encadernado em volume de
pele de carneiro escuro castanho. (Fonte: La Gazette Drouot).
O adorno estava em alta, graças às gravuras ornamentais do
período, como um rico objeto de consulta para arquitetos e artistas,
com finalidades comerciais. As novas técnicas de impressão sobre o
papel ressuscitaram temáticas antigas e aceleraram a difusão de
padrões ornamentais, tais como o acanto, a grega, a máscara, o troféu
e o vaso, bem como estilos decorativos em motivos coríntios, jônicos
e dóricos, aplicados à arquitetura e a joias, móveis e utensílios da
época.
Os séculos seguintes, com a crescente demanda por objetos de
consumo, destacariam uma função muito mais prática do que
contemplativa para o ornamento, sendo este inclusive, desvinculado
da própria obra artística em múltiplas e variadas aplicações, em um
verdadeiro “mix” de culturas. Com a Revolução Industrial, formou-se
uma nova e irreversível ode à materialidade na qual nenhum passo
atrás pareceu ser possível sem abdicar de hábitos herdados ou
consolidados em nome de uma paisagem cada vez mais “humana”,
estimulada pelos espaços destinados pelo avanço do desenvolvimento.
Embora muito já tenha sido escrito sobre os objetos que, com o
passar do tempo revelaram um “desenho” cada vez mais orientado ao
cotidiano, não é fácil encontrar respostas para certas questões
aparentemente simples como, por exemplo, seu aspecto formal que
procurava preencher os vazios com ornamentações de todos os tipos.
A transformação do consumo de pátina2 para o consumo da moda, em
meados do século XVIII, estimulou uma crescente fluidez e
efemeridade dos objetos materiais, ao fomentar novos padrões
representativos na produção de artefatos de diferentes estilos formais e
culturais que estimularam o desenvolvimento de novos componentes
ornamentais para o atendimento das demandas do consumo
individualizado.
De acordo com Paim, a produção dos novos objetos logo
reclamou o investimento em padrões ornamentais mais elaborados,
segundo distintos critérios de origem, composição e aplicação,
desenvolvidos em um amplo e diversificado repertório de formas.
Padrões desenhados, pintados, gravados ou esculpidos, caligráficos ou
geométricos, de inspiração floral ou animal, em estilo “egípcio”,
grego” ou oriental”, em expressões de tristeza ou alegria, foram
traduzidos por formas simples e complexas, coloridas ou não, para
atender à demanda do então crescente mercado de consumo. A atração
do olhar não cultivado passou a ser o alvo preferido dos fabricantes.
As grandes exposições e feiras internacionais visavam apenas o apelo
estético dos objetos, na contramão de qualquer adequação dos
desenhos à finalidade prática ou simbólica dos estilos artísticos. Era o
ponto de partida para uma produção aleatória e descontextualizada de
imagens sobrepostas as fantasmagorias3 ornamentações que
corrompiam o gosto e aceleraram o debate moderno sobre a utilização
dos adornos nas décadas seguintes (PAIM, 2000, p. 16).
O fértil e turbulento período entre 1850 e 1950 colocou o
ornamento no centro de um debate acirrado que envolvia artesãos,
2 Consumo no qual os objetos eram passados de geração em geração (nota do autor).
3 PAIM, Gilberto. A beleza sob suspeita: o ornamento em Ruskin, Lloyd Wright,
Loos, Le Corbusier e outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
artistas, designers, arquitetos, críticos e historiadores da arte. As
reflexões filosóficas sobre a estética da arte vinculada ao conceito do
belo como perfeição transcenderam as discussões do século XVIII
acerca dos objetos materiais que, mesmo com a introdução da
produção seriada com o advento da Revolução Industrial, não
conseguiram modificar os arraigados conceitos vigentes da arte.
Somente na passagem do século XIX para o século XX, com as
primeiras reflexões sobre a atividade do design, começou a ser
evidenciada uma alternativa de conciliação entre a produção artística e
a industrial, sob os fortes protestos dos discursos antiornamentistas.
Ao final do século XIX, com o surgimento das grandes lojas de
varejo na Europa e nos Estados Unidos, os desenhos para artefatos e
suas respectivas ornamentações intensificaram o contexto de difusão
editorial para o incremento do consumo hedonista, destacando como
grande novidade a participação inovadora da fotografia.
