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Editora Unijuí • ISSN 2317-5389
Ano 10 • nº 20 • Jul./Dez. 2022 • e12771
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí
hps://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia
hp://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2022.20.12771
PÁGINAS 1-23
CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO E EROSÃO DEMOCRÁTICA:
Uma Análise das Proposições Legislavas do Presidente Bolsonaro
no Primeiro Ano de seu Mandato
Lincoln Renato Vieira Zanardine
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Programa de Pós-graduação em Direito. Curiba/PR, Brasil.
hp://laes.cnpq.br/0109088097410223. hps://orcid.org/0000-0001-8082-8710.
lincolnvzanardine@gmail.com
Estefânia Maria de Queiroz Barboza
Autora correspondente: Universidade Federal do Paraná (UFPR). Programa de Pós-Graduação em Direito. Praça Santos Andrade, 50
– 3º Andar – Centro, Curiba/PR, Brasil. CEP 80020-300. hp://laes.cnpq.br/7537205951629432.
hps://orcid.org/0000-0002-9829-5366. estearboza@gmail.com
RESUMO
Diante de um contexto internacional de autoritarismo crescente e de democracias fragilizadas por ondas iliberais,
a compreensão do fenômeno dentro do contexto brasileiro é importante para entender em que medida o projeto
iliberal inuenciou a atuação do Poder Execuvo brasileiro no primeiro ano da gestão 2019-2022. Jair Bolsonaro,
em diversas oportunidades, idencou-se como um outsider no que diz respeito às regras do jogo. Dessa forma,
observando essa postura do presidente eleito, este argo tem como objevo analisar o primeiro ano da gestão
Bolsonaro-Mourão no que diz respeito às propostas legislavas oriundas do Poder Execuvo e em que medida elas
ertam com o legalismo autoritário. A hipótese gira em torno do alto poder legislavo do chefe do Poder Execuvo
brasileiro, o que pode ser instrumento de transformação marcante na ordem jurídica, inovando o ordenamento
jurídico. O objevo foi analisar se essa força foi ulizada com intenções anliberais de cunho autoritário pelo
Poder Execuvo no ano legislavo de 2019. A pesquisa centrou-se em quatro pos de propostas legislavas do
Poder Execuvo, a saber: as Propostas de Emenda à Constuição (PECs), os Projetos de Lei Complementar (PLPs),
as Medidas Provisórias (MPs) e os Projetos de Lei (PL). A escolha desse corpus se deu pelo papel signicavo
que esses pos de propostas legislavas possuem em alterar a normavidade do sistema jurídico. A conclusão
alcançada é de que o primeiro ano da gestão do presidente Bolsonaro não se uliza de mecanismos explícitos de
erosão constucional, empregando, por seu turno, formas sus de desestruturação da ordem democráca.
Palavras-chave:Palavras-chave: constucionalismo abusivo; presidencialismo brasileiro; direito constucional; erosão democráca.
AUTOCRATIC LEGALISM: THE FIRST YEAR OF BOLSONARO’S TERM
ABSTRACT
As facing an internaonal context of rising authoritarianism and fragilized democracies by illiberal tendencies, the
understanding of this phenomenon is important to interpret which way the illiberal project has inuenced the
rst year of the 2019-2022 term. Jair Bolsonaro elected allegedly being on the edge of the tradional status quo
- in several opportunies - claimed to be an outsider from the legal paern and its rules. Thus, idened this
posture from the elected president, this arcle analyzes the rst year of Bolsonaro-Mourão’s term concerning its
legislave proposals and in which way there is a tendency to legal authoritarianism. The hypothesis centers on the
high power of the Brazilian execuve’s agenda, which can be an instrument of a legal transformaon. The objecve
of this research was to analyze if this agenda can be used as an illiberal instrument with an authoritarian intent by
the execuve power in the legislave year of 2019, focusing on legislave proposals from execuve power in the
same year. The research centered on four types of legislave proposals: Proposals of Constuonal Amendments,
Complementary Bills, Provisional Measure, and Regular Bills. The chosen proposals were concentrated for their
power on the agenda and its bills in the Brazilian context. The conclusion is that, in the rst year of his term,
President Bolsonaro does not use explicit mechanisms of democrac erosion, using instead, subtle forms of
discoordinaon of a democrac order.
Keywords:Keywords: abusive constucionalism; brazilian presidenal system; constuonal law; democrac erosion.
Submedo em: 30/9/2021
Aceito em: 21/9/2022
Direitos Humanos e Democracia
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CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO E EROSÃO DEMOCRÁTICA:
UMA ANÁLISE DAS PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS
DO PRESIDENTE BOLSONARO NO PRIMEIRO ANO DE SEU MANDATO
Lincoln Renato Vieira Zanardine – Estefânia Maria de Queiroz Barboza
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1 INTRODUÇÃO
O processo de redemocrazação pós regime militar e a volta de eleições diretas
para presidente, encabeçadas pela Constuição de 1988, marcaram o início daquilo que
historiadores chamam de sexta república brasileira ou nova república. Esse período é marcado
pelo fortalecimento das instuições democrácas, estabilização econômica e reformas que
reduziram desigualdades sociais.
Especialmente na segunda metade da década de 1990 e durante toda a década de 2000,
a democracia parecia, enm, ter se consolidado: foram anos de eleições livres, diretas e com
resultado inconteste. O evento conhecido como impeachment da presidente Dilma Rousse,
todavia, marcou a consolidação no espaço público da chamada nova direita, que crescia desde
as eleições de 2014 e das jornadas de 2013 (CODATO; BOLOGNESI; ROEDER, 2019).
Este trabalho dedicar-se-á a compreender como a atuação da nova direita, enquanto
movimento reacionário1, busca minar as instuições democrácas por meio de vias
democrácas, concatenando, assim, em um ambiente políco ambíguo, no qual o espaço
jurídico é permeado por leis que, a primeira vista, parecem constucionais e democrácas,
mas que, numa leitura atenta e contextualizada, denota a tentava de erosão das estruturas
democrácas.
Os estudos de sociologia e ciência políca apontam para um líder populista com viés
patrióco (TAMAKI; FUKS, 2020, p. 113), que subiu ao poder com uma agenda moralizante
cristã (ALMEIDA, 2019, p. 201) e que quesona as instuições democrácas postas (CRUZ
OLMEDA, 2019, p. 665).
Dessa forma, é importante compreender de que modo o cenário constucional e legal
brasileiro tem reagido no que diz respeito às invesdas oriundas dessa nova força políca
brasileira, e, essencialmente, como os mecanismos constucionais criados em 1988 podem
responder a esse fenômeno.
Segundo Lilia Moritz Schwarcz (2019), por intolerância entende-se ato de não aceitar um
ponto de vista diferente do seu, incitando, inclusive, o apagamento de qualquer divergência
(p. 214). Dessa forma, a intolerância é, essencialmente, binária, quando estabelece a disnção
entre “nós” e “eles”.
Nesse sendo, a políca brasileira viu crescer a quandade de representantes no
Legislavo e Execuvo de cunho autoritário e anliberal. Esses representantes do povo
buscam, por meio de projetos de lei, emendas à constuição e outros mecanismos legislavos
legalmente instuídos, assolar os poderes e direitos que os elegeram, causando uma erosão
da democracia por vias democrácas, uma verdadeira destruição pelo lado de dentro.
Em atenção a essas mudanças, David Landau (2013) argumenta que a erosão dos
mecanismos constucionais por procedimentos formalmente constucionais, por mais
contraditório que possa ser, é um fenômeno crescente (p. 189). No mesmo sendo, parndo
1 O vocábulo “reação”, aqui adotado, versa sobre o movimento de direita que não é conservador, mas, sim, reacionário,
fundamentando-se num suposto passado glorioso que precisa ser redescoberto. Nesse sendo, o reacionarismo é uma
tentava de parar o tempo e retornar a um momento hipotéco em que a “degradação moral” não teria destruído os bons
valores (BIANCHI, 1998, p. 1.073-1.074).
