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Imprevisibilidade essencial

Authors:
  • Conservatório de Música C. Gulbenkian, Braga, Portugal

Abstract

Na 'Encyclopédie raisonnée des sciences, des arts et des métiers' de Diderot e de Alambert (1752) um dos artigos mais longos (40 páginas) trata dos sistemas e em grande parte está dedicado ao «sistema geral» das notações musicais porque, como anota Jean-Louis Moignet nos fundamentos de O Construtivismo, "é o processo de modelização mais espantoso inventado pelo espírito humano, já que permite representar inteligivelmente, reproduzir e comunicar o fenómeno mais inefável -o mais indescritível- que é possível conhecer: a harmonia musical". A complexidade não está na natureza das coisas mas sim no código que utilizamos para as interpretar. Não obstante, a complexidade teórica concebível pode não coincidir com a complexidade prática observável, iniciando-se então uma dicotomia entre a teoria e a prática, a sistémica e a epistemologia, a criação e a interpretação, que se traduz numa poderosa variável: a imprevisibilidade essencial. https://soutelo.eu
Imprevisibilidade essencial
Reconhecer a complexidade é pensar si-
multaneamente os projetos de ação pos-
sível e a avalização das suas consequên-
cias múltiplas. Passar da complicação à
complexidade é um logro da modeliza-
ção sistémica. Mas a modelização inteli-
gível da complexidade não é conhecida,
ela constrói-se na própria ação modeliza-
dora. Jean-Louis Le Moigne, professor de
sistemas, arma que “a modelização sis-
témica da complexidade faz efetivamen-
te emergir na sua prática essa inteligibi-
lidade que cada um de nós procura nas
suas próprias práticas cognitivas. A inte-
ligibilidade não é sinónimo de simplici-
dade e ainda menos de simplicação”i.
Na Encyclopédie raisonnée des scien-
ces, des arts et des métiers de Diderot e
de Alambert (1752) um dos artigos mais
longos (40 páginas) trata dos sistemas
e em grande parte está dedicado ao
«sistema geral» das notações musicais
porque, como anota Jean-Louis Moig-
net nos fundamentos de O Construti-
vismo, “é o processo de modelização
mais espantoso inventado pelo espírito
humano, já que permite representar in-
teligivelmente, reproduzir e comunicar
o fenómeno mais inefável – o mais in-
descritível – que é possível conhecer: a
harmonia musical”ii.
A complexidade não está na natureza
das coisas mas sim no código que utili-
zamos para as interpretar. Não obstan-
te, a complexidade teórica concebível
pode não coincidir com a complexi-
dade prática observável, iniciando-se
então uma dicotomia entre a teoria e a
prática, a sistémica e a epistemologia,
a criação e a interpretação, que se tra-
duz numa poderosa variável: a impre-
visibilidade essencial.
O conceito de ‘imprevisibilidade es-
sencial’ só foi aceite nas ciências com
a aparição de um novo paradigma, o
interpretativismo, que a partir dos anos
70 conhece uma vitalidade excecional
como demonstra o espetacular desen-
volvimento das ciências do génio – ou
do ingenium, da engenharia, do arti-
cial, da conceção – que restabelecem
a engenhosidade que fora coartada
pelo Discurso do Método de Descartes.
A imprevisibilidade é uma medida da
complexidade instantânea de um sis-
tema modelizável que relaciona com-
portamentos não totalmente predeter-
minados ainda que potencialmente
antecipáveisiii. A imprevisibilidade es-
sencial está na construção inteligente
do modelo que nos permite conceber a
inteligibilidade da complexidade.
Na década de cinquenta, e por caminhos
supostamente contrários, a imprevisibi-
lidade dominou toda a cena da música
erudita. Uma aparente revolta iconoclas-
ta liderada por John Cage e seus colegas
nova-iorquinos dava entrada ao acaso na
composição musical. Por sua vez, na Eu-
ropa, Boulez, Stockhausen ou Ligeti con-
seguem “ilusões auditivas” aleatórias
(ao acaso) com “texturas tão complexas
e ativas que não podem ser percebidas
no conjunto: o ouvido seleciona, efetua
as suas próprias combinações e até re-
gista sons que não foram emitidos”iv. A
consciência da imprevisibilidade deu en-
trada a fatores de indeterminação e – se
excetuarmos os jogos musicais em voga
nos nais do séc. XVIII que permitiam
construir peças musicais muito simples
segundo o resultado do jogo de dados
– adotou-se pela primeira vez na com-
posição musical o que se denomina por
«forma aberta» ou, por analogia com as
estruturas de Alexander Calder, «forma
móvel». A obra aberta está composta por
um certo número de «formantes» e estes,
por sua vez, admitem diversas combina-
ções que o intérprete deve escolher. A
complexidade essencial construída pe-
los compositores deu origem a obras em
perpétuo devir, conhecidas por work in
progress. A forma tornou-se duplamen-
te aberta, tanto para o compositor como
para o intérprete.
Mas se era possível a modelização sisté-
mica da composição, então um compu-
tador podia compor de acordo com um
determinado programa – o que aconte-
ceu desde 1957 com a ILLIAC Suite, para
quarteto de cordas, de Lejaren Hiller – e
transformar a composição numa rotina
generalizada como sucede com a escrita
automática de poesia. Contudo, a cria-
tividade – o grau de imprevisibilidade
essencial certo para transcender, quer
dizer, criar uma obra de arte – continua a
ser uma prerrogativa dos compositores e
poetas. A música eletrónica, que explora
um excitante universo de sons articiais,
foi durante muitos anos um género mar-
ginal, não pelo suposto conservadorismo
da música erudita ocidental, mas porque
prescindia do intérprete, eliminando
algo essencial: a imprevisibilidade da
execução. Hoje, com as novas aplicações
e técnicas de manipulação eletroacústica
ao vivo, a música eletrónica volta a con-
quistar a simpatia de compositores, in-
térpretes e público porque já incorporou
a riqueza e a diversidade da imprevisibi-
lidade na interpretação, o que é essencial
nos sistemas musicais.
Se podemos conceber (modelizar) a com-
plexidade, nada nos impede de conceber
a compreensão, compreender a incom-
preensão, construir a conceção. Talvez
a opinião de Albert Einstein, citada por
Popper, seja mais eloquente: “Penso
que a teoria não pode ser fabricada de
resultados de observação, mas há de ser
inventadav. Basta, pois, reetir na ambi-
guidade deliberada entre o concebível e
o observável.
Rudesindo Soutelo
compositor e mestre
em Educação Artística e Ensino de Música
i Le Moigne, J.L.:
O construtivismo
. Vol. 1.
Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 164-165.
ii
Ibid
.: p. 79.
iii
Ibid
.: p. 191.
iv Griths, J.: A música moderna. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 166.
v Popper, K.:
A lógica da pesquisa cientí-
ca
. São Paulo, Cultrix, 1972, p. 525.
Enciclopédia Francesa de Diderot e D’Alambert
14DEZ’22
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