A acelerada produção impressa de ornamentos, com suas
imagens acreditadas pela nova tecnologia fotográfica, destacava o
crescente interesse pelo ornamento “vegetal” estimulado pela
interseção entre as ciências e as artes, em meados do século XIX, na
Inglaterra e, posteriormente, ao final do século, na França. As novas
descobertas no campo da ótica permitiram e alavancaram a
magnificação do mundo microscópico com a revelação de padrões
formais que geraram e possibilitaram aos artistas da época novas e
potenciais ideias para o desenvolvimento de padrões ornamentais
totalmente inéditos. O sucesso dos desenhos botânicos, em versões
cada vez mais estilizadas, era creditado aos desenhistas especializados
que passaram a fazer parte dos cursos de artes decorativas como
palestrantes e, até mesmo, professores. Esse era o contexto de
surgimento do Arts and Crafts Movement, que elevou potencialmente
a produção ornamental e abriu espaço para as artes utilitárias na
conciliação entre a arte e o artesanato, frente à produção de artefatos
industrializados. Desenhava-se, literalmente, um vasto repertório para
o desenvolvimento de motivos ornamentais, por meio da estilização de
motivos naturais, pela geometrização de seus desenhos, como um
ponto de inflexão na estética do ornamento. Estavam, então, lançadas
as bases para uma nova atividade que fez escola e marcou o final do
século XIX.
A passagem para o novo século inspirou reflexões sobre o
ornamento que permearam, do princípio ao fim, o modernismo em
todas as suas condições sociais e experiências. O neologismo
Kunstwollen,4 criado por Aloïs Riegl, foi conceituado como a
possibilidade de surgirem afinidades formais e estilísticas em uma
mesma época, em todas as suas manifestações culturais. Nesse
sentido, as formas de expressão cristalizadas nos objetos de uso
cotidiano, ou seja, na cultura material da época, foram classificadas
como de extrema importância para a compreensão de um determinado
estilo por todos. A concepção de Riegl afirmava sua intenção artística
através da simetria, ao partir do princípio de que todo produto artístico
se resumiria à manipulação da natureza em benefício do homem, seja
voltada para uma finalidade utilitária ou, simplesmente, para o mero
prazer contemplativo sob a forma de ornamento.
Assim, a natureza continuou a ser o modelo das formas
artísticas ao abandonar a dimensão da profundidade e
tornar em elemento da sua representação uma linha
delimitadora que não existia na realidade. [...] Mas,
finalmente, uma forma artística começou a ser criada
com linha própria sem ter em vista um modelo imediato
e acabado da natureza. Essas configurações obedeceram
às leis artísticas fundamentais de simetria e ritmo
(RIEGL, 1980, op. cit., p. 9-10).
A supressão do conceito de Kunstwollen, em prol da exaltação
da indústria, deu o impulso necessário à estética modernista, com o
posterior surgimento do conceito de design na concepção da Bauhaus
e seu ideal de formar artistas, designers e arquitetos socialmente
responsáveis para a criação de produtos que fossem tanto artísticos
quanto comerciais. Nessa mesma época, inúmeros textos críticos
debruçaram-se sobre o tema, com suas fórmulas antiornamentistas e
modernistas que, entre ondas sucessivas de exaltação e condenação,
4 Em tradução literal significa "vontade da arte" (nota do autor)
ultrapassaram em muito as considerações estritamente estéticas. A
nem sempre tímida participação do ornamento nos objetos, atribuída
pelo senso comum, passou a vigorar de forma novamente ativa e
intensa na cultura material da época, a fim de reconquistar sua
dimensão social antes ameaçada (PAIM, 2000, p. 10).
Fig. 02 Detalhe da tapeçaria Woodpecker, desenhada
por William Morris em 1885 (Fonte: Google images).
112 anos, Adolf Loos criticava o uso abusivo da
ornamentação nos objetos utilitários e na arquitetura do modernismo
em seu Ornament und Verbrechen [“Ornamento e crime]. Mesmo
após uma espera de vinte anos para ser publicado nos países de língua
ale, este manifesto preconizava que o ornamento não tinha mais
lugar no estilo moderno, bem como o indivíduo moderno não poderia
mais produzir ornamentos, a menos que abrisse mão de sua
“modernidade”, classificando o adorno como um acréscimo sem
função, um excesso aplicado de forma impensada ao objeto. Talentoso
e ambicioso, Loos, após ter trabalhado por alguns anos no escritório
de Louis Sullivan em Chicago, procurava estampar seu valor e levar o
evangelho da pureza estética a qualquer custo. Empenhou-se
profundamente em ser notado e ganhar a fama de modernizador ao
desafiar a velha guarda da arte e da arquitetura, emancipando a tirania
do mau gosto e da hipocrisia inerente à estética da classe média
vienense. Segundo ele, a arquitetura precisava redescobrir a
honestidade da forma, no livramento das mentiras e imitações.
