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Combate à Corrupção e a inevitabilidade do tema atualmente

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Abstract

Presente na cultura política brasileira, a corrupção voltou à cena com a redemocratização. Este artigo discute os fatores históricos, culturais, políticos e econômicos, endógenos e exógenos que explicam sua influência nas eleições
18humanitas
CAPA
18humanitas
combate à
humanitas19
POR FERNA NDO MIRAMONTES FORATTINI
O
tema da corrupção ganha exponencial
destaque na produção acadêmica, na mí-
dia e, logo, na cultura política e no coti-
diano do brasileiro. Para se ter uma ideia dessa
dimensão, se em 1990 produzia-se, globalmente,
cerca de 300 produções cientícas ao ano sobre
o tema, em 2019 o número subiu para mais de
3 mil produções ao ano. Em 2014, os estudos
que versaram de alguma forma sobre corrupção
corresponderam a quase 13% de toda produção
mundial (Google Scholar). Na grande mídia e,
recentemente, na mídia social, a prevalência do
tema também foi crescente.
É fácil entender os motivos mais aparentes que
levaram a esse crescimento. Corrupção não só faz
parte do imaginário de qualquer brasileiro, como
possui impacto direto em sua qualidade de vida,
além de aumentar a sensação de i njustiça levando
ao descrédito das instituições democráticas, que
possuem equidade como princípio. Estudos so-
bre corrupção tendem a focar tópicos como com-
pliance, governança pública, legislação, estudos
de casos e outros. Entretanto, pouco se dá aten-
ção a seu aspecto cultural e consequente inn-
cia política (FORATTINI, 2021).
Presente na cultura
política brasileira, a
corrupção voltou à cena
com a redemocratizão.
Os fatores históricos,
culturais, políticos e
econômicos, endógenos
e exógenos que explicam
sua influência nas eleições
20humanitas
O motivo da mudança
Podemos dizer que boa
parte dessa mudança advém
da preocupação econômica e
política global proveniente dos
países desenvolvidos pós-que-
da do Muro de Berlim, bem
como do m da maioria das
ditaduras no mundo. Assim,
diversos mercados se abriram
em áreas altamente lucrativas,
mas monopolizadas e com alto
índice de corrupção (como in-
fraestrutura e energia).
O governo Clinton perce-
beu que precisaria buscar outras formas para
inuenciar a agenda global a m de substituir
o discurso bipolar da Guerra Fria. Seu secretá-
rio de comércio, Ron Brown, então, formulou a
Estratégia BEM (Big Emerging Markets), em que
sugeriu o uso de outras vertentes para garan-
tir os interesses dos Estados Unidos (EUA) –
Corrupção, Terrorismo, Democracia, Direitos
Humanos e Meio Ambiente: “A guerra fria de
base ideológica entre os Estados Unidos e a an-
tiga União Soviética foi substituída por uma paz
fria na qual as Grandes Potências lutam pela
supremacia econômica em um ambiente eco-
nômico altamente competitivo” (SCHRAEDER,
2000, p. 395).
Como dito em seu relatório de 1995, é neces-
sário criar “um framework para manter a con-
corrência em que os governos participem dentro
dos limites. Isso signica olhar para todas as
ferramentas que estão sendo usadas e tentar
desenvolver as regras do jogo para ganhar ne-
gócios” (U.S. Department of Commerce, 1995,
p. 45). A própria legislação interna dos EUA, e
depois de outros países, tornou-se empecilho
para sua competição internacional, pois proi-
bia e punia os cidadãos por práticas de corrup-
ção, mesmo que em atos realizados no exterior
(FCPA, 1977)
1
.
Isso ocorre devido a uma visão limitada
sobre cultura. Para integrantes da academia,
Organizações não Governamentais (ONGs) e
Organizações Internacionais (OIs) dedicadas
ao tema, dizer que corrupção é também um
fenômeno cultural implicaria dizer que deter-
minada sociedade tem como característica ser
corrupta. Essa visão advém de linha teórica
que associa corrupção a países subdesenvol-
vidos (ou “em transição”, cf. HUNTINGTON,
1965; MCMULLAN, 1961), associando o atraso
econômico a um suposto subdesenvolvimento
moral, de classe e institucional, que seria “cura-
do” se seguissem as prescrições e condutas de
países desenvolvidos (BANFIELD, 1958).