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da premissa de Kim Lane Scheppele (2018), este trabalho tenta compreender de que forma
aquilo que a autora classica como “legalismo autocráco” tem angido a democracia
brasileira.
Scheppele (2018) pontua que o legalismo autocráco ocorre na medida em que líderes
eleitos democracamente podem ulizar os mecanismos democrácos que os elegeram
para subverter a ordem constucional, criando um ambiente políco de cunho anliberal
(SCHEPPELE, 2018, p. 547).
Assim, nesse contexto de grandes transformações nas instuições democrácas ao
redor do mundo, há um padrão que Kim Scheppele (2018) traz: (i) uma democracia com
problemas estruturais, porém, em certo grau de estabilidade, tem uma eleição totalmente
paradigmáca que rompe com o que estava posto; (ii) o líder eleito tem grande apelo das
massas, e promete expurgar toda a ordem pré-constuída em nome de uma nova políca,
com um novo jeito de fazer políca.
A autora pontua que o liberalismo citado trata-se de uma corrente losóca políca em
que há limitação de poderes do Estado ou Soberano em razão de uma proteção da liberdade
de indivíduos, podendo versar sobre um liberalismo à esquerda no espectro políco, ou à
direita (SCHEPPELE, 2018, p. 559).
Embora a autora faça uso do termo iliberal para descrever o fenômeno, neste trabalho,
a m de uma leitura mais facilitada para o leitor de língua portuguesa, será o usado o termo
anliberal, para descrever a corrente que atenta contra a matriz políca liberal oitocensta.
Este trabalho terá como metodologia a consulta às proposições legislavas do
presidente Bolsonaro enquanto chefe do Poder Execuvo. Assim, centrou-se o presente
estudo às Propostas de Emenda à Constuição (PECs), aos Projetos de Lei Complementar
(PLPs), aos Projetos de Lei Ordinária (PL) e às Medidas Provisórias (MPs) apresentadas pelo
Poder Execuvo brasileiro no período de um ano de mandato, nomeadamente entre 1º de
janeiro de 2019 e 31 de dezembro do mesmo ano. Para análise do problema recorreu-se a uma
leitura de autores da Ciência Políca a m de trazer para o contexto jurídico uma metodologia
pautada em dados empíricos.
O poder de agenda do presidencialismo brasileiro merece destaque. A atuação
legislava do Poder Execuvo no Brasil denota uma força caracterísca do presidencialismo
brasileiro pós-constuinte (MORAES, 2001, p. 51). Filomeno Moraes (2001) destaca que a
fragmentação do Legislavo brasileiro implica a necessidade de um Poder Execuvo mais
centralizador (p. 47).
Dessa forma, a análise das proposições legislavas visa a idencar em que medida
o chefe do Poder Execuvo federal uliza de meios legais e democrácos para inferir e
alterar as instuições democrácas, caracterizando o que tem sido chamado de legalismo
autocráco, ou constucionalismo abusivo, com a consequente erosão de mecanismos de
freios e contrapesos e ataque aos direitos humanos.
O presente trabalho ulizará os conceitos de legalismo autocráco, autoritarismo legal
e constucionalismo abusivo como sinônimos de um mesmo objeto: a alteração de padrões
constucionais, democrácos e legais de democracia e Estado de Direito com a ulização dos
mesmos mecanismos constucionais, democrácos e legais por líderes autoritários, que, por
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seu turno, foram eleitos conforme as regras do jogo. O ponto de destaque é a oposição desse
fenômeno ao ango modelo de autoritarismo, em que golpes de Estado e deterioração das
estruturas democrácas eram, nomeadamente, mais evidentes.
A parr dessa hipótese, o trabalho buscará destrinchar como a democracia e o constu-
cionalismo relacionam-se no cenário jurídico diante de invesdas autoritárias, especialmente
no caso brasileiro. Nesse ínterim, procura entender se no Brasil está a ocorrer o avanço
autoritário de cunho anliberal que se uliza de mecanismos democrácos e legais para
conversão do espaço outrora democráco em um ambiente políco ambíguo em que medidas
andemocrácas passam despercebidas.
2 CONSTITUCIONALISMO EM CRISE: O LEGALISMO AUTOCRÁTICO E A EROSÃO
DEMOCRÁTICA NO CONTEXTO INTERNACIONAL
Antes de adentrar na seara da crise democráca enquanto fenômeno a ser analisado,
é preciso voltar-se ao conceito de democracia dentro de uma perspecva do constuciona-
lismo. O debate entre democracia e constucionalismo implica uma reexão sobre os limites
à atuação majoritária dos líderes eleitos em respeito ao enlace constucional.
Barboza e Kozicki (2008) ressaltam que a primeira noção de democracia no consciente
social está assentada na ideia de um governo da maioria (BARBOZA, KOZICKI, 2008, p. 157).
Essa posição, segundo as autoras, é defendida por autores como Jurgen Habermas e Ely Hart,
que se pautam, essencialmente, pelo método como são formadas as decisões das maiorias, de
modo que esta precisa abranger a parcipação de toda a sociedade enquanto desnatária do
Direito. Nesse sendo, Habermas salienta o papel de uma sociedade de indivíduos informados
e que levam ao debate público suas pautas de forma racional (HABERMAS, 2013, p. 4).
A teoria procedimentalista da democracia entende que a parcipação do Poder
Judiciário, nomeadamente as cortes constucionais, deve ser meramente no sendo de
proteger a formação procedimental da democracia. Assim, pouco importaria o resultado
alcançado, pois seria uma manifestação legíma. Dessa maneira, a chamada democracia
procedimental pauta-se no processo e não no resultado, de modo que busca valorizar a ampla
parcipação, não priorizando o resultado a ser alcançado.
No outro lado da discussão encontra-se a posição da teoria da democracia substanva,
que entende que o resultado nal almejado pelo processo democráco é importante
enquanto denidor do viés democráco daquela sociedade e sua ordem jurídica, uma vez
que não pode a democracia se furtar de garanr a defesa dos direitos dos grupos minoritários
não abrangidos pelo processo majoritário de deliberação.
Nessa toada, destaca-se a críca trazida por Erik Eriksen (2004, p. 3), que pontua que
não há como imaginar que a mera existência de eleições livres e frequentes seria o suciente
para caracterizar uma democracia plena. Para o autor, há um certo grupo de minorias que
jamais serão uma maioria quantava, ou, ainda, capazes de formar coalizões com maiorias.
Sarmento e Souza Neto (2013) destacam a atuação contramajoritária das cortes cons-
tucionais e seu quesonamento perante a opinião pública. Para os autores, a noção de uma
corte que atua de forma disnta dos representantes eleitos gera uma tensão (SARMENTO;
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SOUZA NETO, 2013, p. 126). Assim, a teoria procedimentalista de democracia entende que o
resultado alcançado no processo democráco não pode ir de encontro ao direito de grupos
sub-representados, ou mesmo grupos que não constuem maioria dentro do processo
democráco procedimental.
Nesse sendo, o trabalho aqui apresentado busca compreender em que medida a
atuação de um Poder Execuvo, pautado na defesa da maioria que o elegeu, pode fragilizar
democracias constucionais, no caso em discussão, a democracia brasileira. Destarte,
o presidente eleito em 2018, ao pautar-se no majoritarismo que o elegeu, e buscando
marginalizar as minorias, vai de encontro ao conceito de democracia constucional adotado
neste trabalho.
Conforme apontado, o papel do Poder Judiciário, na perspecva da democracia
substanva, é essencialmente marcado pela defesa das minorias contra eventuais maiorias,
sendo essa defesa exercida pelo judicial review enquanto limitador das ações do Execuvo
e Legislavo. Embora o papel do Poder Judiciário tenha o condão de equilibrar a disputa
democráca, este trabalho não se dedicará à análise da atuação do judicial review enquanto
instuição contramajoritária. A atenção será dada às proposições legislavas oriundas do
Poder Execuvo no ano de 2019.
Passada a premissa de democracia constucional, enquanto conjugação dos direitos
da maioria eleita em respeito aos direitos das minorias não representadas, ou sub-repre-
sentadas, é preciso um aporte ao conceito de crise democráca vivida pelas democracias ao
redor do mundo.