Nenhuma arte teria um caráter mais público do que a arquitetura, e
nenhuma outra poderia ser considerada tão política. A ornamentação
era o crime cometido pela desonestidade e pela decoração supérfluas
dos objetos, ambos os lados de uma mesma falsa moeda.
Eu fiz a seguinte descoberta que ofereço à humanidade:
a evolução da cultura significa remoção de ornamentos
dos objetos de uso [...]. Como a ornamentação
(resquício de uma anterior cultura animista) deixou de
ter uma ligação orgânica com nossa cultura, não é mais
a expressão dessa cultura. Os ornamentos produzidos
hoje em dia não têm ligação conosco, nenhuma ligação
com a ordem do mundo. Estão presos ao passado
(LOOS, 1981, p. 16).
A estética modernista afirmou-se vigorosamente por volta de
1910. A austeridade funcional revelava-se, então, de maneira
verdadeiramente profética. Na visão de Loos, a beleza moderna
deveria resultar de uma ornamentação sem ornamentos. No entanto, a
reciprocidade entre os elementos ornamentais e seus suportes
materiais tornava-se cada vez mais presente, variando o grau de
intimidade, transformado de forma definitiva pela mecanização da
indústria. Os novos métodos de organização do trabalho, das técnicas
e dos materiais interferiram na produção de ornamentos em projetos
específicos, para se transformarem em mercadorias direcionadas para
o consumo em uma economia de escala, na expansão do capitalismo
industrial.
Diante da crescente visibilidade que os ornamentos ganharam
nos catálogos de produtos, a promoção das vendas e sua consequente
geração de lucros não tardou a impulsionar novos investimentos. A
combinação entre a adequação e a elegância estética nos produtos
tornou-se um imperativo na comunidade comercial, compreendendo a
ornamentação como uma dimensão integrada à superfície do objeto,
na qual a única variante seria apenas seu grau de intimidade com o
suporte material.
O ideal modernista do século XX fez surgir um novo tipo de
profissional no mercado o desenhista industrial ou designer, que
deixaria o artesão cada vez mais à margem de suas funções, em um
novo contexto de produção onde caberia ao ornamento valorizar
esteticamente os objetos industrializados, agregando-lhes um novo
valor. A ornamentação conferia “cunho artístico e elegância” aos
objetos industriais, como uma representação de obra de arte única, em
oposição ao objeto seriado. O ornamento passou a exercer o papel de
conciliador entre a reprodutibilidade da escala industrial e a peça
singular da produção artística.
Segundo Lipovetsky (2009), a moda comandava as sociedades,
nas quais a sedução e o efêmero tornaram-se os princípios
organizadores da vida coletiva moderna em uma dominante
frivolidade na crescente aventura capitalista-democrática-
individualista. Embora a produção industrial dos ornamentos ainda
tivesse como sugestão uma classificação que remontava às gravuras
clássicas do período renascentista, segundo critérios básicos
orientados pela origem, pela composição e pelas aplicações, o uso
crescentemente descontextualizado e indiscriminado do conjunto
artístico revelou múltiplas e inesperadas aplicações de gosto duvidoso,
ao caracterizar objetos com valores estéticos distorcidos ou
exagerados e confirmar uma progressiva dependência, pela sedução e
pela efemeridade, em uma perseguição implacável das aparências, do
devir e do encanto pelas imagens.
O kitsch
Entre a arte e o conformismo, instalava-se um novo
componente que denotava uma pobreza em sua significação real,
enquanto objeto, associado a uma superabundância de signos, com
referências alegóricas e exaltação do pormenor o kitsch. O objeto
kitsch, na diluição de sua originalidade, destacava uma funcionalidade
obscurecida pelo excessivo peso da função social na qual a estética
hedonista, o fetichismo e uma alienação possessiva fundamentavam
suas principais características. O artefato kitsch, em sua qualidade
ornamental por acréscimo, ressaltava a gratuidade em seu mais alto
grau, estabelecendo uma tensão entre o modelo romântico e a “concha
protetora” do lar, em uma verdadeira aura de Gemütlichkeit,5 em que
cópias de objetos de culturas distantes decoravam os recantos da
moradia burguesa do início do século XX, a fim de promover um
desejado aconchego. Objetos com características neogóticas,
neorromânticas e neoclássicas invadiram as vitrines dos magazins nos
primeiros anos do século XX em uma reunião de esquisitices e
inutilidades que os distanciavam, de suas funções, ao formarem uma
verdadeira legião de artefatos industrializados que se resumiam mais
em seus pretextos do que em suas finalidades, visando a mera fruição
de suas formas (MOLES, 1972, p. 162).