Transparência como mantra
Com o tempo, essa visão neocolonialista foi
atualizada por métodos quantitativos e eco-
nomicistas que visavam se distanciar dessas
prescrições dadas por Estados, sendo difun-
didas por OIs indiretamente ligadas àqueles
Estados, aparentando imparcialidade e visan-
do que suas receitas sejam aceitas sem a co-
notação de imperialistas (HALLER; SHORE,
2005).
Corrupção passou a não ser mais vista como
um problema moral interno, mas como um en-
trave à globalização e ao crescimento econômi-
co, criando custos externos ao investidor. Para
isso, o conceito de transparência foi introduzi-
do como mantra. Com o intuito de combater a
corrupção por um viés contábil, buscou-se ga-
rantir maior autonomia de servidores públicos
em relação a interesses locais de elites político-
-econômicas acostumadas a privilégios, tor-
nando as ações do Estado mais transparentes
(BRATSIS, 2014). Essa visão e esse modo de
ação são apoiados e popularizados por inuen-
tes agentes transnacionais, almejando uma
globalização com o mínimo de barreiras políti-
cas e econômicas, mas sem atacar a estrutura
que propicia a corrupção.
CAPACAPA
Além disso, a pressão interna dos países
que saíam de ditaduras por políticas mais cla-
ras e efetivas na melhor gestão do bem público
crescia exponencialmente – em especial devido
à liberdade de imprensa e expressão que garan-
tia maior conhecimento e debate sobre os casos
de corrupção durante a ditadura –, bem como
em razão dos casos que inuenciavam a opinião
pública, graças a uma sociedade que se rees-
truturava política e economicamente, trazendo
incertezas legais e oportunidades políticas e
econômicas para atos de corrupção. Assim,
conseguir “ditar as regras do jogo” a serem ado-
tadas era vital.
Corrupção burocrática/política
Se analisarmos a presença do termo corrup-
ção em documentos do Legislativo e do Executivo
dos EUA, notaremos um aumento avassalador
da importância do tema, especialmente quan-
do correlato à questão da transparência. Não
é mera coincidência que a teoria mencionada
acima tenha surgido nes-
sa época no campo da
Economia e das Relações
Internacionais, e não mais
no das Ciências Sociais.
Também não é coinci-
dência que organizações
como a Transparência
Internacional (TI) tenham
surgido nos anos de 1990
junto com outras gran-
des campanhas lançadas
pelo Banco Mundial, FMI
e OCDE, tornando o tema
anticorrupção norma,
mas com escopo limitado
(POSTERO, 2000). Esses
organismos não são ques-
tionados sobre suas mot iva-
ções, doadores e inuência
que desejam possuir.
Obviamente, a ideia de transparência pos-
sui benefícios e revoluciona o modo como o
governo brasileiro passa a prestar contas à
sociedade, concretizando a democracia. Mas,
vale dizer, esse princípio já era previsto pela
Constituição de 1988 (aparecendo como pu-
blicidade) e foi se especializando até o país
virar modelo de governança pública [a partir
do governo FHC e os anos 2000]. O problema
está em tratar a corrupção apenas pelo viés
econômico-contabilístico, sem compreender
quem são os atores propugnadores desse mo-
delo, suas intenções político-econômicas e seu
modo de atuação que pode, inclusive, solapar
as bases do Estado Democrático de Direito, in-
centivando ainda mais corrupção.
Burocratas e políticos
Há que se distinguir entre corrupção
burocrática e política. A primeira é o desvio
do princípio de indiferença na aplicação
de leis, como subornos e outras vantagens
ilícitas, criando entraves
aos investimentos
econômicos. Já a segunda
ocorre quando interesses
particulares interferem
na criação das leis. Não é
estranho que essas OIs e
empresas transnacionais
não busquem combater a
inuência de interesses
privados, como os seus, no
processo político – às ve-
zes tentando normalizá-lo.