Francis Fukuyama, em sua obra ¿El n de la história? de 1990, argumentou que, após a
queda da União Soviéca, se restou comprovada a vitória do liberalismo políco e econômico
como o modelo mais desejado de sociedade democráca (FUKUYAMA, 1990, p. 12). Segundo
o autor, os países ricos e industrializados, ao angirem o ápice econômico liberal, teriam
chegado ao m da história.
A tese apontada por Fukuyama (1990), todavia, tem sido quesonada na úlma década,
uma vez que há uma tendência de formação de regimes polícos ambíguos em que democracia
e direitos humanos são desvirtuados em nome de uma suposta maioria (SCHEPPELE, 2018, p.
548).
Em obra recente, Fukuyama voltou-se para a crise democráca atual, e quesona o
movo de as democracias estarem falhando (FUKUYAMA, 2015, p. 11). O autor uliza-se do
exemplo da primavera árabe de 2011, quando a expectava era de uma consolidação do
modelo democráco ocidental, porém, o que se viu, foi o surgimento de novas ditaduras,
substuindo as angas (p. 11).
Fukuyama (2013, p. 13) sinala que, embora enraizada na América Lana, a democracia
está em tensão em países como Brasil, Colômbia e México, em razão da falha na prestação de
serviços públicos básicos como educação, infraestrutura e segurança.
Nessa toada, Steven Levitsky e Lucas Way (2002, p. 51) entendem que o m da Guerra
Fria acendeu no cenário políco internacional uma tendência à formação de regimes polícos
híbridos ou iliberais, disnguindo-os, por essência, do modelo bipolar vigente até então. Esses
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modelos híbridos ou iliberais combinam elementos de aspecto democráco com elementos
de aspecto autoritário, por isso a diculdade em disngui-los.
Na tentava de compreender a crise democráca liberal, uma das perspecvas para o
tema foi a conceitualização de constucionalismo abusivo dada por David Landau (2013), que
busca analisar o fenômeno crescente nos úlmos anos em que a democracia constucional
tem sido abalada pela onda anliberal e andemocráca.
De acordo com Levitsky e Way (2002), assim como, para Landau (2013), a falha no
mecanismo de accountability, seja ela horizontal, ou vercal, gera um dos elementos
marcantes na denição de um regime iliberal. Nesse sendo, para Landau (2013, p. 195) o
constucionalismo abusivo envolve o uso de mecanismos de mudança constucional por
polícos democracamente instuídos – podendo ser uma constuinte, emendas constu-
cionais ou uma mistura dos dois meios – para ruir as bases democrácas.
Para Landau (2013), os mecanismos do constucionalismo abusivo são essencialmente
formais, ou seja, perpassam o processo de mutação constucional como a promulgação de
uma emenda ou a substuição da constuição. O resultado, segundo ele, é que as constuições
afetadas por mecanismos abusivos, a uma primeira vista, parece ser democráca, não
disnguindo daqueles elementos de raiz liberal das constuições democrácas. O objevo
dessas alterações constucionais, todavia, é, em essência, reduzir mecanismos de controle
horizontal e vercal de poder2, bem como perpetuar-se no poder por mais tempo, ou mesmo,
indiscriminadamente.
Landau (2013) aponta, ainda, sobre a democracia militante surgida no pós Segunda
Guerra Mundial, quando fora vedada a criação de qualquer pardo que se mostrasse ande-
mocráco para evitar que ele criasse força e acabasse, assim, por enfraquecer todo o sistema.
Desse modo, ao contrário de outros exemplos ao longo da história, em que líderes autoritários
enfraquecem a ordem constucional por intermédio de golpes de Estado, há uma inexão
interna de enfraquecimento democráco. Assim, Landau (2013) aponta para o perigo da
erosão das normas constucionais por meio de mecanismos que aparentam estar revesdos
de legalidade e parecem estar de acordo com as regras democrácas (p. 191).
Landau (2013) traça um paralelo entre o autoritarismo moderno e o constuciona-
lismo abusivo ao colocar que, diante de regimes autoritários, as regras formais democrácas
tendem a ser relavizadas. Ele enfaza, ainda, que se posicionar contra o constucionalismo
abusivo não é uma críca às polícas almejadas por esses atores, mas, sim, ir contra a sua
busca por tornar seus regimes menos democrácos (LANDAU, 2013, p. 215)3.
Ainda no debate acerca do tema, Scheppele (2018) traz o conceito de legalismo
autocráco, no qual um líder eleito democracamente uliza mecanismos democrácos
e legais para alterar profundamente o status quo de um regime políco. A autora pontua
que, apesar de se tratar de um fenômeno recente e ainda em processo de transformação,
2 Accountability, em regimes democrácos, está ligada à possibilidade de prestação de contas entre os poderes de forma
horizontal bem como vercalmente entre cidadãos e o poder políco (SCHEDLER, 1999, p. 13-21).
3 Dessa feita, após eleito, Hugo Chávez manejou as regras da Constuinte de modo que o colégio eleitoral fosse favorável a
ele. Ao ganhar 60% dos votos seu pardo teve mais de 90% de cadeiras na constuinte, implicando, assim, em mudanças
importantes, como o aumento do poder do Execuvo e reduzindo os demais poderes, saindo do que era um dos presiden-
cialismos mais fracos da região para o um superpresidencialismo lano-americano (LANDAU, 2013, p. 179).
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é possível traçar algumas linhas comuns entre líderes que ela chama de autocratas legais
(SCHEPPELE, 2018, p. 571).
Uma das caracteríscas comuns entre esses líderes é sua ascensão ao poder com o
discurso de renovação e m do ango modo de fazer políca. Assim, esses líderes sobem ao
poder por meio de um projeto políco dito transformador e diferente dos demais projetos já
consolidados: “Em todo o mundo, o liberalismo constucional está sofrendo um ataque vindo
de líderes populistas que basearam suas campanhas em não jogar a velha políca”, podendo
ser citados como exemplos Hugo Chávez na Venezuela e Viktor Orbán na Hungria (SCHEPPELE,
2018, p. 546)4.
Scheppele (2018), em seu trabalho, vai além da conceitualização trazida por Landau
(2013), pontuando que existe a possibilidade de a erosão democráca ir além de uma
alteração da constuição por meio de emendas ou por substuição. Scheppele (2018) pontua
que o ataque às minorias polícas e aos direitos humanos caracteriza, também, uma forma de
legalismo autocráco (SCHEPPELE, 2018, p. 572). Nesse sendo, este trabalho atentar-se-á a
tais mecanismos de paulano desgaste dos fundamentos da democracia brasileira.
É importante trazer à baila a conjugação que a autora faz entre constucionalismo,
democracia e liberalismo. A tensão entre esses elementos é discussão procua e presente
nos estudos de constucionalistas (BARBOZA; KOZICKI, 2008, p. 152). Assim, quando há um
limite na atuação de líderes eleitos por uma constrição constucional, o debate vem à tona
(SCHEPPELE, 2018, p. 557).
Destaca-se que a tensão entre constucionalismo e democracia se resolve, sobretudo,
na esfera de eleições periódicas; o que, todavia, pode ser deturpado por autocratas legais,
usando o argumento simplista de “vontade da maioria” para um ataque às ordens liberais
(SCHEPPELE, 2018, p. 557).
O que ocorre é o que a autora chama de majoritarismo, ou seja, um líder eleito democra-
camente, abandonando o projeto constucional e liberal, em que as minorias polícas têm
seus direitos assegurados, inicia um mandato voltado somente para a maioria que o elegeu,
e, além disso, assume uma postura de invalidação de quaisquer divergências ao seu governo
(SCHEPPELE, 2018, p. 448).
Dessa forma, em um contexto de maiorias eventuais, a preocupação é crescente, uma
vez que há uma tendência para que autocratas legais venham a deturpar a esfera democráca,
causando uma democracia sem restrições liberais constucionais para sua atuação. Logo, há
transformação em um governo da maioria, quando os direitos das minorias polícas não são
reconhecidos e esses líderes ulizam suas maiorias eventuais para se perpetuar no poder
(SCHEPPELE, 2018, p. 570).