A forma alienada e diluidora de estilos que define o kitsch
encontrou sua aderência no plano estético dos objetos da sociedade
industrial, no qual o ornamento foi se firmando como o componente
emocional necessário para a confirmação do valor afetivo dos objetos.
5 Palavra alemã que significa comodidade, aconchego (em tradução livre do autor).
Fig. 03 Bule de chá kitsch simulando folhas de alface. Circa
1950. (Fonte: Google images).
Inicialmente, formas incomuns e funções esdrúxulas podiam
ser identificadas em saleiros, potes, bules, talheres, móveis, peças de
vestuário, eletrodomésticos e até em automóveis para o oferecimento
de comodidades culturais e afetivas ao consumidor. O ornamento
passou a ser traduzido pelas mais diversas formas, de simples frisos a
relevos figurativos, detalhados e multicoloridos. Nos adornos gráficos
das peças publicitárias, nas imitações de materiais nobres na
decoração de interiores, no styling dos automóveis ou mesmo nos
excessos de sentimentalismo nas peças musicais, o ornamento
encontrou oportunidades para sedimentar-se de forma cada vez mais
sólida na cultura de consumo do século XX. A inovação tecnológica e
a obsolescência planejada tornaram-se fatores indispensáveis à
consolidação de um novo cenário de consumo para o incremento da
cultura material com vistas à construção de sistemas de objetos com
uma crescente valorização de patrimônios materiais portadores de
cargas emocionais. O período pós-guerra escancarava as novas
possibilidades para a criação de objetos emocionais.
O ornamento contemporâneo: do sintético ao digital
As novas exigências da produção em série caracterizaram
expertises inovadoras para a indústria do século XX. Entrava em cena
o operário da indústria, em lugar do artesão oficinal, dando ao objeto
material todos os contornos e relevos necessários ao produto seriado
para o consumo de escala a mercadoria.
Diante das novas concepções industriais, os ornamentos
conferiram aos objetos poderes como: acentuar, dividir, preencher,
enquadrar, encantar e até incomodar. Um objeto poderia, inclusive,
determinar o tipo de adorno a ser aplicado, bem como, inversamente,
também ser dominado por este. A intensidade e a densidade no uso
dos ornamentos passaram a definir fatores até então inéditos e
determinantes nas relações com seus objetos de suporte.
Conforme Paim (2000), a questão do ornamento no objeto
moderno, além de contribuir para a definição de estratégias para a arte,
a arquitetura e o design, forneceu elementos para a elaboração de
novas abordagens críticas do mundo industrial. Nesses últimos 50
anos, o ornamento renovou as reflexões nas tradicionais teorias
estéticas, ao reestruturar o consenso acerca do conceito do belo e
reformular as fronteiras entre a arte e a natureza, a criação e a
imitação, a representação e a abstração, o trabalho alienante e o
trabalho enriquecedor, a fruição estética e o consumo conspícuo
(PAIM, 2000, p. 22). Estava, portanto, iniciada, desde o modernismo,
uma revisão de valores sobre o belo e o emprego dos elementos
estilísticos pré-modernistas. O design, por sua vez, em sua produção
interdisciplinar com a arte, o artesanato, a arquitetura e a tecnologia,
ampliou ainda mais seu universo, destacando sua contribuição às
questões simbólicas na ordem do sensível.
Na trajetória evolutiva do ornamento, a partir de meados do
século XX, em um processo simbiótico com a produção industrial, o
design desenvolveu, como uma herança das teorias modernistas da
Bauhaus, uma linguagem mais purista, de ideais pragmáticos, com
objetos que apontavam tendências formais simplificadas, em uma
estética livre (ou quase isso) de ornamentos.