Reportagens do site
The Intercept Brasil re-
velaram que membros da
TI Brasil possuíam rela-
ções nada transparentes
(back-door politics?) com
membros da Lava Jato,
tendo acompanhado o ju-
humanitas21
22humanitas
CAPA
rista Deltan Dallagnol em reunião privada
com empresários para debater as eleições
de 2018; havia negociações para ajudar
na imagem privada deste e da Operação;
além disso, tiveram acesso à minuta e ain-
da opinaram sobre a constituição de uma
fundação privada que utilizaria o dinheiro
público, recebido da
Petrobrás (R$2,5 bi-
lhões), entre outras
ações
2
. Para muitos,
a imagem de neutrali-
dade da organização
no Brasil foi prejudica-
da: “as manifestações
dessa instituição estão
gravemente maculadas
pelo desvirtuamento
ético de seus mem-
bros, que hoje não se
revelam minimamente
legitimados a fazer ava-
liação séria do combate
à corrupção no Brasil”
(fala de Gilmar Mendes,
GGN, 07/11/2019).
As própr ias recomen-
dações de governança
dessas OIs possuem
problemas intrínsecos.
Não consideram as de-
sigualdades políticas,
administrativas, cultu-
rais e socioeconômicas
entre países, o que leva
a crer que buscam uma
homogeneização nor-
mativa e política. Sua
suposta neutralidade
vira um poder nor-
mativo (FOUCAULT,
1991). Outro problema
advém da impossibili-
dade de se quanticar a corrupção, crime com
tipicações normativas distintas entre países
e que, em um cenário técnico-informacional
globalizado, torna-se virtualmente não rastre-
ável. De fato, não medem a corrupção em si,
mas a percepção de agentes privados sobre a
corrupção no poder público.
Percepção x realidade
O famigerado Índice de
Percepção da Corrupção da
TI, que elenca os países em
“menos ou mais corruptos”,
é exemplo dessa tática. Seus
problemas são inúmeros. O
óbvio ululante é que entre tal
percepção e a realidade há um
abismo. Respostas dadas em
determinados anos podem ter
sido inuenciadas por vieses
político e ideológico, além de
divergências contra leis que
muitas vezes os afetam, entre
outros exemplos.
O segundo problema é que
boa parte desses estudos fo-
cam apenas a percepção de
agentes privados. Ora, ao
“esquecer” que agentes pri-
vados participam ativamente
do processo de corrupção,
esse ranking traz consigo a
ideologia de que o mercado
é corrompido pelo Estado,
com sérias implicações em
seu receituário de combate à
corrupção.
Tratar agentes privados
como dotados de moral su-
perior é erro básico, como
se eles não fossem dotados
de motivações, ambição etc.
que levem à corrupção – ain-
22humanitas
humanitas23
Entretanto, o lado po-
sitivo desses rankings
é que, ao menos, eles
mantêm em evidência,
anualmente, o combate
a um dos maiores ma-
les ao desenvolvimento
econômico, político e
social. O problema é o
modo como vem sendo
colocado em pauta.
Discurso
anticorrupção
Apesar disso, como
mensurar seu impacto
político e cultural? Está
a preocupação com a
corrupção diretamente
ligada ao número de
casos de corrupção?
Ou, como muitos ar-
mam, advém de mani-
pulação por parte de
elite conservadora, ou
mesmo por “conspira-
ção imperialista”? Em
geral, as duas respostas que receberemos são as
que descrevo a seguir. A primeira é falha, pois,
como visto, corrupção é um dos crimes de mais
difícil mensuração, por motivos conceituais ou téc-
nicos. A segunda é simplista, esquemática e, por
isso, falha em tentar compreender o tema em sua
complexidade.
A manipulação é importante elemento que não
deve ser relegado – por exemplo, estudos mos-
tram que há verdadeira “indústria anticorrupção”
no mundo (SAMPSON, 2010), além de importan-
tes fatores geopolíticos envolvendo interesses não
só econômicos, mas também de defesa interna.