Outro autor que trabalha conceito similar é Mark Tushnet (2015), que cunha o termo
constucionalismo autoritário e o idenca como um sistema de governo no qual, apesar de
eleições livres e justas, há um grande controle repressivo quanto às liberdades dos cidadãos.
O exemplo ulizado é o de Singapura, quando o autor aponta para um mere rule-of-law, em
4 Tradução livre de: Around the world, liberal constuonalism is taking a hit from charismac leaders like these whose
signature promise is to not play by the old rules (SCHEPPELE, 2018, p. 554).
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que há uma legalidade instuída, porém apenas aparente; o que há, então, é uma aparência
de democracia em que o constucionalismo acaba por servir de instrumento para a supressão
de liberdades (TUSHNET, 2015, p. 69).
Tushnet (2015) e Landau (2013) dialogam entre si quando vericam que somente
a aparência de um constucionalismo democráco não pode ser entendida como sinal de
estabilidade democráca, uma vez que medidas autoritárias podem se ulizar de regras
democrácas e mecanismos legais para reduzir direitos individuais e desestabilizar as
instuições democrácas.
3 PRESIDENCIALISMO E PODER DE AGENDA: A ATUAÇÃO LEGISLATIVA DO
PODER EXECUTIVO
Passada a leitura sobre o problema da crescente tensão democráca no cenário nacional
e internacional, é necessário compreender de que forma isso pode ser essencialmente
perigoso para o modelo constucional brasileiro. Contextualizando com o cenário nacional,
Barboza e Robl Filho (2018) buscam conjugar o perigo da erosão democráca crescente
com o constucionalismo brasileiro. Assim, os autores apontam para a ulização indevida
de mecanismos do direito constucional para atacar e minar as estruturas da democracia
constucional e das bases losócas do constucionalismo (BARBOZA; ROBL FILHO, 2018, p.
87).
O presidencialismo brasileiro é um dos modelos de presidencialismo em que o poder
execuvo na pessoa do presidente possui uma agenda legislava destacável. Suas bases têm
origem no passado autoritário pelo qual o país e toda a América Lana passaram (BARBOZA;
ROBL FILHO, 2018, p. 82).
Os pesquisadores destacam que o fenômeno do constucionalismo abusivo se daria,
essencialmente, de duas formas: (i) um ataque direto à legalidade constucional por meio
de emendas à constuição, que atentam diretamente a princípios constucionais, que eles
chamam de constucionalismo abusivo estrutural; (ii) por outro lado, o uso de instutos
e técnicas constucionais de maneira deturpada e em desacordo com a democracia
constucional, constui o chamado constucionalismo abusivo episódico (BARBOZA; ROBL
FILHO, 2018, p. 94).
Assim, no cenário nacional a pluralidade de atores no jogo políco indica uma
assincronia entre sociedade e poder políco, de modo que há a necessidade de diversos
grupos alinharem-se na intenção de uma conguração majoritária; trata-se do fenômeno do
presidencialismo de coalização.
Abranches (1988) pontua que, em certa medida, todas as formas republicanas de
governo carecem de uma necessidade de composição baseada em coalizões. A exceção
brasileira encontra-se como um regime que combina o “presidencialismo imperial”, inspirado
no modelo dos EUA, com a necessidade de coalizão em um cenário pardário fragmentado
(ABRANCHES, 1988, p. 22).
Nessa seara, conforme aponta Paulo Schier (2016), o presidencialismo, por ser um
regime em que o chefe do Poder Execuvo é eleito para um mandato xo, tende a ser mais
rígido quanto à sua saída, restando somente para casos de crime de responsabilidade, quando
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deve ser ulizado o processo de impeachment. Esse autor destaca que há uma tendência de
o regime presidencialista gerar crises e tensões, e que ainda que um governo tenho grandes
problemas de governabilidade, não pode ser destuído, como ocorre no parlamentarismo
(SCHIER, 2016, p. 255).
O modelo presidencialista é padrão na América Lana, e, por isso, os líderes que
buscam romper as estruturas democrácas tendem a fortalecê-lo ainda mais. Nesse
ínterim, destaca-se o exemplo da Venezuela e do Equador, onde as reformas constucionais
aumentaram o poder execuvo e, principalmente, a gura do presidente, dando-lhe mais
poderes legislavos. Indivíduos ou grupos com muito poder tendem a alterar as regras cons-
tucionais com a intenção de garanr poder e tornar muito dicil ou mesmo impossível a sua
saída do poder (LANDAU, 2013, p. 203).
Nesse cenário, o poder de agenda do Execuvo ante o Legislavo é destaque, uma vez
que a edição de Medidas Provisórias gera uma alteração substancial da agenda legislava
do Congresso Nacional (PEREIRA; MUELLER, 2000, p. 47). Assim, o presidencialismo de
coalizão, quando em crise, gera uma tendência à polarização políca em que a legimidade é
quesonada e o ambiente políco se transforma em cenário conituoso (ABRANCHES, 1988,
p. 30), o que, de acordo com os autores apontados, é solo frufero para a ascensão de líderes
autocratas.
Na mesma seara, é importante destacar que o presidencialismo brasileiro é alvo
de crícas quanto à atroa decorrente do descompasso entre Poder Legislavo e Poder
Execuvo (ALMEIDA, 2020, p. 6). O destaque também pode ser direcionado ao rol de matérias
de exclusividade de iniciava legislava pelo Poder Execuvo, nomeadamente aquelas que
implicam aumento de despesa e orçamento (argo 165, CF); organização da Administração
federal (argo 84, CF); e questões relavas às forças armadas (argo 61, §1º, CF).
As proposições legislavas são importantes para compreender qual caminho um
governo tem a intenção de seguir quanto à formação de polícas públicas e alterações na
ordem jurídica; assim, segundo Farhat (1996, p. 819), a denição para a proposição legislava
é de qualquer matéria submeda ao Congresso Nacional, às suas Casas ou Comissões, com o
objevo de ser apreciada.
A pesquisa, a princípio, baseava-se na hipótese de que o governo, em seu primeiro ano
de gestão, agiria a parr de PECs buscando alterações constucionais na perspecva trazida
por Landau (2013) e sua tese do constucionalismo abusivo.
Ocorre que se vericou que o governo apresentou somente duas PECs no período
analisado, no sendo de que a discussão das demais propostas legislavas se mostrou
necessária. Desta forma, buscou-se vericar em que medida a erosão democráca pode vir
via leis infraconstucionais, aprovadas em processo formal e democráco (SCHEPPELE, 2018,
p. 547).
Para se compreender como o Poder Execuvo federal se comportou no que diz respeito
a proposições legislavas em seu primeiro ano de mandato, ulizou-se, neste trabalho,
consulta às fontes formais de propostas legislavas, essencialmente uma consulta ao sistema
da Câmara dos Deputados em que as propostas legislavas são apresentadas para consulta
pública. A consulta às propostas teve por base a análise junto ao sistema de banco de dados
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da Câmara dos Deputados, onde as propostas estão discriminadas por categorias, data,
autores e po de propostas.
Há uma série de trabalhos importantes quanto à saliência de temas envolvendo a
agenda legislava do Congresso e sua categorização. O presente trabalho uliza-se de uma
tentava de idencação dos temas gerais apresentados pelo presidente e sua conjugação
com a alteração da ordem jurídica5. Para uma compreensão do tema, optou-se por uma
categorização das propostas conforme o trabalho de Mariana Basta (2020), em que a autora,
vericando a diculdade de classicação das propostas, optou por uma classicação manual
dos temas.
No portal da Câmara dos Deputados há uma série de ltros disponíveis para localização
de proposições legislavas em andamento na Câmara, podendo o ltro selecionar por período
ou por quem apresentou tal proposta.