A identificação e a classificação de novos parâmetros de uso e
aplicação de elementos ornamentais, além de estabelecer relações
inéditas com os produtos e entre eles, a partir da introdução de uma
nova linguagem visual para os objetos de consumo, gerou novos
debates quanto às formas, materiais, estruturas de suporte e o tipo de
trabalho envolvido para sua realização. O avanço tecnológico e as
novas tendências do consumo de massas nas últimas décadas do
século XX proporcionariam um olhar diferenciado sobre o repertório
ornamental comercializado. As fronteiras entre as artes decorativas, a
arquitetura e o design foram redefinidas pelas inúmeras possibilidades
de exploração e combinação das superfícies e das propriedades dos
materiais para o atendimento à estética contemporânea nos diversos
segmentos da indústria. Cores, formas e materiais diversos
misturaram-se em prol de uma linguagem visual moderna em que o
ornamento, ressignificado a partir do repertório formal funcionalista,
passou, ele próprio, a ser tratado como um referencial decorativo
(LESSA, 2014, p. 47).
No contexto construtivo do sistema de objetos inaugurado no
período entre guerras, os materiais plásticos sintéticos deram novos
contornos às implicações simbólicas no campo da cultura material e
das artes utilitárias, com sua nova condição de elemento da cultura de
massas.
O início do século XX pode ser considerado um divisor de
águas ao introduzir comercialmente, de forma definitiva, o material
plástico sintético, que já vinha sendo testado, de forma tímida e
limitada, em fórmulas como o celulóide, a vulcanite e a galalite, para
aplicações industriais, em meados do século XIX. A década de 1920
descortinou um cenário de inovação científica e tecnológica que trazia
promessas de um futuro de abundância material com a introdução dos
objetos sintéticos moldados. Com um mercado ampliado,
inicialmente, pela fabricação de objetos em baquelite seguiu-se um
número crescente de produtos conformados com novos materiais
plásticos inteiramente sintéticos. Os novos materiais, superiores à
inconstância dos materiais naturais, sobretudo nas produções de
grandes quantidades, tiveram um papel decisivo no impulso produtivo
industrial. De acordo com Barthes (2007), os materiais plásticos
sintéticos confirmavam sua existência como uma substância
doméstica, com um preço reduzido e acessível a todos. Em sua
mitologia tecnológica, no sentido barthesiano, os objetos plásticos
traziam em sua ornamentação uma resolução dialética: ao mesmo
tempo em que fugiam à natureza, tentavam reconstituí-la por meio de
um artifício extravagante, em uma condição material simultaneamente
próxima e inacessível, perfeitamente consumida apenas pelo olhar. O
objeto plástico constituiu, em muitos casos, a expressão de um objeto
superlativo em que o aspecto ornamental bastava-se no
reconhecimento das linhas perfeitas e puras de seu desenho,
associadas ao brilho de suas cores que, na forma acabada de seu
produto, surpreendia entre o singular da origem e o plural dos efeitos
(BARTHES, 2007, p. 172-175).
O contínuo avanço tecnológico permitiu a criação de novos
compósitos com inovadoras propriedades físico-químicas que
lograram o investimento em moldagens delicadas e translúcidas, de
formas simples e rebuscadas, alternadas em cores vibrantes e pastéis,
ressaltando o apelo visual dos materiais plásticos e ampliando
consideravelmente suas possibilidades de produção e venda. Questões
acerca da materialidade dos plásticos, entre a percepção e a utilização,
impactaram significativamente a produção de ornamentos nesses
objetos, possibilitando toda a sorte de moldagens. Apesar da
comprovação de suas inúmeras utilidades, os plásticos amargaram, em
sua trajetória, no senso comum, uma condição de substâncias
subsidiárias, baratas e de qualidade inferior, sobretudo se comparados
com materiais naturais considerados nobres, como as madeiras, metais
ou minerais. O ornamento contemporâneo transcende, nesse momento,
sua condição primária de “complemento” estético para cumprir, ele
mesmo, sua função enquanto objeto, como podemos perceber na
afirmação de Barthes (2007), quando se refere ao fantasma da cópia
o simulacro. Os materiais plásticos sintéticos possibilitaram esse
novo contexto estético:
A moda do plástico acusa uma evolução no mito do
símile, sendo um costume historicamente burguês; mas
até hoje, o símile sempre denotou a pretensão, fazia
parte de um mundo da aparência, não do uso prático,
pretendia reproduzir, pelo menor preço, as substâncias
mais raras, o diamante, a seda, as plumas, a pele, a
prata, tudo o que de brilhante houvesse no mundo.