Entretanto, a excessiva ênfase na manipulação
impossibilita a compreensão da gênese da força
do discurso anticorrupção em todos os grupos so-
da mais no ambiente privado em que há forte
incentivo para maximizar lucro e conquistar
mercados. Outro exemplo disso é excluírem
empresas. Países como a Suíça, apesar de ela
ser paraíso scal e de ter inúmeras organiza-
ções relacionadas a casos de corrupção, con-
tinuam com ótimas séries históricas. Aliás,
outros países, como os EUA e a Inglaterra,
não caíram de posição, mesmo após escânda-
los como Enron, LIBOR, Lehman Brothers e
AIG. “Essa agenda anticorrupção não é efeito
da agenda neoliberal, é a própria agenda neo-
liberal” (SAMPSON apud HALLER; SHORE,
2005).
Ranking inacabado e subjetivo
Por m, baseando-se em percepções, esses
rankings tendem a reforçar resultados anterio-
res. Pessoa nascida em país que há décadas
ocupa boa posição terá muito menos inclina-
ção a dimensionar a corrupção nesse país,
muitas vezes minimizando casos como algo
fora da curva. Já nos países que sempre gu-
raram como países corruptos, os agentes que
colaboram com essa pesquisa tenderão a su-
pervalorizar qualquer caso de corrupção, mes-
mo que o combate a ela, no plano maior, esteja
sendo feito. Além disso, existe o componente
ideológico das pessoas entrevistadas, algo
que inuencia qualquer avaliação baseada
em percepção.
Por exemplo, desde que Bolsonaro ganhou
as eleições, apoiado pela classe empresarial
brasileira, apesar do combate à corrupção
ter arrefecido
3
, ainda assim, o nível do IPC
não sofreu queda (subiu), encontrando-se no
mesmo patamar de 2015, quando, apesar das
denúncias, MPF, PF e PGR gozavam de liber-
dade de ação, de existir transparência nos
gastos públicos e de a Lei Anticorrupção ter
sido promulgada.
Ou seja, em vez de quantitativo e neutro,
o que há é um ranking inacabado e subjetivo.
humanitas23
24humanitas
ciais, sua aceitação e inuência política e cul-
tural. É a correlação entre as aspirações morais
partilhadas pela sociedade, aliada a objetivos
circunstanciais da luta anticorrupção que fará
com que exista a instrumentalização. Sendo
ela consequência, e não gênese. A constituição
de toda uma cultura política relativa à corrup-
ção deve ser compreendida como resultado de
complexa combinação entre manipulação e
convicção.
Essa heterogeneidade é fundamental para
se compreender as bases ideológicas das di-
versas frentes da luta anticorrupção no Brasil,
que apesar de possuírem lugares sociais de
emanação diversicados, muitas vezes serão
amalgamadas sem preocupação ideológica
devido a objetivos políticos. Entretanto, como
o grau de cooperação entre esses grupos é, no
longo prazo, efêmero, os interesses subjacentes
permanecerão diversos, garantindo pluralidade
social, ideológica, narrativa e imagética. Algo
muito além da simplicação em que se busca
taxar manifestações anticorrupção de movi-
mento exclusivo de determinada classe social,
algo que não corresponde – em quase nenhum
momento histórico – à realidade brasileira
4
.
A gênese da força do tema
A explicação da ecácia desse discur-
so, entendendo a corrupção como uma força
amalgamadora de discursos, vontades e re-
presentações sociais, reside, principalmente,
em seu aspecto moral, histórico e cultural.
Primeiramente, trata-se de um discurso moral.
Todos possuímos um código ético e moral im-
buído em nossa formação identitária que apli-
camos diariamente em nossa vida (ADLER et
al., 2017). Estudos mostram que, em qualquer
decisão que tomamos, o aspecto moral é cru-
cial nesse processo, e normalmente as pessoas
preferem sofrer algum mal – mesmo que físico
– para não serem taxados de imorais (GREY;
SCHEIN; WARD, 2014, 2015).