Neste trabalho adotou-se, especicamente, a busca pelas proposições oriundas
do Poder Execuvo durante o ano de 2019. Nesse mecanismo de transparência é possível
consultas ao texto original, despachos, tramitação, pareceres e emendas. Os pos de
proposições legislavas analisadas foram as seguintes:
a. Projetos de Lei (PL): legislação ordinária e infraconstucional, que podem versar
sobre um amplo rol de temas;
b. Projetos de Lei Complementar (PLP6): algumas normas da Constuição Federal
preveem que sejam editadas leis complementares que buscam adjevar as
disposições constucionais e assim lhes garanr efevidade;
c. Medidas Provisórias (MPs): um dos grandes trunfos do chefe do Poder Execuvo no
Brasil, que têm ecácia a parr de sua edição, e, caso não sejam converdas em lei
pelo Congresso no prazo de 60 dias, perdem sua validade;
d. Propostas de Emenda à Constuição (PECs): são propostas que têm como objevo a
alteração de disposivos da Constuição Federal, e devem seguir o rito previsto no
argo 60.
Assim, de um total de 79 propostas legislavas apresentadas pelo Poder Execuvo
no ano de 2019, nota-se uma preponderância pelo uso de medidas provisórias, sendo
apresentadas 48 em apenas um ano (Tabela 1).
Tabela 1 – Proposições legislavas apresentadas pelo Poder Execuvo durante o ano de 2019
PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS QUANTIDADE
Propostas de Emenda à Constuição
Projetos de Lei Complementar
Medidas Provisórias
Projetos de Lei
2
5
48
24
Fonte: Elaborada pelo autores.
5 Nesse sendo, é importante destacar que nem toda proposição legislava se desna a se transformar em norma jurídica
(OLIVEIRA, 2014, p. 7).
6 A sigla ulizada é a mesma que se encontra no portal da Câmara dos Deputados.
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Quanto às demais propostas legislavas apresentadas pelo Poder Execuvo dentro do
marco temporal apontado, destaca-se que a opção metodológica foi de não as analisar. A
escolha metodológica versa, essencialmente, na proposição legislava que gera uma inovação
dentro da ordem jurídica brasileira, capaz de alterar o status quo e modicar a forma como se
dão as relações entre cidadãos.
A assimetria decorrente da ausência de coordenação entre Poder Execuvo e Legislavo
parece resultar em uma diculdade na aprovação das demandas legislavas oriundas
da Presidência (ALMEIDA, 2020, p. 13). O resultado é a necessidade de coordenação do
Legislavo pelo Execuvo pelo uso de cargos públicos e emendas orçamentárias, dominando
a oposição e concatenando o conhecido fenômeno do Presidencialismo de Coalizão (p. 7).
Assim, a grande pauta legislava do presidente no modelo brasileiro não implica, necessaria-
mente, um sucesso dessas medidas (p. 13).
Nesse sendo, o objevo é compreender em que medida as proposições legislavas
do Poder Execuvo no ano de 2019 foram propostas com o azo de alterar relações jurídicas
democrácas, visando a enfraquecer os elementos estruturantes da Constuição de 1988,
incluindo o ataque a direitos fundamentais consolidados na Carta Magna.
4 ANÁLISE DAS PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS APRESENTADAS PELO PODER
EXECUTIVO NO ANO DE 2019: DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A compreensão do fenômeno abordado neste trabalho necessita de uma atenção
maior às proposições legislavas apresentadas. Para isso, a escolha se deu a parr de uma
leitura integral de todas as proposições legislavas, para, então, a eleição de proposições de
destaque dentro de cada um dos pos legislavos examinados.
Assim, a ênfase temáca dos eixos conjugou-se com pesquisas recentes sobre o tema,
como o trabalho desenvolvido por Mariana Basta (2020), em que há uma preocupação com
a saliência temáca na agenda legislava brasileira (BATISTA, 2020, p. 11).
Passada a premissa metodológica, volta-se, aqui, às PECs apresentadas pelo Poder
Execuvo no primeiro ano do mandato – 2019/2022. O ano de 2019, primeiro ano da gestão
do presidente Bolsonaro, foi marcado pela apresentação de duas propostas de Emenda à
Constuição: a PEC 6/2019 e a PEC 108/2019.
Assim, as PECs mantêm-se na média dos governos anteriores, analisando-se o mesmo
período (Tabela 2).
Tabela 2 – PECs apresentadas pelo Poder Execuvo no primeiro ano de mandato (2003-2014)
PECS APRESENTADAS NO PRIMEIRO ANO DO MANDATO QUANTIDADE
Lula 1
Lula 2
Dilma 1
Dilma 2
MÉDIA:
2
0
2
4
2
Fonte: Elaborada pelo autores.
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Das PECs apresentadas, considerando o padrão em relação aos governos anteriores,
é importante uma compreensão dos projetos e seu condão de inovar na ordem jurídica
constucional. A PEC 6/2019 propõe a alteração dos disposivos constucionais que versam
sobre o regime da Previdência Social no Brasil. É consenso o viés social da Constuição Federal
de 1988 enquanto inserida no contexto de uma constuição de cunho pragmáco e que visa à
redução das desigualdades sociais.
O texto apresentado pelo Poder Execuvo busca alterar os argos que versam sobre
faixa etária e sobre o ponto mais polêmico: o regime de capitalização. Em sua fundamentação
ao presidente da República, o ministro da Economia argumenta que o objevo da referida PEC
é proporcionar um contexto mais justo aos contribuintes.
Destaca-se que não é o objevo traçar uma ampla críca à Reforma da Previdência,
todavia é destaque que tal medida representa uma grande alteração na forma como os
cidadãos brasileiros relacionar-se-ão com a Previdência, de modo que atenta contra o objevo
social do Constuinte de 1988, que era fundar um regime pautado na solidariedade. Marco
Aurélio Serau (2019) pontua que essa PEC buscou desestruturar o regime constucional
vigente até então (p. 212), o que, dentro da leitura de Tushnet (2015), pode ser compreendido
como uma forma de ataque aos direitos fundamentais.
Por seu turno, a PEC 108/2019, apresentada pelo Poder Execuvo, tem como objevo
alterar a conguração jurídica dos Conselhos Prossionais, inserindo-os no regime jurídico
do direito privado, o que denota uma tentava de desestazação dessas endades, que
representando um aspecto importante desse governo.
Também apresentada pelo ministro da Economia à Presidência da República, a PEC
108/2019 tem como objevo a alteração do argo 174 da Constuição Federal, que passaria
a vigorar com uma redação inspirada em um liberalismo políco e a desnecessidade de
intervenção do Estado na regulação das avidades prossionais, acrescentando os argos
174A e 174B com respecvos incisos e parágrafos.
Vericado o conteúdo e sua proposta de alteração da ordem jurídica, percebe-se que
as Emendas apresentadas no primeiro ano do governo Bolsonaro não indicam um atentado
claro à ordem constucional nos moldes propostos pela bibliograa ulizada, uma vez que
não apresentam caracteríscas explícitas que busquem alterar a ordem liberal de freios e
contrapesos, nem as liberdades individuais, embora discutam direitos sociais importantes.
Segundo Landau (2013), o fenômeno do constucionalismo abusivo ocorre
essencialmente por vias formais de emendas ou substuição constucional (p. 198). Conforme
Barboza e Robl Filho (2018), no contexto brasileiro o constucionalismo abusivo parece não
encontrar solo para uma alteração drásca da hermenêuca constucional, tendo em vista as
caracteríscas nacionais (p. 94).
Embora não possa ser congurado constucionalismo abusivo por emendas, os
processos de erosão democráca também podem se dar por leis que venham a fragilizar
os órgãos de contenção. Assim, essa fase passa à análise dos Projetos de Lei Complementar
e de Lei Ordinária. Logo, os PLPs são importantes na medida em que atuam como agentes
de consolidação do poder constuinte originário. Assim, mostram-se necessários para
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compreender em que medida pode o fenômeno do constucionalismo abusivo atuar sobre
leis para além da constuição formal.
Verica-se que no primeiro ano da gestão 2019/2022 a apresentação de PLPs pelo Poder
Execuvo está acima da média histórica, que é de 1,75 PLPs (Tabela 3).