(BARTHES, 2007, op. cit. p. 174)
Baseados nessa afirmação, podemos entender que o kitsch foi
definitivamente “naturalizado”, a partir da introdução do simulacro
nessa nova sociedade centrada na franca expansão das necessidades,
sob os postulados da obsolescência, da sedução, da diversificação e da
horizontalização dos objetos para o consumo. A esfera das aparências,
timidamente instalada ainda no século XIX, traz hoje uma nova e
poderosa lógica de renovação dos objetos cotidianos, ao fortalecer o
núcleo produtivo das indústrias de consumo de nossos dias. Frisos
plásticos cromados que simulam metais na indústria automobilística;
padrões de superfícies que imitam madeiras nobres em revestimentos
de interiores; flores e folhagens artificiais derivadas de substratos
plásticos reciclados compõem o universo material contemporâneo e
dominam nosso entorno imediato, ao mesmo tempo em que traçam
novas relações, conjugando a arte, a moda, o design e a tecnologia em
uma gradativa transformação de nossa sociedade de produtores em
uma sociedade de ávidos consumidores. Trata-se de uma verdadeira
naturalização do ornamento enquanto objeto de consumo. De sua
condição de visualidade explícita, como um “elemento ornamental”,
este transformou-se, ele próprio, no próprio objeto emocional. O
preconceito contra o material tornou-se uma coisa do passado. De
sinônimo de soluções simplistas ou de mau gosto a símbolo de
modernidade, o plástico, nestes últimos 75 anos, tornou-se uma
referência material pelas mãos de designers renomados que dele
fizeram um verdadeiro marcador biológico do nosso tempo, a partir do
desenvolvimento de objetos do uso diário, com ou sem afinidades com
as tendências sustentáveis.
A nova lógica deixou clara sua marca na economia, ao imputar
um novo ritmo para uma acelerada mudança na fabricação de produtos
industriais com a inserção de novos parâmetros em prol da
efemeridade que modificou completamente o ideal de permanência
dos objetos. Da espetaculosidade fútil à ostensiva gratuidade técnica,
as relações que mantemos com os objetos já transcenderam o
utilitarismo pleno, em direção ao lúdico, alavancados por suas
instigantes e convincentes tendências ornamentais que, nas décadas de
60 e 70, figuraram como marcos da ascensão de uma economia
neokitsch. O mundo dos objetos vive hoje a celebração do charme das
aparências, com a incorporação do design na concepção dos produtos,
em prol de uma nova estética industrial que converge para uma
perspectiva que prioriza a elegância e a sedução na produção.
Cada vez mais, pequenos objetos relógios, óculos,
isqueiros, lápis, canetas, cinzeiros, cadernos perdem
sua característica tradicionalmente austera e tornam-se
acessórios alegres, lúdicos, cambiantes (LIPOVETSKY,
2009, p. 191).
A economia de mercado tem seu potencial revigorado pelos
produtos que, em seu processo de renovação formal constante,
caracterizam o momento atual como a era do consumo, ao gerar um
contexto repleto de objetos de desejo. O sucesso de mercado passa a
ser imposto pela forma de apresentação dos produtos que não poupa
mais nenhum segmento do imperativo da estética industrial, do
automóvel de luxo aos produtos alimentícios, seguindo à risca o
slogan de Raymond Loewy: “A feiúra vende mal”.
O valor de uso, através do conforto de uso, das relações
qualidade-preço e dos componentes emocionais realoca o fetichismo
do objeto-signo em uma renovada proposta de consumo que age sobre
as categorias sociais ampliadas para experimentarem os prazeres da
excelência técnica e da qualidade, das quais o ornamento participa de
forma presente e ativa. O culto da novidade “desubstancializa” as
coisas, imputado pela lógica da moda, contribuindo para um
desprendimento gradativo do homem em relação aos objetos.
Tornamo-nos cada vez mais indiferentes aos objetos do cotidiano,
criando um desencantamento rumo a uma “democratização” do
mundo material. Trata-se de um processo de “desrealização” das
coisas na qual caminhamos em direção ao desencantamento material e
à institucionalização do efêmero: O indivíduo tornou-se um centro
decisório permanente, um sujeito aberto e móvel através do
caleidoscópio da mercadoria” (LIPOVETSKY, 2009, p. 204).