Assim, quando podemos inuir diretamente
na política do país, a moralidade, normalmen-
te via corrupção, possuirá maior relevância.
CAPA
No entanto, essa resposta não é
tão simples, pois todos os políti-
cos são analisados pelo espectro
moral do eleitor, sempre em
mutação. Logo, às vezes, partidos
serão severamente punidos por
casos de corrupção; outras vezes,
apenas marginalmente, quando
diferentes fatores e atores serão ti-
dos como ainda mais imorais que
o tema da corrupção, como a fome,
o desemprego etc. (CORDERO;
BLAIS, 2017).
O segundo fator é de ordem
histórico-estrutural. O fato de a
importância do tópico da corrup-
ção estar crescendo é que, desde a
Segunda Guerra Mundial, não só
vemos o aumento da discussão so-
bre o papel da moralidade em atos
governamentais, aliado à impor-
tância da liberdade individual e
de outros direitos humanos, como
haverá predomínio estadunidense
no campo político-econômico no
Ocidente. Esse país irá frequen-
temente exportar o ideário de seu
sistema liberal-democrático, uma
das formas mais ecazes em in-
uenciar a arena global (seu soft
power).
Enigma ou fato social?
Nesses sistemas liberais, a dis-
tinção entre bem público e priva-
do é mais bem delineada que em
outros, como no comunismo. Essa
delimitação é tão patente e ine-
rente ao sistema liberal que boa
parte da sociedade, em períodos
de eleições, utilizará essa distin-
ção como uma de suas principais
balizas eleitorais. Além disso, fa-
tores como a convivência com um
sistema socioeconômico, como o
brasileiro, injusto, desigual e vio-
24humanitas
humanitas25
lento, especialmente por parte do
Estado, faz com que diversos se-
tores sociais busquem soluções
simplistas
5
, muitas vezes antissis-
tema, por exemplo, propor o m
da corrupção como a solução de
todos os males, levando à aposta
em “justiceiros” ou “salvadores da
pát r i a.
Outra questão, menos percepti-
va, é corolário dos dois primeiros
fatores, algo que somente ago-
ra o campo da Antropologia da
Corrupção explica. Essa discipli-
na compreende o discurso anticor-
rupção como algo sutil e complexo,
como uma “conversação”, e não
pelo usual sentido provincia-
no/puritano (VISVANATHAN;
SETHI, 1998). A corrupção seria
um relacionamento polissêmico e
importante pelo qual indivíduos
se conectam com o Estado, sendo
tanto enigma quanto fato social
6
.
Pesquisas antropológicas em
todo o mundo notaram que mes-
mo que existam assuntos mais
importantes em variados grupos
sociais, a maioria das conversa-
ções versará sobre o tema da cor-
rupção. Em pesquisa coordenada
na Índia, as chamadas corruptions
talks (conversas que giram em
torno da corrupção) prevaleceram
sobre qualquer outro tópico, sen-
do mais frequentes que folclores e
discussões sobre o estado das co-
lheitas e de políticas públicas que
os afetavam (PARRY, 2000).
Na Bolívia, ocorreu o mesmo:
“as pessoas conversavam sem
parar sobre corrupção: corrup-
ção era como elas faziam sentido
da política e do Estado” (LAZAR
apud HALLER; SHORE, 2005, p.
216). Isso também foi observado
em estudos comparativos sobre corrupção na
América Latina e Europa (MITCHELL, 2002).
Assim, a relação entre corrupção e narrativa,
no sentido de “contar história”, passar opini-
ões/conhecimentos/julgamentos não pode ser
subdimensionada.
Desconectados do Estado
Com a adoção do sistema liberal (e princi-
palmente do neoliberal) há inegável diminui-
ção da presença do Estado na vida cotidiana
e, quando se faz presente, para grande parte
da população, sua associação é negativa (de-
sigualdade social, violência, má prestação de
serviços etc.). Tal afastamento gradativo, alia-
do à crescente complexidade dos temas que
inuenciam a agenda pública, faz com que as
pessoas se sintam desconectadas dele e dos
rumos políticos da nação.