Tabela 3 – PLPS apresentadas pelo Poder Execuvo no primeiro ano de mandato (2003-2014)
PLPS APRESENTADOS NO PRIMEIRO ANO DO MANDATO QUANTIDADE
Lula 1
Lula 2
Dilma 1
Dilma 2
MÉDIA:
3
2
2
0
1,75
Fonte: Elaborada pelo autores.
Durante o ano legislavo de 2019, o Poder Execuvo apresentou cinco Projetos de Lei
Complementar. Quanto aos Projetos de Lei, dos 24 PLs apresentados pelo Poder Execuvo
no ano de 2019, há uma preponderância de temas caros à chapa Bolsonaro-Mourão desde
a época eleitoral, como (i) a segurança e a criminalidade; e (ii) a economia. Cabe destacar,
ainda, que, em relação aos governos anteriores, a gestão 2019/2022 apresentou Projetos de
Lei abaixo da média histórica (Tabela 34).
Tabela 4 – Projetos de Lei apresentados no primeiro ano do mandato (2003-2014)
PLS APRESENTADOS NO PRIMEIRO ANO DO MANDATO QUANTIDADE
Lula 1
Lula 2
Dilma 1
Dilma 2
MÉDIA:
58
70
36
43
51,75
Fonte: Elaborada pelo autores.
Dessa forma, este trabalho, por entender que a Lei ordinária dentro do Direito brasileiro
abrange um rol extenso de temas e passa por um processo legislavo mais simples que o
processo da Lei complementar, optou-se por não entrar na seara dos temas trazidos pela
Presidência da República no primeiro ano da gestão 2019/2020. Mesmo assim, destaca-se
que a média de PLs apresentadas por Bolsonaro no primeiro ano de seu mandato está bem
abaixo da média histórica do período.
O destaque desta pesquisa foi a preponderância de Medidas Provisórias dentro do
primeiro ano do mandato do presidente Bolsonaro. Assim, a invesgação voltou-se para a
compreensão do fenômeno da edição de Medidas Provisórias, e a hipótese centrou-se, então,
na possibilidade de uma atuação marcada por um autoritarismo legal seguindo esse po de
proposta legislava. Constatada a preponderância de MPs no rol de propostas legislavas do
governo Bolsonaro, buscou-se, então, a classicação dessas MPs a parr de critérios objevos
que buscassem apontar temácas de interesse do governo.
Para a categorização das MPs dentro dos temas, não foi ulizada a sistemazação
disponível no portal da Câmara dos Deputados em razão de a classicação abarcar mais de
uma proposta, podendo, por exemplo, versar sobre “direitos humanos” e “economia” ao
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mesmo tempo. Tal conguração não permiria compreender que pos de demandas o Poder
Execuvo pleiteia quando apresenta propostas legislavas.
Dessa forma, classicou-se cada Medida Provisória (MP) pela sua nalidade dentro da
ordem jurídica, restando 11 categorias a seguir discriminadas:
a. Gestão e administração pública: nessa categoria foram inseridas as MPs que buscam
alterar a organização da estrutura do Estado e/ou de suas autarquias, bem como
regular formas de como a gestão 2019/2022 presta informações aos demais poderes
e à sociedade.
b. Bens da união: MP que versa sobre alienação de bens da União e disposições quanto
ao uso desses bens.
c. Direitos humanos: nessa categoria foram inseridas MPs que discutem direitos dos
cidadãos em geral, como direito ao lazer e à vida digna.
d. Economia: aqui encontram-se as MPs que estabelecem a atuação do Estado na
ordem econômica e/ou buscam fomentar o mercado e a circulação de riquezas.
e. Finanças e gastos do poder público: criação de despesas correntes, gastos com
pessoal, criação e exnção de cargos públicos encontram-se nessa categoria. As
criações de despesas emergenciais para ns de polícas públicas não foram inseridas
aqui.
f. Meio ambiente: MP sobre proteção ao meio ambiente.
g. Previdência e seguridade social: nessa categoria foram alocadas as MPs que versam
sobre seguridade social, previdência e assistência a hipossucientes.
h. Saúde: temas de saúde pública.
i. Segurança e criminalidade: uma vez que normas penais são vedadas de serem
editadas via Medida Provisória, nessa categoria se discute lateralmente sobre
segurança pública.
j. Tributos e impostos: criação de impostos, regulação de tributos e desnação de seus
proventos.
k. Urbanismo e mobilidade: temas de mobilidade urbana, circulação de pessoas e
discussão de projetos regionais.
Destaca-se que este trabalho não tem como objevo analisar a eciência do Poder
Execuvo na proposição legislava, logo não será observada a apreciação e aprovação pelo
Congresso Nacional daquilo que lhe foi submedo pelo governo Bolsonaro no ano de 2019.
Ainda nesse sendo, o objevo não foi traçar uma críca per se às proposições
legislavas da gestão 2019/2022. Conforme pontuado por David Landau (2013), a críca
que se traça a esses governantes é sua tentava de minar a ordem democráca por vias
instucionais, impedindo a alternavidade do poder bem como os mecanismos de controle
(p. 199).
Apenas a tulo de comparação, a quandade de MPs editadas no primeiro ano do
mandato da gestão 2019/2022 manteve-se dentro da média de edição de MPs dos governos
anteriores (Tabela 6).
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Tabela 6 – Medidas Provisórias apresentadas pelo Poder Execuvo no primeiro ano do mandato
(2003-2014)
MPS APRESENTADAS NO PRIMEIRO ANO DO MANDATO QUANTIDADE
Lula 1
Lula 2
Dilma 1
Dilma 2
MÉDIA:
58
70
36
43
51,75
Fonte: Elaborada pelo autores.
Nesse ínterim, a Medida Provisória merece destaque dentro do poder de agenda do
Execuvo brasileiro. Conforme pontuado por Moraes (2001, p. 50), a ulização de MPs por
parte do Execuvo tem a importante função de sujeitar o Legislavo à agenda presidencial.
O autor direciona para um caráter de atroamento do processo democráco em razão
dessa conjugação da delegação de pautas legislavas do Execuvo para o Poder Legislavo
(MORAES, 2001, p. 51).
Do mesmo modo, Pereira e Mueller (2000) ressaltam que há dois aspectos do processo
de tomadas de decisão no Congresso brasileiro que evidenciam como há preponderância
do Execuvo, sendo o primeiro, “(...) o poder de legislar garando ao presidente pela
Constuição; e, segundo, a centralização do poder decisório nas mãos dos líderes dos pardos
no Congresso” (p. 46).
Ainda sobre o tema, as Medidas Provisórias no Brasil sofreram uma importante
alteração em 2001, quando Da promulgação da Emenda Constucional nº 32, que proibiu que
esse ato normavo versasse sobre questões referentes a direitos polícos, cidadania, direito
penal e processual, bem como organização do Poder Judiciário e Ministério Público. Barboza
e Robl Filho (2018) destacam que isso indicou uma importante limitação à atuação do Poder
Execuvo no que diz respeito à separação de poderes e direitos individuais (p. 91). A parr
dessa constatação, a pesquisa voltou-se para uma interpretação das Medidas Provisórias
apresentadas quanto ao seu conteúdo, adotando a categorização conforme exposto nos itens
anteriores.
Assim, a presente pesquisa vericou que o primeiro ano da gestão do presidente
Bolsonaro comportou-se como as gestões anteriores quanto à quandade de MPs. Foram
apresentadas 46 MPs no ano legislavo de 2019, e, desse total, 12 versam sobre Gestão e
Administração Pública, representando, assim, o assunto com maior quandade de MPs
apresentadas.
Dessa forma, a gestão 2019/2022 age dentro do esperado no presidencialismo brasileiro,
em que as Medidas Provisórias possuem o condão de garanr a governabilidade ante a um
sistema pardário fragmentado (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2001, p. 57).