Lipovetsky afirma que a cultura hedonista estimula o indivíduo
moderno a viver mais para si próprio, autodeterminando suas relações
com o próximo, a partir de uma economia frívola que desestabilizou
definitivamente as normas e os comportamentos tradicionais nos
estímulos do gosto e da paixão pelo novo.
Fig. 04 Kidrobot Dunny. Objeto emocional com
ornamentação customizável, em material sintético, 2004.
(Fonte: Google images).
A tecnologia da informação trouxe à tona um universo de
formas ornamentais livremente copiáveis e editáveis em arquivos
digitalizados, em atendimento aos ditames do gosto e das estratégias
de mercado, nas milhares de imagens que circulam nos impressos, na
arquitetura e no design contemporâneo. As fronteiras entre as artes
decorativas, o design e a arquitetura foram, portanto, definitivamente
dissolvidas pelo resultado das múltiplas aplicações de ornamentos na
tentativa pós-moderna de preencher o vazio. Segundo Paim (2000),
nos anos 80, os arquitetos Robert Jensen e Patricia Conway
identificaram uma nova prática no tratamento dos objetos o
ornamentalismo como uma ruptura das regras acerca do
pensamento conservador sobre o ornamento. Ornamentar ou “decorar”
constituiu-se, a partir de então, em um ato radical, em oposição ao
negacionismo que prevaleceu em todo o século XX, em uma nova
disposição para reavaliar as fronteiras entre o que é intrínseco e o que
é extrínseco à experiência da arte. Nossa tolerância ao vazio está,
portanto, mais uma vez sendo testada, mas agora com a nobre causa
de proporcionar experiências estéticas e emocionais em produções
ornamentais menos ambíguas e tortuosas que renovem o caráter
hedônico de nossos objetos.
Considerações finais
O ornamento extrapolou em sua trajetória os limites que o
mantinham como um simples suplemento de beleza, entre reduções,
críticas e condenações, para seguir, por razões contemplativas,
classificatórias ou identitárias, rumo à consolidação do caráter
hedonístico dos artefatos. Dos objetos utilitários aos digitais, ele
perdeu sua característica acessória para protagonizar a cena na
condição de um verdadeiro objeto emocional, moldado e colorido em
formas exuberantes ou formatado em arquivos copiáveis e editáveis,
como se o debate moderno nunca tivesse existido, para configurar
novos repertórios para seus usos em ousadas combinações, em quase
todos os segmentos da sociedade pós-industrial. As novas tecnologias
da indústria 4.0 abriram um vasto campo com inúmeras possibilidades
para a criação, a edição e a aplicação de elementos ornamentais,
visando uma estética diferenciada para o atendimento às renovadas
demandas do consumo de objetos físicos ou virtuais.
O estudo do ornamento, compreendido na amplitude do seu
uso e presença histórica, conjuga diferentes debates sobre a
materialidade, as aplicações, funções e técnicas, sempre em uma
aproximação à vontade humana, seja pela fantasia e pela abstração, ou
pela imitação das coisas naturais. De sua presença nas artes
industriais, nas superfícies arquitetônicas ou no mundo digital,
ressaltamos, de forma mais evidente, seu significado associado à
superfície do objeto decorado, em uma função denotativa, pela
aplicação de seus padrões. Porém, em um segundo olhar, no sentido
conotativo, apreendemos seu caráter emocional, como uma ideia, uma
paixão, em sua fruição como parte integrante de um objeto de desejo
que transforma e cativa o olhar do observador.
Em uma perspectiva pós-moderna, arriscamos afirmar que a
reflexão sobre o ornamento ainda merece uma cuidadosa atenção em
relação aos valores contemporâneos. Estes mesmos se estendem, de
maneira pertinente, à produção atual do sistema de objetos, na qual a
linguagem estética é constantemente posta em evidência através das
questões de estilo com uma invariável recriação do conceito de
ornamento. Vemos uma estética contemporânea que, no que diz
respeito ao consumo, marca seu lugar em uma “lógica” da preferência
e do desejo, na qual é incorporada a ideia de design em quase todos os
campos da sensibilidade, da comunicação formal e da materialidade.
Trata-se de uma busca incansável por valores estéticos sempre
renovados que, em muitos casos, se sobrepõem à funcionalidade
objetiva dos produtos, confirmando o cumprimento do efeito estético e
emocional do ornamento no objeto para valorizá-lo, ao decorar sua
superfície e ressaltar suas finalidades simbólicas.
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