Será pela utilização de um dos meios mais
básicos e imediatos de se realizar julgamen-
tos – pela via moral, em especial utilizando as
corruption talks – sobre os rumos políticos do
Estado que a população buscará sentir-se, de
alguma forma, conectada com a arena pública.
Essa opinião pode ser, levianamente ou não,
atrelada a qualquer ato político. Todos nós já
passamos por situações em que qualquer for-
ma de discussão política se atrelou, invariavel-
mente, à corrupção. O que importa no debate
anticorrupção não é tanto a sua existência,
mas o fato de ela ser largamente acreditada
(percebida) de existir.
Instrumentalização
Assim, quando um dos tópicos mais rela-
cionáveis e utilizados pela sociedade como
principal forma de integração política com o
Estado é instrumentalizado, seu poder como
aglutinador de eleitores terá mais força do que
qualquer outra forma de discurso político.
Políticos populistas, de esquerda e de direi-
ta, farão uso desse discurso representando-
-se como honestos, muitas vezes prometendo
“limpeza” política estrutural, seja por vias de-
mocráticas, seja por soluções autoritárias.
humanitas25
26humanitas
Infelizmente, não há espaço para de-
monstrar quando tais discursos ocor-
reram. Basta dizer que o moralismo
anticorrupção manifesta-se em ambas
as vertentes políticas, muitas vezes
de difícil distinção; outras, em casos
extremos, facilmente identicáveis. É
difícil precisar os incentivos políticos
que levam partidos a utilizar o discurso
anticorrupção e seu grau de relevância.
Entretanto, para preencher essa lacuna
de modo satisfatório, utilizaremos o
conceito de tópicos de valência
7
.
Discurso sempre presente
Existem ao menos três formas bási-
cas de atuação política com o eleitorado.
Na primeira, pode-se adotar uma atitu-
de posicional em questões políticas que
criarão claro conito de interesse entre
eleitores (como ser contra ou a favor de
projetos assistenciais; casamento homo-
afetivo etc.). Pode-se adotar atitude não
posicional em políticas de valência, ou seja, em
questões pacícas que não dividem o público
(como a redução da violência e desemprego); e,
por m, atitudes posicionais em valência, mas
não relacionadas a políticas públicas. Essas di-
videm o público, apesar de seu julgamento ser
pacíco (por exemplo, sobre corrupção ser ruim
ou não, todos concordam que é ruim) (CLARK,
2014). O discurso anticorrupção corrente fará
parte desse último agrupamento: é baseado em
qualidades, mas não em reais propostas.
Para entender a força desse tipo de posicio-
namento, deve-se saber que posições políticas
de modo algum abrangem todos os aspectos da
disputa eleitoral. Identicação e lealdade política
e partidária, por exemplo, possuem tanta força
quanto a posição de determinado partido sobre
algum tópico de governança pública. Candidatos
competem não tanto por propostas, mas por
“mais qualidades” (o crescimento da importância
do carisma é fulcral para o desenvolvimento des-
sa forma de política). Não importa tanto “o que
deve ser feito”, mas “quem diz que pode fazer”.
Aumento dos incentivos
Com o m da Guerra Fria, vê-se quão im-
portante foi esse período, ao entrarmos em
uma “era de relativo consenso” sobre certos
temas ideológicos: houve certo nivelamento de
importantes propostas discutidas na arena pú-
blica, exigindo uma nova forma de comunica-
ção política com o eleitorado para que partidos
se distinguissem, resultando na atual predo-
minância dos “tópicos de valência” dotados de
forte carga emocional, geralmente negativa.
A politização desse tema virou regra global.
Os males socioeconômicos ocasionados pela
corrupção, aliados à força do discurso anticor-
rupção como elemento cultural unicador en-
tre indivíduos, grupos e o Estado, trouxeram
ganhos políticos expressivos ao tópico.