Entendida a importância das MPs dentro do processo decisório brasileiro, é necessária
uma condução da pesquisa apresentada a parr da escolha de algumas Medidas Provisórias
que tenham o condão de conjugar a legalidade formal com a intenção de alteração das
estruturas democrácas. Conforme pontuado por Scheppele (2018), a primeira vista
esses projetos de lei parecem não ser problemácos do ponto de vista de sua legalidade
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constucional (p. 547). Eles buscam, entretanto, fragilizar a estrutura de contenção da Casa
de Máquinas.
Dentre as proposições de MP apresentadas, merece destaque, sob análise da óca
do autoritarismo legal e da erosão democráca, a MP 873, que altera a forma como se
dá a contribuição sindical. O texto da MP prevê que a contribuição sindical seria realizada
diretamente pelo empregado por meio de boleto bancário, mediante autorização prévia do
contribuinte.
Os sindicatos dentro do modelo brasileiro representam um importante mecanismo
de consolidação das instuições democrácas e da defesa dos direitos sociais (CAETANO,
2018, p. 15). Englobada no seio da liberdade de associação (argo 5º, XVII, CF), a liberdade
sindical consagra-se, por m, no argo 8º da Constuição. Nesse sendo, é preciso destacar
que a ingerência do Estado nos sindicatos representa uma caracterísca marcante de líderes
autoritários (p. 15).
Assim, a liberdade sindical funda-se para além de sua existência, mas no modo
como os sindicatos relacionam-se com a sociedade e com o próprio Estado (NASCIMENTO;
NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2015, p. 36). A alteração dos argos da Consolidação das Leis
Trabalhistas, na leitura realizada por este trabalho, sinaliza para uma tentava de enfraqueci-
mento dos sindicatos.
Os sindicatos brasileiros já foram objeto de uma transformação quando da aprovação
da Reforma Trabalhista em 2017 durante o governo do presidente Michel Temer. A Reforma
alterou a contribuição compulsória dos trabalhadores aos sindicatos, exigindo, assim, a
autorização expressa para o desconto em folha (GALVÃO, 2019, p. 204).
Destarte, a MP 873 busca arrematar a estrutura sindical brasileira ao exigir que a
contribuição sindical ocorra por meio de boleto bancário a ser pago pelo próprio trabalhador.
Assim, conforme aponta Kim Lane Scheppele (2018), os novos autocratas não precisam
destruir seus oponentes ou mecanismos de controle externo para manterem seu poder ou
colocarem em práca suas polícas. O que fazem, por seu turno, é enfraquecer legalmente a
estrutura de oposição (SCHEPPELE, 2018, p. 577).
No mesmo sendo, o ataque a direitos trabalhistas se deu forma bastante concreta no
primeiro ano do governo Bolsonaro por meio da MP 870. A MP da Reforma Administrava
alterou profundamente a conguração das pastas do Poder Execuvo federal, inclusive
exnguindo o Ministério do Trabalho. A primeira MP de Bolsonaro trouxe para o Direito
Constucional a discussão acerca da legalidade da exnção da referida pasta em relação a
princípios constucionais e direitos fundamentais de proteção ao trabalhador em um evidente
retrocesso social.
De acordo com o Decreto 8.894/2016, entre as funções essenciais do Ministério
do Trabalho e Emprego estavam a defesa do trabalho digno, defesa do meio ambiente do
trabalho digno, scalização contra o trabalho análogo ao escravo e trabalho infanl, bem
como, polícas salariais de igualdade de gênero.
Scheppele (2018) destaca que transformações na estrutura burocráca da Administração
Pública podem ser ulizadas como instrumentos de erosão democráca. A autora ressalta que
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essas alterações da burocracia estatal são executadas com o objevo de varrer a disfunções
de um Estado supostamente ineciente (SCHEPPELE, 2018, p. 545).
Ana Paula de Barcellos (2011) salienta que os Direitos Fundamentais, garandos no
texto constucional, devem ser protegidos pela legislação infraconstucional (BARCELLOS,
2011, p. 85). Desse modo, quando há revogação por meio de medidas infraconstucionais de
princípios protevos garandores de direitos fundamentais posivados, caberia ao Judiciário
impedir esse retrocesso.
Nesse sendo, a leitura deste trabalho aponta para o retrocesso social trazido pela
exnção do Ministério do Trabalho da pasta de Ministérios do Poder Execuvo Federal. O
retrocesso assenta-se na conjugação da exnção do Ministério do Trabalho com o discurso
do presidente eleito acerca da necessidade de dar maiores prerrogavas a empresários e ao
patronato7.
Ainda dentro da seara de produção de MPs pelo presidente Bolsonaro, é importante
destacar a variedade de temas abordados. Outro tema que foi objeto de preocupação pelo
PRESIDENTE eleito foi a eleição de reitores de Universidades Públicas Federais, Instutos
Federais e do Colégio Dom Pedro II.
O processo, atualmente, é regido pela Lei Federal 5.540/68, argo 16, inciso I. Segundo
a lei, os reitores são nomeados pelo presidente da República entre os professores que gurem
em listas tríplices formuladas pela comunidade universitária.
Tradicionalmente, a escolha dos reitores se dá por meio de consulta à comunidade
universitária, quando são apresentados três candidatos. O mais votado é escolhido pelo
presidente como forma de respeito à decisão da comunidade acadêmica. Este modelo
encontra assento na autonomia universitária assegurada no argo 201 da Constuição
Federal.
Aqui o destaque se dá para a MP 914/2019, editada às vésperas do feriado de Natal.
Trata-se de MP que buscou alterar como se realiza o processo de escolha dos reitores de
Universidades Públicas Federais, Instutos Federais e do Colégio Dom Pedro II.
Conforme aponta Moa (2018), a democracia é um dos pilares da Universidade
enquanto centro de produção do saber, do progresso e da ciência (p. 89). No mesmo sendo,
pontua o autor, a autonomia universitária constuiu importante elemento de concrezação
dos valores de liberdade dispostos no argo 5º da Constuição Federal, nomeadamente a
livre-manifestação do pensamento. Ocorre que a proposta apresentada pelo presidente por
intermédio de MP, tem o condão de formalizar a discricionariedade da escolha presidencial
entre qualquer um da lista tríplice.
Instuições de conhecimento são componentes fundamentais de democracias bem su-
cedidas. Um estudo recente aponta (ver Ginsburg & Huq (2018); Graber et al. (2018))
ataque à imprensa, instuições de ensino superior e contra organizações sociais, que ten-
dem a acompanhar ataques ao Poder Judiciário a órgãos de contenção, bem como elei-
ções livres em países com autoritarismo crescente (tradução livre) (VICKI, 2019).
7 hps://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/11/bolsonaro-estuda-m-do-ministerio-do-trabalho-atribuicoes-
migrariam-de-pastas.shtml
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Barboza, Buss e Strapasson (2020) indicam que a inconstucionalidade da MP se
assenta na interferência na autonomia das universidades. Autonomia que fora construída
pela Constuição Federal de 1988 como elemento de uma sociedade democráca. No mesmo
sendo, os autores destacam que em três oportunidades recentes tal autonomia se revelou
na leitura dos ministros do STF, de modo que liberdade de expressão, autonomia universitária
e independência administrava, são conceitos que se concatenam no cenário democráco do
ensino brasileiro.
Assim, conforme o exposto, o autoritarismo legal pode se mostrar de forma sul. Barboza
e Inomata (2019) destacam que o ataque a direitos consolidados é uma das caracteríscas
dos regimes híbridos ou iliberais (p. 423). Por exemplo, quando as propostas apresentadas
pelo Execuvo tendem a alterar a independência universitária, reduzem direitos sociais da
previdência e desestruturam mecanismos de controle externo, como os sindicatos, e há uma
conjugação de fatores que apontam para um mecanismo sul de autoritarismo legal e erosão
democráca.
Por m, embora não analisados dentro da perspecva da atuação legislava do
presidente Bolsonaro, merece destaque, ainda, a edição de decretos que exnguiram a
parcipação popular na esfera da Administração Pública. O decreto 9.759/2019 exnguiu
a parcipação popular em assembleias, fóruns, comissões, comitês e outras formas de
integração da sociedade civil à atuação do Poder Execuvo.