Calma lá, não é tão simples
Ademais, essa estratégia não é garantia de
voto. Primeiramente, o mensageiro deve ter o
mínimo de credibilidade. Se sua imagem é vis-
ta como corrupta, a chance dessa mensagem
CAPA
humanitas27
ser positiva é pequena, sendo o efeito contrário
ainda maior. Além disso, a abundância de escân-
dalos e a clara exploração do tema leva a uma “fa-
diga eleitoral” – o que identico como “períodos
frios”. Por m, políticos que utilizaram o tema
serão avaliados com maior escrutínio e serão pu-
nidos severamente se incorrerem em falha.
Não sem motivo que a partir da implementa-
ção deste tema como prioridade global, teremos
incremento da preponderância quando presiden-
tes buscam se comunicar diretamente com o pú-
blico no Brasil.
Entretanto, quando esses mesmos presidentes
se comunicam de forma pragmática e propositiva,
como em suas Mensagens Anuais ao Congresso
e em discursos pós-posse, vemos que há incrível
constância histórica na preponderância do tema,
muito abaixo da ênfase em seus programas par-
tidários e discursos pré-eleitorais, atestando
claramente que todos, independentemente de
orientação ideológica, entendem a força eleito-
ral desse discurso a seu favor, só diminuindo a
ênfase quando no poder – seja por não possuir
real agenda, seja por evitar tocar em tópico que
pode minar seu governo, ou por falta de articula-
ção política para combatê-la.
Conclusões
O tema da corrupção é um dos tópicos mais
complexos e poderosos, enquanto fator eleitoral
e coesivo de grupos sociais atualmente. Fatores
morais, culturais, econômicos, estruturais e his-
tóricos, que contemplam variados interesses,
internos e externos (seja por questões de inuên-
cia política, econômica ou mesmo de segurança
interna
8
), entram em jogo em sua denição, uso,
instrumentalização e, mesmo, em formas de a-
lise. Taxá-la apenas de instrumentalização é erro
e/ou demagogia, que repetem os mesmos eq-
vocos dos anos de 1950 (cf. JAGUARIBE, 1954).
Vários dos temas aqui suscitados e correla-
cionados, como a importância do carisma e seu
valor no desenvolvimento desse discurso, a rela-
ção entre corrupção e as normas propostas por
esses organismos internacionais, as variações
sobre o que entendemos como corrupção, cor-
rupção moral privada e sua força aglutinadora e
motivadora em movimentos sociais em seus va-
riados estratos etc., devem servir para aguçar o
leitor a buscar leituras complementares, pois em
si só são livros. Busquei resumir de modo com-
preensível, organizado (nada fácil) e agradável a
todos os temas mais estruturalmente relevantes
e condicionantes no atual debate anticorrupção
brasileiro pela perspectiva da corrupção em rela-
ção ao bem público.
Foi somente com o governo FHC que se notou
a inevitabilidade desse movimento global, optan-
do-se por uma política externa proativa que pos-
sibilitasse ao menos alguma forma de inuência,
alcunhada de “autonomia pela integração”, ao in-
vés da agenda externa de caráter reativo até então
adotada chamada de “autonomia pela distância”
9
(V I G E VANI et al., 2003). Tratava-se de um mo-
vimento global que veio para car, com grandes
repercussões num país historicamente abalado e
inuenciado por esse discurso. Logo, englobando
muito mais do que a perspectiva econômica-con-
tábil nos mostra – que, apesar de certos avanços,
também nos trouxe muitos males desde a década
de 1990, especialmente por via de muitas de suas
prescrições advindas de um campo teórico limita-
díssimo (ROTHSTEIN, 2005).
Sem heróis justiceiros
O que importa é que a sociedade, e nesse caso o
papel da sociedade civil é essencial, saiba “limpar”
ao máximo esse discurso de suas demagogias e
busque entender perfeitamente quem são esses
emissores e como eles a utilizam. Também são
essenciais planos de ação de seus representantes
e que se refute o apoio em valência de “heróis/jus-
ticeiros” que limpariam com um toque de mágica
algo estrutural de que, por sinal, eles fazem parte.
Esses atores somente produzem a divisão so-
cial na base dos “bons” contra os “ruins” e, no
m, erodem ainda mais as bases de nossa demo-
cracia. O discurso anticorrupção mal colocado,
no nal, é tão erosivo e, por vezes, até mais
quanto a própria corrupção. No nal, a história
nos diz que muitos de seus propositores até a in-
centiva.
humanitas27
28humanitas
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de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São
Paulo, v. 15, n. 2, p. 31-61, 2003.
FERNANDO MIRAMONTES
FORATTINI é doutorando em
História Cultural pela PUC-
SP, com bolsa de estudante
visitante na Universidade de
Chicago. Possui especialização
pela Univer sidade de Michigan,
Universidade da Pensilvânia e
pela Transparency International
School on Integrity (Lituânia).
É autor dos livros Foi Golpe!
O humor como resistência aos
discursos legitimadores do
golpe de 1964 e Desmistificando
o governo Castelo Branco e sua
relação com a grande mídia. O
presente texto é versão revista
e reduzida de artigo publicado
em Ideologia: uma para viver.
Miramontes@uchicago.edu
NOTA S
1 É estimado que o FCPA
(Foreign Corrupt Practices Act)
tenha custado em contratos às
empresas estadunidenses mais
de US$11 bilhões.
2 Para melhor compreensão
das ações e conversas entre a TI
e a força tarefa, conferir artigo
A aliança da Lava Jato com a
Transparência Internacional” no
site da Agência Pública.
3 Com Bolsonaro, casos
de corrupção são pouco
investigados, gastos não são
divulgados, o País é governado
por orçamentos secretos
e gabinetes paralelos; a
independência da PF foi tolhida;
o PGR atua pela omissão;
e a própria Lava Jato, que
impulsionou sua campanha, foi
finalizada, pois, de acordo com
Bolsonaro, “não havia mais
corrupção no País”.
4 Jânio, por exemplo, não pode
ser taxado de político “da classe
média” – narrativa comum.
O homem do “tostão contra
o milhão” possuía enorme
apoio popular, sendo sua
base principal as populações
de renda mais baixa. Se a
classe média o apoiou, isso
faz parte de um discurso que
encontrava ressonância nela
e em outras classes. Mesmo
outros políticos de imagem
elitista, como Collor, que tinha
o discurso anticorrupção como
principal bandeira eleitoral,
tiveram desempenho contrário
ao discurso recorrente. Quatro
dias antes das eleições, Collor
perdia para Lula em eleitores
de classe média e alta. Seu
principal público era o de menor
renda e escolaridade (MOISES,
1990, p. 144).
5 Nesse caso, o leitor se
beneficiará muito de leituras
sociológicas, que focam a
formação desses movimentos
sociais e de suas demandas
e formas de ação, de
pesquisadoras como Angela
Alonso, Rosana Pinheiro
Machado, Yanilda Gonzales
entre outras.
6 Conjuntos de hábitos
praticados por indivíduos,
determinados pela consciência
coletiva.
7 Grosso modo, são tópicos
em que não há, virtualmente,
discordância entre eleitores
sobre suas qualidades/defeitos,
o que faz com que o eleitorado
diferencie cada candidato
ou partido não pelas suas
propostas, mas pela avaliação
afetiva “negativa” ou “positiva”
de suas características e
símbolos.
8 Creio, dados mostram, que a
vertente corrupção e terrorismo
será uma das mais influentes
nos próximos anos, por
motivos legítimos e ilegítimos,
em razão de sua inevitável
instrumentalização, sendo ela
uma das principais causas de
desestabilização política, devido
ao modo como foi posta em
prática no Brasil. Mas isso é
assunto para outro artigo.
9 Isso não significa que se
tratou de simples adoção das
normas externas. Tanto em FHC
quanto nos governos futuros,
houve tentativa de influenciar
essas normas e mesmo
resistência em sua aplicação
interna por motivos variados.
CAPA
Título: Ideologia: uma para viver
Autores: Juliana Fratini (Org.)/
Vários – entre eles, Fernando
Miramontes Forattini
Págs.: 232
Editora: Matrix
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