Os seguintes Conselhos foram exntos: Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI),
Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa
com Deciência (Conade) e Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção
dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT). Especialmente quanto aos úlmos, o ataque a direitos
de minorias é frontal e representa a posição adotada pelo presidente desde sua campanha
(TAMAKI; FUKS, 2020, p. 107).
O tema foi levado ao Supremo Tribunal Federal, que entendeu pela impossibilidade
de decreto editado pelo presidente exnguir Conselhos criados por meio de lei oriunda
do Congresso Nacional. A Ação Direta de Inconstucionalidade 6121 quesonou os argos
1º e 5º do Decreto, e defendeu que a exnção de órgãos da administração pública federal
pelo presidente usurpava as competências constucionais. A controvérsia assentou sobre os
Conselhos criados por norma infralegal ou ato de outro conselho, o que se entendeu, pelo
voto do relator, que poderiam ser exntos.
A redução da parcipação popular, que representa o controle da sociedade e importante
instrumento de accountability, denota uma tentava de angir mecanismos democrácos e
republicanos. Conforme Scheppele (2018) destaca, a tentava de medidas iliberais por parte
de líderes autoritários é reduzir a quandade de pessoas que tomam decisões e concentrar
na mão de poucos as escolhas importantes da sociedade e da políca (p. 569).
A parr da análise anterior, é possível armar que o processo de deterioração
democráca brasileira tem se ulizado de medidas legais e infraconstucionais para fragilizar
os órgãos de contenção de poder.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para a compreensão da atuação presidencialista no cenário brasileiro, o trabalho
ulizou a bibliograa apresentada. A compreensão da atuação do Poder Execuvo, enquanto
invesdo de um grande poder de agenda legislava, destaca a especicidade do problema do
autoritarismo legal no cenário brasileiro.
Conforme exposto, a hipótese inicial era de que as proposições legislavas do Poder
Execuvo no ano de 2019 nham o condão de alterar a ordem democráca de forma explícita
e contundente. Da pesquisa realizada, vericou-se que o fenômeno do constucionalismo
abusivo, conforme apresentado por David Landau (2013), não se manifestou no primeiro ano
da gestão do presidente Bolsonaro, na medida em que não houve tentava de substuição da
constuição e nem de emendas que implicassem transformação do design constucional a
ponto de alterar o pacto de 1988.
A comparação quantava da atuação do Poder Execuvo na apresentação de propostas
legislavas indica que a gestão Bolsonaro atuou de forma similar às anteriores. O papel do
Execuvo na agenda do Legislavo é uma caracterísca do Presidencialismo brasileiro, consi-
derando-se que não há um grande destaque quantavo entre as gestões pestas e a gestão
Bolsonaro.
É importante destacar, todavia, que a bibliograa aponta para a existência de alguns
atores autoritários que não iniciaram suas intenções anliberais logo no início do mandato,
tendo ulizado anos no poder para almejar seus objevos; é o caso emblemáco de Rússia e
Turquia (SCHEPPELE, 2018, p. 555).
Por outro lado, não se pode olvidar que o fenômeno do majoritarismo implicou um
ataque importante ao conceito de democracia substanva da Constuição de 1988. As
propostas de alteração do regime de contribuição sindical e a forma como os reitores são
eleitos e escolhidos, são um sinal dessa tentava de minar forças opositoras.
Conforme pontuado por Barboza e Robl Filho, o cenário brasileiro não parece ser palco
do fenômeno do constucionalismo abusivo, mas, sim, de uma erosão democráca ainda
mais sul e perigosa (BARBOZA; ROBL FILHO, 2019, p. 94). Por isso, a preocupação deste
trabalho pautou-se em deslindar se o fenômeno do autoritarismo legal atuou frontalmente
ante princípios democrácos constucionais de cunho liberal, conforme conceituação trazida
anteriormente.
Ocorre que a diculdade na conceitualização das propostas apresentadas pelo Poder
Execuvo parece coincidir exatamente com a ambiguidade dos mecanismos de erosão
democráca (LANDAU, 2013, p. 193). Os mecanismos de mudança constucional, conforme
pontuados por Landau (2013), todavia, não foram o meio de atuação legislava principal do
presidente.
Assim, a pesquisa pôde concluir que o primeiro ano da gestão Bolsonaro foi marcado
pelo uso dos mecanismos legais conferidos ao Execuvo para uma agenda de alteração das
normas estabilizadoras da unidade democráca adquirida em 1988, sem, todavia, um ataque
frontal ao design constucional de 1988. Conforme trazido por Barboza e Robl Filho (2018),
no contexto brasileiro o constucionalismo abusivo parece não encontrar solo para uma
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alteração drásca da hermenêuca constucional, tendo em vista as caracteríscas nacionais
(p. 94).
A alteração de direitos garandos pela Constuinte de 1988, especialmente pela
Reforma da Previdência, indica uma mudança clara do ethos constucional vigente até
então. Destaca-se que, apesar de o dissenso políco ser normal – e esperado – dentro da
democracia, a conjugação de uma alteração tão profunda no sistema previdenciário, em um
país profundamente desigual como o Brasil, representa um grande risco aos direitos sociais e
aos objevos da República.
A MP da alteração do regime de contribuição sindical também foi revesda de uma
tentava de enfraquecimento do cenário sindical nacional. Os sindicatos representam
um importante mecanismo de contenção das polícas de austeridade e podem ser
compreendidos como um ponto de accountability externa ao poder políco. No mesmo
sendo, a MP da escolha de reitores tem o condão de alterar mecanismos democrácos
internos às universidades, de modo que o emparelhamento das instuições de ensino
compreenda um cenário de retorno ao período da Ditadura Militar (1964-1985), em que a
autonomia universitária fora dizimada.
No mesmo sendo, a exnção do Ministério do Trabalho, via MP da Reforma
Administrava, representa uma grande desestruturação da defesa do trabalho prevista no
texto constucional. O retrocesso social revela-se na medida em que atuações importantes,
como scalização ao trabalho análogo ao escravo e equiparação salarial, são diluídas entre as
demais pastas.
O ponto a ser destacado reside no retrocesso do projeto democráco que esses líderes
autoritários tendem a trazer para democracias em um processo tardio de estabilização, como
é o caso da democracia brasileira. Conforme deslindado no trabalho, o ataque à democracia,
nos moldes liberais, é feito internamente por aqueles que foram legimamente eleitos. O
ponto a ser enfazado diz respeito à diculdade de compreensão do fenômeno do constu-
cionalismo abusivo ou do legalismo autocráco em comparação ao conceito tradicional de
autoritarismo.
Conforme destaca David Landau, alguns mecanismos de contenção a um atentado
andemocráco funcionam bem quando colocados ante invesdas claras (LANDAU, 2013,
p. 193). Quando, todavia, postos perante um ambiente políco ambíguo de propostas
aparentemente constucionais e legais, tendem a ser inefevos no combate a essas invesdas.
A democracia, sem limites claros impostos pela ordem constucional e por mecanismos
de contenção oriundos da sociedade civil, como a accountability, indica uma tendência à
erosão da tradição liberal democráca. Scheppele (2018), por sua vez, destaca que o perigo
de uma tendência ao majoritarismo, em que os direitos de minorias não são respeitados e a
vontade da “maioria” impera, degrada o constucionalismo e o liberalismo democráco (p.
570).
Logo, é normal, dentro de um processo democráco majoritário, que o candidato eleito
não corresponda aos anseios de todos os cidadãos, mas o que não pode ocorrer dentro de
uma democracia constucional de viés políco liberal é a supressão de direitos das minorias
vencidas e perpetuação no poder em nome de uma maioria eventual.
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Assim, a intolerância crescente no espaço público brasileiro leva a deturpações da
democracia, causando o fenômeno do majoritarismo, quando a inexibilidade com as minorias
polícas enseja uma democracia dos vencedores. Dessa feita, a implicação entre liberdades e
direitos fundamentais constucionalmente garandos diante de poderes eleitos em nome da
maioria, indicam a necessidade de respeito por parte dos eleitos a essas limitações constu-
cionais (BARCELLOS, 2011, p. 84).
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